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Serviços Públicos: da lógica estatal à lógica empresarial

Kenys Menezes Machado


kenysm@gmail.com
Fabiane L. Bitencourt Pinto
fabiane_louise@yahoo.com.br

Resumo

O setor de serviços vem se expandido desde meados do século passado


devido a uma série de mudanças que o sistema capitalista vem sofren-
do. Entre estes serviços encontram-se os serviços públicos, que surgem
como um instrumento do Estado para instituir sua autoridade sobre o
domínio público. Eles tiveram sua maior expansão nos países desen-
volvidos, mas vem passando por um processo de privatização, mesmo
nos países em desenvolvimento. A passagem da lógica estatal para a
empresarial, sem os cuidados devidos, podem aumentar os riscos de
exclusão social.

Palavras-chave:Serviços públicos. Estado. Privatização. Exclusão social.

Public services: of the state logic the enterprise logic

Abstract
Since the middle of the last Century, the services sector has expanded
because several changes in the capitalism system. Among these servic-
es, there are the public services, which appear as an instrument of the
State to institute its authority on the public domain. They had its bigger
expansion in the developed countries, at same time it is experiencing
a privatization process, even in the developing countries. The change
of the State logic for the enterprise one, without the needed care, may
increase the risks of social exclusion.

Keywords: Public services. State. Privatization. Social exclusion.

1 Introdução

A expansão do setor de serviços na segunda metade do século passado


é decorrência de uma série de mudanças que o sistema capitalista vem pas-
sando. As explicações para tal fenômeno mostram-se limitadas se analisa-
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das de forma isolada (OFFE, 1994) e se não levarem em consideração
a profunda heterogeneidade do setor (GADREY, 2001). Sob este amplo
guarda chuva, encontram-se como produto desde serviços de engenharia e
financeiro até cultura, saúde e educação.
Dentro deste setor, situam-se os serviços públicos, cuja área de atuação
é bastante ampla em consonância com a demanda da sociedade para o aten-
dimento de certas necessidades sociais. Essas demandas vão sendo atendidas
nos países desenvolvidos sob a égide do Estado de Bem-Estar, sendo que
este grau de atendimento vai variar consideravelmente entre estes países e
ocorrerem de forma limitada (ou praticamente inexistente) nas nações em
desenvolvimento.
A passagem do fornecimento destes serviços para a iniciativa privada é
apontada como decorrente de uma série de fatores, que vão da crise finan-
ceira do Estado até a pressão dos investidores privados, em busca de alterna-
tivas lucrativas para o capital. Mesmo dentro dos serviços públicos há uma
gama de serviços, cuja estrutura de mercado, condições de fornecimento e
potencial gerador de externalidades diferem entre si, e que não podem ser
tratados da mesma maneira. Além disso, dentro de uma sociedade marcada
pela desigualdade e com altos índices de pobreza, como a brasileira, não se
pode descartar estes serviços como instrumento de atendimento a certas ne-
cessidades que a maioria da população não teria acesso de outra forma.
Com a privatização de certos serviços e, assim, da passagem para uma
lógica voltada para a eficiência e o lucro, corre-se o risco de se demandar
mais políticas sociais e de combate à pobreza, para compensar os efeitos ex-
cludentes de tal alternativa. A limitação orçamentária dos Estados aliada a
pressão da sociedade, por mais e melhores serviços, tornam as escolhas mais
difíceis, mas não menos responsáveis e adequados as diferentes conjunturas.
A análise do contexto da ampliação destes riscos, passando da lógica estatal
para a empresarial, é o objetivo do presente texto.

2 A expansão dos serviços

Os serviços se distinguem dos produtos decorrentes de produção in-


dustrial ou agrícola, segundo Melo (1997, p. 2), pelo fato de serem “[...]
intangíveis, intransferíveis, não estocásticos e apresentarem contato direto
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entre produtores e consumidores.” Enquanto, uma mercadoria pode ser ar-
mazenada e transferida de um consumidor para outro, o serviço envolve uma
relação direta entre o produtor e o consumidor, cujo resultado pode ser sen-
tido ao longo do tempo, mas o seu produto é criado e consumido no decorrer
do processo (SASSER, 1978).
Essas características aliadas às transformações no sistema capitalista fiz-
eram com que o setor de serviços tivesse uma grande expansão tanto em
termos de participação no PIB como em relação à geração de empregos. De
acordo com Gadrey (2001), as explicações tradicionais para esse crescimento
no setor de serviços são as seguintes: (1) a primeira explicação supõe que a
elasticidade da demanda por serviços seja superior a1, ou seja, que a deman-
da por serviços cresça a uma taxa mais alta à medida que a renda per capita
aumente1; (2) a segunda refere-se a tendência ao aumento da demanda in-
termediária pelas organizações. Estas prefeririam delegar parte da produção
[normalmente relacionada a serviços] a outras empresas e serem abastecidas
por elas. (3) A terceira explicação argumenta que a produtividade do setor
de serviços é menor que o da indústria e da agricultura; assim, mesmo que a
quantidade de bens e serviços aumentasse no mesmo ritmo, os empregos nos
serviços cresceriam a uma taxa maior.
As críticas de Gadrey (2001) a estas explicações referem-se à limitação
nas formas de mensuração, ao se tentar medir da mesma forma, diferentes
serviços encontrados em um setor tão heterogêneo. Dentro deste setor, have-
ria um grupo importante de serviços cuja participação no emprego cresce
pouco, nada, ou começa a regredir [transportes, bancos, telecomunicações],
enquanto outro grupo de serviços vem crescendo de forma significativa o
número de empregos [saúde, turismo, educação, ação social]. Além disso, a
extensão aos serviços das medidas de produtividade de outros setores não
poderia ser utilizada de forma uniforme; mesmo que se tente adaptar estas
medidas, isto poderia não ser possível por dificuldades de mensuração ou por
possuírem lógicas diferentes (GADREY, 2001).
Antes de expor as causas encontradas na literatura para a expansão do
setor de serviços, nas últimas décadas, Offe (1994) também destaca algumas
limitações de mensuração neste setor, que torna as dimensões daquele cres-
cimento muito dependente da metodologia adotada, e inclui as explicações
expostas por Gadrey (2001) em um quadro mais amplo e dinâmico. Para

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Offe (1994), o trabalho no setor de serviços está localizado entre duas racio-
nalidades: “[...] a racionalidade da ‘economia industrial’ baseada no emprego
contratual, que impõe a especificação detalhada dos meios e fins, e o controle
vertical direto sobre a atividade laboral, o pequeno campo de manobra e os
altos níveis de estandartização” (OFFE, 1994, p. 138); e “[...] a racionalidade
da ‘mediação e conciliação’ típica das atividades de serviços, que requerem
espaço de manobra justamente com o objetivo de responder como
serviços a atividades específicas” (OFFE, 1994, p. 138). Esta característica
do setor seria parte de uma das explicações que o autor separa da seguinte
forma: (QUADRO 1).

QUADRO 1
Representação esquemática das principais explicações
do desenvolvimento do setor de serviços

Necessidade/demanda Oferta no mercado de trabalho


Integração do sistema Necessidade crescente de Absorção do excedente
(condições de equilíbrio) controle, devido à complexidade estruturalmente crescente do
crescente mercado de trabalho
Integração social Mudanças na demanda das Mudanças na preferência e na
(orientação da ação) famílias devido ao crescimento autonomia dos fornecedores de
da renda serviços para definir necessidades

Fonte: OFFE, 1994

A primeira causa refere-se às necessidades sistemáticas de serviços em uma


sociedade capitalista. A expansão dos serviços é condição necessária e natural
ao avanço (e até mesmo pré-condição) do capitalismo industrial, pois o au-
mento da complexidade das relações aumenta a demanda por trabalhadores
em atividades ‘especializadas’, como a financeira, segurança, comunicações,
seguros e justiça. Esse aumento de complexidade requer o aumento do con-
trole das relações envolvidas no sistema, entre elas, a relação entre trabalho e
capital. No sistema capitalista, o trabalho torna-se mercadoria; contudo, ela
não pode ser “estocada” como uma mercadoria qualquer, mas deve ser “con-
quistada” ou controlada, fazendo surgir novos serviços.
A segunda causa estaria associada à existência de déficits de emprego, no
qual o setor de serviços absorveria este excedente não devido a uma maio
demanda por seus produtos, mas por possibilitar a regulação das tensões e

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possíveis conflitos através do emprego:
[...] nas sociedades capitalistas industriais desenvolvidas existe um exce-
dente estrutural, embora latente, de mão-de-obra, porque o aumento da
produção apresenta-se defasado em relação ao aumento a produtividade.
Uma vez que os vendedores da força de trabalho, desprovidos de pro-
priedade, não podem voltar ao setor primário nem entrar no mundo dos
economicamente autônomos, essa força de trabalho é continuamente
transferida para o setor terciário. Dessa forma, o setor de serviços con-
tribui ao nível da integração do sistema, principalmente através de suas
funções latentes, e não manifestas. Essas funções latentes consistem na
distribuição de tarefas para a força de trabalho excedente sob o pretexto,
por assim dizer, de que existe uma necessidade à qual este trabalho re-
sponde. (OFFE, 1994, p. 147).

Como exemplo, ter-se-ia os serviços sociais prestados pelo Estado. Estes


argumentos são complementares, pois o primeiro versa sobre a necessidade
[demanda] de atividades no setor de serviços e o segundo sobre a possibi-
lidade de se atender [oferta] a esta demanda. As principais críticas são as
seguintes: dificuldade em definir as necessidades funcionais ou sistêmicas e
impossibilidade de delimitar a quantidade de empregos para dar ordem ao
sistema, ou seja, o equilíbrio entre a demanda e oferta.
A terceira causa inclui a lei de Engel aplicada aos serviços: o aumento
de produtividade no setor secundário provocaria um aumento na renda das
famílias, possibilitando uma maior demanda por bens e serviços. Como há
uma tendência maior à saturação dos bens de consumo em relação aos ser-
viços, estes tendem a crescer em relação àquele, tanto em relação à demanda
por produtos, como em relação ao emprego, pois, neste setor, haveria um uso
mais intensivo de mão-de-obra.
Esta linha de argumentação apresenta os seguintes problemas: o aumento
de demanda não precisa, necessariamente, se focalizar no setor de serviços,
pois pode haver um deslocamento para outros tipos de bens ou serviços me-
nos intensivos em trabalho (como o self-service); a menor produtividade
deste setor pode provocar aumentos significativos nos preços dos serviços,
reduzindo relativamente sua demanda; e esta argumentação não explica o
crescimento na oferta de serviços públicos e o aumento da demanda por
serviços pelas empresas, que responde por parte relevante daquele consumo.

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A quarta e última explicação destacada por Offe (1994) refere-se à
pressão no lado da oferta, decorrente dos interesses dos trabalhadores. Estes
prefeririam trabalhar no setor de serviços, pois, nesta esfera, as condições
objetivas e subjetivas de trabalho [em tese, menos penoso e alienante, por
exemplo] seriam melhores que nos outros setores. Com isso, os trabalhadores
buscariam desenvolverem cada vez mais alternativas individuais e coletivas
para se inserir e tirar proveito neste setor. Contra esta explicação, haveria os
seguintes problemas: aumentos de produtividade nos serviços provocariam
uma redução na oferta de emprego, mesmo com uma maior demanda; ex-
istência de limites financeiros [principalmente no setor público] à absorção
da mão-de-obra, e possibilidade de saturação na demanda por serviços ou
aumento da satisfação através de outras formas de realização dos serviços,
como a ajuda mútua (OFFE, 1994, p. 164).
Essas argumentações, se analisadas de forma individual, não são sufici-
entes para explicar o crescimento dos serviços, mas destacam a importância
do setor na integração social e do sistema. Dentro desta lógica de integração,
os serviços públicos possuem papel relevante no apaziguamento de conflitos
sociais latentes, através do atendimento a certas necessidades básicas e utiliza-
ção como política pública estabilizadora do sistema. Isso só pode acontecer
se os serviços estiverem sendo fornecidos pelo Estado; caso contrário, serão
utilizadas políticas sociais e econômicas diversas para preencher o vazio insti-
tucional [ou desequilíbrio macroeconômico] provocado por possíveis prob-
lemas decorrentes da passagem dos serviços públicos do setor público para o
setor privado.

3 Dos serviços públicos à lógica empresarial

Os serviços públicos surgem inicialmente como um instrumento do Es-


tado em estabelecer sua autoridade sobre o domínio público (FADUL, 1997).
Segundo Fadul, (1997,p.59) “[...] o serviço vai-se constituir na organização
que utiliza para impor a ordem pública e social; o domínio público passa a
ser o instrumento material do qual se dota para a realização de suas funções.”
Associado ao atendimento a certas necessidades sociais básicas, os ser-
viços públicos expandiram-se com o advento do Estado de Bem-Estar. O
Welfare State é um sistema amplo de proteção social fornecido pelo Estado
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com o objetivo de melhorar o bem-estar dos indivíduos. Há basicamente três
modelos ocidentais (LAVINAS, 2000; SUPLICY, 2002):
- O bismarckiano2, no qual os trabalhadores fornecem obrigatoriamente
uma parte de sua renda para um fundo comum que poderá ser utilizado
por estes indivíduos quando não puderem trabalhar, seja devido à idade,
doença ou desemprego involuntário;
- O beveridgiano3, no qual todos os que auferem renda, seja do próprio
trabalho ou do capital, devem obrigatoriamente contribuir para um
fundo que beneficiará a todos os membros da sociedade ao fornecer um
nível mínimo de recursos e serviços para aqueles que por algum motivo
se tornaram incapazes de consegui-los; e
- O painiano4, no qual todos os que auferem renda, seja do próprio tra-
balho ou do capital, devem obrigatoriamente contribuir para um fundo
que pagará a todos os membros da sociedade uma renda básica uniforme.

As razões para o surgimento e a expansão do Estado de Bem-Estar, nas


sociedades capitalistas, são as seguintes: necessidade de políticas sociais que
atendessem a fins macroeconômicos de criação de demanda e reações cíclicas
às flutuações destas (MEDEIROS, 2001, p. 7); mecanismo de controle dos
trabalhadores pelos capitalistas; beneficiamento pela burocracia estatal das
políticas implantadas (MEDEIROS, 2001, p. 8); pressão dos trabalhadores
através dos sindicatos ao atendimento de direitos sociais; e difusão de idéias
sobre justiça social e cidadania.
A proteção social fornecida pelo Welfare State e o alto crescimento
econômico alcançado pelas economias avançadas entre os anos 50 e 60 per-
mitiram que o número de pobres diminuísse e, aliado à baixa desigualdade
presente nestas economias, permanecesse reduzido até os dias atuais5.
Na década de 70, o Wefare State entrou em crise devido, principal-
mente, a crise econômica dos países avançados e de seu modelo econômico
– o keynesianismo. O baixo crescimento econômico fez diminuir as receitas
públicas, enquanto a demanda por gastos aumentava. Isso provocou o au-
mento do endividamento dos governos e a proliferação de críticas ao Welfare.
Essas críticas partiam principalmente dos economistas liberais e baseavam-se
nos seguintes argumentos, segundo Pereira (2001, p. 37): o Estado do Bem-
Estar seria ineficaz e ineficiente na alocação de recursos, corrupto, limita as
escolhas individuais, estimula a ociosidade e atrapalha o funcionamento da

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economia. Nessas críticas incluem-se os serviços públicos fornecidos pelo
Estado.
As interpretações pró-intervenção e marxistas discordam de algumas (ou
todas) essas assertivas, deslocando o motivo da crise para outros aspectos não
destacados pelos liberais. A explicação marxista enfatiza a crise do sistema
capitalista como um todo devido as suas contradições internas que resultam
na baixa tendencial da taxa de lucro (CASTELLS, 1983). A crise do Welfare
é apenas parte desta crise maior, cuja solução apontada não passaria de uma
tentativa de deslocar o fornecimento dos serviços públicos com perspectivas
de lucro positivo para o setor privado. A produção de bens de consumo cuja
taxa de lucro fosse reduzida ou nula e seu fornecimento se apresentasse ne-
cessário à reprodução da força de trabalho continuaria sendo atribuição do
Estado (CASTELLS, 1983).
Independente das causas da crise que se abateu sob o Estado de Bem-
Estar (ou sob o capitalismo), o que se observou a partir dos anos 80 foi o au-
mento da participação da iniciativa privada nos serviços públicos. De acordo
com Fadul (1997), as causas para esta expansão foram as seguintes:
[...] - aumento das despesas públicas que passaram a ser contesta-
das pelos contribuintes;
- interferência de objetivos sociais com os objetivos econômicos, resul-
tando em baixa produtividade do setor público;
- pressão das empresas sobre os mercados públicos em decorrência
da suas estratégias de crescimento;
- novações tecnológicas favorecendo uma mudança de valores coletivos;
- surgimento de novas forma de gestão. (FADUL, 1997, p. 62).

Além disso, as pressões para a privatização eram de ordem interna e ex-


terna. Os argumentos da ineficiência do setor público seguiam-se aos da im-
peratividade da maior competitividade dentro de uma nova ordem interna-
cional, como destacam B. Filho e Lucinda (2005):
A crescente internacionalização econômica tornou os serviços públicos
um elemento vital na busca da competitividade. Como resultado desses
processos, a partir dos anos 80 os serviços deixaram de ser “protegidos”
para se tornarem um elemento recorrente nas políticas de liberalização.
(BARRIONUEVO FILHO; LUCINDA, 2005, p. 67).

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Apesar da onda de privatizações no Brasil, na década de 90, ainda há
várias grandes empresas prestadoras de serviços públicos sob a propriedade
estatal. No Quadro 2, está a lista das 20 maiores empresas de serviços públi-
cos por vendas no Brasil.

QUADRO 2
As 20 maiores empresas de serviços públicos por vendas no Brasil - 2003

Empresa Valor (em US$ milhões) Propriedade


1 Eletropaulo 3.056,5 Privada
2 Cemig 2.649,0 Estatal
3 Itaipu 2.184,6 Estatal (Binacional)
4 Agip 2.108,4 Privada
5 Correios 2.074,5 Estatal
6 Light 1.934,0 Privada
7 Furnas 1.757,7 Estatal
8 CPFL - Paulista 1.576,7 Privada
9 Sabesp 1.515,3 Estatal
10 Copel 1.408,8 Estatal
11 Chesf 1.225,6 Estatal
12 Celesc 1.051,1 Estatal
13 Elektro 864,1 Privada
14 Coelba 847,0 Privada
15 Eletronorte 845,7 Estatal
16 Comgás 822,7 Privada
17 CERJ 803,9 Privada
18 Ultragaz 803,6 Privada
19 CPFL - Piratininga 790,2 Privada
20 Bandeirante Energia 771,9 Privada

Fonte: Exame, 2004. Elaboração própria

O provimento destes serviços pela iniciativa privada pode trazer alguns


problemas referentes às condições de acesso da população. Como questiona
a autora supracitada, “Como assegurar os direitos mais básicos dos cidadãos,
em um regime de eficiência produtiva da iniciativa privada? Como garantir a
equidade territorial?” (FADUL, 1997 p. 63).

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4 Da lógica empresarial ao risco de aumento da exclusão

No cenário atual de competição intensa e procura de novos mercados, as


empresas buscam aperfeiçoar seus mecanismos que possibilitam a redução
dos custos, aumento da eficiência e da qualidade, ganhos de produtividade,
sempre objetivado a elevação dos lucros. Isso pode ser estimulado através de
ações indiretas, como os investimentos que reflitam a responsabilidade social
das empresas em relação aos seus empregados, comunidade e meio ambi-
ente. Essas ações são positivas para os beneficiários, mas não significam que
a eficiência e o lucro estejam sendo deixados de lado pelas empresas privadas.
Essa mesma lógica serve para as empresas fornecedoras de serviços públicos
sob a direção da iniciativa privada.
O problema é que esta mesma lógica pode trazer distorções em relação
à função na qual os serviços públicos foram originalmente criados. Entre os
motivos apontados anteriormente como causas para a expansão privada nos
serviços públicos está a afirmação sobre a incapacidade financeira e técnica/
cultural dos governos em fornecer bons serviços. Analisando o quadro norte
americano, Albrecht (1992, p. 9) afirma que os governos não prestam um
bom serviço e aponta como causa o seguinte: “[...] a razão pela qual o ‘serviço’
público é geralmente tão mau, com poucas exceções dignas de nota, é muito
simples: não é necessário, às entidades governamentais, que seja oferecido
um bom serviço.”
Qual seria, então, a solução para este problema? Para Albrecht (1992,
p. 10) seria necessário alguém interessado e responsável pela melhoria no
fornecimento dos serviços. Contudo, “[...] um executivo governamental fará
isso [se preocupar com a qualidade] somente se seu sistema pessoal de valores
proporcionar um motivo forte para a ação.” Para os simpatizantes desta linha
de argumentação, essa dependência da “boa vontade” pessoal poderia ser
superada com o provimento dos serviços via mercado.
Entretanto, a prestação de um serviço com qualidade para uma empresa
privada não necessariamente segue os objetivos do poder público quanto
a prestação do mesmo. Albrecht (1992) define a “excelência de serviço” da
seguinte forma:
Um nível de qualidade de serviço, comparado aos concorrentes, que é
suficiente elevado, do ponto de vista dos seus clientes, para lhe permitir

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cobrar um preço mais alto pelo serviço oferecido, conquistar uma par-
ticipação de mercado acima do que seria considerado natural, e/ou obter
uma margem de lucro maior que a de seus concorrentes. (ALBRECHT
1992, p. 13).

Graham e Marvin (apud FADUL, 1997, p.), destacam dois fenômenos


resultantes na lógica apontada acima, ou seja, da busca pelo aumento
da rentabilidade quando do fornecimento do serviço: o cherry picking e o
social dumping. O primeiro se refere ao “[...] processo de luta das empresas
para a dominação das zonas mais rentáveis ou em acelerado crescimento”, en-
quanto o segundo caracteriza-se pelo “[...] desprezo pelas classes sociais mais
pobres, que não são nem grandes consumidores de serviços, nem utilizadores
de tecnologias sofisticadas”, mas que pagam tarifas mais altas ao utilizarem
os serviços essenciais, ou simplesmente são excluídas do seu acesso caso não
tenham renda para adquirirem este serviço.
A utilização do subsídio cruzado – os mais abastados financiando o con-
sumo das camadas mais carentes – é invertida neste caso. A idéia do acesso
igual a todos se torna mais distante, e as conseqüências deste modelo é o
aumento da exclusão:
A principal conseqüência do modelo cherry picking & social dumping
reside na criação de guetos, onde o acesso aos serviços, incluindo-se os
menos sofisticados, torna-se cada vez mais problemático. O princípio
das subvenções cruzadas perdeu o sentido com a privatização e, con-
sequentemente, a questão dos auxílios dados aos consumidores menos
solváveis não é mais tratada no âmbito da gestão dos serviços, mas no
âmbito das políticas sociais do Estado. (FADUL, 1997, p. 65, grifo do
autor).

Dessa forma, observa-se um aumento da demanda por políticas sociais


que visem reduzir esta situação de exclusão. Em vez de desonerar as finanças
do Estado, a privatização desloca parte dos gastos públicos para outras áreas,
mas com a contínua perda de poder do Estado sobre o domínio público. A
mudança na prestação do serviço do poder público para o setor privado não
significa apenas uma troca de propriedade ou modelo de gestão, mas da ca-
pacidade do Estado de intervir na realidade social através do provimento de
serviços que parte da sociedade não poderia ter acesso de outra forma.

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Contudo, com a crise dos Estados nacionais, as políticas sociais também
devem se adequar à dura realidade da falta de recursos ante o aumento das
demandas sociais. Assim, os programas sociais passam a ser planejados não
só para redistribuir os recursos, mas para redistribuí-los de forma eficiente
(LAVINAS, 2000):
[...] o debate acerca do melhor regime de transferências sociais, cujo
fundamento é o princípio da justiça, dá centralidade a outro princípio
balizador ou valor, desta vez ligado a lógica do mercado. Em lugar de
ater-se tão-somente a idéia de redistribuição, tentando minimizar seus
trade-offs com o bem-estar, torna-se imperioso repensar este enfoque
sob a ótica da eficiência – redistribuição eficiente – de modo a forjar um
novo paradigma capaz de enfrentar os desafios colocados pela raridade
de recursos em sociedades capitalistas. (LAVINAS, 2000, p. 527).

Esta questão torna-se mais dramática nos países em desenvolvimento,


cujos recursos têm que ser suficiente para a rolagem e pagamentos de dívi-
das, investimento interno e atendimento das demandas sociais. No Brasil, o
acesso da população a serviços de saneamento, saúde e educação são limita-
dos, como se pode observar na tabela 2, o que gera pressões quanto ao aten-
dimento dessas necessidades. (TABELA 1).

TABELA 1
Domicílios particulares permanentes urbanos com saneamento adequado, Taxa de mortalidade infantil,
Taxa de analfabetismo para pessoas com 15 anos ou mais de idade - 2002
País/Regiões Saneamento adequado Mortalidade infantil* Analfabetismo (%)
(%)
Brasil 63,5 27,8 11,8
Sudeste 85,4 20,2 7,2
São Paulo 91,0 17,4 5,9
Sul 59,6 17,9 6,7
Norte 11,0 27,7 9,8
Nordeste 38,7 41,4 23,4
Bahia 56,0 38,7 21,7
Centro-Oeste 39,3 20,4 9,6
Fonte: IBGE (2004)/PNAD 2002
Notas: * Óbitos de menores de 1 ano por 1000 nascidos vivos

A busca por uma maior eficiência nos gastos, segundo a perspectiva neo-
liberal, está ancorada em três “teses”: descentralização, focalização e privati-

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zação. A descentralização dos programas aproximaria os responsáveis pela
gestão dos problemas em questão; a focalização permitiria o direcionamento
dos gastos sociais apenas aos grupos mais necessitados; e a privatização deslo-
caria o fornecimento de bens e serviços do setor público para o setor privado,
melhorando a situação fiscal do Estado (DRAIBE, 1993, p. 16). Essas “teses”
não são exclusivas do pensamento neoliberal, como a descentralização e a
focalização (DRAIBE, 1993, p. 18), mas podem entrar em conflito com a
idéia de direitos sociais, como no caso da focalização.
Diante da advogada necessidade de privatização ou delegação dos ser-
viços à iniciativa privada, o debate em torno da regulação ganha força. Ini-
cialmente, necessária nas estruturas de mercado monopolistas, nos quais a
concorrência não é possível ou é limitada em decorrência da própria car-
acterística do mercado [como no saneamento básico e na distribuição de
energia], as agências passaram ser cada vez mais uma forma de o Estado
intervir indiretamente nos serviços públicos antes controlados totalmente ou
parcialmente por ele.
A regulação dos serviços públicos é feita mediante a existência de
três elementos principais (FADUL, 1997, p. 66): o regulador, que cabe
primeiramente ao Estado e estabelece o arcabouço de produção e seu lugar
neste sistema; os mecanismos de regulação, que são “[...] instrumentos ju-
rídicos capazes de controlar possíveis abusos das empresas privadas”; e a auto-
regulação, constituídos de “[...] princípios internos que auto-limitam a força
das empresas e do setor público na manutenção da estabilidade do mercado”
(FADUL, 1997, p. 66): No Brasil, a regulação não é realizada somente com
o objetivo de proporcionar a concorrência nos mercados onde isso é pos-
sível e regulamentar a ação das empresas atuantes em mercados monopolistas,
mas é feita, também, como uma forma de atender os princípios originários
do serviço público, ou seja, expandir o acesso aos serviços públicos para as
camadas de mais baixa renda.
O problema desta opção é tentar compatibilizar a lógica empresarial de
busca do lucro a maior demanda da população pelos serviços. De um lado
está a iniciativa privada que exige um retorno compatível ao investimento
feito e previsto para atender as exigências do governo, do outro, está parte
da população que não tem acesso aos serviços e demanda a expansão deste.
A alternativa utilizada pelo governo brasileiro foi à inclusão nos contratos de

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privatização e concessão de cláusulas que incluíam a ampliação dos serviços
públicos, com um certo nível de qualidade, e, em paralelo, cláusulas que
indexavam a correção das tarifas de forma a assegurar a rentabilidade dos
investimentos. Isso não evitou a exclusão dos consumidores ou a redução
do consumo aos serviços devido ao encarecimento das tarifas, e criou um
problema adicional na gestão macroeconômica, pois os reajustes das tarifas
passaram a ser responsáveis por uma parte significativa da inflação.

5 Considerações finais

A passagem dos serviços públicos da esfera estatal para a iniciativa privada


não deve ser analisada apenas sob a ótica da escassez de recursos públicos para
investimentos. Se analisada somente dessa forma, corre-se o risco de criar no-
vos problemas ou agravar dificuldades já existentes. Essa transferência de pa-
péis, seja através de privatização, delegação ou concessão, precisa ser avaliada
também através do papel do Estado em relação a realidades sociais específicas
que, se deixadas de lado devido à lógica vigente decorrente dos mecanismos
de mercado, demandarão novas formas de intervenção estatal por meio de
políticas sociais.
A questão dos serviços públicos precisa ser analisada tanto de forma seto-
rial, para que não se apliquem ‘receitas’ iguais para realidades distintas,
como de forma ampla. Essa amplitude se refere a tratar esta questão como
um elemento importante da política de desenvolvimento nacional, o que
inclui, entre outros aspectos, o econômico, ambiental e principalmente, o
social.

Notas

1 Essa explicação é conhecida como lei de Engel aplicada aos serviços.


(GADREY, 2001).
2 Baseado nas políticas de seguros sociais instituídos na Alemanha por
Otto Von Bismarck (1815-1898).
3 Baseado nas idéias de William Henry Beveridge (1879-1963) expostas
no Relatório da Minoria sobre Seguridade Social, do qual foi um dos
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colaboradores, e no Relatório Beveridge.
4 Inspirado nas propostas de Thomas Paine presentes em seu livro Justiça
Agrária (1796).
5 Contudo, observa-se desde os anos 90 um aumento da pobreza nos
países desenvolvidos, principalmente nos Estados Unidos. Ela estaria
ligada ao crescimento do desemprego e da desigualdade social, tendo
como principal abordagem a pobreza como exclusão social. (LARDE-
CHI, 2003).

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KENYS MENEZES MACHADO

Economista (UFBA), Mestre em Administração (NPGA/UFBA). Espe-


cialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo
do Estado da Bahia, Brasil.

FABIANE L. BITENCOURT PINTO

Historiadora (UESC). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Gover-


namental (EPPGG) do Governo do Estado da Bahia.

Artigo recebido em 14/02/2006 e aceito para publicação em 22/02/2006.

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