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4 Grorcio Acampen (IrAtta) Tradugdo de Sérgio Alcides O FIM DO POEMA Meu propésito, que se encontra resumido no titulo que 0 leitor tem diante dos othos, é definir um instituto poético que até agora permanece sem identidade: o fim do poema. Devo, para tanto, partir de uma tese que, sem ser trivial, Parece-me todavia evidente, a saber, que a poesia nao vive se- nio na tensio ¢ no contraste (e, portanto, também na possivel \terferéncia) entre o som eo sentido, entre a série semidtica e a série semantica. Isso quer dizer que tentarei precisar, em al- guns aspectos técnicos, a definicao de Valéry, que Jakobson glosa nos seus estudos de poética: “Le poéme, hésitation prolonguée entre le son et le sens”. O que é uma hesitacio, se a tolhemos de qualquer dimensio psicolégica? ‘A consciéncia da importancia dessa oposigao entre a segmentagio métrica e a semantica levou alguns estudiosos a ‘enunciarem a tese (por mim compartithada) de que a possibili- dade do enjambement constitui o tnico critério que permite dis- tinguir a poesia da prosa, Pois o que é o enjambement senfo a ‘oposicéo entre um limite métrico e um limite sintdtico, uma pausa prosédica e uma pausa seméntica? Portanto, serd chama- do poético o discurso no qual essa oposicao for, pelo menos vir- tualmente, possivel, e prosaico aquele no qual nfo puder haver lugar para ela. Os autores medievais parecem ter perfeita consciéncia do eminente valor dessa oposicao, ainda que tenha sido necess4- rio esperar até Nicold Tibino (século xv) para uma definicao precisa do enjambement: Multociens enim accidit quod, finita consonantia, adhue sensus oratonis non est finitus.* Todos os institutos da poesia participam dessa ndo-coinci- “Taline dd poem. in Gg Agar. Gargare lane Sd pots Vere: Ma, 1996, p. 113-19; texto orginalmente apresentado no col6quio em homenagernaR Dragonen eliza Universidade de Genera er 10 de noverbo de 1995.0 tacit agadece a ada eos comenivos de Eduardo Str e Maia etinia Amoroso. a déncia, desse cisma entre some sentido: e a rima nao menos do ‘quea cesura. Pois o que é a rima sendo o descolamento entre um evento semitico (a repeticéo de um som) e um evento semanti- co, que induz a mente a requerer uma analogia de sentido lé onde nada pode encontrar além de uma homofonia? O verso o ser que reside nesse cisma, ser feito de murs et paiiz, como queria Brunetto Latini, ou étre de suspens, segundo as palavras de Mallarmé. E 0 poema é um organismo que se funda sobre a percepcao de limites e terminagdes, que definem ~ sem jamais coincidir completamente e quase em oposta diver- ‘geacia — unidades sonoras (ou gréficas) e unidades semanticas. Dante mostrou-se perfeitamente consciente disso, pois, 20 definir a cangao através de seus elementos constitutivos, no De vulgari Eloquentia (Ul, ix), opée a cantio como unidade de sen- tido (sententia) as stantiae, como unidades puramente métri- cast Et circa hoc sciendum est quod hoc vocabulum (stantia] per solius artis respectum inventum est, videlicet ut in quo toca cantionis ars esset contenta, illud diceretur stantia, hoc est mansio capax sive receptaculum totius artis. Nam quemadmodum cantio est gremium totius sententiae, sic stantia totam artem ingremiat; nec licet aliquid artis sequentibus adrogare, sed solam artem antecedentis induere.? Assim, ele concebe a estrutura da can- io como fundada sobre a relacdo entre uma unidade global essencialmente semantica (“seio de todo 0 sentido”) e unida- des essencialmente métricas (“recolhe no seu seio toda a arte”). ‘Uma primeira conseqiiéncia dessa situagao do poema numa disjungdo essencial entre som e sentido (marcada pela possibi- lidade do enjambement) € a importancia decisiva do fim do verso. Podemos contar as silabas e os acentos, verificar as sinalefas e as cesuras, classificar anomalias e regularidades: mas coverso é, em qualquer caso, uma unidade que encontra 0 seu principium individuationis somente no fim, que se define s6 no ponto em que finda. Em outro trabalho, propus dar 0 nome de versura - do termo latino que indica o ponto no qual 0 arado faz a volta, ao final do sulco - a esse trago essencial do verso, ‘que, talvez mesmo por ser tdo evidente, permaneceu inominado ‘entre os modernos. Os tratados medievais, contudo, nao dei xam de assinalar sua relevancia. O livro quarto do Laboriftus registra, assim, a finalis terminatio entre os elementos essenci- ais do verso, junto a membrorum distinctio e sillabarum 4 numeratio. E 0 autor da Ars de Ménaco nao confunde o fim do verso (que chama de pausatio) com a rima, mas antes o define como sua fonte ou como a condi¢éo da sua possibilidade: est ‘autem pausatio fons consonantiae.> Somente nesta perspectiva é possfvel compreender o singu- lar prestigio, na lirica provengal e stilnovistica, daquela institui- 40 poética especialissima que é a ima nio-relacionada {irrelaca}, que as Leys denominam rim'estrampa e Dante clavis.* Se a rima assinalava um antagonismo entre som e sentido em virtude da néo-correspondéncia entre uma homofonia e uma sig- nificagao, aqui a rima, faltando onde era esperada, deixa as duas séries por um 4timo interferirem numa aparéncia de coin- cidéncia, Digo aparéncia, j4 que, se é verdade que oseio da arte parece aqui romper o seu encerramento métrico, acenando para © seio do sentido, a rima ndo-relacionada remete porém a um rhyme-fellow na estrofe seguinte, e portanto nao faz mais que deslocar a estrutura métrica para um nivel metaestréfico. Por isso, nas maos de Amaut, ela se desenvolve quase que natural- ‘mente como palavra-rima, a engendrar 0 admiravel mecanismo da sextina. Pois a palavra-rima é sobretudo um ponto de indeterminabilidade entre um elemento por exceléncia asseméntico (a homofonia) ¢ um elemento por exceléncia se- méntico (a palavra). A sextina é a forma poética que eleva a rima ndo-relacionada ao estatuto de supremo cénone composicional ¢ procura, por assim dizer, incorporar o elemen- todo som no préprio seio do sentido. Mas devo agora enfrentar o tema anunciado e tentar defi- essa prética no coberta pelos estudos de métrica e poética: © fim do poema, como iiltima estrutura formal perceptivel de um texto poético. Existem pesquisas sobre os incipit da poesia (ainda que talvez em quantidade ainda insuficiente), mas as investigagdes sobre os finais faltam quase de todo. Vimos como o poema tenazmente se demora ese sustém na tensfio.e no contraste entre 0 som e o sentido, entre a série métri- cae a série sintética. Mas o que acontece no ponto em que 0 poema finda? Evidentemente, a oposicéo entre um limite métri- co e um limite seméntico jé ndo é possivel, aqui, de maneira nenhuma: o que se d4, sem discussio, pelo simples fato de que no iltimo verso de um poema o enjambement nao é pensével. Simples, decerto, mas que, néo obstante, implica uma conseqil- ‘gosto ann 9 éncia no menos embaracosa do que necessétia. Se o verso se define precisamente através da possibilidade do enjambement, segue-se daf que o tiltimo verso de um poema no é um verso. Quer dizer isto que o iltimo verso se transfunde em prosa? Deixemos por enquanto esta pergunta sem resposta. No entanto, gostaria de pelo menos ressaltar o significado novissimo que adquire, nesta perspectiva, o No sai que s’es de Raimbaut d'Aurenga. Aqui o fim de cada estrofe ~ e sobretudo o desse inclassificdvel poema, como um todo ~ é diferente da inespera- da irrupgao da prosa ~ marcando, in extremis, a epifania no contingente de uma indeterminacao entre prosa e poesia. De repente se esclarece a intima necessidade de instituros, poéticos como a tornada ou o commiato, que parecem destina- dos unicamente a notificar até mesmo enunciar o fim do po: ema, como se este necessitasse deles, como se o fim implicasse para 0 poema uma catéstrofe e uma perda de identidade tio irveparavel a ponto de requerer a disposicao de meios métricos e semanticos bastante particulares. Nao é aqui o lugar para fazer o inventario desses meios nem para encaminhar uma fenomenologia do fim do poema (penso, por exemplo, na intengio particular com que Dante ‘marca o fim de todos os cAnticos da Commedia com a palavra stelle (“estrelas"], ou nas rimas que intervém nos versos bran- cos das cangdes de Leopardi, a fim de evidenciar o fim da es- ttofe ou do canto). O essencial é que os poetas parecem consci- entes de que existe af, para o poema, algo como uma crise decisiva, uma verdadeira e estrita crise de vers, na qual esta em Jogo sua propria consisténcia, Dao aspecto freqiientemente pobre, quase abjeto do fim do poema. Proust observou certa vez, a propésito dos iltimos versos das poesias das Fleurs du mal, que o poema parece bruscamente artuinar-se e perder o folego (il ourne court ~escreve ele -tom- be presque a plat (...] il semble malgré tout qui y ait la quelque chose d’écourté, un manque de souffle). Pensemos em ‘Andromaque, uma composigao tao vigorosa e herdica, que ter- mina com o verso: ‘Aux captifs, aux vaincus, & bien d'autres encor. ‘Sobre outro poema baudelairiano, Benjamin observou que -) cle “se interrompe bruscamente, d4 a impressdo, duplamente surpreendente para um soneto, de algo fragmentério”. O de- sarranjo do tiltimo verso é um indicio da relevancia estrutural endo contingente que tem, na economia poética, o evento que denominei “fim do poema”. Como se o poema, enquanto estru tura formal, nao pudesse, nao devesse findar, como se a poss bilidade do fim the fosse radicalmente subtrada, j4 que imp! caria esse impossivel postico que é a coincidéncia exata de com e sentido. No ponto em que o som esta prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema procura uma saida suspendendo, por assim dizer, o préprio fim, numa declaragao de estado de tmergincia poten. ‘luz destas reflexes que eu gostaria de examinar, ago- ra, uma passagem do De vulgari Eloquentia em que Dante pare- ce colocar, pelo menos implicitamente, o problema do fim da Poesia. A passagem se encontra no livro Il, no qual o poeta trata da disposigéo das rimas na cancao (Il, xiii, 7-8). Depois de definira rima ndo-relacionada (que alguém propés denomi- nar clavis), reza 0 texto: pulcerrime tamen se habent ultimorum carminum desinentiae, si cum rithmo in silentium cadunt C*belissimas so as terminagées dos iiltimos versos, se caem, com as rimas, no siléncio"). O que é essa queda do poema no siléncio? O que é uma beleza que cai? E 0 que resta do poema depois da sua ruina? ‘Se a poesia nao vive sendo na inexaurivel tensfo entre a série semitica e a série semantica, o que acontece no momen- to do fim, quando a oposi¢ao das duas séries nao é mais poss{- vel? Terfamos ai, finalmente, um ponto de coincidéncia, no qual 0 poema, enquanto “seio de todo o sentido”, ajusta as, contas com seu elemento métrico para transitar definitivamen- te para a prosa? As bodas misticas do som e do sentido pode- riam, entdo, ter lugar. ‘Ou, pelo contrario, o som ¢ o sentido estariam agora para sempre separados, sem contato possivel, cada um perpetua- ‘mente em sua parte, como os dois sexos na poesia de Vigny? Neste caso, o poema nio deixaria detrés de si um espago vazio, no qual verdadeiramente, segundo as palavras de Mallarmé, rien n’aura eu lieu que le tiew. Tudo se complica com 0 fato de ndo haver no poema, a pretexto de exatidao, duas séries ou duas linhas de fuga em pa- y ralelo, mas s6 uma, percorrida ao mesmo tempo pela corrente semantica e pela corrente semiética; e, entre os dois fluxos, a brusca parada que a mechané poética se aplica to obstinada- ‘mente a manter. (0 som eo sentido nao sao duas substancias, mas duas intensidades, dois tdnoi da tinica substancia lingiisti- ca). E 0 poema é como o catéchon da epistola de Paulo aos ‘Tessalonicenses (If, 2, 7-8): algo que freia e retarda o advento do Mesias, portanto daquele que, cumprindo 0 tempo da poesia e unificando os dois éones, destruiria a méquina poética precipi- tando-a no siléncio, Mas qual seria o fim dessa conspiragao teo- légica sobre a linguagem? Por que tanta obstinagao em manter a qualquer custo um contraste capaz de garantir 0 espaco do poema s6 ao prego de Ihe negar qualquer possibilidade de um acordo durdvel entre o som e o sentido? Releiamos agora o que escreve Dante sobre 0 modo mais belo de finalizar um poema, lé onde os tiltimos versos caem, rimados, no siléncio. Sabe-se que se trata, para ele, quase de ‘uma regra. Pensemos, por exemplo, na tornada da pedrosa Cosi rnel mio parlar voglioesser aspro. O primeiro verso termina com uma rima totalmente nao-telacionada, que coincide (certamente nao por acaso) com a palavra que nomeia a intencao suprema do poeta: donna ["mulher"}. Essa rima ndo-relacionada, que parece antecipar um ponto de coincidéncia entre som e senti do, é seguida de quatro versos ligados dois a dois pela rima que a tradig&o métrica italiana define como “baciata’ Canzon, vattene dritto a quella donna che mha feritoil core e che minvola quello ondiio ho pit gola, dalle per lo cor d’una saetta; cché bellonor s'acquista in far vendetta.* Tudo transcorre como se © verso que, ao fim do poema, irreparavelmente se arruinava no sentido se ligasse estreita- ‘mente ao seu rhyme-fellow, e assim optasse por se precipitar com ele no silencio Isto significaria que o poema cai marcando mais uma vez a ‘oposigao entre o semiético o semantico, assim como o som parece para sempre consignado ao som e o sentido entregue a0 sentido. A dupla intensidade que anima a lingua nao se apla- excro 1

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