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Gênesis 12-25
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Gênesis 12.. 25
Deus vê - Deus ouve!
Milton Schwantes
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AOI~OS
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2009
© Milton Schwanres
Rua Camilo José, 78
Vila Dom Pedro I - Alto do Ipiranga
04125-140 São Paulo/SP
Te!.: (55-11) 5068.0170
Fax: (55-11) 4366.5815
milton.schwantes(fiJmetodista.br
Editoração: Oikos
Impressão: Evangraf
Ao
honorável Instituto de Teologia São Paulo/Tl'Eôl]
da Associação São Paulo de Estudos Superiores,
em sinal de profunda gratidão pela concessão do título
doutor honoris causa
com que me agraciou em setembro de 2007
Para ti,
Rosi,
a cada dia és o milagre de nosso amor,
encontrei-te e te procurava
Sumário
Apresentação 11
Introdução a Gênesis 12-25 - "E estas são as gerações de lerá" 15
Terra e dignidade - 11,27-12,20 26
Nas montanhas há solução - 13,1-18 44
Abraão - Um libertador - 14,1-24 60
Povo e terra - Promessas certas! - 15,1-6.7-21 75
Liberdade! Liberdade! -16,1-16 87
De olho nos povos - 17,1-27 100
"E Sara riu" -18,1-15 114
"Destruirás o justo com o injusto?" - 18,16-33 129
Uma escolha em meio a ruínas, e ainda assim há esperança - 19,1-38 137
"Ela é minha irmã"!? - 20,1-18 158
"Sara amamenta um filho" - 21,1-7 176
"E Deus ouviu a voz do menino" - 21,8-21 182
Abraão sabe o que importa - 21,22-34 192
"Não estendas as mãos" - 22,1-19.20-24 201
Sepultura e posse de terra - 23,1-20 223
"No caminho, [avé me conduziu" - A gente age, pensa e comemora,
e Deus conduz - 24,1-67 237
Diferentes e solidários - 25,1-18 261
Bibliografia 271
Outras obras de Milton Schwantes 280
Apresentação
11
síveis. Certamente carecemos de mais outros comentários para podermos exer-
citar, mais e mais, nossa maneira de ler e reler as Escrituras.
Anotei alguma bibliografia no final do livro. E aí não fui muito detalhista,
porque em outros livros isso já está realizado, e, além disso, a internet facilita
encontrar, rapidamente, qualquer quantia de dados bibliográficos. Fiz questão
de anotar bibliografia bíblica latino-americana sempre que me fosse conhecida.
Penso que temos o dever de ler e debater, acima de tudo, o que se escreve por
aqui.
Sou feliz porque posso dedicar o livro duplamente. A mui digna Universi-
dade de Marburgo, na Alemanha teve o carinho de me agraciar em 2002, justa-
mente no ano de minhas enfermidades maiores, com o gentil título honoris
causa. Deus me deu a saúde, ainda que precária, de ter estado na cerimônia de
outorga do título. Foi profundamente emocionante, ainda que minha fragilida-
de fosse muito profunda. Mas, na graça de Deus, tenho boa memória de tudo o
que se passou, dos encontros encantadores com os professores da teologia e de
Bíblia. Minha mais profunda gratidão pela honraria. - E, enquanto crescia e se
ia concluindo o comentário, uma surpresa inesperada a mais me alcançou. O
Instituto de Teologia São Paulo - ITESp, aqui do Alto do Ipiranga, em São Pau-
lo/SP -, sem que eu o esperasse, me fez chegar a surpreendente notícia de que
me estavam agraciando com o título honoris causa. Realmente, no Ipiranga,
estou passando muitos anos de minha vida. Migrei a esta cidade, e a alcancei em
1985, justamente pelo mesmo bairro do Ipiranga. E, hoje, moramos nesta parte
da cidade, próximo ao ITESP. De coração, agradeço pela homenagem e pela
dedicação de professoras, professores e alunos do ITESP que linda homenagem
a mim e aos amigos e às amigas me receberam a mesma homenagem carinhosa
bem como política e eticamente definida. - Igualmente profundo é haver en-
contrado, agora há já mais de dez anos, minha querida Rosileny. Haver-te en-
contrado me foi a maravilha de minha vida, e poder viver contigo na mais linda
paz e na mais inquietante criatividade é o que sustenta minha vida. Este comen-
tário é fruto desta árvore de amor que nos nutre. És parte dele. O que juntos
vivemos tem sido uma maravilhosa aventura de amor e paixão, de achego e
companhia. Sou profundamente grato a Deus por todo amor que aprendi e por
cada cuidado que nos prestamos. Que Deus nos abençoe!
Também a cada um de vocês, minha profunda gratidão. Ora, vida é com-
panhia e achego, seja ele acadêmico, seja ele de amor. Por isso, também minha
mais profunda gratidão à Universidade Metodista de São Paulo, porque, em seu
contexto, pude dedicar vários semestres ao estudo e à pesquisa em Gênesis.
Aprendi muito de vocês, alunas e alunos, que comigo compartilharam os cami-
12
nhos com as memórias sobre Agar, sobre Sara, sobre Ló, sobre Abraão, e sobre
tantos outros tipos humanos expressos nestes textos antigos. Neste contexto,
quero lembrar-me com alegria da Igreja Evangélica Luterana de Guarulhos, onde
pude compartilhar, semana após semana, domingo após domingo, as experiências
com a Bíblia, nos grupos bíblicos e nas celebrações. Foi um profundo prazer
conviver com vocês nestes anos e ajudar a dar forma à Comunidade e à própria
cidade. Afinal, a elaboração deste meu comentário durou quase os mesmos anos
em que atuo na Universidade Metodista de São Paulo, desde 1988, e na Comu-
nidade de Guarulhos, desde 1987. Realmente, a Bíblia não se alcança ler na
solidão, mas aprende-se a lê-la, em seus mistérios, em Comunidade.
Louvo a Deus pelo que me foi possível escrever, ciente de que a escrita é
minha, mas o louvor e a exaltação são para Ele, no céu e na terra.
13
Introdução a Gênesis 12..25
"E estas são as gerações de Terá"
Histórias de Terá?
As histórias de Abraão terminam no cap.25. Isso é evidente. Afinal, aí se
menciona a morte de Abraão: "desfaleceu Abraão" (v.7). Neste mesmo cap.25, co-
meça um novo conjunto. Falará basicamente de Jacó. Até o cap.36, teremos tais
narrações sobre Jacó, a rigor até o final do livro de Gênesis, até o cap.50.
Ora, em 25,19, estes contos que se referem a Jacó levam um título: "e
estas são as gerações de Isaque". Não se trataria aí de algum engano? Este título
não deveria mencionar 'Jacó' ao invés de 'Isaque'?
Parece que não, pois em 37,2, as narrações sobre José, à semelhança, são
iniciadas sob o título que anuncia histórias/genealogias de Jacó. As histórias de
José são intituladas como se fossem de Jacó. As de Jacó como se tivessem a
Isaque como assunto.
E, veja só, as narrações, que comumente chamamos de 'histórias de
Abraão', e que chegam a seu final no cap.25, nos são introduzidas como se fos-
sem de Terá. É o que lemos em 11,27: "e estas são as gerações de Terá". É, pois,
muito evidente que os contos sobre Abraão iniciam em 11,27, e não em 12,1! E
aí são apresentados como sendo de Terá!
As histórias sobre Abraão começam em 11,27 e vão até 25,18. E levam o
título: "geraçóes!histórias de Terâ". Nesta perspectiva, a rigor, não existem 'his-
tórias de Abraão', em Gênesis, na Bíblia.
Quando nos referimos a 11,27 até 25,18 como histórias de Abraão, em si,
atribuímos a estes capítulos um título 'inadequado', obviamente não só porque
11,27 lhe dá outro sobre-escrito ("gerações de Terá"), mas por um motivo até
mais significativo, que iremos perceber no próprio encaminhamento dos con-
teúdos destes nossos capítulos.
Ora, as histórias são de Terá, porque, na trajetória de seus filhos - Abraão,
Naor e Harã - continua vivo o próprio pai. O presente celebra o antepassado.
Comemora os pais e, na medida em que considerarmos os conteúdos dos caps.12-
25, as mães. É como se as cenas vividas pelos filhos e pelas filhas fossem uma
homenagem a seus ancestraias.
Aliás, nem mesmo basta que se concentre as histórias dos caps.12-25 em
Abraão. Para alguns trechos, isso é adequado, pois neles o homem, Abraão ou
15
Ló, é centro das atenções. Mas isso não se pode dizer de todas as unidades. Ora,
no cap.l6, o assunto não é nem Abraão e nem Sara, mas Agar, a egípcia. Mas o
mesmo vale para 12,10-20 ou para grande parte dos caps.20-23. Realmente não
seria, nem de longe, apropriado intitular tais capítulos pelo nome de Abraão!
Agar e Sara, as crianças, Ismael e Isaque, são tão relevantes quanto o é Abraão.
Nossos capítulos não pedem ser designados somente por Abraão!
E isso tem um significado humano e ecumênico de primeira ordem. A
história de Israel começa como história de mulheres e homens, com experiênci-
as diferenciadas de Deus!
Convém que agora observemos, nesta perspectiva, os diversos textos des-
tas "histórias de Terá".
Pequenas histórias!
Os textos que se situam entre 11,27 até 25,18 não constituem uma histó-
ria sequenciada, escrita de modo contínuo. Decompõem-se em breves episódios.
Convém que, antes de mais nada, busquemos dar-nos conta destas parcelas, em
que se subdividem nossos capítulos. Vejamos!
Parece que 11, 27-12,9 formam uma certa unidade. Sem dúvida é comple-
xa. Não deixa de ser um certo amontoado de pequenas parcelas, de breves me-
mórias.
Assim, não será acaso que, nas subdivisões das traduções de nossas Bíbli-
as, a unidade começa em 12,1. Tem início em palavras bem programáticas de
Deus: "e disse Javé para Abrão: sai...". Ainda que este v.1 apresente seu conteú-
do com uma força toda especial, não me parece ser este o começo. Encontro-o
antes em 11,27, onde temos a apresentação do personagem, de Terá, o pai de
Abraão, ao qual justamente é dito 12,1. Em verdade, 12,1 nem pode ser o come-
ço de uma unidade narrativa, pois a pessoa, à qual se referem estas palavras,
nem mesmo era conhecida.
Contudo, este breve debate quanto à identidade dessa nossa primeira uni-
dade já mostra que devemos estar diante de um conjunto muito especial, coloca-
do aí no começo de tudo, até um pouco em tensão com as regras usuais.
Seu assunto são os caminhos, percorridos pelos descendentes de Terá, e a
promessa, dada a Abraão.
Uma cena própria e em si concluída temos em 12,10-20. Seu assunto é o
sequestro de Sara para o palácio de faraó. Aliás, um sequestro consentido de
parte de Abraão. Conteúdos desta estória de 12,10-20 encontram-se em mais
duas cenas reunidas no Gênesis, uma no cap.20 e outra no cap.26. Tal repetição
da cena deve dar uma especial relevância a 12,10-20: penso que ela, junto com
11,27-12,9, formata a dupla introdução, as duas alas do portal de entrada de
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nossos capítulos: nossos capítulos, portanto as "histórias de Terá", de tão impor-
tantes que são para o Pentateuco, sim para a Torah, enfim para a Bíblia, recebe-
ram um cabeçalho de dupla ênfase.
O conflito entre Abraão e Ló é o assunto do cap.1J. O temário do conflito
é concluído dentro deste capítulo. Mas, outro assunto é nele encaminhado, o da
aproximação de Ló de Sodoma, a cidade, o que ainda terá novos desdobramentos,
nos caps.l4 e 18-19. Ainda assim, a questão levantada pela história do cap.l3, o
conflito entre Abraão e Ló devido à falta de espaço para seus rebanhos, é plena-
mente solucionado e concluído dentro do cap.l J.
O cap.14 está em certa continuação ao cap.l3, pois novamente estaremos
em companhia de Abraão e Ló, mas sua ênfase, agora, é outra: trata-se do resgate
de Ló pelo Iibertedor Abraão. Neste resgate, Abraão nada lucra.
Portanto, os caps.l3-14 estão próximos. Os personagens principais, Abraão
e Ló, coincidem. Estes caps.l3-14 têm continuidade no cap.18. Interpõem-se
outros três capítulos: cap.lS e 17, e cap.l6.
Novo assunto é, pois, o do cap.I5. Seu ponto de partida é a queixa de
Abraão: "continuo sem filhos" (v.2). E isso leva ao tema das promessas de terra
e de povo. Não há quase nenhuma ligação aparente com o capítulo anterior,
cap.14. A ligação se dá com o cap.17 que é paralelo ao cap. 15.
Quase nada vincula o cap.I6com o anterior (cap. 15) e o posterior (cap.17).
Seu assunto é a rebeldia de Agar, contra seu dono e sua patroa. Sua fuga à
liberdade torna justamente a escrava a interlocutora de Deus, aquele do poço.
Este cap.16 se situa no centro, entre os caps.l3-14+ 18-19 e entre caps.lS + 17.
O cap. 16 é o eixo dos caps.lJ-I9!
Também o cap. I? não emenda no anterior, no cap.16, se bem que se
assemelhe bastante ao cap. 15. Novamente Abraão e Deus são os personagens
únicos. As promessas do pacto, em especial a de povo, são o assunto. Os caps.lS
e 17 se correspondem, são paralelos.
No cap.l8, há um retorno aos caps.l3 e 14. Neste cap.18, temos duas uni-
dades. Em 18,1-15, se conta a visita de três homens a Abraão e, em sua segunda
parte, principalmente a Sara. Este conto tem certa continuidade na próxima uni-
dade, 18,16-33, a intercessão profética de Abraão pela cidade, por Sodoma, No
v.16, aliás, ambas as cenas se encontram, se entrelaçam. Ainda que estejam assim
interligadas, as duas unidades são bastante autônomas. A primeira, 18,1-15, nada
tem a ver com Sodoma, antes lembra elementos do cap.16 e de 21,1- 7.
O cap.l9, este sim, está na continuidade da segunda parte do cap.18 e dos
caps.13 -14. A destruição de Sodoma é o assunto, em 19,1-38. E aqui chega à sua
conclusão o que iniciara no cap.l3, o que dá a esta narração sobre a cidade, que
acolhera Lá, uma importância especial. O final do cap.19 ainda é parte desta
17
composição, que vem desde o cap. 13. Mas, 19,22~JJ também já segue seus enca-
minhamentos específicos. O tema e o conto das duas filhas de Ló, que dão conti-
nuidade à família, em meio às muitas ruínas, são um desafio para a interpretação:
havíamo-nos acostumado a entender as filhas de Ló como símbolo de decadência,
mas, para o cap.l9, esta não é a tônica.
Pode-se dizer, de modo mais geral, que nos caps.ll-Lv o tema da terra
prevalece. Nas estórias de Ló e Abraão, este é a ênfase principal das narrativas.
Também os caps.15 e 17 dão destaque a esta dimensão de conteúdo. E, em
11,27-12,9, encontramos a apropriada introdução para este ternário. O cap.l ô,
a rigor, não se enquadra no tema da terra. Seu assunto principal é o do filho e da
mãe. Esta ênfase vamos reencontrar com destaque a partir do cap.20, em que é
retomado 12,10-20.
No cap.2O, claramente reaparece 12,10-20: outro sequestro de Sara. Des-
ta vez, as ênfases, afora as de reforçarem o evento anterior, seguem por trilhos
próprios, até bastante simpáticas ao rei estrangeiro. Neste cap.20, Sara e Abraão
se encontram no contraponto de Abimeleque. Esta tônica é retomada em 21,22-34,
na defesa do poço de Beerseba, em que este Abimeleque e Ficol são contraentes
de Abraão.
Os caps.21-22 tanto dão continuidade ao cap.20, porque em seu centro,
em 21,22-34, reaparecem Abmeleque e Abraão, à semelhança do cap.20, quanto
conectam seu ternário de proteção de crianças aos do caps.20 e 23, à defesa da
mãe. Aí já se percebe o quanto os caps.20-23 e, se quisermos cap.24, estão inter-
conectados tematicamente e o quanto diferem dos assuntos dos caps.13-19, obvia-
mente com exceção do cap.l6, correlacionado com os assuntos dos caps.20-24.
Em 21,1-7+8-21, o episódio mais destacado é o da proteção de Ismael,
uma criança enjeitada. Aqui o cap.l6 é retomado tematicamente.
Segue-lhe, em 21,22-J4, um episódio de disputa do poço de Beerseba entre
Abraão e Abimeleque. E aí, como já disséramos, estamos na continuidade do cap.20,
onde igualmente estivéramos em companhia do filisteu Abimeleque.
Em 22,1-19+20~24, o paralelo a 21,1-21 é flagrante. Lá estivera em jogo a
vida de Ismael, aqui se trata da defésa da criança Isaque, um conto paradigmatica-
mente anti-sacrificial, Parece-me que 22,20-24, ainda que 'só' sejam genealogias,
têm seu valor próprio. Concluem os caps.21-22 e remetem para o cap.25! As estórias
que falam de atentados à vida de crianças culminam em genealogias, em vidas!
Uma unidade tipicamente própria é o cap.2J. A sepultura de Sara é seu
assunto do início ao final. Há semelhanças com o cap.20. Este cap.23 conecta o
tema da sepultura com o da terra de plantio.
Novamente, outro conto é o cap.24. O casamento de Isaque vem a ser a
narrativa mais longa de toda composição das "genealogias de Terá". É como se aí
18
se completasse o ciclo geracional. Há uma ligação, ao menos indireta, entre o
cap.23 e o cap.24, considerando que este último é contado como se Rebeca
(cap.24) fosse 'substituir' Sara (cap.23).
E, de jeito nenhum o cap.25 é secundário: 25, 1-18estabelece propriamente
as geraçôes de Abraão, em novas perspectivas, voltadas aos parentes a oriente. Ali-
ás, são estas enumerações no final de nossa ampla composição que dão o desfecho
final ao sentido da vida de Terá, através de Abraão, Naor e Harâ, de Sara e Agar.
É muito evidente: nestes capítulos todos, não nos é apresentada nenhuma
Instátia contínua. O que temos, são genelogias, histórias, contos, narrativas episódi-
cas, cujo enfileiramento lhes dá uma certa continuidade. Mas, as pequenas histórias
de jeito nenhum vivem de tais continuações. O que lhes dá vida, é, precisamente, o
fato de levarem, vez por vez, seus assuntos até seu final. O que as torna interessantes,
é que têm sentido em si mesmas. Em sua autonomia, está sua elegância. Por isso,
tiveram força de tornar-se literatura. Não é o fato de serem literatura aparentemen-
te contínua, uma vez que estão encarreiradas umas depois das outras, que lhes dá
valor e sentido. Sua riqueza reside muito antes em seu dinamismo interno. Seu
tesouro está em que são contos, breves, acabados, sutônomos, marcantes.
Temos, pois, as seguintes unidades menores, que, no geral, poderíamos cha-
mar de contos, de narrações, de 'sagas' (como dizia Hermann Gunkel, há mais de
um século): 11,27-12,9,. 12,10-20,. 13,. 14,. 15,·16,. 17,. 18,1-15,. 18,16-33,. 19,1-38,'
20,. 21,1-21,. 21,22-34,. 22,1-24,. 23,. 24,. 25,1-18.
Penso que função mais especial cabem àquelas unidades que fazem as vezes
de 'portas' e de 'pontes'. Tais portas seriam a de entrada (11,27-12,9+ 12,10-20) e a
de saída (25,1-18). Nelas se há de manifestar um maior interesse composicional.
Nos contos, prevalece .unplamente o interesse de serem unidades próprias, autóno-
mas, que, sem dúvida, também são as que acabei de mencionar, se bem que também
prestem um maior serviço à composição toda.
Neste item, dei atenção a cada conto. Sem dúvida, é relevante que se passe
a diferenciar as várias histórias. Mas, no texto atual de nossos caps.12-25, estas
narrativas estão organizadas. Já o anotei acima, mas, agora, queremos dar desta-
que a esta dimensão integrativa das várias peças. Isso nos leva, agora, à pergunta
pela composição do conjunto dos caps.12-25. Este é nosso próximo assunto.
19
Já se mencionara acima que 11,27-12,20há de ser um conjunto especial e
intencional. Faz as vezes de portal de entrada. Por um lado, coloca-nos diante
de temas especialmente relevantes dos capítulos subsequentes. Em 11,27-12,9,
o assunto que prevalece é o da terra conquanto promessa, uma ênfase que se
repete em vários dos capítulos que seguem, em especial nos caps.13-14 + 18,16-
19,38. Em 12,10-20 temos a oposição à escravização de pessoas, à 'venda' da
mulher para o harém do senhor faraó. Aí é cultivado o que nós, hoje, chamarí-
amos de liberdade, uma ênfase que se repete em vários capítulos, como se vê de
modo especial no cap.16. Por outro lado, temos em 11,27 até 12,20 o traçado
em que se desenrola a história de Israel: o arco vai da Mesopotâmia por Canaã
ao Egito, para logo retornar a Canaã. Eis o espaço geográfico da história de
Israel! Portanto, em termos temáticos e pelo itinerário geográfico, 11,27 até 12,20
é a porta de entrada para os capítulos subsequentes, no mínimo até o cap.25,
mas, a rigor, bem para além deste.
A esta porta de entrada de 11,27-12,20, corresponde 25, 1-18 como porta
de saída. Em 11,27 -12,20, o traçado geográfico inclui, como vimos, Egito e Me-
sopotâmia. Aí faltam os parentes a oriente (a Península Arábica). É o que realça
25,1-18. Enquanto as vinculações para Egito e Mesopotâmia foram as relações
típicas para Israel e Judá no pré-exílio, as relações com os parentes do oriente, os
filhos de Quetura (= perfume!) serão características do pós-exílio, se bem que
já o fossem também no pré-exílio. Afinal, os edomitas, no oriente, desde os
começos da trajetória dos filhos de Sara e Abraão, fazem parte dos caminhos de
Israel.
Podemos, pois, constatar que os caps.l2-25 têm porta de entrada e de
saída, bem definidos. O texto, a partir daí, já vai evidenciando certa organização
literária. As narrativas não formam uma sequência acidental, mas programada e
intencional.
Esta sua característica de estrutura ainda se evidencia melhor quando
atentamos para os caps.IJ- 19. Estes certamente têm estrutura.
O cap.IJ (adicionado pelo cap. 14) tem continuidade nos caps. 18-19. Seus
personagens principais são Abraão e Ló. Seu tema é a terra da promessa, como
terra de montanha. Ló, que vai à planície, a Sodorna, afasta-se das terras-dádi-
va, nas montanhas.
Estes caps.13-14+ 18-19 formam um arco ao redor dos caps.15-17. E es-
tes, por sua vez, deixam entrever uma clara interrelação: o cap. 15 e o cap. 17
como que repetem as mesmas ênfases: em ambos só atuam [avé e Abraão; em
ambos o tema é a promessa, em especial de terra e povo. De certo modo são
textos paralelos. Em seu centro está o cap. 16: Agar e seu filho Ismael. Este cap.16
contém afirmações teológicas centrais para os caminhos de Israel. Afinal, pro-
messas (de terra e povo) têm seu berço justamente na decisão de [avé Deus de
20
apoiar as pessoas em suas angústias e em seus sofrimentos (16,11). Promessas
são relevantes, mas não caracterizam a questão teológica básica que é a defini-
ção de [avé por hebreus, por gente escravizada. Por isso, as maravilhosas pro-
messas a Abraão, nos caps.15 e 17, são derivações da definição básica de Javé
por quem está na dor e na angústia. Portanto, teologicamente, os caps.15 e 17
dependem do cap.16, bem como 12,1-3 está vinculado a 12,10-20.
Logo, observando o todo dos caps.l3-19, percebe-se uma figura concên-
trica. No centro, está Agar e seu filho Ismael (cap. 16) , ao redor do qual estão as
promessas de povo e terra a Abraão nos caps.15 + 17, circundados pelos caps.l3-
14 + 18-19. Terra de leite e mel, terra em que plantando dá, requer vínculos
estreitos com a justiça. Sem a profecia - a justiça -, terras e promessas desan-
dam!
Pelo visto, há uma sequência e uma disposição muito nítidas nestes nos-
sos capítulos.
No final do cap.19, chega à conclusão o temário iniciado no cap.l3: Abraão
e Ló (e os filhos deste) estão separados.
O cap.20recomeça! Não é acaso que seu assunto remeta de volta a 12,10-20!
Que disposição temática temos nos caps.20-24(25)?
Penso que a resposta é diferente da que pudemos dar em relação à primei-
ra parta (aos caps.l3-19). Esta verificação me parece muito relevante. Em nos-
sos caps.12-25, na verdade, temos duas diferentes disposições de conteúdos.
Não nos podemos fixar somente em caps.l3-19. Esta primeira parte requer ser
diferenciada da segunda. Por isso, justamente, não podemos querer intitular os
caps.l z- 25 como se fossem" histórias de Abraão". É que isso não confere com os
próprios textos.
Podemos partir de uma muito importante constatação teológica: é evi-
dente que os caps. 21-22 compõem uma só unidade temática. As ameaças à vida
de Ismael (21,1-21) e à de Isaque (22,1-19) correm paralelas e circundam a
disputa pelos poços/terra entre Abraão e Abimeleque (21,22-34). Não podemos
fixar nossa atenção só em Isaque e sua preservação no intento de sacrificá-lo.
Pois, Ismael lhe é paralelo! A um Javé Deus vê e a outro ouve! Ambos não só são
meio-irmãos; mais importante que isso é que teologicamente são de todo ir-
mãos. [avé Deus não protege a um e desconecta a outro; a ambos salva dos
poderes da morte para a vida! Em ambos - nas memórias sobre Isaque e sobre
Ismael- a violência é, pois, vencida! O mesmo ocorre em 21,22-34: apesar da
supremacia de Abimeleque e Ficol, a sabedoria de Abraão sai vitoriosa!
Uma vez vista esta mútua pertença em que se encontram os caps.21-22,
percebe-se também que o cap.20e o cap.2] se conectam a estes capítulos justa-
mente através da disputa dos poços/terras entre Abraão e Abimeleque: 21,22-
21
34 é uma continuação, inclusive narrativa, do cap.20. E o cap.23 aí se enlaça
através do tema da terra: Sara precisa de um túmulo, de uma terra. Em 21,22-23,
os poços estabelecem direitos à terra, no cap.23, a tumba perfaz o mesmo papel.
Em ambos os contos, a sagacidade de Abraão consegue levar as negociações a
bom termo para ele e suas necessidades. As terras são de promessa, mas, nelas,
faz-se necessário aprender a conviver com quem lá está estabelecido. A terra é
dádiva na medida em que é negociada, na medida em que nela há espaço para
todas e todos.
E o cap.24 é parte do cap.23. A relação entre ambos se assemelha àquela
que se percebe entre o cap. 13 e o cap.14. O final do cap.24 afirma expressamen-
te a pertença ao cap.23: "assim Isaque se consolou da morte de sua mãe" (v.67).
Portanto, enquanto a primeira parte, os caps.13-19, se compõe de forma
concêntrica, a segunda, os caps.20-24, está organizada de forma mais linear. Em
todo o caso, percebemos que nossos capítulos sobre Sara e Abraão estão muito
bem sequenciados.
22
moabitas e amonitas (cap.19), heteus (cap.23), arameus (cap.24) etc. Esta preocu-
pação com os vizinhos é vista a partir de uma perspectiva judaíta. São marcadas
diferenças, mas também são celebradas amizades e parentescos.
O jeito de referir-se, indiretamente, a Jerusalém e suas tradições tem tam-
bém o jeito de Judá. Penso na referência a Jerusalém em 14,18-20 e, indiretamen-
te, em 22,2 (terra de Moriá). Ela é feita na ótica de Judá, de quem vai a Jerusalém
e aí paga tributo e sacrifica. Penso também em 12,1-3, onde temos referências, ao
menos implícitas, à monarquia ("de ti farei uma grande nação e te engrandecerei
o nome"). Aí transparecem os interesses interioranos ("em ti serão benditos todos
os clãs"), mais que os da capital.
Por certo, estas evidências ainda precisam e podem ser ampliadas. Elas,
contudo, já nos permitem supor que Judá, o 'interior', seja o espaço de nossos
capítulos.
Junta-se a isso nossa observação inicial de que estes nossos capítulos não
são um texto contínuo, mas muito antes unidades pequenas, memórias breves,
perícopes. Não deveríamos, pois, querer localizar a origem dos textos em um
escritor, muito antes em um colecionador. Cada pequena história, cada perícope
tem sua origem específica, popular.
A memória de Agar no cap.l ó, parece ter sua origem junto a fontes do
deserto (v.13-14), semelhante ao cap.Zl , Diferente é o cap.l5, cuja preocupa-
ção em torno do povo e da terra nos leva antes para a região da Sefelá judaíta.
Semelhantemente, cada capítulo tem sua peculiaridade em termos de origem.
Aí não convém generalizar. A origem das estórias de Gênesis 12-25 é diversa no
âmbito de Judá.
Claro, caso a teoria documentária, a das fontes literárias (javista, eloista e
sacerdotal) for aceita, o quadro pode alterar-se. Afinal, esta teoria das fontes explica
a origem dos textos a partir das características diferentes que teria cada uma destas
fontes literárias. E, caso isso fosse assim, nossos atuais textos seriam, antes de mais
nada, criação de autores literários mais ou menos individuais.
Mas esta teoria literária que atribui os caps.12-25 de Gênesis ao javista,
eloísra, ao deuteronomista e ao escrito sacerdotal já não alcança obter plena
aceitação na exegese bíblica, mesmo que lhe sejam agregadas inovações contí-
nuas. Os resultados da teoria documentária das quatro fontes podem ser verifi-
cados, por exemplo, na tradução da Bíblia de Jerusalém. A síntese mais aprimo-
rada desta teoria nos vem de uma publicação do século XIX (1866!), de autoria
de Julius Wellhausen. Não me parece que os estudos que partem da hipótese da
teoria das fontes literárias sejam muito frutíferos.
Enfim, por certo nenhuma palavra muito conclusiva se pode dizer, hoje,
sobre a origem de Gênesis 12-25. Ainda assim, parece-me que é útil partir das
23
unidades menores, buscando situá-las na sociedade interiorana de Judá tanto
do pré quanto do pós-exílio.
Ênfases de conteúdo
Estes nossos capítulos são uma verdadeira fonte. Abastecem muitas vidas
com seu saber. Deles deriva muita inspiração teológica para judeus, cristãos e
muçulmanos, para a humanidade.
Destaco três ênfases, na brevidade desta introdução.
A questão da I:-7mília é central. A rigor, sua bênção é um dos temas que, a
partir de 12,3, encabeça a coleção ("em ti serão benditos todos os clãs"). Seus
conflitos internos vão dando dinâmica aos capítulos. Há desencontro entre ir-
mãos (Abraão e Ló). Há carinho para com crianças que brincam (21,9). Há
defesa de crianças (caps.21-22). Os conflitos entre homens e mulheres levam
personagens à beira da morte. Estes e outros temas das famílias perpassam as
cenas. Sim, as genealogias das famílias chegam a constituir o fio condutor que
'constrói' a unidade e dá sequência ao todo. Aliás, às genealogias não chegamos
a dar muito destaque nesta introdução. Porém, elas são vitais para entender a
própria constituição, a vida expressa nestas histórias. Clã e família são um dos
eixos temáticos.
Aí cabe realçar, desde já, as óticas que são destacadas. Por um lado, em
especial no segundo bloco (caps.20-25), mas não só nele, as crianças são cen-
trais. Elas são, se quisermos valer-nos aqui da linguagem isaiânica, "sinais e ma-
ravilhas" (Isaías 8,18), focos de leitura. Lembro particularmente os caps.Z'l-ZZ,
os capítulos mais enfáticos na defesa da criança. Junto a esta ótica e com desta-
que ainda maior, temos defesa das mulheres. Em 12,10-20, a tradição do êxodo
chega a ser relida justamente em função e a partir da mulher e de sua não-
escravização em haréns. A retomada deste tema, no segundo bloco (caps.20-
24), dá a ele um valor hermenêutico particular. Os colecionadores quiseram que
a defesa da mulher - Sara e também Agar, escrava e estrangeira - fosse ótica
decisiva de leitura.
Além disso, os estudos futuros deveriam destacar com corações mais aber-
tos o tema da amizade, a questão dos vizinhos, tão fascinante nas histórias. O
estudo de Gênesis 12-25 precisa ser uma contribuição à paz. Afinal, tem-se es-
quecido de devotar atenção a que as cenas narradas querem bem aos vizinhos,
sejam eles ismaelitas/edornitas, amonitas/moabitas, filisteus e egípcios, cananeus
e arameus. Sabe-se das diferenças entre os judaítas e estes vizinhos, mas não se
cultiva, nem mesmo em 19,30-38(!), rancor e inimizade. Antes, há aproxima-
ção, em meio à conflitividade da vida e de povos. A terra de Sara e Abraão é
terra de paz. A exegese tem-se esquecido em demasia desta vocação de nossos
capítulos.
24
E, por fim, ressalto ainda a temática da terra. Contudo, ela não é mera-
mente parte do que é dado, do fato. É promessa. No Pentateuco, terra não é
propriedade pela qual se luta encarniçadamente. É horizonte. É desejo. Está
mais nos olhos do que nas mãos possuidoras. [avé é o dom da promessa da terra.
A teologia está ligada, nos caps.12-25, de modo estreito à terra; o Deus que fala
é o Deus que faz voltar os olhos a uma nova terra (12,1-3). Mas esta é dádiva de
promessa, não é simplesmente fato bruto pelo qual se luta com unhas e dentes,
com violência desmedida. Esta terra é espaço de novas relações, é chão de novas
gentes, como se lê no cap.23
"Sai da tua terra" - é a palavra de início. E, no Deus da promessa, ela
permanece.
25
Terra e dignidade
Gênesis 11,27 .. 12,20
26
Portanto, este nosso conjunto - 11,27 até 12,20 - diz respeito ao todo
da trajetória de filhas e filhos de Sarai e Abrão. Aponta para um todo maior.
Um texto em mutirão
Estes nossos versículos, por certo, seguem uma linha de pensamento. Do
início ao fim, tudo gira em torno da terra. Mas nem por isso deixam de haver
algumas quebras. Nem tudo se ajusta bem. Cá e lá, aparecem breves observa-
ções que não estão plenamente amarradas ao que está dito antes e ao que vem
depois. Penso em 11,30, a anotação sobre a esterilidade de Sarai, ou em 12,7, a
nota sobre uma aparição a Abrão. Ao ler, percebe-se que o texto saltita.
Estes versículos se parecem a um muro, feito de diferentes pedras. No todo,
formam um muro. Mas olhando bem, as diversas pedras ainda são bem visíveis.
Acontece que se trata de um texto feito em mutirâo, Várias pessoas, em
diferentes épocas, terão contribuído. A unidade foi sendo compilada. E não
terão faltado alguns enxertos. Em um e outro caso, até é possível tentar identi-
ficar estes 'construtores'.
E não será acaso que seja obra de mutirão. Afinal, aqui temos diante de
nós um dos pilares, dos esteios da Bíblia. Estava a exigir uma contribuição de
diferentes lados e épocas, uma construção em mutirão.
27
Mesmo numa tradução, é possível dar-se conta de que estamos diante do
resultado de um rnurirão. Recomendo, pois, uma leitura lenta, com meditação.
27E estas são as genealogias de Terá: Terá gerou Abrão, Naor e Harã. E Harã
gerou Lá. mE morreu Harã antes de Terá, seu pai, na terra de sua parentela, em Ur
dos caldeus. 29E tomaram Abrão e Naor para eles mulheres: o nome da mulher de
Abrão [era] Sarai; e o nome da mulher de Naor, Milca, filha de Harã, pai de Milca e
pai de Iscá. 30E era Sarai estéril; não tinha filho. 3IE Terá tomou Abrão, seu filho, e
Lá, filho de Harã, filho de seu filho, e Sarai, sua nora, a mulher de Abrão, seu filho.
E saíram com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã. E chegaram até Harã
e permaneceram lá. 32E foram os dias de Terá 205 anos. E morreu Terá em Harã.
IE disse javé para Abrão:
Sai da tua terra, e da tua parentela e da casa de teu pai para a
terra que te mostrarei.
2E farei de ti uma grande nação,
e te abençoarei,
e engrandecerei teu nome:
Sê uma bênção!
JE abençoarei os que te abençoarem,
e os que te amaldiçoarem amaldiçoarei,
e serão benditas em ti todas as famílias da roça!
4E partiu Abrão, como lhe falara [avé. E partiu com ele Lá. E Abrão tinha
75 anos, ao sair de Harã. SE tomou Abrão Sarai, sua mulher, e Lá, o filho de seu
irmão, e todas suas posses, que acumulara, e as pessoas, que fizera em Harã. E
partiram para chegar à terra de Canaã. E entraram na terra de Canaã. 6E Abrão
atravessou a terra, até a localidade de Siquém até o carvalho de Moré. E os
cananeus então [estavam] na terra. 7E [avé apareceu a Abrão, E disse: para tua
descendência darei esta terra. E ali construiu um altar a [avé que lhe aparecera.
8E dali partiu para as montanhas a leste de Betel. E armou sua tenda, tendo
Betel a oeste e Ai a leste. E ali construiu um altar a [avé. E invocou o nome de
[avé. 9E Abrão foi adiante, andando e migrando até o Neguebe.
28
Dizia-se, tempos atrás, que o paralelismo seria o que caracteriza a linguagem poé-
tica. Mas não convém recorrer ao termo 'paralelismo', porque, no geral, como
aliás também sucede em nossos versículos, não se trata de frases 'paralelas', mas de
repetições de duas ou, como sucede geralmente, de variadas frases. Neste sentido,
os v.2-3 são poesia, parcialmente também o v.1.
Rigorosamente, o v.J não é poético, porque nele temos uma só frase, sem
repetições. O que no v.l se repete são tão somente objetos, como se vê, a seguir,
na disposição da frase:
Sai da tua terra,
e da tua parentela
e da casa de teu pai para a terra que te mostrarei. (v.I)
Vê-se aí que realmente falta a repetição de frases completas. Elementos
da frase são retomados em enumeração, não frases inteiras. Por isso, há que
designar o v.I de prosa ou, se quisermos, de prosa elevada, ainda que não
tenhamos critérios claros para dizer o que seja propriamente uma 'prosa eleva-
da'.
Porém, nos v.2-J, aí, sim, temos poesia. Ao todo são sete frases em
sequência, umas repetindo conteúdos das outras. Nelas prevalece o conceito da
bênção.
Em marcada correspondência estão, no v.2, a primeira ("e farei de ti uma
grande nação") e a terceira frases ("e engrandecerei teu nome"). Tendem a coin-
cidir no sentido, porque "fazer uma grande nação" e "engrandecer o nome" coin-
cidem no sentido; referem-se à pretensão de consolidar um Estado. De maneira
similar, a segunda ("e te abençoarei") é retomada na quarta frase ("sê uma bên-
ção!"), se bem que esta última também represente o fecho das primeiras três fra-
ses, portanto do v.2. O voto de bênção ("sê uma bênção!") é o próprio auge, o
centro das sete fi-ases.
Ora, o v.J brota destes votos de bênçãos do v.2 e os amplifica. As duas
primeiras frase têm uma marca especial: invertem a sequência de objeto-sujeito.
A primeira frase ("e abençoarei os que te abençoarem") começa pelo verbo; na
segunda, a sequência está invertida, pois inicia pelo objeto ("e os que te amaldi-
çoarem amaldiçoarei"). Tais inversões são típicas de textos poéticos. A adição
da terceira frase ("e serão benditas em ti todas as famílias da roça") rompe o
círculo de bênção-maldição, e indica o alvo específico dos caminhos de Deus: a
supremacia da bênção para "todas as famílias da roça"!
Portanto, a bênção anunciada na frase central, a quarta: "sê uma bên-
ção", finalmente se efetiva em bênçãos para "todas as famílias da roça"! Nos v.2-
3, a forma da poética hebraica realça seu conteúdo maravilhoso!
29
A luta pela terra - eis a questão!
Há evidentes saltos literários, quebras de sentido nestes versículos. A se-
quência nem sempre é mantida, nesta obra em mutirão. Contudo, há um fio
condutor. Algo amarra tudo: a questão da terra!
Terá põe-se a caminho desde Ur dos caldeus, situada bem ao sul da Meso-
potâmia. (Contudo, há que lembrar que a tradução grega, a assim chamada
Septuaginta, também conhece outra versão desta passagem: nela se lê "terra dos
caldeus" ao invés de "Ur dos caldeus".) Sai desta cidade para ir em busca de
terra. Alcança Harã, localizada no norte da Mesopotâmia. Abrão completa o
caminho. Chega, enfim, a Canaã.
E aí percorre a terra. Atravessa-a (v.ó). Faz paradas em três lugares especiais:
Siquérn, Betel e Neguebe. Trata-se de localidades marcantes para as tribos do norte
(Siquém e Betel) e para as do sul (Neguebe; veja Hebrom no cap.l3).
Efetivamente, a terra é o eixo destes nossos versículos. Contudo, a ela são
feitas referências bastante diferenciadas. As experiências de vida com a terra
são variadas. Vejamos!
Terra de pastoreio
30
Forte acento recai sobre o clã, a família, do que ainda voltaremos a falar.
Também este é um interesse precípuo do seminômade. Sem o clã, sua vida seria
impossível. Sozinha, uma pessoa não teria condições de enfrentar as agruras do
pastoreio palestinense. O grupo é parte essencial de sua existência.
A própria prática religiosa tem as marcas da itinerância. É celebrada a
caminho, por ocasião da partida (v.l-4) e da chegada (v.7-8). Desconhecem-se
templos e até lugares especiais. São as andanças que vão estabelecendo os locais
de culto. A religião está inserida nesse jeito de vida migrante.
Portanto, muitos elementos remetem ao seminomadismo. Neste contexto,
terra é, no concreto, pastagem. E luta pela terra é luta pelo direito de conduzir o
rebanho a determinadas regiões e de usufruir certos poços.
Aí estamos diante de memória antiga, pois Sarai e Abrão, de fato, eram
seminômades palestinenses. E os elementos de nosso texto que os situam neste
ambiente remontam, ao menos, às condições vividas por Sarai e Abrão e por
aqueles que começaram a cultivar sua memória. Não quero dizer que, em nossos
versículos, cada particularidade que se refere ao seminomadismo corresponda
exatamente a experiências de Sarai, Abrão e seu grupo. Mas, em todo caso,
também não lhes está muito distante. Cabe em seu contexto. Está nas proximi-
dades de suas vivências.
Bem diferente é a questão, quando nossos versículos se referem à terra
como solo agricultável.
Terra de plantio
31
Típico do mundo do lavrador é o v.l: "sai da tua terra, da tua parentela e da
casa de teu pai.". "Casa do pai,
.,," parenteI""
a e terra "jh erança sao
- o que penazem
L a
vida no campo! Este versículo visa, pois, como seus leitores, pessoas ligadas às
condições de plantio. Sob este mesmo enfoque se encontra o final do v.3, a pro-
messa de bênção para "todas as famílias da roça", em especial porque, no original
hebraico, as famílias em questão são precisamente as da "roça", da "terra agricul-
tável", e não genericamente as da 'terra', do 'mundo'.
Contudo, os v.l-3 não só nos colocam no ambiente de lavradores. Espe-
1ham também uma linguagem usual no contexto do Estado. Fala-se da promessa
de "uma grande nação", de "engrandecer o nome". Ora, engrandece-se o nome
de uma nação, quando seu Estado é forte e militarizado (veja 11,4). Isso não
significa que estes versículos, ingenuamente, só estejam celebrando o Estado,
iniciado por Davi. Ao meu ver, até o criticam, quando dele fazem depender a
bênção de "todas as famílias da roça". Se um Estado fosse tal bênção para quem
produz, deixaria de ser Estado, já que um tal Estado traz a marca da exploração
desde berço (como a Bíblia muito bem sabe, cf. 1Samuel 8, 10-18!).
Tais referências ao âmbito da roça e ao próprio Estado certamente deve-
mos atribuir às releituras posteriores, em tempos de monarquia. Trata-se de con-
textualização da memória abraârnica. Vê-se aí o quanto esta memória permane-
ceu viva e criativa. Nós, que hoje a relemos e atualizamos, nos situamos na
continuidade deste processo, que já teve início na própria Escritura.
Penso ser importante, para nós, hoje, observar tais processos de releitura
e contextualização embutidos na própria Bíblia. Isso, porém, não nos deve obs-
curecer a visão para certos eixos de mensagem bem realçados em nossa unidade.
E, sem demora, passo a destacar alguns:
Promessa e posse
Essa unidade está carregada de promessa. Sua tônica é: chegaremos lá!
Por ocasião da saída de Harã, as promessas deram o impulso decisivo (v.1-
3). Mais adiante há uma "terra que te mostrarei". E, na chegada em Canaã, esta
promessa se atualiza: "para tua descendência darei esta terra" (v.7). O que im-
porta, é, pois, esta terra como promessa e a promessa como terra.
A bênção de "todas as famílias da roça" integra esta promessa, ainda
que ela esteja formulada numa linguagem um tanto atropelada. Refiro-me no-
vamente a esta relativa incongruência entre a expectativa de uma bênção
para quem trabalha e um Estado monárquico que, desde suas raízes, precisa-
mente é a negação de vida para escravas e escravos, lavradores e trabalhado-
res forçados. Seja como for: a promessa é a de que a bênção, de todo modo,
será arrebatada para "todas as famílias da roça". Não há barreiras que possam
32
impedir seu avanço. Sim, nossa unidade celebra a irresistível vitória da pro-
messa da bênção.
Talvez se possa falar de um certo processo de avanço desta promessa. Por
ocasião da saída de Ur dos caldeus (v.3l), ainda não havia promessa explícita. A
saída de Harã já vem motivada pela promessa. Esta, inicialmente, diz só respeito
a Sarai, Abrão e seus descendentes (v.l.?). Mas, logo se espalha. Visa "todas as
famílias da roça" (v.3). Por um lado, a promessa toma-se mais e mais explícita.
Por outro lado, amplia seu raio de ação (família, descendência, os lavradores em
geral). Toma-se mais abrangente e, simultaneamente, mais profunda.
A promessa a Sarai e Abrão se choca com interesses de outros. Não se
acomoda a Ur dos caldeus e nem aos cananeus. Não está dito por que Terá se
retirou de Ur (v.31). Pode-se, porém, induzir: Ur representa a opressão e a ido-
latria dos caldeus/babilónios. Em seu meio a vida, não é possível. A solução foi a
retirada, o êxodo, para viabilizar um projeto novo. - Os cananeus, são o oposto
das promessas. Ao mencioná-los, o v.6 não tem em mente a população cana-
neia, mas os governantes cananeus, os que mantinham a terra sob seu controle,
como se pode ver também nos caps.13-14+ 18-19 (veja Josué 12). Entre as pro-
messas e sistemas de opressão, não há acordo viável.
E isso já está valendo. As promessas não são para algum futuro longínquo.
Estão valendo, aqui. É o que sublinham os v.6-9. Neles, Sarai, Abrão e seu grupo
"atravessam" a terra, andam por ela, migram de lugar em lugar, armam suas
tendas. Por que tanta migração? Por que tanta andança? Estes deslocamentos
têm um sentido muito especial. Através deles se efetiva, simbolicamente, a pos-
se da terra (veja 1Reis 21,18). Quem caminha sobre a terra, quem a usa, quem
nela vive, tem seu 'domínio', detém sua posse. O uso da terra é que estabelece o
direito à terra. Ela é de quem a trabalha! Andando sobre a terra, fazendo-a
produzir, os migrantes semi-nômades e os lavradores a vão libertando, resgatan-
do-a do controle de reis cananeus e dos imperadores caldeus.
A promessa se realiza na posse da terra. Mas aí não para. Vai além. Não
descansa, enquanto "todas as famílias da terra" não tiverem acesso à bênção. E,
de fato, o que realmente importa é a família, o clã, as pessoas.
A família a caminho
Nossos versículos insistem na família/clã, este grupo de pessoas que con-
vive e coopera nos trabalhos no pastoreio e no plantio, e para o qual a terra
(como pastagem e lavoura) era a condição primeira para a vida. A importância
desta família aparece várias vezes. Quando são enumeradas as gerações e defini-
dos os parentescos, aí o interesse da família é o que prevalece. E isso sucede em
vários versículos: v.27-32 e vA-5. Para nós, hoje, tais enumerações cansam. A
gente costuma 'apressar' a leitura. Para os tempos bíblicos, a memória da família
33
é um dado constitutivo na luta pela terra (IReis 21,3). Por ela, luta-se em con-
junto, em grupo familiar e tribal. Vida em terra livre depende do bom funciona-
mento destes laços de parentesco, que são, simultaneamente, compromissos de
interajuda. Hoje, os lavradores encontraram novas formas de organização que
ainda continuam a incluir os laços familiares, mas que vão muito além destes.
Afinal, na luta pela terra, vale: ou todos têm acesso a ela, ou todos são feitos
escravos em cima dela. Aí se pode dizer: só juntos, chegaremos lá!
Contudo, há problemas também. Justamente aí no nível familiar vivem-
se momentos de impasse grupal. Um deles está registrado no v.30: Sarai era
estéril. Outro está assinalado nos vA-5: Ló e Abrão estão juntos. Haverá espaço
para ambos na terra? (Veja cap.l L)
Estas tensões intraclânicas são tematizadas na maioria das histórias de oe-
nesis 12-25: a caminho da libertação da terra, é preciso renovar a família.
34
prática de posse deste chão. Neste sentido, o v.] é sintomático: ao estarem na
terra, os migrantes estão na presença de javé. Este não só é Deus de promessa de
chão, é também o de sua posse! Justamente, por isso, já é adorado na terra (v.S).
Constrói-se a ele um altar, porque ele está presente na terra das promessas. Aliás,
é um altar mui típico: sua serventia maior não parece ser para o sacrifício, como
ocorrerá com os altares nos tempos monárquicos, tão voltados ao sacrifício. No
v.8, o altar é antes um memorial para comemorar a presença divina. Em conse-
quência, serve para a invocação. De fato, o Deus dos pobres é o Deus que gosta
de falar conosco (v.I l) e de ver-nos falar com ele.
Concluindo
Estes nossos versículos -11,27 até 12,9 - são parte da porta de entrada às
histórias de Sarai e Abrão, à própria história de Israel. Representam uma parte,
uma ala deste portal.
Trata-se de uma unidade, mas com vaciles. O texto tem jeito de estar um
pouco amontoado. Empilha frases, ainda que também as alinhe numa mesma
direção, a da terra.
Em todo caso, não convém isolar os v.1-3, como tão frequentemente ocorre.
Estes versículos, sem dúvida de grande valor teológico, são parte de um todo
maior. Integram o conjunto.
Central é a temática da terra, como dom de promessa e de posse. A terra
está por ser liberta. Mas sua libertação já está acontecendo. [avé é a palavra
dessa promessa e dessa realidade libertadoras. Javismo implica aqui terra para
migrantes e lavradores.
Neste caminho para a terra, importa que se vá construindo a família e,
através dela, o povo. Essa é a perspectiva de 12,10-20, dessa segunda ala de
nossa porta de entrada para os caps.12-25.
35
Nossos versículos são, pois, parte deste cenário de abertura para as histó-
rias de Sarai e Abrão e para as do povo inteiro. Representam uma das alas desta
porta de entrada, através da qual são estabelecidas as chaves de leitura para o
que lhes segue.
Ainda que 12,10-20 estejam claramente integrados ao que lhes antecede,
não deixam de ter suas facetas peculiares. Dá-se uma redução. Até o v.9 se
insistia na presença de Ló e de escravos. A partir do v.10, estes são deixados de
lado, se bem que estejam juntos, ao menos de acordo com 13,1. Toda atenção se
concentra em Sarai e Abrão. Esta redução certamente tem a ver com a intencio-
nalidade deste novo texto.
Dizíamos que em 12,10-20 há peculiaridades. É o que também se nota, ao
dar atenção a seu estilo, bem diferente do de 11,27 até 12,9, um conjunto com
suas rupturas, quebras e vacilas, típicos de um texto feito em mutirão. Outro é o
caso de 12,10-20:
36
mulher!? 19Por que disseste: ela [é] minha irmã. E se a tomasse para mim
para mulher?! E, agora, eis, tua mulher! Toma! E vai! zOE faraó o confiou a
homens (= soldados). E acompanharam-no a ele, sua mulher e tudo que
lhe pertencia.
Eis uma história bem contada, coesa e clara! Os acontecimentos fluem de
um episódio ao outro. As pessoas que nos legaram este trecho, pelo visto, ti-
nham intenções claras. Quais?
37
há referências a este detalhe. Após a última praga, "os egípcios pressionavam o
povo a que saísse depressa do país" (Êxodo 12,33).
Portanto, o cenário do êxodo sob Moisés conforma o pano de fundo de
nosso conto. Ele foi contado de jeito a que a gente percebesse, ao fundo, a
melodia da libertação dos hebreus, este berço e estas raízes mais profundas de
Israel. Nossa história de Sarai e Abrão é uma flor nascida deste chão da liberta-
ção do êxodo.
Estou insistindo neste ponto, porque às vezes se tem esquecido de ler
nosso trecho sob este pano de fundo do memorial do êxodo libertador.
Mas, por certo, não basta perceber esta sua dimensão, por mais importan-
te que seja. Também há que dar-se conta de que nossa passagem tem muita
semelhança com outras, nas imediações.
Histórias parecidas
Nos caps.20 e 26, lemos histórias semelhantes. Os detalhes variam, mas
os conteúdos principais são muito similares.
Penso que, dentre estas três narrativas semelhantes (12,10-20; 20; 26), a do
cap.26 poderia ser a mais antiga. Nela, Isaque, Rebeca e Abimelec são os persona-
gens principais. Depois, passou-se a contar a mesma história também de Sarai e
Abrão, que, à semelhança do cap.26, contracenam com Abimelec. Por fim, surgiu
nosso trecho: 12,10-20. Representa, pois, a fase mais recente - e, por certo, mais
elaborada e intencional. Nela, Sarai e Abrão contracenam com faraó!
Esta tríplice repetição mostra que os conteúdos tratados eram de grande
importância. Estas três narrações dizem respeito a um problema marcante da
vida da época. Trazem à tona a situação crítica que, de tempos em tempos, se
repetia. Contam algo típico.
As três histórias contrapõem dois grupos. De um lado estão serninômades
(como Isaque e Rebeca, Abrão e Sarai). Do outro lado, poderosos (como o faraó).
Diante desses soberanos ou imperadores, os serninômades são completamente in-
defesos, ainda mais que fome e sede os estão forçando a passar ao território dos
monarcas. A situação é de completa dependência.
Os seminôrnades estão, pois, expostos aos caprichos dos monarcas. Vítima
é a mulher (Sarai e Rebeca). Por dois motivos, a mulher acaba sendo vítima maior
da desigualdade entre serninômades e monarcas: por um lado, ela é a parte mais
dependente entre os próprios seminôrnades (veja em especial 12,10-20); por ou-
tro lado, ela sempre é apresentada como bonita (12,11; 26,7), objeto de interesse
e cobiça de monarcas e imperadores.
Nestas histórias aparecem, pois, dois níveis de conflito: a prepotência dos
soberanos contra os seminômades; e a submissão da mulher ao homem.
38
Pode-se dizer que este é o contexto que gerou nossas narrativas. É tam-
bém o ambiente que as transmitiu, certamente porque nelas se reflete algo típi-
co do mundo do seminomandismo. Digamos que esta é a matriz. É o chão, no
qual estes contos estão enraizados
Isso não significa que todos tenham o mesmo sentido. Cada um tem seu
direcionamento próprio. Vem carregado por uma ênfase especial. É o que, ago-
ra, trataremos de ver em relação ao nosso trecho de 12,10-20.
39
Pelo visto, nosso texto agudiza a percepção da opressão da mulher pelo
homem. Torna-a bem transparente. Torna visível a índole sacrificial imposta
pelo homem!
Contudo, o Abrão que, assim, vai desterrando e pisando a mulher para
dentro do harém não age sozinho. Não é personagem isolado. Está embutido
num contexto social maior. Joga um jogo com ramificações maiores.
Seu parceiro é o próprio faraól Olhando nossa narração pelo seu início,
não se estaria autorizado a afirmar tal coisa. Afinal, lá no começo, Abrão treme
diante dos egípcios: "me matarão" (v.l2). Mas, na medida em que vai colabo-
rando com o faraó, na medida em que se apresenta como irmão de "uma mulher
muito bonita" (v.l l}, um 'objeto' interessante para alegrar o coração do sobera-
no, para que ministros aumentem sua reputação diante do grande chefe (v.15),
nesta mesma medida Abrão vê concretizar-se seu sonho de ser "tratado bem"
(v.13). E eis que chega lá. É "tratado bem" (v.l6). E é tratado no rigor da mordo-
mia: "recebeu ovelhas, bois e jumentos, escravos e escravas, jumentas e came-
los" (v.16). Tornou-se "muito rico", nas palavras de 13,2. Associou-se, pois, ao
faraó! No final, Abrão e faraó como que estão em pé de igualdade: ambos ricos
e poderosos, colaborando.
De fato, patriarcalismo e imperialismo são farinha do mesmo saco. Entre
a opressão na casa e a opressão no império, há diferenças quantitativas, mas não
qualitativas.
Sarai está encurralada. Está rodeada pela fome (v.IO). É cerceada na casa
pelo homem (v.l1-13). É amarrada ao palácio (v.l4-15). É submetida ao 'acordo'
entre Abrão e faraó (v.16). Cercas por todo lado! O aperto é tamanho que nem
voz lhe resta. A humilhação é tão completa que não se ouve nenhum som, nenhu-
ma palavra de Sarai. Ela nada diz, no que nosso texto difere da versão no cap.20
(veja aí v.5). A avalanche que se abate sobre a mulher é tão arrasadora que nem
lhe restam palavras. Só silêncio. Este silêncio é estágio final da humilhação. É o
mais fundo do poço.
"Porém, Javé..."
Os acertos estavam acertados. As coisas corriam sua 'ordem normal'. Fa-
raó e Abrão, cada um a seu modo, estavam sendo "tratados bem". E Sarai, na
prisão do silêncio imposto. O projeto de poder e opressão havia completado,
mais uma vez, seu ciclo.
Porém, a esta altura, nosso texto, introduz a novidade. A ação de [avé é
esta novidade! Deus intervém em favor de quem já nem voz tinha. Intervém
contra o poder maior, contra faraó. E, a partir desta ação divina, os aconteci-
mentos tomam novos rumos, os da libertação.
40
]avé atua a partir da pessoa mais fragilizada e humilhada. Toma posição
em meio aos conflitos históricos. Não está à parte deles. Mas neles se insere, a
partir do lado mais fraco, mais silenciado. O javismo é, aqui, religião de empo-
brecidas.
Esta intervenção de [avé dá-se à semelhança do êxodo, ferindo "com
grandes pragas" (Êxodo 3,20 e 11,1). Estes "prodígios" (Êxodo 3,20) e "mila-
gres" (Êxodo 7,9) da parte de "[avé, o Deus dos hebreus" (Êxodo 3,18), favore-
cem, em nossa história de Gênenis 12, Sarai, uma mulher. E esta particularidade
chama a atenção.
Nas histórias do êxodo, o cenário é dominado por hebreus, anciãos, Moisés,
homens. Também se fala de mulheres (Êxodo 1-2; 4,24-26; 15,20-21), mas com
destaque bem menor. Em Êxodo 1-15, os hebreus, os homens, sem dúvida, rece-
bem atenção bem maior. E este já não é o caso em Gênesis 12.
Aqui o êxodo libertador, "as grandes pragas" (v.l7), tem numa mulher,
em Sarai, seu personagem principal. Ela está no centro das atenções.
Esta concentração da ótica em torno de Sarai acaba implicando tam-
bém uma reorientação do próprio alvo da saída do Egito. Em Êxodo 1-15, a
saída visa chegar à "terra que mana leite e mel" (Êxodo 3,8). Este objetivo não
deixa de beneficiar também as mulheres, se bem que não tão claramente, já
que a posse da terra estava no domínio do homem (veja, porém, Números
36!). Em nossa história de Sarai e Abrão no Egíto, a saída da opressão faraôni-
ca já não visa tanto a terra, se bem que obviamente não a exclua (veja 11,27
até 12,9), mas antes a liberdade da mulher, sua dignidade de poder dizer sua
palavra, de decidir seu caminho.
A ação de ]avé consiste deste resgate da dignidade da mulher em contes-
tação ao patriarcado abraâmico e ao imperialismo faraônico. Aqui, o javismo
aparece como religião em defesa da dignidade da mulher.
Pelo visto, Gênesis 12,10-20, de fato, é uma espécie de enxerto. Suas
raízes e seu tronco provêm do êxodo. Mas a rama enxertada desenvolveu-se por
conta própria. Trouxe frutos novos e surpreendentes.
Concluindo
A narrativa de 12,10-20 é coesa e homogénea. Porém, sua interpretação
não é tão fácil. Necessita de uma sondagem especial.
Acontece que este conto percorreu uma trajetória considerável até vir
a ter sua atual formulação. Assemelha-se a um lago, abastecido por diversos
riachos.
Esta narração tem as marcas do conflito entre indefesos seminômades e pre-
potentes monarcas. Este traço ela tem em comum com os caps.20 e 26.
41
Contudo, em 12,10-20, este conflito (entre seminômades e monarcas) já
vem enfocado pelo prisma do êxodo. Afinal, a história transcorre no Egito e se
parece ao espelho do que sucede com Moisés e os hebreus.
No entanto, o texto não deixa de ter sua intuição própria, singular. E esta
circula em torno de Sarai, a única que nada diz, mas que tudo sofre e em favor
da qual [avé intervém com grandes pragas. Na defesa da dignidade da mulher
oprimida, nosso conto encontra sua peculiaridade.
Esta junção de diversos riachos, de diferentes tradições dificulta a inter-
pretação. Mas é também o que a torna tão interessante.
Entendendo que a atual formulação de 12,10- 20 é fruto de uma trajetória
considerável, concluo que seja de origem mais recente. Pressupõe certa criativida-
de em relação à tradição do êxodo, como a conhecemos da profecia do 89 século e
do movimento deuteronômico do 79 século.
Em todo caso, a atual formulação do texto não terá surgido sem uma parti-
cipação decisiva de mulheres. Tem jeito de memória feminina. Isso não significa
que a atual redação não tenha marcas masculinas. Por certo, estão presentes. Afi-
nal, devemos estas histórias, conquanto textos(!), a pessoas letradas, por conse-
guinte, a homens. E isso transparece no texto, por exemplo nos v.18-19, nos quais
os termos usados poderiam dar a entender que o faraó estivesse devolvendo uma
propriedade (no caso, Sarai) a seu dono (no caso, Abrão). Entendi que não fosse
o caso de dar demasiada importância a tais vícios de linguagem. Preferi interpretar
com vistas a resgatar memória em sua dimensão de esperança. Afinal, interpretar
é puxar a história para frente, não fixá-la em trejeitos passados. Deixemos que os
mortos enterrem seus próprios mortos. A nós, comovem as esperanças daquelas e
daqueles que vivem.
42
o cap.12 encaminha, pois, os capítulos subsequentes. Mas, não só estes. É
uma abertura à própria história do povo do Antigo Testamento. A gente o percebe
no linguajar de 12,1-3: estes versículos não foram compostos tão-somente com
vistas à trajetória de Sarai e Abrão. Procuram interpretar o próprio projeto de
Deus para com seu povo. Na mesma direção, indica a menção dos três principais
polos da história do povo: Mesopotâmia (Ur e Harâ), Canaã (Siquém, Betel e
Neguebe) e Egito. E, não por último, a referência ao êxodo, explícita em 12,10-20
e implícita na promessa da terra em 11,27 até 12,9, cabe neste contexto. Ao apon-
tar para o êxodo, o cap.12 evoca o eixo da história do povo com seu Deus. Põe em
cena seu mistério mais radical: a libertação de "todas as famílias da terra".
O cap.12 visa, de modo mais imediato, o cap.l3 e os com ele relaciona-
dos. Chama a tenção que a redação deste cap.l3 ressaltou, nos v.2-5, sua vincu-
lação ao que precede, especificamente a 11,27-12,9. Pode-se, pois, constatar
desde já que os contos dos caps.l3-14 e 18-19 estão vinculados especialmente
com a primeira ala de nosso portal de abertura.
43
N as montanhas, há solução!
Gênesis 13,1.. 18
44
ponibilizadas de algum modo aleatório nos caps.12-25. Há, pois, um
senso de organicidade nos trechos de nossos capítulos.
Estes capítulos, com interesse em Abraão e Ló, não só se situam organi-
camente nesta subunidade dos caps.13-19, mas também formam con-
tornos a três capítulos disponibilizados de modo nada ocasional. Refiro-
me aos caps.15 e 17, dois conjuntos visivelmente correlacionados; em
ambos os 'personagens' tão-somente são Deus e Abraão. E, além disso,
seu assunto central se complementa: o das promessas. É, pois, flagran-
te e evidente que os caps.15 e 17 mantêm, entre si, correspondência.
Por conseguinte, os caps.13-14+15 e 17+18-19 se correspondem.
E o cap.16 é o centro! Porém, neste capítulo, o assunto diverge tanto do
que lemos nos caps.13-14 e 18-19, quanto do que se promete nos
caps.15 e 17. Este cap.16, que retoma 12,10-20 e diverge dos capítulos
que tematizam só a Abraão ou a este junto a Ló, a rigor não mantém
relações maiores com os caps.13-1(15)5+17-19, mas prepara a segunda
parte de nossos capítulos, os caps.20-25.
Entre estes seminômades houve tensões sociais. É, por um lado, o des-
taque destes capítulos, dedicados a Abraão e Ló. Mas, estes conflitos
têm solução. Não levam à guerra ou à morte. Conflitos sem guerra e
sem morte (veja Gênesis 4) são realce destes nossos capítulos.
Por outro lado, como que não basta que constituições sociais superem
conflitos, impedindo que se transmutem em violência. Também é deci-
sivo que não se anseie por sociedade cujo modelo lhes torne a violência
socialmente típica. Este é o caso das cidades grandes, como Sodoma.
Nelas não resta alternativa de paz, mas por elas se espalha a violência.
45
IE subiu Abrão do Egito para o Neguebe, ele, sua mulher, tudo que lhe
pertencia e Lá com ele. ZE Abrão era muito rico em gado, em prata e em
ouro. 3Eandou, de acampamento em acampamento, do Neguebe até Betel,
até ao lugar onde primeiro estivera a sua tenda, entre Betel e Ai, "até ao
lugar do altar que outrora tinha feito. E invocou ali Abrão no nome de [avé.
SE também Lá, que acompanhava Abrão, tinha ovelhas, gado e tendas.
6E não os carregava a terra para morarem juntos. Eis, a posse deles era
abundante. E não podiam morar juntos. 7E houve contenda entre os pas-
tores de gado de Abrão e os pastores de gado de Lá. - E os cananeus e
ferezeus, então, dominavam na terra. - SE disse Abrão a Lá: "Não haja
contenda entre mim e ti, e entre meus pastores e teus pastores. Eis, somos
irmãos! "Toda a terra acaso não está diante de ti? Separa-te de mim! Se
fores para a esquerda, irei para a direita; se fores para a direita, irei para a
esquerda." IOE ergueu Ló seus olhos, e olhou todo o vale do Jordão. Eis,
sua totalidade [era] abundância - antes de [avé haver destruído Sodoma
e Gomorra - como o jardim de [avé, como a terra do Egito, até Zoar. IILó
escolheu para si todo vale do Jordão. Ló partiu para oriente. Separaram-
se um do outro.
IZAbrão permaneceu na terra de Canaã. E Ló permaneceu nas cidades do
vale. E armava tendas até Sodoma. I3E os homens de Sodoma (eram)
maus e grandes pecadores diante de [avé.
14E [avé disse a Abrão, depois de Ló se haver separado dele: "Ergue
teus olhos e, desde o lugar onde estás, olha para o norte, para o sul,
para o oriente e para o ocidente. ISEis, toda terra, que vês, darei a ti
e à tua descendência, para sempre. 16E tornarei tua descendência
como o pó da terra, de sorte que, se alguém puder contar o pó da
terra, também tua descendência será contada. 17Levanta-te e per-
corre a terra no seu comprimento e na largura. Eis, ta darei."
'SMudou Abrão as tendas. E andou e foi habitar nos carvalhais de Mame,
que [existem] em Hebrom. E construiu ali um altar para [avé.
46
A unidade, a coesão do nosso capítulo também se denota ao atentar para
seu começo e seu final. Inicia com um deslocamento: ''Abrão subiu" (v.I). Con-
clui com um reassentamento: "foi habitar... ali construiu" (v.18). O episódio se
desenrola entre este "subir", que abre o cenário para uma nova experiência, e
aquele "habitar"l"construir" que encerra a peça.
Contudo, esta certa unidade que percebemos não deixa de ter suas parce-
las, seus momentos distintos.
Três momentos
Identifico três momentos diferentes, em três parcelas principais: v.I-5,
v.6-11 e v.12-18. A primeira (v.I-5) encaminha a questão. Apresenta o assunto.
Faz as vezes de uma exposição. A segunda (v.ô-l l ) leva-nos ao centro; apresen-
ta o conflito e sua solução. Constitui O núcleo temático. A terceira (v.12-18)
caracteriza a vida de cada um dos dois que estão em litígio após a separação. É a
conclusão. Cada uma destas partes destaca um conteúdo específico:
v.1-5 - exposição: Abrão e Ló têm grandes rebanhos;
v.6-11 - núcleo: conflito por falta de espaço e sua solução através da
separação;
v.12-18 - conclusão: Abrão e Ló seguem caminhos diferentes.
Esperar-se-ia que o segundo momento, o que dá a temática ao capítulo,
fosse o mais detalhado. Surpreende que isso não ocorre. A primeira e a terceira
partes são as mais extensas. Por quê?
Muita 'divagação'
Há um fio condutor: o conflito entre Abrão e Ló e sua superação. Contu-
do, nem todas as afirmações se ajustam a esta linha mestra. Há uma série de
desvios de rota, em especial na exposição (v.I-5) e na conclusão (v.12-18).
Na exposição, a identificação do local de acampamento nas cercanias de
Betel (v.3b e v.4a) retarda a narração. Funciona como parêntese.
Na conclusão, a maioria dos versículos representa 'divagações', digres-
sões. Os v.U e v.14-1 7 desviam; nem as informações sobre Sodoma (v.U) nem
as promessas (v.14-17) estão organicamente ligadas ao assunto principal, ao
núcleo temático.
Inclusive no núcleo, deparo com tais parênteses. É o caso do dado histó-
rico sobre a situação em Canaã, no v.7. Aí também caberiam parcelas do v.l O.
Estas 'divagações', digressões não têm vida em si. Isoladas e dissociadas do
assunto principal, do eixo narrativo, não fazem sentido. Trata-se, pois, clara-
47
mente de enxertos. Devem-se ao papel que o cap.13 desempenha em relação
aos demais capítulos. Têm a ver com seu contexto literário. Vejamos!
48
12,1-3.7 e para a 'tomada da terra' em Josué. Estas referências foram criadas por
quem colecionou estas memórias e escreveu estes textos em sua versão final.
Interessou-lhe ligar e conectar episódios. E isso não se deu antes dos tempos do
exílio, no 6" século. Nesta época, os textos foram reunidos literariamente. Aí
'fazia sentido' dar destaque à riqueza de Abrão (e Ló). E, em especial, o conteú-
do das promessas dos v.14-17 (terra e povo numeroso) é nitidamente dos tem-
pos do exílio (veja caps.l5 e 17). A perda do controle da terra e a brusca dimi-
nuição da população, devido à deportação e aos massacres durante vários sécu-
los (8", 7" e 6" séculos) são a base real para as promessas destes v.14-17! Em 732
e 722, Israel fora devastado, em 701 Judá teve sorte quase idêntica. E, em 597 e
587, Judá foi destroçado. Portanto, as referências que amarram nosso capítulo
ao cap.12 são bastante recentes, certamente exílicas, senão pós-exílicas.
Quando atribuo esta redação final a tempos do exílio, não penso que seus
autores tenham estado na Babilônia. Não! A linguagem e a ótica desta versão
final não coincidem com o jeito dos exilados. Antes, estamos na própria terra,
em Judá, entre os judaítas remanescentes. Estas pessoas sofreram as dores do
exílio, porque experimentaram a ruína de Judá. Viram acabar-se Jerusalém, seus
reis e seu templo. Sofreram duros reveses diante da invasão babilônica, que lhes
devastou a terra inteira. São estes que se expressam, coletando e redigindo suas
memórias, como sucede em nosso cap.l3.
Mais antigas são as conexões com os caps.18-19. O v.U é um típico exem-
plar desta ligação com a história da destruição de Sodoma (caps.18-19). Esta
integração não é fruto de quem redigiu os textos. Deve ter aparecido bem antes
da anotação escrita, no nível da transmissão oral. Isso ocorreu em tempos ante-
riores ao exílio, talvez até antes da implantação do estado, no 10" século.
Ainda mais antigo é o assunto principal, o conflito entre Abrão e Ló.
Remonta a tempos distantes. Fez-se até necessário localizar ouvinte e leitor,
através de uma nota como a do v.7: "naquele tempo cananeus e ferezeus viviam
na terra",
o ambiente é o do seminomadismo. Abrão e Ló são pastores de ovelhas e
cabritos. Vivem na região semiárida, entre a área da mata e do deserto, na região
montanhosa do centro-sul palestinense. Suas migrações do Egito ao Neguebe,
de lá para Betel, e daí para Hebrom têm a ver com o dado socioeconômico de
viverem no contexto do seminomadismo do gado miúdo (ovelhas e cabritos).
Deste ambiente provém a memória do conflito. Não me parece que o texto,
como literatura, já tenha sido criado naqueles tempos remotos. Aliás, este foi
escrito por quem se situa fora do ambiente do seminômade das ovelhas, pois
quis atribuir gado bovino vacum, ouro e prata a seus personagens, o que extra-
pola de longe as condições reais da vida de um seminômade.
49
A disputa por pastagens - que é o motivo da contenda - corresponde à
vida seminônade. A escassez de pastos tem a ver com o excesso de animais. Em
tais casos, a separação amistosa é a solução. A guerra ainda não 'existe'. Guerra
entre grupos tão diminutos de seminômades não faria sentido. Esta está vincula-
da ao estado, como veremos no cap.H, ou, ao menos, a grupos sociológicos
maiores.
Certamente, o cap.13 tematiza uma contenda entre dois grupos serninô-
mades. Contudo, este conflito entre pastores só é uma das questões em disputa.
É o que se vê, quando ocorre a separação. Penso no seguinte: Abrão, ao se
separar de Ló, permanece nas montanhas. Dirige-se a Mame, nas cercanias de
Hebrom, em local inclusive mais montanhoso do que Betel. Ao contrário, Ló!
Abandona a montanha. Desce ao vale. Aproxima-se do âmbito das cidades.
Abrão continua, pois, seminômade de montanha. Ló passa à planície e se ache-
ga à cidade. Portanto, para nosso capítulo, montanha e planície, seminomedis-
mo e cidade se opõem. Antagonizam. Ora, esta observação ajuda a localizar o
cap.13. Acontece que, com a instalação do reinado, na passagem do 11" para o
10" século a.c., o antagonismo entre montanhas e planícies passou a se diluir.
Antes da monarquia, era constitutivo para a experiência de Israel, como o ates-
ta inequivocamente Juízes 1,27-36. Assim sendo, o núcleo temático antigo do
cap. 13, no mínimo, é anterior ao aparecimento do estado israelita-judaíta. In-
clusive há de remontar ao próprio tempo dos antepassados em questão em nosso
capítulo, a antes de 1200 a.C!
Estórias, como as que perfazem o eixo narrativo de nosso cap.13, têm
seminômades como seus primeiros transmissores. Em nosso caso, são os que se
sabem na tradição de Abrão, seu ilustre antepassado. Estes longínquos narrado-
res nos legaram o conteúdo principal de nossa perícope. Contudo, permanecem
anônimos. Escapam à nossa identificação. Mas, de seus primeiros aprendizes,
talvez possamos dizer algo mais específico. Acontece que as cercanias de Betel
são o cenário do conflito. E Mame é a estação de chegada de Abrão. Veja Gêne-
sis 28 e 35! Trata-se aí de dois lugares santos, de santuários antigos. Os antepas-
sados dos israelitas estão vinculados a eles. Teriam sido romeiros ou os agentes
do culto destes locais consagrados os primeiros a prestigiar a estória sobre Abrão
e Ló? Teriam ajudado a difundi-la entre os que por lá passassem? Trata-se de
uma possibilidade.
Pudemos, pois, detectar trés momentos na trajetária de Génesis 13. Nos
tempos remotos do 13" século, contava-se entre seminômades e entre frequen-
tadores de lugares cúlticas, como Betel e Mame, o núcleo principal, composto
das cenas de contenda e separação entre Abrão e Ló. Em tempos posteriores,
possivelmente ainda antes da efetivação de um estado israelita, nossa estória foi
acoplada às dos caps.(l8-) 19, que culminam na destruição de Sodoma e Go-
50
morra. E, por fim, sob as circunstâncias do exílio do 6° século, o cap. 13 foi inte-
grado ao conjunto das histórias sobre Sara e Abrão.
51
"ele, sua mulher, e tudo que lhe pertencia" (v.l )
Abrão "era muito rico em gado, prata e ouro" (v.2)
Ló "tinha ovelhas, gado e tendas" (v.5)
Os v.J~4 respiram ares serninômades. Neles, nada há que contradiga as
circunstâncias pastoris. (Nisso diferem dos v.1.2.5!) A expressão, com a qual
inicia o v.3, é bem típica para o jeito serninômade. Refiro-me ao "andar de acam-
pamento em acampamento". O termo traduzido por "acampamento" diz respei-
to ao 'arrancar as estacas das tendas', ao 'levantar acampamento', a fim de ir a
outro lugar, em busca de novas pastagens, no caso, em direção de Betel. No
ambiente pastoril, uma tal migração era muito lenta. Estava vinculada às esta-
ções do ano, à própria transumância. Até a prática cultual, delineada no vA,
condiz com o ambiente daquele agreste. Fazia-se o altar junto ao acampamento.
Ali também se invoca a Deus. Enfim, o que os v.3-4 deixam transparecer corres-
ponde aos usos e costumes de Abrão e Ló; coaduna-se muito bem com sua
condição de pastores seminômades.
Porém, a função destes dois versículos não é propriamente a de apresen-
tar a situação de vida de nossos personagens. Isso já começa a transparecer,
quando se percebe que os v.3-4 só se referem a Abrão. Ló de alguma maneira
está junto, como o v.5 trata de anotar. Mas os conteúdos dos v.3-4 não se refe-
rem a ele. Dizem respeito a Abrão. E dele se fazem três afirmações que lhe dão
destaque.
Primeiro: constata-se que ele retomou a Betel (veja 12,8). E Betel não
era, para os israelitas um local qualquer. Era um local cúltico tradicional, um
santuário antigo. Lá se cultuava a memória de Jacó (Génesis 28 e Oseias 12).
Veio a ser o centro religioso de maior renome no estado de Israel. O v.3 constata
que já Abrão o reverenciava! Fez questão de retomar para lá! Não seria seu mais
ilustre romeiro?
Segundo: em Betel, o primeiro altar foi acrescido de novo altar erguido
por Abrão, já que o primeiro foi esquecido, como sucedeu com tantos outros
altares erguidos por aqueles longínquos antepassados. O próprio Abrão estabe-
leceu a memória do altar de Betel. Fê-lo, duas vezes, um memorial!
Terceiro: Abrão também exerceu a prática cúltica junto a este altar-me-
morial de Betel. Seu culto consistia de invocações. Se bem que o sacrifício não
esteja excluído (afinal, o altar é mencionado!), a oração merece destaque maior.
Ora, ela é citada em último lugar, no ápice.
Portanto, o culto em Betel remonta a Abrão! Ele foi o primeiro partícipe
de suas celebrações. Os v.3-4 pretendem, pois, mostrar o quanto Abrão (e não
Lól) representa o povo israelita. É seu modelo. Numa linguagem mais atualizan-
te, se diria que os v.3-4 apresentam um 'crente' exemplar.
52
A exposição cumpre, pois, um duplo objetívo: por um lado, apresenta
Abrão e Ló como pessoas ricas; por outro lado, destaca o enraizamento de Abrão
nas tradições cúlticas memoriais. A riqueza de ambos é o motivo do conflito. A
devoção de Abrão contém o germe da solução da contenda. Portanto, os v.1-5
realmente encaminham para o núcleo da perícope, ainda que o façam com al-
guns rodeios e adornos. Passemos, pois, ao temário central.
O centro da narração vai do v.6 ao v.J1. Inicia com uma síntese do pro-
blema (v.ó) e conclui com a solução (v.l l ). O problema é: "não podiam morar
juntos". A solução foi: "separaram-se um do outro".
O v. 6 está na continuidade dos v.1-5. Explicita a problemática inerente
ao fato de Abrão e Ló terem "numerosos bens". O convívio de ambos no mesmo
espaço tornava-se inviável. O começo do v.6 o expressa de uma maneira bem
peculiar: "a terra não lhes bastava", literalmente: "a terra não conseguia carre-
gá-los". A riqueza dos dois grupos gerou um dilema muito objetivo: escassez de
terra, de pastagens. E este inviabilizou a convivência. Resultou em desavença
(v. la): "Houve contenda entre os pastores de gado de Abrão e os pastores de
gado de Ló." A riqueza gera conflito/Ele aparece primeiramente como desacer-
to entre os "pastores" de ambos os lados. Estes "pastores" são os que o v.5 via
incluídos nas "tendas". São as famílias que compunham o grupo de Abrão e de
Ló. Estes "pastores" provavelmente não são escravos ou assalariados, mas inte-
grantes da família, do clã (veja Êxodo 2,16 e 3,1). Estamos, pois, diante de um
conflito interfamília. A este nível, não se acha solução nem pela guerra nem
através de um tribunal. O tribunal já pressuporia um agrupamento mais comple-
xo de clãs. A guerra, a rigor, é negócio de estado. Em nível interfamiliar, a solu-
ção se dá por negociação e acordo. É o que nos apresentarão os v.8-11.
Entre a eclosão do conflito (v.7) e o encaminhamento do acordo (v.8-1I),
foi interposta uma nota informativa (v. lb): "naquele tempo cananeus e ferezeus
viviam na terra". Ressalta a agudeza do conflito. Além da riqueza, a presença de
"cananeus" e "ferezeus" diminui ainda mais o espaço. O conflito é muito sério.
Uma solução é difícil!
Discute-se quem seriam os "ferezeus" (veja também 15,20; Êxodo 3,8
etc.). Ao lado dos "cananeus", hão de designar os habitantes da Palestina antes
da constituição de Israel.
A proposta de solução vem de Abrão. Em meio ao conflito e diante do
impasse, sua palavra abre novas perspectivas. Sua fala dos v.8-9é decisiva para o
episódio. Tem alguma semelhança com a fala dos v.14-17.
O conflito começara porque a terra dizia 'não' ao convívio de duas pessoas
tão abastadas. Abrão começa dizendo 'não' ao conflito: "não haja contenda!"
De acordo com suas palavras, o desacerto não só envolve os "pastores" de ambos
53
os lados. Trata-se de uma "contenda entre eu e tu", entre Abrão e Lá, entre as
riquezas de ambos os lados. É muito relevante não restringir aqui o "eu" e o "tu"
ao nível interpessoal. Os versículos anteriores já deixavam muito claro que são
coisas (riquezas), e não pessoas, que se encontram em rota de confrontação.
Este "eu"/Abrão e o "tu"/Ló estão sendo sugados para dentro do confronto entre
coisas: "ouro", "prata", "gado". O conflito transcende as relações pessoais. É o
que vai realçar o v.9. Contudo, as pessoas não estão isentas. Por isso, a justifica-
tiva para que a confrontação seja superada tem sua razão de ser. Reza: "somos
irmãos"! Os laços consanguíneos são evocados como motivo para a superação
da contenda. Ló é apresentado como sobrinho de Abrão (11,27 e 12,5). Este
argumento da consanguinidade tem sua relevância. Mas, pelo visto, não é sufi-
ciente para a superação do impasse. A rigor, era conhecido dos litigantes, que,
apesar dele, brigavam. Por isso, o v.9 vem a ser muito importante. Agrega os
conteúdos decisivos que dão novo rumo ao episódio. O v.S permanece no nível
do apelo e do argumento cultural. O v.9 'desce' à esfera real; propõe alterações
factuais! São três as mudanças:
Primeiro: "toda esta terra acaso não está diante de ti?"
Segundo: "separa-te de mim!"
Terceiro: "se fores para a esquerda, irei para a direita; se fores para a direi-
ta, irei para a esquerda."
Inicialmente, é desfeito o entrave principal. Este residia na falta de espa-
ço, motivado pela abastança e a presença de cananeus/ferezeus. Mas, de fato,
ainda há terra. O v.9 evidentemente pensa em terra para o pastoreio serninôma-
de, não em terra agricultável, ocupada por cananeus e ferezeus, por Sodoma e
Gomorra. A terra visada é a que Abrão usará, ao migrar para Mame.
Segue-se a proposta de solução: separação! Trata-se de uma solução tipi-
camente seminômade. Não é tão apropriada para camponeses, gente presa à
roça e às colheitas.
Por fim, a Ló é concedida prioridade de escolha. Abrão, o mais idoso, se
orientará pela opção de seu sobrinho.
A fala de Abrão abre, pois, novas perspectivas. Soluciona a questão, como
se verá nos v.l 0-11. Portanto, nas palavras de Abrão, nossa peticope encontra seu
auge, sua solução. O que lhe segue é consequência da clarividência abrãmica.
Aqui, a imagem de Abrão também alcança uma de suas expressões mais
positivas. Já o destacávamos em relação aos v.3-4. Nos v.S-9, seu papel é ainda
mais belo. Sua proposta é viável, inteligente e aceitável. Além disso, Abrão é
generoso e nobre. Desiste de seus direitos (de ser o mais idoso e o mais abastado)
em prol da paz. É um exemplo de conduta, um verdadeiro modelo. Quão distan-
te esta imagem de Abrão está daquele de 12,1O-20!
54
Os v.8-9 foram a generosa e inteligente fala em favor de uma solução. Os
v. 10-11 são a prática desta solução. Através de seus gestos e de suas medidas
concretas, Ló evidencia estar de acordo com seu tio. Assente.
Quatro verbos expressam este assentimento de Ló: "ergueu seus olhos",
"olhou", "escolheu", "partiu". Abarcam o processo de tomada de decisão e de
sua concretização. Cada verbo enfoca um momento especial. O mais importan-
te é o "olhar". Nele, o texto se detém. A decisão cai no "olhar"!
Devemos, pois, acompanhar Ló em seu "olhar". Seus olhos se detêm em
algo realmente espantoso, em "todo o vale do Jordão", desde a altura de Betel,
onde se encontra, em direção de Zoar. Esta localidade deve ser procurada ao sul
do Mar Morto. Trata-se de um espetáculo fascinante. Lá das montanhas áridas,
se avista a fartura e a fertilidade daquele imenso vale. A ele deve-se imaginar
integrado o atual Mar Morto, pois o próprio v.IO se apressa em anotar que esta-
mos em tempos "antes de [avé haver destruído Sodoma e Gomorra", aniquilan-
do aquela fantástica planície. O que qualifica este vale, é sua 'abundância em
águas'. É comparável ao que de mais exuberante se pudesse imaginar: "o jardim
de [avé" (no oriente mesopotâmico) e "a terra do Egíto'' (ao sul), ambos regados
por águas caudalosas. À vista de tamanho encanto, os olhos se decidem pelo
vale. Para lá, Ló se põe em movimento. "Partiu para oriente." Visto desde Betel,
o vale do Jordão fica a oriente.
De longe este vale encanta. Mas, 'nem tudo o que brilha é ouro'; as planí-
cies não são terra livre. Estão sob o controle das cidades, em especial de Sedo-
ma. Por isto, com vistas a seu futuro, Ló não faz boa escolha.
Houve solução para o impasse. A separação foi a solução! A frase final do
v.ll dá-lhe destaque: "separaram-se um do outro".
A conclusão complementa o sentido de nossa perícope com aspectos im-
portantes. Por isso, até se compreende que ocupa tantos versículos: v.12-18. Ne-
les, os v.14-17 são uma digressão. Tomo a liberdade de considerá-los mais adiante.
Inicialmente, restrinjo-me, pois, aos v.12-1J+18. Representam o encerra-
mento do episódio numa fase mais antiga, anterior ao enxerto dos v.14-17. Se vejo
bem, então há uma disposição mui intencional nestes versículos. Visualizo-os:
Abrão - "permaneceu na terra de Canaã"
Ló - "permaneceu nas cidades do vale"
Ló - "armava suas tendas até Sodoma"
"os homens de Sodoma eram maus e grandes pecadores diante
de [avé"
Abrão - "armou as tendas, andou e foi habitar nos carvalhais de Mame,
que existem junto a Hebrom"
"ali construiu um altar para [avé".
55
Esta disposição dos conteúdos mostra que as atitudes de Abrão e Lá, após
a separação, estão sendo comparadas. Para entender o que se diz de Abrão, é
preciso perceber o que se diz de Lá, e vice-versa. Sigamos por esta pista.
Abrão continuou sendo seminôrnade: "armava tendas" (v.18) . E prosse-
guiu-o sendo nas montanhas. É o que significa a expressão: "permaneceu na
terra de Canaã" (v.12). Abrão até 'intensificou' seu seminomadismo de monta-
nha. Afinal, ao dirigir-se a Mame, perto de Hebrom, subiu a lugares mais altos.
Embrenhou-se nas montanhas! Foi 'sertão' adentro! E, além disso, ficou firme
em [avé. Nisto reside algo muito importante. Ao se achegar a Mame, Abrão foi
a um lugar deveras sagrado, a um centro cultual. Lá fez seu altar. O v.18 até
parece estar sugerindo que Abrão tenha fundado este centro religioso nas cerca-
nias de Hebrom. Novamente, a devoção de Abrão é exemplar. Estamos sendo
remetidos aos v.3-4, onde deparávamos com acentos idênticos. E isso, por sua
vez, reforça a importância das últimas palavras de nossa perícope: em Mame,
Abrão "construiu um altar a [avé". Mame voltará no cap.14, bem como no
cap.l8.
Portanto, os últimos versículos celebram Abrão como seminômade das
montanhas, como exemplo de um crente em [avé e como devoto de antigos e
tradicionais centros cúlticos.
Todo o contrário é dito de Lá! Desceu à planície. Não permaneceu fiel ao
seminomadismo. Aproximou-se do âmbito das cidades. Sob sua tutela, "armava
suas tendas". Associou-se à cidade de Sodoma, local importante no cap.14 e nos
caps.l8-19. Ló achegou-se ao mais nefasto dos modelos de cidade: Sodoma! O
v.U caracteriza seus moradores como gente da pior espécie: "os homens de 50-
doma eram maus e grandes pecadores diante de [avé". Enquanto Abrão edifica
um altar "para [avé", Lá se toma concidadão de gente má "para [avé", Lá se faz
indigno ao descer ao vale e aliar-se à cidade. Abrão permaneceu digno e justo ao
meter-se 'sertão' adentro!
Portanto, os versículos conclusivos acrescentam um aspecto novo. Pro-
põem decididamente o pastor e montanhês Abrão como modelo e polemizam
flagrantemente contra Lá, achegado às cidades da planície. Na montanha há
solução para a vida e há culto a javé. As cidades do vale agrupam "grandes
pecadores". São uma ameaça à vida.
As promessas divinas dos v. 14-17 sublinham a validade do modelo abrâ-
mico, enraizado nas montanhas. Estes v.14-17 são uma inclusão que conheceu o
exílio. Complementam os versículos circundantes, dando ênfase na promessa.
Estes v.14-17 contêm a ótica de judaítas, de remanescentes, não de de-
portados ou exilados na Babilónia, no 7º ou 6º século. Pode-se percebê-lo num
dado bastante evidente: a terra pode ser alcançada pelos olhos. Para chegar a
56
ela, não é preciso retornar do exílio. Basta olhá-la e voltar a apossar-se dela. O
problema maior é o povo, este, sim, parece pouco, pequeno; na promessa, ele é
multiplicado, tornado incontável. Portanto, a perspectiva destes versículos é
certamente judaíta, Pode provir de tempos exílicos (isto é do 6" século), mas
também poderia preceder a ele (como ocorre no cap.l5).
Quanto ao conteúdo, toda atenção está voltada para Abrão. Só a ele se
dirige a palavra de [avé, de acordo com o começo do v.l4. Ló contracena com
Abrão. Permanece no pano de fundo, como contrapolo. As atitudes ordenadas
por [avé a Abrão são as que Ló tivera em reação às propostas de Abrão (Ló no
v.10):
Ló - "ergueu seus olhos e olhou" (v. 1O)
Abrão - "ergue teus olhos e olha!" (v.l4).
[avé dirige duas ordens (v.14-15+17) e uma promessa (v.16) a Abrão.
As ordens circundam a promessa. Elas mesmas também implicam promessas. O
cumprimento das ordens efetiva e antecipa o porvir.
Dois são os temas destas ordens-promessas: concessão da terra e multi-
plicação do povo. O primeiro prevalece sobre o segundo. Circunda-o:
v.14-15 - terra (ordem)
v.16 - povo (promessa)
v.17 - terra (ordem)
Enfoco primeiramente o v.16, aquele que é promessa explícita. Em torno
dele, estão colocadas as ordens que se referem à terra. O v.16 expressa sua pro-
messa com ajuda de uma comparação: "tornarei tua descendência como o pó da
terra". Esta comparação rompe qualquer esquema! Refere-se a algo verdadeira-
mente grandioso. O próprio v.l6 explica por que recorreu a ele: "se alguém
puder contar o pó da terra, também contará a tua descendência". A compara-
ção com o pó da terra serve, pois, para garantir que a descendência não possa ser
contada. Outras passagens bíblicas expressam o mesmo (28,14 e Oseias 2,1).
Esta figura não é escolhida por acaso. Afinal, afirmar que um povo é incontável
equivale a afirmar que é incontrolável. Os organismos estatais sempre trataram
de contar o povo (2SamueI24!). Contar significa dominar. Não conseguir con-
tar significa não conseguir submeter. Uma descendência incontável é um povo
não subjugável!
Os v. 14-15+17 redundam em promessas da terra. Mas, a rigor, são or-
dens. Ordenam que Abrão tome posse. A dádiva da terra é a justificativa deste
apossamento. Tanto os v.14-15 quanto o v.l7 seguem a mesma estrutura: ordem
de apossamento da terra que é justificada através da dádiva da terra. Esquema-
tizo:
57
ordem - "ergue teus olhos ... olha para o norte e para o sul..."
(v.14-15)
fundamentação - "pois toda a terra que vês darei a ti e à tua descendên-
.
oa... "
ordem - "levanta-te e percorre a terra no seu comprimento
e..." (v.l7) fundamentação - "pois eu te darei".
O esquema é, pois, idêntico nestas ordens. Contudo, há duas diferenças.
Primeiro: nos v.14-15, são os olhos que se apossam da terra. No v.17, são
os pés. Há, pois, uma progressão, um avanço na conquista do solo. O v.17 ("per-
corre a terra!") está mais avançado.
Segundo: os v.14-15 estabelecem os limites. Marcam os quatro cantos da
posse. O v.17 se refere à ocupação do espaço dentro destes limites, em seu "com-
primento" e em sua "largura". A terra tem limites e espaços, a descendência é
ilimitada. A terra pode ser percorrida e medida, as pessoas são incontáveis. A
terra é controlável, as pessoas não devem ser controladas. A terra existe para ser
posse; o povo, para ser livre!
Os v.14-17 evidentemente não estão ditos para Abrão e Ló. Até implica-
riam sérios impasses para suas vidas. Para eles, como seminômades, uma multi-
plicação exagerada da descendência significaria mais e mais conflitos, como os
em debate no cap.l3. Os v.l4-17 visam os contemporâneos que experimenta-
ram deportações e dizimação da população de Israel e Judá. Esta gente perdera o
controle de sua terra, fora exilada ou morta. A retomada da terra e o aumento
da descendência eram seus temas prediletos. Por isso, também era tão importan-
te destacar que a terra lhes estava concedida "para sempre". O exílio justamente
pusera em dúvida também este "para sempre".
Concluindo
58
Ainda que esta perícope tenha larga história de surgimento, a perspectiva
que é determinante para seus conteúdos é a do serninomadismo judaíta, sul-
palestinense. A ótica dos pastores da montanha é a ótica do texto!
O assunto em debate é uma contenda por falta de pastagem. Este desacerto
encontra solução. Nas montanhas da Samaria e de Judá há solução para diferen-
ças! O mesmo não sucede nas planícies, belas para os olhos, mas imprestáveis para
uma vida com qualidade! Abrão segue o projeto das montanhas. Ló se desvia para
a ruína das planícies, enfocadas no cap.l4 e depois nos caps.l8-19.
Abrão é padrão. Ló, o exemplo a não seguir. Abrão é modelo, porque
permanece fiel às raízes nas montanhas, no 'sertão', e porque ora a [avé e lhe
constrói altares. Abrão é justo e é 'crente'!
Duas falas são decisivas no capítulo, a de Abrão e a de [avé. A fala de
Abrão (v.8-9) propõe a solução para a contenda. A de [avé (v.14-17) promete o
futuro para o povo oriundo de Abrão.
O cap.14 tem suas marcas próprias, como veremos. Está, porém, na con-
tinuação de nosso cap. 13, ainda que de maneira pouco explícita.
59
Abraão - Um libertador
Gênesis 14,1..24
60
J3E veio o fugitivo e comunicou a Abrão, o hebreu, ele que morava
nos carvalhais de Manre, o amorreu, o irmão de Escol e o irmão de
Ner. E eles [eram) aliados de Abrão. 14E ouvindo Abrão: eis fora
deportado seu parente. E mobilizou seus combatentes, nascidos em
sua casa, 318 [homens). E deu perseguição até Dã. lSE dividiram-se
contra eles à noite, ele e seus seguidores. E feriu-os e os perseguiu
até Hoba, ao norte de Damasco. 16E trouxe de volta todos os bens,
e, em especial, Ló, seu parente, e seus bens trouxe de volta, e, em
especial, as mulheres e o povo. 17E saiu o rei de Sodoma a seu en-
contro, após seu retorno da vitória sobre Codorlaomar e os reis que
[estavam) com ele, ao vale de Save, ele [é) o vale do rei.
lHE Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho. E ele
[era) sacerdote do Deus Altíssimo. 19Abençou-o e disse:
"Bendito Abrão ao Deus Altíssimo, criador de céus e
terra!
zOE bendito o Deus Altíssimo que entregou teu inimigo
em tuas mãos."
E lhe deu o dízimo de tudo.
ZIE disse o rei de Sodoma a Abrão: "Dá-me as pessoas, e os bens
toma para ti!" zzE disse Abrão para o rei de Sodoma: "Ergo minha
mão para [avé, o Deus Altíssimo, criador de céus e terra: ZJnem um
fio e nem uma correia de sandália, nada tomarei de tudo que é teu.
E não dirás: 'Eu enriqueci Abrão!' z4Nada para mim! Tão-somente
o que os jovens comeram e a parte dos homens que vivem comigo,
Aner, Escol e Manré: eles tomarão sua parte."
61
Duas cenas
Esta nossa perícope abarca duas cenas distintas. Nos v.1-11, a ênfase recai
sobre operações militares que culminam num saque. Nos v.13-24, o enfoque é
outro: em jogo está a recuperação dos despojos.
A primeira parte (v.1-11) dá o pano de fundo. Seu panorama é internacio-
nal. Nele, Abrão e Ló nem aparecem. Reis dominam o cenário.
A segunda parte (v.13-24) é consequência da primeira. Seu cenário é
mais local. Abrão é seu personagem central.
Nesta segunda parte, o retorno de Abrão de sua operação de resgate dos
despojos recebe destaque. Relevante é seu encontro com dois reis: com o rei de
Sodoma (v.17 + 21-24) e o de Salém (v.18-20). A cena com o soberano de Salém
interrompe o encontro com o rei de Sodorna.
O v. 12 junta duas partes. É uma espécie de costura. Faz a passagem do
cenário internacional para a cena local.
Origem
Desde longa data, se discute o cap.14 quanto à sua origem e à historicida-
de dos episódios nele mencionados. Houve quem o considerasse mui antigo.
Hoje, a tendência é a de afirmar que esta perícope não contém informações que
remontam aos tempos de Abrão. A perícope foi tardiamente incluída em Gêne-
sis 12-25.
Adoto a opinião dos que assim se posicionam. A argumentação é ampla e
complexa. Não a pormenorizo. Para tal há de se conferir a literatura especializa-
da, indicada no final deste volume. Argumentos significativos são, em resumo,
os seguintes:
As condições de vida, pressupostas no cap.l-l, não condizem com as do
seminomadismo. Situam-se no âmbito agrícola.
Nomes de diversos soberanos são nitidamente simbólicos. Seria acaso que
os nomes dos reis de Sodoma e Gomorra hão de significar: "no mal" e "na per-
versidade"?
Não é habitual que textos bíblicos antigos expliquem o que poderia pare-
cer desconhecido. Mas é o que sucede em nosso capítulo. Por exemplo, no v.2 o
leitor é informado de que "Bela" é idêntico a "Segor". Algo similar sucede outras
cinco vezes (v.3.7.8.9.17). Aqui não estamos diante de dados antigos, explica-
dos no texto para poderem ser entendidos. Pelo contrário, nosso capítulo cria
dados aparentemente antigos, para 'poder' explicá-los. Estamos, pois, diante de
arcaísmos! O texto quer dar a impressão de ser antigo. De fato, não o é.
62
Reconhecendo que o cap.14 quer ter uma função arcaizante, penso que
não se deveria querer procurar nele por camadas literárias ou traditivas mais
antigas. Há, isso sim, informações antigas. Os autores que o compuseram estão
bem informados sobre o passado, tanto sobre a inserção de Judá no contexto
mesopotâmico e palestino quanto sobre as histórias dos juízes-libertadores do
livro dos Juízes 2-16. Conhece-se o passado e os livros bíblicos.
Os v.1-11 (+ 12!) hão de ser da época dospersas, isto é, do 5" ou 4" séculos.
O império dos persas integrou a Palestina decididamente em sua dominação. As-
senhorou-se dela. Esta situação está pressuposta nos v.1-11 + 12, sendo projetada
para tempos passados, possivelmente com auxílio de certos conhecimentos histó-
ricos. Aliás, estes versículos são obra de eruditos, de escribas. Estes autores dos
v.1-11 + 12 provavelmente também são responsáveis pelo todo do capítulo.
À mesma mão dos v.l-12 atribuo também os v.1J-24. Poder-se-ia tentar
imaginar que estes versículos contivessem alguma estória antiga de um Abrão
libertador. Mas isso me parece muito difícil. Não temos outro indício disso, além
do que as estórias dos juízes/libertadores são experiências e memórias do Israel-
norte. Não são nada características do Judá-sul. Lógico, nosso texto conhece
estas antigas tradições dos libertadores; mas as conhece a partir da literatura!
Nos v.13-24, lemos a história do resgate de um saque e de sua destinação. Nar-
rações similares conhecemos do livro de Juízes (caps.4-5; 6-9). O Abrão que
resgata o saque e o devolve ao rei de Sodoma (v. 13-17 + 21-24) se parece a um
juiz/libertador de tempos tribais.
A estória sobre o resgate liderado por Abrão, pressupõe o tribalismo. Po-
rém, não me parece que pressupõe um tribalismo vivido por Abrão; afinal, as
condições de vida abrâmicas não eram tribais, eram pré-tribais, clânicas. Não
convém, pois, querer atribuir historicidade ao que é tribal em nosso cap.14, em
especial em sua segunda parte. - Aliás, esta tendência dos conteúdos deste nos-
so capítulo a vivências tribais também pode provir justamente de tempos pós-
exílicos. Ora, exílio e pós-exílio retomam a vida tribal, em Judá, onde não há
nem estado e nem cidades! Nesta retribalização pós-exílica caberia muito bem
um texto como nosso cap.14!
Além disso, os autores de nosso capítulo eram pessoas lidas e estudadas
na Bíblia; conheciam o livro dos Juízes. Leram Abrão para dentro destes perso-
nagens dos Juízes. Ora, em Juízes 2 até 12 não há estórias de libertadores de
Judá. Várias tribos tiveram seus juízes/libertadores. Judá não os teve. O único
judaíta - além de nosso Abrão de Gênesis 14 - teria sido Otoniel (Juízes 3,7-
11). Mas os versículos que se referem a este Otoniel igualmente têm marcas
claras de uma redação recente; Otoniel igualmente é uma criação literária, se-
melhante ao Abrão-libertador de nosso cap.l-l.
63
Neste sentido, Abrão foi feito juiz/libertador à semelhança dos libertado-
res literariamente conhecidos do livro dos Juízes. Lavradores de Judá e seus
'escribas' passaram a contar que já Abrão, esta veneranda personagem do passa-
do, havia sido um libertador, como que o primeiro de todos. Trata-se aí de uma
típica releitura. Camponeses judaítas das montanhas de Judá contextualizam,
no pós-exílio, as histórias de Abrão para dentro de sua situação. Nesta atualiza-
ção, Abrão (historicamente um representante de um clã seminômade) toma as
feições de um libertador (típico fenômeno do tribalismo).
O mesmo ambiente que criou - à modo arcaizante - a figura de um Abrão-
juiz também relaciona seu personagem com Melquisedec, em v.J8-20. Esta cena
de jeito nenhum é de época tribal antiga. Até contradiz o tribalismo! Trata-se de
uma cerimônia religiosa que legitima a entrega do dízimo e do tributo ao sobera-
no de Salérn, isto é, Jerusalém. Ora, em tempos antigos, quando ainda havia reis
em Judá, os tributos e dízimos eram entregues nas aldeias ou em algum centro
religioso da circunvizinhança. Porém, a partir de 622 a.C; Josias centraliza esta
atívidade religiosa em Jerusalém. É óbvio que nosso cap.l4 é posterior à assim
chamada era josiânica do 7" século, ao Salmo 110. É de tempos em que se leva o
dízimo ao sacerdote, como é o caso de nossos v.18-20, e não ao rei. Estes são
tempos pós-exílicos, quando nossa perícope foi criada.
Penso ser conveniente aclarar o ambiente do cap.14 em mais uma outra
dimensão. Os judaítas, que, afinal, são os sujeitos históricos que estão por detrás
e por dentro de nossos versículos, se entenderam em toda sua história, quase
que continuamente (observe uma das poucas exceções em Miqueias 3,12) como
correlacionados e aliados de Jerusalém. Ser judaíta é ver em Jerusalém "a porta
de meu povo" (uma expressão de Miqueias 1,9!), em especial também no pós-
exílio. Por isso, a cena de nossos v.18- 20 faz parte da cultura de Judá. Não a
contradiz. A cultura judaíta tardia é, pois, intrinsecamente jerusalemitana (veja
Miqueias 3,9-12 e 4,1-4!), tão intensamente como é messiânica. Gênesis 49,8-
12 já se refere a isso. Tal rnessianeidade judaíta assume diversos contornos, como
o davídido (lSamuel 16 até 2Samuel 7 ou o saltério) ou o salomônico (veja o
Cântico dos Cânticos). Estes contornos de esperança em nosso cap.14 são arti-
culados ao redor da figura de um Abrão-juiz. Em tempos pós-vexílicos, outras
venerandas figuras do passado assumiram similar perfil de esperança (penso por
exemplo em Daniel, no profeta-apocalíptico).
Não penso, pois, que o cap.14 seja um tipo de um enxerto. Não é um
texto que estava solto e, como que por acaso, foi incluído após o cap.13. Não.
Ele fôi formulado para estar aí onde estâ.
O cap.l4 retoma o personagem Abrão como figura-modelo. Este 'juiz
modelar' faz tudo de forma adequada, correta, segundo a tradição. Aliás, assim
também procedera o Abrão do cap. 13.
64
Ló, que se afastara de Abrão em direção de Sodoma, tem aqui uma chan-
ce a mais para retroceder de seu 'olhar' que o levou a armar suas tendas em
direção a Sodoma, em direção à morte.
No cap.l-l, Abrão é, pois, exemplar. É exemplo para Ló. O cap.14 está
onde deveria estar; aliás, foi escrito para estar justamente após o cap.13.
E, assim, podemos passar a ver os conteúdos principais.
65
Este é um número que expressa globalidade: os quatro grandes senhores do mundo
se lançam sobre a Palestina.
Do outro lado, estão cinco soberanos: Bara, Bersa, Senaab, Semeber, e o
rei de Bela. Não só nos são desconhecidos estes nomes, como as próprias cida-
des, as quais governam, pertencem a um passado remoto. São símbolos de cida-
des destruídas, devido à sua maldade (13,10.13; Deuteronômio 29,22; Oseias
11,S). "Bela" inclusive há de significar "destruição".
Estes cinco reis das cidades "se reuniram", isto é, se aliaram (v.3). Junta-
ram seus exércitos, "puseram-se em ordem de batalha" (v.S), para fazer frente à
invasão. Dispuseram-se para o combate no "Vale de Sidirn", O próprio v.3 expli-
ca que este vale se situa onde veio a se formar o "Mar do Sal" (Mar Morto).
Frente a frente estão "quatro reis contra cinco" (v.9). Os "quatro" repre-
sentam potências mesopotâmicas. Os "cinco", pequenas cidades-estado palesti-
nenses. A supremacia está com os "quatro". Diante deles, os "cinco" não têm
chance alguma! É o que o v.1 Ovai constatar.
A expedição militar objetiva a cobrança de tributos (v.4-5a). Os cinco
reis haviam sido súditos, por longos doze anos. "Haviam servido", o que, no
concreto, significa que anualmente haviam pago os tributos 'devidos' aos sobe-
ranos na Mesopotâmia. Sua "rebelião" consistiu da suspensão dos pagamentos.
A expedição militar - sob o comando do babilónio Codorlaomar - visa restabe-
lecer a "servidão", isto é, a regular arrecadação dos tributos. Dessa maneira os
impérios mesopotâmicos costumavam espoliar a Palestina, em especial também
através dos persas. Na linguagem de Joell-2, estes invasores são qual gafanho-
tos!
As operações militares anunciadas nos v.5b-l já têm em vista a subjuga-
ção dos reis 'rebeldes'. Tratam de isolá-los de aliados em potencial.
Os três primeiros povos - refaítas, zuzim, enim - ocupavam a Transjordâ-
nia. É o que se pode deduzir das localidades mencionadas (Astarot-Carnaim,
Ham, Cariataim). Também se pode deduzi-lo das anotações de Deuteronômio
2,S-21. De resto são povos lendários.
Também o quarto povo - os horitas - pertence a um passado remoto. Os
horitas são os precursores dos edomitas (Deuteronômio 2,12). Igualmente vivi-
am no outro lado do vale, na extensão sul da Transjordânia. Contudo, estes
horitas também habitavam até no lado de cá da Arabá, onde se deve procurar o
Deserto de Farã. E assim, a expedição toma novo rumo. Volta em direção ao
nordeste, como se lê no v.7. E alcança Cades.
Nesta região de Cades (de Cades-Barneia}, são arrasados amalecitas e
amorreus. Os amalecitas são seminômades. Por isso, o v.7 se refere à sua "re-
66
giâo", a seus campos. Chama a atenção que não seja atribuída a mesma vida
seminômade aos amorreus. São moradores de uma localidade (Asasontamar).
Esta é identificada em 2Crônicas 20,2 com En-Gedi, junto ao Mar Morto. E,
com isso a expedição - após haver eliminado eventuais aliados dos cincos reis
rebeldes - está de volta ao Vale de Sidim, local do embate entre os quatro reis
dos impérios mesopotâmicos contra os cinco reis de pequenas cidades-estado
pales tinenses.
A desigualdade é flagrante, aí no Vale de Sidim. Dum lado estão impérios.
Do outro, reis insignificantes. E estes, ainda por cima, estão encurralados. O
exército imperial os cerca. Sob estas condições, os 17.10-11 nem veem necessida-
de de enfocar a batalha. Seu desenrolar é óbvio. Basta que seja anotado o resul-
tado.
O vI O tematiza a fuga. O v.II, o saque. O assunto do v.IOsão as pessoas.
O do v.II, as coisas.
Na debandada, uns caíram em poços, outros evadiram-se para as monta-
nhas. Na região do Mar Morto, de fato, havia betume. Para o v.IO, a área estava
cheia de poços. Existiam "poços e poços", como se expressa o hebraico. Os que
aí caíram - mencionados só são os reis de Sodoma e Gomorra - aparentemente
não sucumbiram. Ao menos é o que o v.I7 pressupõe. Outros sobreviventes
debandaram para a montanha, seja a que está para leste (Transjordânia), seja a
que está para oeste (Cisjordânia - Judá).
Uns escapam no fundo de poços, outros, no alto de montanhas. De lá do
alto, virá a solução!
O que não consegue fugir, é levado pelos vitoriosos (v.II). Pilhados são os
"bens" e os "alimentos". Sob "bens" há de se entender aqui gado, ouro e prata
(confira 13,2.3.6). Com esta pilhagem, passa a estar realizado o objetivo da ex-
pedição. Fora empreendida para cobrar o tributo. Ora, o saque cumpre esta
função. É o tributo cobrado na marra! Portanto, o v.II encerra o que fora iniciado
pelo v.I. Suas últimas palavras inclusive assinalam que a cena da guerra dos
quatro impérios contra os cinco reis rebeldes está concluída: "e se foram".
O 17.12 tem dupla função: retoma o cenário anterior e prepara o que vem.
Retrocede ao anterior ao se ocupar do destino de uma pessoa (assunto do v.IO)
e de seus "bens" (assunto do v.II). Aponta para frente ao apresentar esta pessoa
sequestrada e saqueada como parente de Abrão, "filho do irmão". Com isso está
preparada a próxima cena, a do resgate, nos v.13-24. O v.12 é, pois, um típico
versículo de costura. Liga duas cenas. (Isso também explica por que, no hebrai-
co, sua gramática seja um pouco desajeitada.)
O v.l2 dá-nos, pois, passagem para a segunda cena, a dos 17.13-24. Seu
tema é o resgate do saque, feito pelos invasores mesopotâmicos. O v.l3 serve de
67
exposição. Os v.14-l6 destacam a ação libertadora comandada por Abrão. Os
v.17-24 enfocam a destinação do resgate. Sobre ela recai atenção maior. Aí se
decide o sentido do capítulo.
O v.1J desempenha dupla função. Expõe que a notícia do sequestro de
Ló chega a Abrão e no-lo apresenta.
Um dos "fugitivos" põe Abrão a par da situação. Trata-se de um daqueles
"sobreviventes" que se haviam refugiado na montanha (v.10). Este "fugitivo"
estabelece a ponte entre a cena do saque (v.1-11) e a do resgate (v.U-24).
Chama a atenção que Abrão seja apresentado com tantas minúcias, ele
que já era conhecido desde o cap.12. Acontece que são prestadas novas infor-
mações sobre ele. Obtemos três dados:
Primeiro: Abrão é designado de "o hebreu". Aqui, isso também indica
pertença a um povo, ao dos hebreus, se bem que não se deva esquecer que
"hebreu", antes de mais nada, expressa pertença a uma categoria social, a dos
empobrecidos e sem terra.
Segundo: Abrão mora "nos carvalhos de Mambré". Lá se encontrava no
final do cap.U (v.18). Contudo, surpreende que, em nosso v.U, Mambré não
indique um local junto a Hebrom, mas o nome próprio de um "amorreu". Talvez
se devesse pensar num dos sobreviventes dos amorreus, derrotados pelos inva-
sores de acordo ao v.l,
Terceiro: Abrão tem aliados: Mambré, Escol e Ner, três irmãos. De acor-
do ao cap.14, a interajuda entre parentes (Ló/Abrão ou Mambré/Escol/Ner) é
evidente, 'natural'; entre não parentes é pactuaI. Pelo visto, encontramo-nos
em plena sociedade com características clânicas. Trata-se de mundo clânico
relativamente recente, não antigo, não dos tempos tribais, anteriores à emer-
gência dos reis. Este tribalismo do v.12 é recente, é pós-exílico) Vive em meio
aos tempos persas, como acima dizíamos. Aliás, justamente nestes tempos, ha-
via em Judá um desejo e uma necessidade de viver em harmonia e aliança com
os vizinhos, com ismaelitas/edomitas tanto como com filisteus (veja caps.20 e
21). Nosso v.12, situa-se muito bem neste ambiente de alianças para a sobrevi-
vência de tempos pôs-exilicos em Judá. Note bem: aqui estou falando de Judá,
não de Jerusalém. Abrão é, acima de tudo, uma figura-modelo de judaítas não
de jerusalernitanosl - Os que se aliam são designados de "senhores" (no texto
original). Aqui, "senhor" é o representante do clã. Em aliança estão clãs, através
de seus representantes, chamados de "senhores" (de "homens" no v.24). Isso
ajuda a entender os ld4-16, a operação de resgate. Esta é contada com precisão
e brevidade.
A mobilização para o resgate é o que ocupa o v. 14. Toda iniciativa é de
Abrão, após haver sido informado sobre a 'deportação' de seu parente. Seus
68
aliados somem de cena. Só retornam no final, no v.24. No v.14, todo interesse
está voltado a Abrão. O enfoque se restringe à sua gente. Mobilizados são só os
próprios parentes, "os nascidos em sua casa". Aqui, "casa" há de designar o clã, a
grande parentela. E, nela, só os "treinados" e "combatentes" comprovados e aptos
vão à luta armada (os "jovens" de acordo com o v.24). Chega-se ao número de 318
lutadores. Talvez este número, tão preciso, seja simbólico. Equivale ao nome "Eli-
eser" mencionado em 15,2. Mas, este total talvez também não deixe de corres-
ponder, mais ou menos, ao que uma parentela, uma grande "casa" era capaz de
reunir em força bélica. É evidente que este número excede, em muito, as possibi-
lidades de um pastor seminômade, mas não de um forte clã agrícola. E Abrâo é,
em nosso csp. 14, um ta/líder camponês/É um "senhor" (v.U), não um pastor!
No comando desta pequena, mas ágil tropa, Abrão vai ao encalço dos
vencedores, os grandes soberanos dos impérios mesopotâmicas.
Porém, ele não se dispõe à luta frontal, como o haviam feito os reis pa-
lestinenses no Vale de Sidim. Outra é a tática do resgatador Abrão. Ele assalta,
à maneira guerrilheira, à moda de Gideão em Juízes 6-8, à noite e, simultanea-
mente, por vários lados (v.15). Divide "seus servos", seus seguidores, e, na sur-
presa, "fere"l"vence" o grande exército imperial. Até o persegue para bem além
dos territórios israelitas. Enxota-o e fustiga-o para além da 'fronteira', para além
de Damasco. É evidente que o v.l5 não quer dizer que o exército imperial tives-
se sido aniquilado, mas, tão-somente, que não alcançava impor-se aos assaltos
noturnos dos combatentes liderados por Abrão.
Os reis das cidades-estado não tinham conseguido proteger a população
contra os impérios. Acontece que lhes eram similares! O clã das montanhas
mostrou-se capaz! Conseguiu proteger o povo!
O regresso é triunfal. O triunfo se torna visível em tudo o que foi resgata-
do. Esta é a ênfase do v.16. Nem mesmo menciona o regresso dos combatentes;
só destaca o resgate de coisas e pessoas. Os "bens" são mencionados em primeiro
lugar. Trata-se dos bens saqueados das cidades-estado (v.l l ). Aliás, além destes
"bens", também haviam sido levadas "mulheres" e "o povo", dos quais nada fora
dito no v.ll. Pelo jeito, o resgate como que aumenta o saque havido. Também
retornam Ló e suas posses, mas sem que ocupem o lugar principal. Se bem que
Ló tenha motivado a mobilização em prol do resgate (v.12.l4), não é o que
encabeça o cortejo de triunfo. E isso, sem dúvida, se deve ao fato de que, nos
v.17-24, toda a atenção está voltada aos bens dos reis das cidades-estado.
Portanto, o v.16 já tem em vista os v. 17-24. Neles está em discussão a
pertença dos bens resgatados pelo libertador Abrão.
Em dois encontros é dada destinação ao resgate. Em ambos, o libertador
Abrão está diante de reis. Num, diante do soberano de Sodoma (v.17+2I-24).
69
Noutro, diante do monarca de Salém (v.18-20). O mais significativo é o encon-
tro com o rei de Sodoma. O outro lhe é subalterno.
Os v.17-18 fazem o encaminhamento dos encontros, "no Vale de Save",
situado certamente nas cercanias de Jerusalém. São versículos paralelos. Seus
conteúdos se assemelham. Em especial, apresentam-nos os personagens que se
encontram com Abrão.
O v. 17introduz "o rei de Sodoma". Chama a atenção que seu nome (Bara,
conforme o v.2) não seja mencionado, e que os demais monarcas locais (citados
nos v.2.8) não apareçam. Contudo, já nos v.l 0-12 se vinha dando certa concen-
tração em Sodoma.
No mais, boa parte do v.17 se dedica a fornecer uma breve síntese dos
acontecimentos precedentes: "ao regressar da vitória sobre Codorlaomar e os
reis que estavam com ele". Este resumo mostra que no v.17, de fato, começa um
novo momento: o saque foi resgatado (v.13-16); agora, passa a ser discutida sua
destinação (v.17-24).
Se bem que o v.18 seja similar ao anterior, contém ênfases precípuas. Afi-
nal, com ele inicia uma unidade própria de sentido.
Abarca os v.18-20. Novo personagem é introduzido. E o é com certo es-
mero. É-nos apresentado seu nome: "Melquisedec", Trata-se de um nome pro-
gramático. Quase é titulação, pois significa: "rei de justiça" (veja Josué 10,3). A
ele também diz respeito o Salmo 110,4. É soberano de "Salérn" que é Jerusalém
(Salmo 76,3), tida por "cidade da justiça" (Isaías 1,26). Além de "rei", este Me-
lquisedec também é "sacerdote". A realeza, costumeiramente, também assumia
as funções sacerdotais. Assim também sucedeu com a dinastia de Davi, como
por exemplo se vê em 2Samuel6, 14; 8,18; Salmo 110,4. Neste ponto, o davidis-
mo se encontra em herança citadina, jebusita!
Melquisedec é sacerdote do "Deus Altíssimo" (em hebraico: 'el 'elyon).
No mundo siro-palestinense, eh'''deus'' é o designativo mais geral para uma di-
vindade, em especial para a suprema. E 'elyonl"altíssimo" é título ou até nome
próprio de uma das divindades. Aqui, em nosso v.18 (e no v.19) 'e] 'elyonl"Deus
Altíssimo" é a divindade suprema em Salém/jerusalém (antes de sua anexação
por Davi, conforme 2Samuel 5).
Este "rei"l"sacerdote" vai ao encontro de Abrão com um gesto de recep-
ção (v.18) e com palavras de saudação (v.19-20). Seu gesto e suas palavras são
complementares.
Sua atitude consiste em alimentar Abrão e seu grupo com "pão e vinho".
Não se trata aí de um mero gesto de agrado. É mais. Afinal, Melquisedec é
sacerdote. Seu gesto é, pois, também cúltico. E o lugar do sagrado é local de
abrigo, conforme antigas tradições. Aí gente extenuada (como Abrão), perse-
70
guida ou faminta, é abrigada e alimentada (veja 2Samuel 6; Salmo 23 e 132,15).
Neste sentido, o local cúltico é o âmbito da bênção, concretamente realizada
através de "pão e vinho".
Ora, as palavras de saudação (v.19-20) correspondem ao gesto. São sua
versão verbal: dizem ("abençoou-o e disse") o que acabara de ser feito ("trouxe
pão e vinho"). Aqui a saudação é uma bênção, concedida pelo rei-sacerdote ao
comandante libertador. Estamos, pois, diante de uma bênção sacerdotal (veja
Números 6,22-26).
Esta bênção flui poeticamente. No hebraico, a repetição perfaz a poesia.
É fácil verificá-la no dito de bênção:
Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, criador de céus e terra!
Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus inimigos
em tuas mãos.
Um "bendito" está dirigido a Abrão. É bênção! Outro "bendito" está di-
rigido à divindade, a Deus. É, na verdade, um louvor! Os dois benditos se esme-
ram em teologizar, em identificar o Deus, em cujo nome é concedida a bênção
pelo rei-sacerdote, e por ele é enaltecida. Cada "bendito" dá destaque a um
aspecto. O primeiro celebra o "Deus Altíssimo" como "criador de céus e terra".
O segundo, como libertador. Aliás, a expressão "entregar teus inimigos em tuas
mãos" é seguidamente usada, quando se trata de guerras de libertação (Juízes
7,9!). Portanto, os dois "benditos" celebram o "Deus Altíssimo" de Salém/jeru-
salém simultaneamente como criador e Iibertsdor. É justamente o que de mais
decisivo se testemunha também de Javé!
Contudo, os v.lS-20, a rigor, nem querem falar de [avé, o Deus de Israel.
Querem apresentar a antiga divindade local de Jerusalém. Mas, ao fazê-lo, esta
divindade da cidade, que 'virá' a ser tão decisiva para o culto israelita, acaba
assumindo contornos javísticos. O 'el 'elyonl"Deus Altíssimo" tem os predica-
dos de [avé: é criador e libertador! A identificação é óbvia, como o v.22 passará
a constatar!
Estamos diante de um fenômeno de grande relevância. Aqui o javismo
não se mostra excludente. É ecumênico. Respeita e assimila a expressão religio-
sa de outros. Não a exclui. Respeita-a! Creio que, neste particular, os v.lS-20 são
merecedores de nossos aplausos.
Talvez não se possa dizer o mesmo da frase final: Abrão "lhe deu o dízi-
mo de tudo" (v.20b). Assim, o libertador retribui o gesto 'sacramental' ("trou-
xe pão e vinho") e a bênção sacerdotal ("abençoou e disse") de Melquisedec.
A reação se restringe a um gesto. Não ocorrem palavras. Estas virão em profu-
são nos v.21-24.
71
"O dízimo de tudo" é, antes de mais nada, a décima parte de todos os bens
resgatados. Os santuários costumavam ter parte em saque e/ou resgate, como se
vê por exemplo em Josué 6,19; IReis 15,15. Mas, em tais casos, em si não se
trata de "dízimos". O "dízimo", a rigor, é a entrega da décima parte da colheita
(Deuteronômio 12,6.11.17; lSamuelB,15.l7). É o que também aqui está implí-
cito. Afinal, já víamos que nosso capítulo tem Abrão como um camponês, não
como um pastor serninôrnade. Como um tal agricultor, paga o "dízimo", o tribu-
to ao rei-sacerdote de Salém/Jerusalém. Esta, evidentemente, não é uma afir-
mação histórica; mas é flagrantemente etiológica. Isto é, um costume dos tem-
pos dos reis davídicos em Jerusalém e, em especial, de tempos pós-exílicos, é
transferido para um passado mui remoto. Dessa maneira quer-se dar ênfase maior
à reivindicação por dízimo. Ora, o próprio Abrão, esta veneranda figura do pas-
sado, já pagava seu dízimo aos soberanos em Jerusalém, que naqueles tempos
nem mesmo eram devotos de [avé. Quanto mais, agora, cada lavrador é devedor
do dízimo, aos reis da linhagem de Davi e aos sacerdotes aaronitas pós-exílicos
em Jerusalém! Ao assim sancionar o dízimo, os v.lB-20 aderem a interesses cita-
dinos e ternplares, vitais no pós-exílio (veja Malaquias). Fazem-se partidários de
reis e sacerdotes. E aí são problemáticos. Não resistem à crítica profética (Amós
4,4-5), ao menos não em tempos em que templos se fazem ricos e hegemônicos.
Penso que os v.lS-20 foram afirmados em prol do templo em tempos de pobreza
do santuário de Jerusalém (veja Ageu)!
O rei-sacerdote de Jerusalém é primeiro destinatário do resgate, num ges-
to de troca por bênção e alimento recebidos. A parte maior ainda está por ser
definida. Este é o temário dos v. 21-24, que estão na continuidade do v.11 Os
v.lB-20 fazem as vezes de um parentese, que resulta na destinação das outras
nove partes.
O "rei de Sodoma", que fora ao encontro de Abrão (v.17), toma a inicia-
tiva (v.2l). Propõe: "dá-me as pessoas, e os bens toma para ti". Para o autor
desta proposta, Abrão passara a ser dono do saque através do resgate. Assim
agem monarcas. Mantêm-se através de conquista e tributos. A lógica do "rei de
Sodoma", ainda que derrotado por outros reis maiores (v.l-12), não difere de
seus vencedores. Outra é a postura de Abrão, um líder judaíta clâníco-tribal.
Não vai à guerra para saquear ou conquistar. Só a faz para a defesa e o resgate!
Este é o assunto dos v.22-24, que são exclusivamente fala de Abrão. Nes-
tes versículos, nosso capítulo chega a seu ponto culminante! Cada um destes
três versículos realça um aspecto da posição de Abrão.
O libertador coloca sua atitude sob o signo do juramento (v.22). "Erguer
a mão para [avé" é gesto de juramento (Deuteronômio 32,40). [avé passa a ser
identificado com o "Deus Altíssimo, criador de céus e terra", do qual Melquise-
72
dec se dizia sacerdote (v.I8-20). A mesma identificação ocorre em outras passa-
gens (Salmos 46,5 e 82,6).
O v.2J expressa o conteúdo juramentado. Está sintetizado no final do
versículo, no retumbante: "nada para mim!". O restante do v.23 dá variações
desta posição. Para um libertador tribal como Abrão, não é digno enriquecer
através da guerra ou da adesão a um monarca. A riqueza da realeza é a própria
contradição das condições tribais. Abrão se posiciona de modo tribal, é um exem-
plo para Judá; o monarca, de modo tributário. E entre tributarismo e tribalismo
não há reconciliação. Por isso, o líder tribal precisa afirmar continuamente, sob
juramento: "neds para mim!". Abrão é um modelo de libertador! É, para nossos
autores pós-exílicos, o primeiro dentre os grandes juízes-libertadores e as juízas-
libertadoras, festejados no livro dos Juízes!
No v.24, aquele que nega tudo para si (v.23) reivindica para outros. Para
"os jovens" (= combatentes e seguidores dos v.l4-IS), reivindica a alimentação
que usufruíram durante a campanha. Aqui, no final, retorna um aspecto do
v.II, em que "os alimentos" eram parte do saque efetuado pelos grandes reis
mesopotâmicos. Para "os homens" (= senhores/aliados do v.13) exige parte. Ao
assim admitir que outros usufruam do saque, nosso v.24 mostra estar mais 'avan-
çado' do que a intransigente posição de Samuel em ISamuel13-IS, que, aliás,
representa a posição radical do tribalismo.
A palavra final e decisiva é a de Abrão: "nada para mim"! O libertador
não tem parte em saque ou resgate de saque! Não se beneficia da vitória militar!
O libertador devolve e partilha! Não pilha! Não se apossa! Não acumula! Não
usufrui! Um tal libertador jamais será rei. Aqui, o cap. 14 cultua a utopia tribal!
Rejeita realezas, sejam elas locais ou internacionais.
Em resumo
O cap.I4 se nos evidenciou como unidade própria e autónoma. Tênues
são suas ligações com o contexto.
Esta perícope representa uma releitura de Abrão. Além de seu nome,
quase nada remonta aos seus tempos, antes de 1200 a.c. Na parte principal
(v.13-14) , camponeses judaítas celebram Abrão como juiz-libertador. Encontra-
mo-nos aí, virtualmente, no tribalismo do 12º e 11º século. Sobre este lastro
básico, representantes de Jerusalém enxertaram os v.I8-20. Por fim, no período
da dominação persa (Sº ou 4º século) a estória sobre o resgatador Abrão foi
ambientada num contexto internacional (v.I-Ll + 12). Nossa perícope reúne,
pois, releituras de vários momentos e diferentes situações.
O projeto tribal é a matriz do capítulo. Os estados - sejam eles imperiais
ou locais - arruínam a vida do povo. Tributam-no. Saqueiam-no. Só os clãs e as
73
tribos das montanhas são capazes de se defender. Fornecem os resgatadores.
Suscitam o libertador. Esta mística de nossa perícope não é tanto pré-estatal, é,
acima de tudo, antiestado.
Conduta e palavras de Abrão são paradigmáticas. É o grande modelo de
uma liderança tribal. O cap.U celebrava Abrão como pastor exemplar (na com-
paração com Ló). O cap.14 festeja-o como camponês padrão (na comparação
com imperadores e monarcas).
O javismo (v.22) põe sob juramento esta proposta. A [avé agrada que o
vencedor diga: "nada para mim"!
Certamente não é acaso que estes dois capítulos, que não se cansam em
comemorar Abrâo como modelo, sejam seguidos por um que se extasia em pro-
messas. Refiro-me ao cap.l5.
74
Povo e terra - Promessas certas!
Gênesis 15,1 ..6.7..21
75
o próprio cap.JS marca esta diferença. Em seu começo se lê: "depois
destes episódios" (v.1). Isso equivale a dizer: agora começa algo novo.
E qual seria esta diferença? Ora, os caps.12+13-14 apresentavam episó-
dios, acontecimentos, o que, aliás, também será a tónica do cap.l (Agar). O
ó
cap.lS é "palavra de [avé" (v.I e 4). Nele prevalece a reflexão. Nisso se asseme-
lha ao cap. 17, outra unidade, em que as palavras ditas são bem mais abundantes
que os acontecimentos narrados.
Nos caps.1S e 17, a corrente das narrações é, pois, interrompida por refle-
xões teológicas. Dito desde outra perspectiva: ao redor do cap.16, da escrava
Agar, estão colocados dois textos com marcante interesse teológico. Pelo visto,
nosso cap.1S é um texto bastante especial.
Dois momentos
Logo se vê que o capítulo se compõe de dois momentos: v.l~6 e v. 7~21.
O assunto dos primeiros versículos (v.l ~6) é a promessa de povo. Com ela
a cena culmina (v.S-6). Subordinado a esta promessa de povo, está o outro as-
sunto deste início: a promessa do filho/herdeiro (v.2A). A promessa do povo
(v.S-6) incorpora a do filho/herdeiro (v.2A):
'Depois destes episódios, aconteceu a palavra de [avé a Abrão, em visão,
dizendo: "Não temas, Abrão. Eu mesmo sou escudo para ti. Tua recom-
pensa será muito grande." 2E disse Abrão: "Senhor [avé, que me darás? E
eu vivo sem filho! E o filho de Mesec, minha casa - ele [é] de Damasco-
Eliezer." JE disse Abrão: "Eis, a mim não me deste descendência. E eis que
o filho de minha casa será meu herdeiro." 4E eis que a palavra de [avé
[veio] para ele dizendo: "não será esse o teu herdeiro, mas aquele que sair
de dentro de ti este será teu herdeiro". 5E conduziu-o para fora, e disse:
"Olha para os céus. E conta as estrelas, se as puderes contar." E disse-lhe:
"assim será tua descendência". 6E creu em [avé e [isso] lhe foi tido em
conta de justiça.
O assunto é, pois, a descendência, o herdeiro. Abrão apresenta-o como
problema (v.2-3). [avé aponta a solução (v.1.4-S): "olha para os céus!". E, por fim,
Abrão a acolhe (v.6). Portanto, a cena está concluída. Seu assunto se completa.
Isso não impede que também se detecte certas vacilações no transcorrer
destes versículos iniciais. A rigor, o v.2 e o v.3 têm o mesmo conteúdo. O v.2
inclusive chega a ser meio atropelado, em parte incompreensível (no próprio he-
braico). Também o v.S é um pouco desajeitado ao repetir o verbo "dizer". E, no v.6,
tem-se a impressão de ter que explicitar os sujeitos: Abrão e [avé. Tais fissuras
indicam que estes versículos não terão sido compostos de uma só vez. Terão tido
um surgimento gradual, o que, aliás, também se vê na segunda parte, v.7-21.
76
Esta segunda parte, v. 7-21, circula em torno de um assunto que também se
identifica de imediato: a promessa de terra. O v.] já a anuncia. E é o ternário que
acompanha o texto até o v.2I. O gesto sacrificial que ocupa boa parte dos versícu-
los (v.9-17) está em função dessa promessa. E a própria explicação histórica dos
v.l2-16 tem em vista a herança da terra. Portanto, a posse da terra é o assunto da
parte mais extensa de nosso cap. 15:
7E lhe disse: "Eu sou Javé que te fez sair de Ur dos caldeus para te dar esta
terra, a fim de a herdares". SE disse: "Senhor [avé, como saberei que hei
de herdá-la?" 9E lhe disse: "toma para mim uma novilha de três anos, e
uma cabra de três anos, e um cordeiro de três anos, e uma rola e um
pombinho". IOE tomou para ele todos eles. E os partiu pelo meio. E colo-
cou cada metade em face da outra. As aves não partiu. 11E desciam as
aves de rapina sobre os cadáveres, mas enxotava-as Abrão.
12Ao pôr-do-sol, um profundo sono caiu sobre Abrão. E eis que
grande pavor, trevas, caíram sobre ele. UE disse para Abrão: "Sabe,
com certeza, estrangeira será tua descendência em terra que não
[é] para eles. E lhes servirão. E os oprimirão durante quatrocentos
anos. 14E em especial a nação, que escravizar, eu julgarei. E depois
sairão com grandes bens. 15E tu irás para teus pais em paz. Serás
sepultado em boa velhice. 16E na quarta geração voltarão para cá.
Eis, não se terá completada a culpa dos amorreus até lá."
17E aconteceu, ao pôr-do-sol, houve densa treva. E, eis, uma fogueira fu-
megante e uma tocha de fogo que passou entre aqueles pedaços. 18Naque_
le dia, constituiu [avé uma promessa para Abrão dizendo: à tua descen-
dência darei esta terra, desde o Rio do Egito até o Grande Rio, o Rio
Eufrates: 1905 queniras, e os quenezeus, e os cadrnoneus, zoe os heteus, e os
ferezeus, e os refains, 21e os amorreus, e os cananeus, e os girgaseus e os
jebuseus.
Também estes v. 7-21 conformam uma cena em si concluída. Iniciam com a
afirmação da promessa da terra (v.7). Abrão pede por um sinal que a comprove
(v.S). Este é detalhado, ocupando a maior parte do texto (v.9-21). No final, a pro-
messa é reafirmada (v.l8-21). O v.l8 chega a ter a mesma linguagem do v.7: "darei
esta terra". Isto significa que o final da cena (v.l8-21) retoma ao início (v.7).
Ainda que os v.7 até v.21 inegavelmente formem um todo, também é
nítido que há uma interrupção. Os v.13-16 quebram a sequência. São uma di-
gressão. E o v. 12 funciona aí como uma espécie de costura. Trata de acomodar
estes v.13-16 ao todo. Em todo caso, esta interrupção, representada pelos
v.l2 + 13-16, mostra que os v.7-21 são fruto de várias redações, à semelhança
dos v.I-ô.
77
Vimos, pois, que nosso cap.I5 se compõe de duas partes: v.I-6 e v.7-21.
Cada parte tem seu tema: povo/filho (EJ-6) e terra (El-2J). Deveríamos tratá-
las em separado?
78
Por exemplo, a promessa do filho, nos v.2-4, pode ser um destes elemen-
tos antigos. Afinal, este assunto é marcante também em outras passagens: 11,30;
16; 18,1-16, etc. Cabe no ambiente do seminomadismo. Pode remontar a Sarai
e Abrão. Aliás, a própria menção do costume de que, na falta de um filho-
herdeiro, a herança passaria para um escravo nascido na casa (v.2-3) tem ares
arcaicos.
Outro exemplo temos no tipo de sacrifício, nos v.9-11 + 17-18. É bastante
elementar. O chão serve de 'altar'. Falta um especialista, um sacerdote. (De
certo modo a cena se assemelha ao rito da páscoa.) Sabemos que este tipo de
sacrifício era praticado na região, em especial para selar pactos. É, pois, possível
que este gesto sacrificial remonte à situação de Abrão. É, no entanto, óbvio que
a maneira, pela qual nosso texto se refere a ele, já provém de tempos bem mais
recentes. Pode-se percebê-lo na abundância de animais citados no v.9 (novilha,
cabra, cordeiro, rola, pombinha). Nos tempos abrâmicos, a coisa terá sido mais
simples.
De todo modo, nosso cap.15 pode conter resíduos mais antigos. Cá ou lá,
sua memória talvez alcance os tempos de Sarai e Abrão.
Contudo, o texto que aí está corresponde a tempos bem mais próximos.
A ênfase em filho/povo (v.1-6) e terra (v.7-21) não é típica do serninoma-
dismo, antes de uma vida sedentária e agrícola. Os dois temas marcantes do
cap.15 apontam, pois, para um momento mais avançado da história de Israel,
quando a experiência do seminomadismo já não prevalecia.
A linguagem facilita uma localização mais precisa:
A experiência da profecia já está integrada. O capítulo é apresentado
como "visão" (v.1.12.17). Usa-se uma fórmula característica dos tempos de Je-
remias: "aconteceu a palavra de [avé" (v.1.4; Jeremias 1,2.4.11; 2,1, etc.). Co-
nhece-se a terminologia de Isaías, que havia marcado o conceito da "fé", do
"crer" (v.6, Isaías 7,9; 28,16) e do "não temas" (v.l , Isaías 7,4, veja ainda 41,10
e 43,1).
Igualmente está incorporado o linguajar dos salmos. Lá se encontra a ter-
minologia do v.I: veja Salmos 18,3 e 84.11. Os v.2-3 situam-se no âmbito do
salmo de lamentação.
Estas observações já indicam que estamos em tempos mais recentes. Con-
firma-o decisivamente a proximidade de nosso capítulo ao deuteronomismo:
este é o caso do v.7 e do v.18 que têm seus paralelos em Deuteronômio 3,18 e
12,1, ou de enumeração de povos nos v.19-21, tão semelhantes ao que se conhe-
ce de Deuteronômio 7,1. Nesse âmbito também cabem os v.12-16. Aliás, a pró-
pria incorporação da linguagem profética é típica do deuteronomismo (Deute-
ronômio 18,15-22).
79
Localizaria, pois, nosso cap. IS no âmbito do deuteronomismo, no caso,
pré-exílico, l' século. No capítulo ainda não percebo marcas claras do exílio do
6" século, como as que caracterizam o cap.17. Pode-se dizer que os caps.lS e 17
são textos paralelos, um do pré-exílio (cap. IS) , outro do exílio (cap.17), cada
qual com ênfases próprias, específicas.
O deuteronomismo sabe-se herdeiro dos levitas, em especial de Moisés.
Soube incorporar o movimento profético. E teve forte adesão entre leigos e cam-
poneses. É a mística do lavrador. É a teologia do povo da terra, como tão bem se
vê em nosso capítulo.
No 7'2 século, o deuteronomismo foi fermento da resistência, da sobrevi-
vência do povo. Terá tido papel decisivo na entronização do rei [osias, em 640,
e na reforma que promoveu em 622. O deuteronomismo forjou esta resistência
na oposição contra os assírios, senhores do mundo da época, inclusive do Egito.
O império assírio havia destruído o estado de Israel-norte em 732 e 722.
Grande parte da população de Judá fora deportada em 701. Em Judá, desde
então, por meio século, governava Manassés, fiel súdito assírio, do qual se diz:
"derramou muitíssimo sangue inocente, até encher Jerusalém de um ao outro
extremo" (2Reis 21,16). O povo estava destroçado! A terra estava ocupada!
Neste contexto, foi formulado nosso cap. IS. Aí se situa sua palavra.
Através de seu ilustre antepassado Abrão, nosso texto evoca a esperança
camponesa por povo e terra, em tempos de arrasadora supremacia assíria. É
utopia em tempos de profunda crise do povo.
Há esperança? Ou tudo vai acabar por aí?Eis as questões que estavam em jogo
depois da avassaladora demolição imperial causada pela Assíria em Israel e Judá.
Agora seria o momento de completar a análise de conteúdo. Mas, ainda
uma vez, devo postergar a tarefa. Pois, precisamente agora, convém que atente-
mos para o jeito de comunicar-se desses nossos versículos.
80
Nela são tematizadas, como víamos no item anterior, as preocupações
do 7" século. Para dentro dessa nossa 'narração de um diálogo', flui, pois, o que
preocupava o povo de Judá, em especial seus lavradores, naquela situação de
opressão pelo império assírio e o reinado de Manassés. Neste sentido, trata-se
de uma reflexão teológica. Temos aí a mística de resistência, elaborada nos
círculos deuteronômicos. Muito do que está neste nosso cap. IS provém deste
labor teológico e místico dos intelectuais deuteronômicos, influenciados pela
profecia, que, em meio ao povo de Judá e em fidelidade ao passado, buscam
forjar e alicerçar as esperanças que valem a pena serem vividas: a luta pelo
povo e a luta pela terra.
Tratemos, agora, de precisar estes conteúdos principais dessa nossa refle-
xão teológica que é o cap.lS.
81
do jeito dos profetas, cuja vocação ocorria em meio ao trabalho (veja Êxodo 3,1
e Amós 7,14-15).
E, em especial, como na profecia, nosso capítulo fornece uma interpreta-
ção da história. Recorda o passado, relendo Abrão. Refere-se ao presente, sem
filhos (v.2-3) e sob a tutela de fortes nações (v.19-21). As perspectivas não são
nada boas, pois a opressão ainda parece durar muito tempo (v.13-16) . Mas, ape-
sar disso, não falta esperança. Os v.12-16, que representam uma típica leitura
profética da história, afirmam o futuro. Aliás, todo texto está voltado a provocar
utopia, a levantar os olhos "para os céus" (v.5), como ainda veremos abaixo.
Portanto, a protecis, a "visão"(v.l) constitui o lastro de nosso cap. JS É o
que amarra esta 'reflexão teológica'. Neste capítulo, a saudade dos antepassados
é recriade à base do Iermento da utopia profética.
Contudo, esta esperança é um 'bem' a ser adquirido em meio a lutas e até
dúvidas.
82
Este termo obviamente intenciona o "povo". Não está a se referir a algu-
ma outra grandeza. Pode-se, pois, dizer, tranquilamente, que o cap.l S tem na
promessa de povo um de seus núcleos de conteúdo.
Contudo, não será irrelevante perceber também que a diferença entre
"povo" e "descendência" situa-se claramente no âmbito da família. Aliás, esta é
a própria ênfase de nosso capítulo. Ele parte da queixa de um pai sem filho, sem
herdeiro. A linguagem chega a ser bastante pessoal: herdeiro será "aquele que
sair de dentro de ti" (vA). De modo igualmente familiar e pessoal, se fala da
morte de Abrão no v.lS. O texto de fato se situa no horizonte da família e de sua
sobrevivência. Por isso, não é acaso que a promessa se refira à "descendência", à
continuidade da família.
O povo prometido é, pois, o povo-descendência. É o povo a partir da
família. O clã é a semente da descendência, numerosa e incontável como as
estrelas (v.fi).
Afinal, esta é a ênfase da Bíblia. Suas esperanças se referem ao clã, aos
núcleos sociais constitutivos de então. O povo de Deus está nucleado nas famí-
lias de Deus (Amós 3,2; Gálatas 6,10; Efésios 2,19).
Daí também se entende a ênfase na criança, pois nela se efetiva a promes-
sa de povo-descendência. É o que temos nos v.2-4, em Gênesis 21-22, no Salmo
127,3-5, em Marcos 10,13-16, etc. Esta mística da criança é a concretização da
utopia popular.
Contra este povo-descendência-criança, numeroso como estrelas, não
há quem possa. É o modo de resistir às deportações assírias, aos massacres patro-
cinados por Manassés. A mediação do futuro não é, portanto, a nação e seus
monarcas, mas é esta teimosia popular que insiste em ser família, descendência,
numerosa como as estrelas.
Esta promessa de povo-descendência é um dos eixos do conteúdo de nosso
capítulo. Tem sua importância. Com ela, é aberta nossa 'reflexão teológica' (v.l-
6). Porém, não lhe cabe o destaque maior. Este está reservado à promessa da terra.
83
Chamava-nos a atenção que os v.2A se referem ao filho sempre na quali-
dade de herdeiro. E, nos v.7-8, o mesmo assunto da herança é aplicado à terra. É
óbvio que as duas questões estão interligadas. Ou seja: quando os v.2A se refe-
rem ao filho na qualidade de herdeiro, pensam, concretamente, na herança da
terra. Afinal, nosso capítulo já não se situa no mundo do seminomadismo (onde,
aliás, pouco havia a herdar l}, mas no contexto agrícola, onde a herança é cons-
titutiva para a vida. É o que se vê em Miqueias 2,1-2 ou no caso de Nabot (IReis
21,4). Portanto, em Gênesis 15, a própria promessa de filho-descendência-povo
desemboca e se efetiva na promessa de herdeiro-herança-terra. São comple-
mentares, sendo a terra, porém, a "recompensa" maior.
Outro momento que é realçado em relação à terra é sua extensão. É o que
temos nos v.18 e v.19- 21. A enumeração parece querer ser exaustiva. Dez povos
são citados. Outras listas semelhantes não são tão abrangentes (Êxodo 3,8.17;
Deuteronômio 7,1). Inclusive são misturados povos seminômades (como os que-
nitas) com nações monárquicas (como os heteus e jebuseus). Ou para os autores
de nosso capítulo todos seriam monarquias? Em todo caso, o que lhes importa é
assegurar a extensão territorial ("desde o Rio do Egito até o Grande Rio, o Rio
Eufrates" v.18). Toda esta terra é totalmente da descendência de Sarai e Abrão!
São sua herança. Nestes v.18-21, a terra obviamente é um território, mas, mesmo
assim, na mediação da herança, da roça de uso familial, não da monarquia.
A luta pela roça é o próprio parâmetro da história. Esta é outra ênfase de
nosso capítulo em relação à terra, como se vê, em especial, nos v.7-16. Chegar a
ela (v.7) e voltar "para lá" (v.l6), este é o próprio sentido das andanças do povo.
Ter que viver em terra estranha, ser escravizado e oprimido - ainda que por 400
anos -, tamanha desgraça só é suportável na certeza da volta à terra da promessa,
ao chão, no qual Abrão está sepultado. Aí a história se completa. Aí tem sua
medida. Faz sentido. Sem roça, a vida perde seu horizonte (eis o assunto do cap. 17!).
Enfim, seu ponto mais alto a mística da terra prometida alcança nos v.7-21,
na cena do sacrifício. Aliás, nesta cena, tão rica em detalhes, culmina nosso capí-
tulo. Sua importância reside em seu conteúdo. Acontece que este tipo de sacrifí-
cio, em que animais são partidos ao meio, selam contratos e acordos importantes.
As partes contratantes passam em meio aos animais partidos para asseverar seu
compromisso com os termos do acordo. Assumem que, caso descumprirem a ali-
ança, sejam igualmente esquartejados, como os animais sacrificados. Para o parti-
cipante, este rito sacrificial implica assumir o cumprimento de uma relação. Em
caso de traição, sua própria vida passa a estar em jogo: pode ser esquartejado.
Em nossa cena, [avé realiza o rito! Aliás, só ele 'faz o contrato'. Abrão
se restringe a ser beneficiário. Não alcança ser parceiro. Por isso, este 'contra-
to', esta 'aliança', de fato, é uma promessa. Com ela, [avé se compromete com-
pleta e irrevogavelmente. Sua promessa de terra para a descendência de Abrão
84
é um juramento. Vale em todo caso! Isso signi/lca que o cap.i7 não pode pre-
tender substituir o cap.i5! Pode, sim, ampliá-lo.
A promessa da terte é, pois, o coração de nosso capítulo. Serve como uma
espécie de recipiente da promessa de descendência-povo. Funciona como estrela guia.
Sendo a terra o núcleo das 'profecias', não é de estranhar que se cultive a
memória do êxodo.
Novamente: o êxodo
Quando o assunto é terra, o êxodo tem lugar cativo, como, por exem-
plo, se vê em Deuteronômio 26. É o que também acontece em nosso capítulo.
Por um lado, a semelhança com o cap.12 é marcante: a terra da promessa
se localiza entre a dos caldeus (veja v.7) e a dos egípcios. Ou, nos termos do v.l8:
vai "desde o Rio do Egito até o Grande Rio, o Rio Eufrates", desde as terras dos
faraós até as do império assírio. A terra de pobres qual Abrão, de gente aparen-
temente sem futuro, como Sarai, situa-se à parte dos poderosos. É alcançável
mediante o êxodo libertador: saindo do Egito (veja 12,10- 20), retornando da
Mesopotâmia (veja 11,27 -12,9). Neste sentido, a terra da promessa é uma espé-
cie de quilombo, um abrigo para retirantes fugidos da escrsvidão.
Por outro lado, nos v.12-16 a citação da memória do êxodo é expressa.
Atenção principal recai sobre a opressão, a escravidão, enfim sobre a condição
humilhante de viver 'em terra que não é da gente' (veja v.13). Para se chegar à
libertação, é preciso esperar pelo 'tempo oportuno', quando a culpa de quem
controla a terra estiver completa (v.16) . Nestes nossos versículos, o problema
principal não é, pois, fugir da opressão faraônica, mas desalojar quem controla a
terra da promessa, expulsar os amorreus (v.16) e os demais (v.19-21). A questão
é libertar a terra! (Pelo visto, nosso texto de fato está localizado no 7" século, nos
tempos da ocupação assíria.)
Portanto, também em Gênesis 15, a raiz da luta pela terra está no êxodo.
É o paradigma da esperança por chão livre, sem as opressões de amorreus e
similares. Ao ler o cap. 15, há que ter em mente 12,10-20!
Boas utopias! Mas, no concreto, Abrão 'continua sem filho' (v.2) e o povo
vive "em terra que não é deles" (v.U). E agora?
85
Neste sentido, é justo que a tradição posterior lhe tenha dado destaque
especial: 1Macabeus 2,52; Romanos 4; etc. Nosso v.6, de fato, pretende dizer
algo fundamental. O problema é que, na tradição posterior, este nosso versículo
tendeu a ser isolado. Daí perdeu seu referencial concreto, específico, contextu-
al. Hoje, nossa tarefa consiste em recontextualizar Gênesis lS,6!
O v.6 é uma reação conclusiva, principalmente, ao que antecede (v.1-S),
mas, de certo modo, também ao que lhe segue (v.7-21).
É o "amém" de Abrão à promessa de povo, de descendência (v.S). Afinal,
- 1" , certo., E esta certeza esta- " em Jave-" , em sua
trme , con flave
"crer " e" ter por 'firme'
"palavra" (v.1.4), cujo conteúdo é a "descendência" (v.S) e, de acordo aos v.l-
21, a terra para esta descendência. "Crer em [avé" acontece no confiar e no
andar em seu projeto, nas promessas de povo e roça. A relação pessoal com Javé
(a fé) inclui, pois, as lutas do dia-a-dia, pelo filho e a filha, por povo e terra.
Quem crê como Abrão, olha para a frente, destes jeitos concretos.
A insistência no "crer" é uma das ênfases do 8" e do 7" séculos. Encontra-
se em passagens decisivas de Israel: Isaías (7,9 e 28,16), Habacuque (2,4) e em
versículos marcantes do Êxodo (4,31 e 14,31). E aí é linguagem de quem teima
em apostar nos projetas de Deus, de quem, com tenacidade profética, rasga
horizontes, tem fé no amanhã.
Ao "amém" de Abrão, corresponde o "amém" de Javé: "e lhe foi tido em
conta de justiça". (O sujeito implícito nesta frase obviamente é [avé.) Esta afir-
mação tem algo de cerimonioso. Pode-se percebê-lo nos termos usados. O verbo
"ter em conta de", "imputar" provém, originalmente, do rito sacrificial. O sacer-
dote declarava aceito ou, conforme o caso, não aceito um determinado sacrifí-
cio; 'tomava-o em conta' (Levítico 17,4; Salmo 32,2). O v.6 já não se encontra
em ambiente sacrificial. Mas, mesmo assim, soa solene. Nesta esfera também se
situa a "justiça". Em especial, não há que reduzi-la a um comportamento. "Justi-
ça" expressa principalmente fidelidade e comprometimento com o grupo social
(veja 38,26!). Justo é quem se adéqua à comunidade. É quem aposta no povo
(Deuteronômio 24,13). É quem se solidariza com o projeto da descendência.
Neste sentido, Abrão é justo. É como Deus o quer. É do jeito que [avé gosta,
pleiteando em favor do povo, insistindo na descendência, querendo sinais con-
cretos que confirmem as promessas de povo e terra. A justiça de Abrão se efeti-
va em sua luta por gente e chão, por descendência e terra.
De fato, o v.6 faz as vezes de um resumo!
Concluo lembrando que este nosso cap. 15 é paralelo ao cap.17. Convém,
pois, que, mais adiante, ao ler aquele capítulo, se compare a ambos. Veja-o junto
ao cap.17!
86
Liberdade! Liberdade!
Gênesis 16,1.. 16
87
Ismael em 21,12.13. A 'boa nova', que irrompe nas narrações em suas
origens, não alcança manter-se por completo nos textos atuais.
Ainda assim, é milagre! A maravilha destas tradições sobre Agar é luz de
humanidade em nossas "genealogias de Terá", é "luz para as nações",
como se expressa Isaías 49,6. Dêutero-Isaías faz brilhar a "luz" a partir
de "meu escravo" (49,3). Em nossos caps.16 e 21, o mesmo sucede com
"a escrava".
Hóspedes! E piratas?
Estamos fazendo-nos hóspedes em casa de vizinho. E aí, todo cuidado é
pouco.
O livro do Gênesis é o berexit da sinagoga. Ao ler seu cap.Iô, hospeda-
mo-nos na casa da sinagoga, nestes "templos de Deus" (veja Salmo 73,17).
Quando se está de visita, convém ter muito carinho pela casa de quem
nos hospeda. Cada casa tem suas regras, seu jeito, seus horários, suas festas, seu
tom de voz, sua cultura.
Não só é preciso respeitar esta casa que nos acolhe. Também nos faz bem
deixar-nos acolher. Aí a gente percebe diferenças em relação à nossa própria
casa. Aí a gente aprende a maneira outra de outros.
Que haveria eu de contar em casa, se não estiver atento à casa de quem
visito, percebendo-a, respeitando-a, sendo acolhido em suas diferenças? É ver-
dade, faço-me pobre de cultura se vou por cima da outra com minhas grossas
patas.
Berexit é casa vizinha e casa diferente, bela e querida. Agar e Ismael,
Sarai e Abrão habitam-na. São suas belezas. Se minha visita torná-las feias,
mutiladas, melhor seria que ficasse em minha casa própria, se a tivesse.
Na verdade, nem a tenho. Sem estes "templos de Deus", as sinagogas, a
casa, que seria minha, cai aos pedaços. Vira casa sem estruturas. O primeiro
vento a faz desabar (veja Mateus 7,24-27). Se eu não puder ser hóspede, fico na
rua, sem casa, nem abrigo, nem ninguém.
Por isso, por amor a mim mesmo, digo até: deixem-me ser hóspede neste
berexit e nas gentes que me emprestam este livro tão belo!
Eu é que necessito de hospedaria, se bem que não a mereça. Se me fecha-
rem a porta, com razão inteira o farão. Pois filhas e filhos da sinagoga já sabem que
só lhes causamos dores e massacres. Poderiam suspeitar de que, quanto mais nos
aninhamos em suas casas, mais os alijamos, despejamos.
Negros e índios conhecem a mesma tragédia.
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É que pedra que rola morro abaixo tudo leva consigo. Quando começáva-
mos a rolar a pedra contra nossos vizinhos primeiros, os da sinagoga, demos início
a um despenhadeiro, um abismo, algo como o xeobinferno.
Mulheres e crianças contam o mesmo.
As 'sarais' ficaram proibidas de rir (veja Gênesis 18,12 e 21,6), e as crian-
ças coibidas de ser qual um messias (veja Isaías 9,5 e Marcos 10,13-16). Não só
rolamos sobre casas vizinhas, mas impomos silêncio de terror à nossa própria
casa.
As filhas e os filhos de Agar foram postos de lado. Vistos com desconfiança
atroz. Combatemo-los por séculos sem fim. Até mesmo por aqui, em terras latino-
americanas, os primeiros a devastá-las achavam estar em luta contra mouros, gen-
te que haveria que destroçar, custasse o que custasse.
Quem sofreu 'nossas' cruzadas que o diga!
Temos mesmo jeito de bandido. Temos um estranho jeito de nos fazermos
hóspedes. Ao final, acabamos com toda vizinhança. Conquistas tornaram-se
nossa companhia.
Fizemo-lo com judeus e judias. E o que aí foi exercitado, levou-se às terras
todas. Negras e negros, índias e índios e milhões de outros receberam-nos bem
em suas terras, em que "plantando dá". Mas poucos sobraram, em gentes e plan-
tas.
É que mesmo hóspedes, ficamos aliados a pessoas com cara de pirata.
Por isso, todo cuidado é pouco.
É que já nem sei ser hóspede. Acabo não vendo os estragos que deixo para
trás, ao sair.
Mas, não só isso, também acabo não ouvindo as belas histórias de resistência
e vida restaurada que, apesar de mim, verdejam nos "templos de Deus".
Ajuda-me a ser hóspede de leu Espírito de Ví'da. O vale é de ossos. Mas,
em Teus vales até ossos vivem, até cinzas se levantam.
Visitemos, pois, o berexit, o Gênesis, em seu cap.16. Mas, antes, permi-
tam que ainda diga que este preâmbulo não só foi pensado para este cap.16. Seu
horizonte quer valer para o todo deste comentário. Adiciono-o a este cap.l6,
porque o considero central, emblemático e deveras humano para o que autoras
e autores do livro de Gênesis fizeram com sua literatura: colocaram em seu cora-
ção, em seu centro, em seu eixo não propriamente a si, mas a escrava, a estrangei-
ra, a Agar. Esta é a obra do Espírito. Esta minha introdução quer enaltecer este
milagre encantador, surpreendente, tão profundamente humano e tão radical-
mente teológico.
89
Um eixo de roda
Estamos tomando o ônibus num ponto, numa parada. Mas a linha não
começa aqui, nem tem aí seu ponto final.
O cap.16 é um ponto num trajeto maior. É um, mas é muito especial. Nele
- por assim dizer - muitas pessoas se apressam em desembarcar. E muitas nele
embarcam; apinham-se para entrar. São povos inteiros.
Em outra figura: o cap.16 é qual eixo de roda.
Os caps.15 e 17 circulam a seu redor. Há semelhanças entre estes dois capí-
tulos: em ambos, Deus e Abrão são os únicos 'personagens'. São qual peças teoló-
gicas, ou, como dizem os especialistas: caps.15 e 17 são "narrações teológicas". Em
ambos, simulam-se contos para passar mensagens.
Quer-se passar mensagens de promessa: de Abrão sairá um povo (cap.15),
sairão povos (cap.17). (Aliás, nestes capítulos Sarai quase desaparece.) E este
povo, saído de Sarai e Abrão, terá terra (15,7-21; 17,8). Promessa de povo e de
terra circundam nosso cap.16.
Além deste primeiro círculo, composto pelos caps.15 + 17, um segundo
circunda o cap.16, que para eles funciona como uma espécie de eixo. Penso nos
caps.13-14+ 18-19. Conformam um conjunto; são, como se diz, um ciclo de
narrações. Vêm imbuídos do tema da terra. É que o chão é pouco. Não alcança
para alimentar os grupos de Ló e de Abrão.
Separam-se para poder sobreviver. Uns, com Abrão, ficam nas monta-
nhas. Outros, com Ló, vão à planície, achegando-se às cidades de Sodoma e
Gornorra. E aí sucumbem.
Portanto, terra de planície é terra de perigos. Terra de promessas é terra
de montanha. Aí, nas alturas de Judá, estão os justos, qual Abrão.
Assim sendo, os caps.13-14+18-19 também têm na terra seu tema mar-
cante. Com este tema circulam ao redor de nosso cap.16.
Em verdade, não só circundam. Chegam até a pressionar conteúdos de
nosso cap.16.
Sim, pressionam. Pois, não há dúvidas de que este nosso cap.16 foi mol-
dado para ocupar o lugar que agora detém. Eixo que é eixo passa por torno. E o
nosso, este cap. 16, foi torneado - ao menos em parte - para ter a função que
tem, a de lázer girar a seu redor, primeiro, os caps.15 + 17, e, em seguida, os
caps.1J-14+ 18-19.
Já a primeira frase, a que tem jeito de título para todo o cap. 16, expressa a
ligação do eixo com suas duas rodas: "e Sarai, a mulher de Abrão, não lhe dava
filhos" (v. la) . O tal filho seria não só para haver descendência, para perpetuar
espécie. Ainda mais candente era o destino da herança, em especial a da terra
(veja a queixa de 15,2: "um filho de escravo será meu herdeiro").
90
Terra exige filho. Traz consigo um mundo patrilinear!
Mas não é só este primeiro versículo que vai pressionando nosso cap.l6
numa determinada direção. Há outros momentos do capítulo que também estão
nesta onda.
Refiro-me a uma notinha em meio ao v.3: "depois de ter ele [= Abrão]
morado dez anos na terra de Canaã". Ora, Abrão estava tomando posse da terra
de Canaã justamente em favor de seus filhos. Não tê-los, deitava por terra esta
posse. Por que apossar-se de terra, se não há herdeiro?
Refiro-me também ao final. Os v.15-16registram conclusivamente que, ago-
ra, com Ismael- nome aqui dado ao menino pelo próprio Abrão! - foi dado à luz um
filho a Abrão, aquele que já por dez anos estava aí na terra de Canaã, ocupando-a.
Por fim, refiro-me ao v.9, à ordem supostamente angelical: "volta para tua
patroa". Também ele tem suas raízes nestes horizontes que estão postos ao redor
de nosso capítulo. De que serviria a promessa de terra, se o filho a nascer de
Agar não fosse posse do senhor?
Está claro: no começo (17.1a), no meio (v.J +9), no final (17.15-16), nosso
eixo está conectado /IS rodas que circulam a seu tedot: Os capítulos que o cir-
cundam pressionam o csp. 16 a que este seja lido na perspectiva da promessa da
terra, na perspectiva androcêntrica.
O que acabo de concluir é fundamental para a leitura deste nosso cap.16.
Por isso, chamo especial atenção para este aspecto. Tem grande implicação para
a presente proposta de leitura.
Comecemos pela tradução, bastante literal, para dar o gosto do hebraico.
'E Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava à luz. E ela tinha uma escrava
egípcia de nome Agar. 2E disse Sarai para Abrão: "Eis que Javé me fechou
de dar à luz. Vai à minha escrava. Talvez me edificarei a partir dela." E
Abrão deu atenção à voz de Sarai. 3E tomou Sarai, a mulher de Abrão,
Agar, a egípcia, sua escrava - depois de ter Abrão morado dez anos na
terra de Canaã - e a deu para Abrão, seu marido, a ele para mulher. 4E ele
foi para Agar. Engravidou. E viu: eis, estava grávida. E ficou diminuída
sua senhora a seus olhos. SE disse Sarai para Abrão: "Minha injustiça
sobre ti! Eu mesma dei minha escrava em teus braços. E ela viu: eis, esta-
va grávida. E fiquei diminuída em seus olhos. Julgue [avé entre mim e
entre ti!" 6E disse Abrão a Sarai: "Eis tua escrava em tua mão! Faze a ela
o que for bom a teus olhos!" E Sarai a golpeou. E ela fugiu de diante de
seus olhos. 7E encontrou-a o mensageiro de [avé junto à fonte de águas no
deserto, junto à fonte no caminho de Sur. SE disse: "Agar, escrava de Sa-
rai, de onde vens? E para onde vais?" E disse: "De diante da face de Sarai,
minha senhora, eu estou fugindo."
91
9E disse-lhe o mensageiro de [avé:
"Volta para tua senhora
e curva-te debaixo de suas mãos."
IDE disse-lhe o mensageiro de [avé:
"Multiplicar e multiplicarei tua descendência
e não se contará multidão".
IIE disse-lhe o mensageiro de [avé:
"Eis tu, estás grávida, e darás à luz um filho, e proclamarás seu nome:
Ismael, eis, Javé ouviu tuas opressões.
12E ele será uma pessoa como um jumento selvagem:
sua mão contra todos,
e a mão de todos contra ele.
E diante da face de todos os seus irmãos morará."
uE ela proclamou o nome de [avé, que lhe estava falando: "Tu és o Deus
que me vê". Eis, disse: "De fato, não vi aqui depois que ele me vê?" 14Por
isso proclamou aquele poço: "Poço para o vivente que me vê". Eis que
está entre Cades e entre Bered.
15E Agar deu à luz para Abrão um filho. E Abrão proclamou o nome de
seu filho, que Agar lhe dera à luz, Ismael. 16E Abrão [tinha] oitenta e seis
anos, quando deu à luz Agar a Ismael para Abrão.
Fugiu
92
Muitas foram as palavras para expressar as muitas violências continuadas,
diárias (v.1-5). Poucas para dizer aquela uma, última, física: "e Sarai a golpeou"
(v.6).
A estas poucas palavras (no hebraico são só duas) seguem outras poucas
palavras (no hebraico novamente são só duas): "e ela fugiu de diante dela".
É a rebelião da escrava: fugiu. É pouco, mas é tudo. Esta é a passagem do ser
escrava para deixar de sê-lo. Fuga é libertação (também em Êxodo 14,5). Fuga é o
caminho da liberdade. É esta a vida, quando "nós nos vemos livres", como o ex-
pressa um salmo de escravos foragidos (Salmo 124!).
Esta fuga tem sua história anterior e seu caminho posterior.
Precede uma atitude que prepara a fuga. Nós a chamaríamos talvez de liber-
tação interna. O hebraico o expressa a seu modo: "ela [= Agar] diminuiu sua se-
nhora a seus olhos" (vA). Agar, a rigor, não "desprezou" (Almeida) a quem a possuía.
Ela descobriu que seus algozes eram pequenos. Não tinham o poder que pareciam
ter. Pois, ela, grávida, ainda que escrava era gente forte.
Quando ela os viu pequenos, seus pés de fuga começaram a fazer-se rápi-
dos, seus horizontes se tomaram ágeis.
À fuga seguem as palavras do "mensageiro de [avé". Elas são ditas a quem
foge, a quem se rebela.
Até então, ninguém nada dissera à escrava. Era peça. Agora, há quem lhe
fala.
O mensageiro, ainda que seja divino, de [avé, não faz perguntas celestes
ou últimas. Pergunta pelo imediato: "Donde vens? Para onde vais?". E a resposta
é igualmente simples e direta: "Estou fugindo ..." (v.8).
Aí não está ocorrendo nada de epifânico e sensacional. O encontro é
como que corriqueiro. É conversa de poço, em que desconhecidas (os) se identi-
ficam, se explicam.
Este encontro singelo, inicialmente nada especial, é que, pouco a pouco,
faz jorrar a água viva. O desenrolar do encontro torna-o especial.
O encontro no poço toma-se a explicação da fuga. O que os pés ágeis de
fugitiva fizeram até alcançar a fonte, os olhos poéticos criam ao olhar para o
futuro. A fuga rebelde transforma-se, no poço, em utopia e projeto, em poesia.
Sim, os versículos que seguem à fuga (v.8-12) tomam a realidade poesia! Rebe-
lião é fonte de poesia!
Em outras palavras: em nosso conto, a frasezinha "e ela fugiu de diante dela"
funciona como dobradiça. Até lá vingara a opressão, a violência contra a escrava. Aí a
linguagem é a narrativa. A partir de então, crescem as esperanças e os sonhos. As
palavras passam à poesia. Sem fuga, não há perspectivas, nem poesias.
93
Povo de rebeldes
As perspectivas são mediadas pelo filho a nascer. a filho é o ponto no
horizonte.
E este ponto, este filho, está cheio de significados. Identifico três conteúdos
principais ligados ao filho que nascerá da que está em fuga, em liberdade.
Cada um dos v.iO.ii.i2 expressa um dos aspectos. A sequência destes
versículos não há de ser acidente.
a v.l °
e o v.12 se assemelham, pois vinculam a este menino força e poder.
a v.lO celebra sua quantidade. No hebraico, uma mesma raiz (no caso, rb/
rbb) aparece três vezes. Esta raiz expressa, simultaneamente, quantidade e totali-
dade. A descendência de Agar, de Isamel, serão "muitos", "todos". Esta é uma
promessa estupenda. A gente que foge da escravidão será incontável, plena. Mul-
tidões incontáveis são quem vence mesquinhas elites-minorias.
a v.l2 assemelha-se a este v.lO, mas agrega outro aspecto: a da rebeldia, da
autonomia, da insubmissão. Mãe e filho jamais serão domados pela senhorial es-
cravidão. Sua existência é um memorial à rebeldia, à insubordinação.
Percebe-se que as promessas do v.lO e do v.12 são entre si complementa-
res. Expressam a força deste povo saído da escravidão.
a terceiro aspecto - este que se situa entre o v.IO e o v.12 - vincula este
povo de fortes e rebeldes a Deus (v.11). Gente insubmissa está nos desejos de
Deus. É o que diz o nome Ismael. Significa "Deus ouve". Deus ouve a escrava em
suas "opressões". Em nosso contexto, esta "opressão" remete claramente à violên-
cia sofrida pela escrava. A raiz verbal hebraica desta palavra "opressão" ( om) é a
mesma usada no v.6 para expressar a violência, os golpes contra Agar (~lh "golpe-
ar").a menino é, pois, o oposto à escravidão. Deus não ouve quem escraviza, ele
a
ouve escravas! menino é como um memorial junto aos caminhos de Deus, de
Adonai [avé, com escravas e escravos. Deus deseja rebeldia!
a futuro de Agar e de sua gente está,pois, bem articulado. O texto se
esmera em pronunciá-lo nestas três perspectivas acima destacadas: um povo
incontável (v.lO), um povo com rebelde autonomia (v.12), um memorial do
Deus que não suporta opressões (v.ll).
Este mensageiro junto ao poço no deserto é mesmo um anjo!
Estrangeiras ...
Por certo, ismaelitas eram irmãos. A descendência de Sarai e Abrão são
seus irmãos. É o que diz o próprio v.12.
Mas esta gente de Agar não parece ter sido um parente muito achegado.
a v.12 entende-a como insubmissa. Vive "sobre a face de todos os seus irmãos".
Este "sobre a face" deverá ser entendido em sentido de afronta: "contra a face".
94
A descendência de Sarai e Abrão e Isaque (cap.17),na regiãoda Grande Judá,
efetivamente teve múltiplosproblemascom a descendência de Agar e Ismael. Repre-
sentava uma contínua ameaça ao território tribal judaíta, em especial no suL Em al-
guns momentos históricos, a inimizade com estesdo sulfoi terrível (basta mencionar o
livro de Obadias/Abdias). Ismaelitas eram inimigos temidos.
Acrescente-se a isso que Agar é egípcia. Em Israel, a palavra Egito associa-
va-se à opressão, à "casa do faraó", à servidão (veja 12,10-20). A consciência
israelita era de que Egito era seu oposto. Quão difícil terá sido registrar uma
estória como a de nosso cap.l6; nele invertem-se as relações: quem se entendia
como escravo livre (Israel) passa à categoria de senhor de escrava.
Isso dá um sentido todo especial a nosso cap.16 (e ao cap.21). Nele, bar-
reiras tribais, nacionais e raciais são transpostas. As outras (Agar) e os outros
(Ismael) tornam-se espelho, crítica à própria identidade.
O cap.16 transgride o que era usuaL Nele, Israel se olha desde os olhos de
quem pareceria ser inimigo, quando em verdade é memorial da liberdade, é
memória exodal.
Nesta perspectiva, o cap.16 também é um fascínio!
Seu encanto ainda aumenta, quando a gente se dá conta de sua teologia,
de seu jeito de referir-se a Deus.
Deus que me vê
Acima destacávamos os v.l0-12. Elessão fala de mensageiro. Seu contrapon-
to são os v.lJ-l4, nos quais prevalecem a fala (v.13) e a ótica (v.l4) de Agar.
Nestes versículos, Agar explicita a experiência com o mensageiro junto
ao poço no deserto. Dá nome a Deus, como anteriormente (v.11) dera nome a
seu filho. A rigor, ela não só 'dá' nome, mas o "proclama", propaga-o publica-
mente. Duas vezes se vale deste verbo "proclamar" para expressá-lo. Isso quase
equivale a dizer que Agar assume tarefas proféticas. Ela diz em público, 'procla-
ma' o "nome", a presença de Deus.
Para "proclamar" este "nome", ela se vale do verbo "ver". Os v.13-14 dele
se valem nada menos de quatro vezes. Ele é, pois, decisivo para entender a
presença divina. Ela é presença que "vê".
Acima, nos v.7-12, não aparecera este verbo "ver". Ali Deus atuava ao
"encontrar" (v.7), ao "dizer", perguntando e afirmando (v.S}, e ao "ouvir" (v.1I) .
Estes verbos todos têm a ver com aquela situação concreta, específica, na fonte.
Captam o episódio da presença divina. Já o verbo "ver" expressa um certo con-
tínuo. "Ver" as pessoas é como que a contínua ação de Deus. Ele está continua-
mente vendo-nos, atentando para nós, velando pela gente.
95
Contudo, este "ver" não implica um estar fora, acima, nos céus, como nós
diríamos. Deus "vê" desde o poço! Não vê tanto de cima, mas de baixo, a partir
do poço, da fonte, do espelho d'água.
É que de dentro do poço, da fonte, sai vida, sai a 'vista'. A fonte, o 'olho
d'água' é como se tosse o olho de Deus, de donde ele vê. As águas são como
que seu gesto de ver-nos, seu jeito de cuidar-nos, a partir da vista que [avé tem
para com a escrava!
Lembremo-nos que a Palestina, em geral, e seu sul, em especial, são terras
muito áridas e secas. Não é, pois, acaso que aí o Deus que vê não veja dos céus,
mas veja a partir das fontes de água, do que brota das profundezas.
A fonte é o espaço da liberdade, da vida. Muitas passagens do Antigo e
do Novo Testamento o indicam (por exemplo Gênesis 24; Êxodo 2,15-22 e João
4). Da fonte brota vida.
No Antigo Oriente, a fonte era um espaço teológico privilegiado. Este era
o espaço das deusas e dos deuses.
Aliás, também a fonte de nosso cap.l é de EI ('e~, de "Deus". Neste lugar,
ó
'ellDeus "vê" (v.l3) e "ouve" (v.l l a yisms: 'el = Isma-el). Por certo, esta fonte
também é de Javé, o Deus de Israel. Afinal, o mensageiro é de Javé (v.7), Javé é
quem "ouve" (v.llb), o nome proclamado por Agar é o de [avé (v.l3).
Mas este [avé convive com 'el, o Deus da fonte. Para Agar e Isma-el, ele
é 'el, para o redator, Sarai e Abrão ele é [avé!
Em nosso cap. 16, se irmanam povos (o de Agar e o de Sarai), e, nos poços, se
irmanam maneiras diferentes de crer em Deus. A profecia de Agar conhece as dife-
renças de um e de outro povo, de um e de outro Deus, mas não há exclusões. E os
redatores da torah('orientação" - "lei" assumem esta possibilidade. Não a rejeitam!
Não a rejeitam... Será que não?
Volta!?
Até aqui prescindi do v.9. Acima, já havia aludido a ele. Entendia que
este v.9, junto com outros (v.1a+3+ 15-16), é parte da redação que incorporou
nossa estória ao contexto dos caps.l3-19+ 20-22.
Agora temos que retomar este v.9, porque ele realmente dá outra perspec-
tiva ao capítulo, caso o mantivermos como parte da antiga história.
Penso que é apropriado isolar este v.9. Seu sentido não é inerente à estó-
ria como tal. É antes típico para quem colecionou o conjunto e lhe deu a versão
final. Por isso, não convém querer entender o v.9 a partir da estória, mas a partir
de quem, na qualidade de redator, editou o conjunto dos caps.l2-25.
Isso de que o v.9 é um adenda é uma hipótese antiga da crítica literária,
isto é, daqueles pesquisadores bíblicos que perscrutam a origem literária de tex-
96
tos. É importante anotá-lo, porque isso me libera da suspeita de que a interpre-
tação que acima expus seja a motivação que exige a 'exclusão' do v.9.
Por que este versículo foi incluído, posteriormente, por editores?
Poder-se-ia dizer que isso se deve ao cap.21. Afinal, este capítulo pressupõe
que Agar está com Sarai e Abrão. Logo, não poderia ter seguido ao Egito, porque
isso tornaria inviável a menção e a recepção da estória do cap.Zl ,
E isso confere. Já que os caps.Ió e 21 contam estórias similares, de algum
modo paralelas, uma teve que falar do regresso da escrava à casa de seus senhores.
Contudo, isso ainda não explica o v.9, pois, via de regra, escravas foragidas regres-
sam por recaptura. É o que também o cap.16 poderia ter contado.
Penso que o v.9 tem sua origem em um nível mais profundo, mais preocu-
pante. Não é só fruto de um 'acidente' literário. O começo e o final de nosso
capítulo afirmam-no com muita clareza. O filho a nascer destinava-se a Abrão,
conforme insistem em afiançar os editores finais. Esta apropriação do filho por
parte de Abrão, do homem, é que 'obriga' à volta. Ao dar o nome (v.15) - no
v.11 o nome é dado por Agar! -, fica estabelecida a posse do menino. Para os
editores de nossos capítulos, é esta posse que estabelece os vínculos de Ismael e
sua gente com Abrão e os seus (cap.25!).
Penso que por detrás desse v.9 está, pois, a questão da posse da terra. A
patrilinearidade da terra força à patrilinearidade da família. Os editores, possi-
velmente pós-exílicos, transpiram este interesse pela posse da terra como sendo
o que constitui os povos de Abrão. Neste sentido, não é acaso que ao redor da
estória de Agar de nosso cap.16 se situem os caps.15 e 17, ambos reflexões teo-
lógicas à luz da questão da terra.
Por isso, o nome de Ismael 'teria que' ser dado por Abrão. Sem o apossamento
do filho e o reapossamento da escrava-mãe, a posse da terra teria que ser distinta da
que ela era. É que a exclusão da mulher passava pela apropriação patrilinear da terra.
Seria este o motivo para o pentateuco/ torah, em sua versão final, ser uma
sequência de genealogias patrilineares?
97
Esta é uma estória contada junto a fontes, como é o caso de outros tre-
chos bíblicos (veja por exemplo 21,22-34 e Juízes 5). A fonte aqui citada é a de
Beer-Lahai-Roi ("Poço para o Vivente que Vê"). Estaria situada entre Cades e
Berede (v.14), em pleno deserto, ao sul judaíta,
Há de ter existido esta tal fonte. Mas ela também é algo como o espaço
utópico: uma fonte 'que está em um lugar desconhecido para que esteja em todo
lugar. Cada fonte é parte desta fonte. Além do que, para Israel, deserto (v.7) é
espaço de utopia, de esperanças, do inusitado, dos milagres. Deserto para Israel
não é morte, é vida. Fonte com deserto, então, é vida plena.
Este poço, estas fontes mil são o espaço, o tempo desta nossa estória.
Fontes e poços eram, talvez, o espaço público privilegiado da mulher na-
queles mundos. Buscar água era tarefa feminina, pelo que se sabe do mundo da
época (Génesis 24,16). O portão era o mundo do homem (Rute 4). O poço era
o mundo da mulher, de sua cultura pública (Juízes S e João 4). Por aí se conta-
vam as estórias de Agar, a do cap.16 e a do cap.Zl .
Quem contava era quem carregava água: as mulheres jovens, as filhas, as
escravas. Quem contava de Agar, eram aquelas que eram como Agar, semelhantes à
escrava. As estórias de Agar no cap.l6 e 21 são, em sua origem, contos de escravas,
de meninas que viviam como escravas (veja Cantares I,S-6!).
Creio que isso explica também a maneira de como nossa saga vê Sarai.
Tenho a impressão de que as escravas que criaram a saga, junto às fontes, veem
em Sarai antes de tudo a senhora vinculada a Abrão, submetida a ele, submeti-
da aos interesses patriarcais. Este tecido social, que envolve Sarai, também a
prende. Dele, a senhora não sai, aos olhos das escravas.
Por prevalecer esta ótica a partir da escrava, a saga não enfoca a proximida-
de entre Sarai e Agar, ambas submetidas ao mesmo destino: para o patriarca, suas
posses, suas heranças, sua terra, tem que haver filho.
De certo modo, Sarai poderia ter seguido os "olhos" de Agar, Quando
esta 'viu que sua senhora era pequena' (vA) , então estes olhos, que não eram de
desprezo, mas de identificação da condição e da situação da senhora, poderiam
ter provocado mudanças na senhora.
Há de ser tarefa de uma hermenêutica atualizante resgatar as chances
que estão neste olhar da pequena Agar que reconhece quão pequena é sua apa-
rentemente grande senhora.
Aí, juntos às fontes, neste mundo próprio e livre das escravas, das filhas,
das carregadoras de água, o mundo da casa patriarcal não é portador de esperan-
ça. A esperança é a fuga deserto afora (veja Cantares 8,13-14). Tal história é
antiga, em nada pós-exílica, o que poderiam ser os versículos agregados a ela
para enquadrá-la ao contexto literário. A história de Agar é parte das memories
antigas, tribsis de judá.
98
Final
Fomos hóspedes deste cap.l6 de Gênesis. Ele nos levou a irmãs e irmãos da
sinagoga que já antes de nós se devotavam a esta história de Agar,
Através do capítulo, fomos hóspedes de mulher escrava e estrangeira.
Irmanamo-nos com a sinagoga, para além dela, para junto de ismaelitas, egípcios e
outras e outros tantos sem terra e sem lar.
Modernamente diríamos que uma koinonial"comunhão", uma amizade,
ampla nos foi abrindo as portas, acolhendo-nos para podermos partilhar nossas
vidas e destinos.
Até mesmo ficamos a imaginar como se vivia e se partilhava junto às
fontes, um dos poucos e únicos lugares, em que mulheres e escravas mantinham
seu espaço público próprio.
Mas também fomos fazendo nossos próprios trilhos. Estivemos em casa de
outros, como hóspedes, mas não deixamos de ser nós mesmos. Fomos dando
nossas opiniões, arriscando ideias. Na verdade, todas elas são bem provisórias.
Não estão aí para afrontar hospedeiro nenhum.
Mas, quem sabe, mantêm-nos juntos nos caminhos para que as 'Agares'
tenham sua voz, sua vida e seus direitos.
Há aí memória de escravas. Forte e contundente é sua saga. Bonito e
encantador é também aquele encontro de mensageiros e mensageiras, escravas
e meninas, junto aos poços, Palestina afora.
Há aí um respeito imenso por gente estrangeira, seja egípcia, seja ismaeli-
ta. Quem teria tamanha ousadia, como a tiveram estas filhas e filhos de Sarai e
Abrão, para celebrar memórias estrangeiras? Ainda mais que, em seu espelho, o
rosto próprio se deforma em cara de algoz!?
Há aí uns poucos que, mantendo a memória escrava no essencial, não se
conformam em não dizer também seu verbo. Mandam a escrava de volta, sob a
chibata escravocrata. Põem-na por sobre tudo, herança e posse de terra e essas
coisas. Mudaram sentidos, mas, contraditoriamente, não negaram que Agar é
profetisa.
Há aí um convívio maravilhoso, como que ecumênico, de diferentes tra-
dições religiosas. Fontes, desde sempre, foram locais privilegiados das religiões
de Canaã. Aí se fazia teologia desde as profundezas. O Deus da fonte é o que vê
e que ouve as grávidas; tem algo de pai, tem algo de mãe; recolhe e acolhe
fugitivas, e também ajuda em partos (v.llb!). É 'ele é Adonai/javé.
Agar, o jeito é fugir...
99
De olho nos povos
Gênesis 17,1 ..27
Outra meditação
100
Mas a parte maior e, em especial, a principal é reflexão. É fala de Deus.
Nesta fala, há toda uma densidade de termos teológicos e meditativos.
Nosso capítulo, representa, pois, um certo tipo de parada. Em meio aos
acontecimentos que fluem, o cap.17, por assim dizer, 'para para pensar'.
Esta parada é feita num ponto, num momento bem determinado. Acon-
tece depois do nascimento de Ismael, que pareceria ser o herdeiro, e na prepara-
ção do nascimento daquele a quem, no final, é dada a aliança, Isaque. Este é,
para Israel, um ponto crítico. Qual é a relação entre Israel (descendente de
Abrão e Isaque) e os povos (simbolizados pela descendência Abrão - Ismael)?
Portanto, não é acaso que este cap.17, esta intensiva meditação teológica, ocu-
pe o lugar que ocupa, na passagem de Ismael para Isaque.
Isso diferencia o cap.l7 do cap.lS. O cap.lS prescinde de Ismael. Discor-
re sobre povo e terra sem o horizonte amplo, universal dos povos. Nele, Abrão é,
por assim dizer, 'pai de um povo', com acesso a uma terra. No cap. 17, Abrão é
"pai dos povos" (v.5), ou melhor, é 'pai de um povo' em meio aos povos (v.16!).
O cap. 17 é, por conseguinte, um importante avanço em relação ao cap. IS .
Aquele (cap.lS) era pré-exílico, anterior à destruição de Jerusalém e à
decisiva integração do povo de Deus ao mundo dos povos. Além disso, o cap. IS
está sob a influência de certos setores deuteronomistas, centrados em Israel.
Este (cap.17) é posterior, é exílico. Respira os ares do seu contexto: Israel depor-
tado em meio aos povos.
Não há dúvida: nosso capítulo é fruto dos tempos do exílio, do 6" século!
Foi formulado desde a perspectiva dos exilados na Babilônia, desde a ótica dos
dispersos entre os povos.
Há diversos argumentos que justificam esta afirmação. Deixando de lado
detalhes, menciono aqueles que mais caem em vista:
Por um lado, cai em vista o destaque dado à circuncisão. Ela era prática
antiga entre os hebreus, mas sem que isso a tornasse especialmente importante.
Foi a situação do exílio que lhe veio a dar destaque. Acontece que os babilónios
não a conheciam. Para os israelitas, deportados para a Babilônia, a circuncisão
veio, pois, a ser um sinal identificador e diferenciador. Assim sendo, a circunci-
são - rito bem anterior ao exílio - assume, sob as condições do exílio, a mais alta
importância. Daí se conclui que nosso capítulo, centrado na circuncisão, pro-
vém dos deportados.
Por outro lado, a 'lei'/orientação e seu cumprimento ocupam lugar de
especial destaque. A lei é assunto desde o primeiro versículo: "sê íntegro!" (v.l ).
É detalhada no centro do texto: as prescrições sobre a circuncisão (v.9-14). E
101
ocupa todo final: relatório sobre o cumprimento das ordens dadas (v.23-27).
Esta ênfase na 'lei' igualmente é exílica (Levítico 17-26!).
Portanto, no cap.17, pulsa a situação do exílio. Estamos em meio à gente
deportada e escravizada, em terra estranha. Do mesmo ambiente são passagens
conhecidas como Gênesis 1 e 9 e Êxodo 6. Uma de suas características é de
serem comentários a passagens anteriores, em nosso caso, ao cap. 15.
Ficaria a pergunta: nosso capítulo só espelha a experiência do exílio, sem
que necessariamente tenha sido escrito entre os deportados, podendo ter sido
formulado também mais tarde, já após a volta para a Palestina (após o decreto
de Ciro em 538 a.Ci)? Ou efetivamente foi escrito em meio aos deportados?
Penso que a redação final poderia ser pós-exílica, uma vez que está tão enraizada
no que lhe antecede e no que lhe segue (no que difere do cap.14). Isso seria
difícil de explicar, se afirmássemos já ter sido concluída no exílio. Assim, Gêne-
sis 17 se assemelharia ao Salmo 137: reflete a situação do exílio em redação pós-
exílica! Seja como for: o ambiente em que nasceu esta nossa planta é a humi-
lhante condição da deportação! E é isso que importa! Nosso capítulo tem a
escrsvidão como berço.
Gente com formação sacerdotal há de ser responsável pelo texto, sob as
condições e opressões do exílio. Assim se explicaria, porque recai tamanho acento
no cumprimento zeloso de prescrições.
102
9E disse Deus a Abraão: "E tu minha promessa guardarás, tu e tua descen-
dência depois de ti em relação a suas gerações. "Essa é minha promessa
que guardareis entre mim e entre vós, e entre tua descendência depois de
ti: circuncide-se entre vós todo macho. llE sereis circuncidados em relação
à carne de vosso prepúcio. E será para sinal de promessa entre mim e entre
vós. 12E um filho de oito dias será circuncidado para vós todo macho em
relação a vossas gerações, nascido de casa e comprado por prata de qual-
quer filho de estranho que não [seja] tua descendência. 13Certamente será
circuncidado o nascido de tua casa e a compra por tua prata. E estará mi-
nha promessa em vossa carne para a promessa de eternidade. 14E um incir-
cunciso - um homem que não foi circuncidado a carne de seu prepúcio -
será eliminado esta vida de seu povo. Minha promessa quebrou."
15E disse Deus a Abraão: "Sarai, tua mulher, não chamará seu nome Sarai.
Eis que Sara, seu nome! 16E a abençoarei e em especial darei dela a ti um
filho. E a abençoarei e será para nações. Reis de povos dela serão."
17E caiu Abraão sobre seu rosto. E sorriu. E disse em seu coração: "Para
filho de cem anos será dado à luz? E Sara, filha de noventa anos dará à
luz?" 18E disse Abraão para o Deus: "Certamente Ismael viverá diante de
ti." 19E disse Deus: "De fato, Sara, tua mulher, te está dando à luz um
filho. E chamarás seu nome: Isaque. E estabelecerei minha promessa com
ele para promessa de eternidade, para sua descendência depois dele. 2°E
em relação a Ismael te ouvirei: Eis, o abençoei: e o tornei fecundo, e o
multiplicarei em muito, muito. Doze comandantes irá gerar. E o tornarei
grande nação. 21E minha promessa estabelecerei com Isaque, que te dará
à luz Sara para este tempo no próximo ano." 22E concluiu de falar com ele.
E subiu Deus de junto de Abraão.
23E tomou Abraão Ismael, seu filho, e todos os nascidos em sua casa e
todo comprado por sua prata, todo macho nos homens da casa de Abraão.
E circuncidou a carne de seu prepúcio, naquele mesmo dia como falara
com ele Deus. 24E Abraão [era] filho de noventa e nove anos em seu
circuncidar a carne de seu prepúcio. 25E Ismael, seu filho [era] filho de
treze anos ao ser circuncidada a carne de seu prepúcio. 26Naquele mesmo
dia, foram circuncidados Abraão e Ismael, seu filho. 27E todos os homens
de sua casa, nascido da casa e o comprado de prata do filho de estranho
foram circuncidados com ele.
Obviamente, este capítulo é um todo. O final- o relato sobre as ações de
Abraão - retoma o que antecedera. Dá o fecho ao conjunto. Portanto, não
convém subdividi-lo em duas partes, como procedem traduções como de João
Ferreira de Almeida ou da Bíblia deJerusalém.
Mas como flui este todo? Como 'funciona'?
103
Inicialmente, pode-se constatar que nos v. J-22 prevalece fala divina, não
só, mas primordialmente. E, nos 17,23-28, a palavra está com Abraão. Estas dife-
renças podem servir de um primeiro roteiro para parcelar este todo de nosso
cap.17.
Chama a atenção que o 17,3 e o v. J 7 começam do mesmo jeito: "e Abraão
caiu sobre sua face". O v.17 repete, pois, o v.3. E isso é importante e pode ser
avaliado do seguinte modo: v. J-2 correspondem aos 17,3- J6( 17). Estas duas par-
tes se sobrepõem. São como que paralelas. E, de fato, seus conteúdos basica-
mente são iguais; contêm as exigências ("sê íntegro!" v.1; "circuncida!" v.10) e
as promessas (a assim chamada 'aliança'). Lógico, na segunda parte (nos v.3-16),
os conteúdos estão muito mais desenvolvidos que na primeira (v.1-2), mas, efe-
tivamente, são os mesmos.
Típico desta segunda parte (v.3-16 [17]) é que Deus recomeça sua fala três
vezes: v.3, v.9 e v.15. Cada um destes recomeços assinala um novo conteúdo: nos
v.3-S, a promessa enfoca a multidão de povos e a dádiva da terra. Nos v.9-14, a
ênfase recai sobre a exigência da circuncisão. E, nos v.15-16, volta-se à temática
da esperança por muitos povos. Nos v.3-9, o endereçado da promessa é Abraão,
nos v.15-16, Sara. Em todo caso, estas promessas (v.3-S+ 15-16) circundam a exi-
gência da circuncisão (nos v.9-14). Apesar de não ser fácil perceber esta sequên-
cia dos v.1-16 num primeiro momento, ela é bem clara. Para a compreensão do
capítulo, é muito valioso observá-la, com cuidado.
O que segue nos v. J 7-27 é reaçãoaos v.J-J6, à 'aparição de [avé a Abraão'
(v.I) .
Num primeiro momento, esta reação é: "e Abraão riu e disse consigo"
(v.17). Nesta sua reação, Abraão é questionado. É o que destacam os v. J 7-22.
Neles, Ismael é contemplado com promessas, e é anunciado Isaque com quem
Deus erguerá uma 'aliança' específica. Os conteúdos destes v.17-23, sem dúvi-
da, são muito significativos. Mais adiante, no delineamento dos conteúdos, vol-
tamos a eles.
Num segundo momento, esta reação se concentra na prática: "e Abraão
tomou...". Cumpre a ordem de [avé: circuncida, como se lê em 17,23-21 Na
prática, a reação à aparição de [avé, a suas promessas e exigências, se restringe
ao ato da circuncisão. No final, o texto se estreita.
Ainda que aparentemente complexa, a estruturação é bastante transpa-
rente, e a sequência está bem pensada. Entendo que, para a interpretação, é
muito valioso observá-la com atenção, lendo e relendo o capítulo para entendê-
lo. Constituem o recipiente, o vaso, em que se encontra um valioso conteúdo.
Sem estar atento a esta sequencialidade do capítulo, a este vaso, o conteúdo se
pode esvair.
104
Uma planta que foi crescendo
Acima observei que neste cap. I? temos duas parcelas maiores de texto:
v.1-16 e v.17-27. Ao enfocar os conteúdos, irei deixar-me guiar por estas duas
subunidades.
Nos v.1-16, distinguem-se duas partes: os v. 1-2 são obviamente paralelos
aos v.J-l7. Comecemos, pois, pelos conteúdos dos dois primeiros versículos.
Os v. 1-2 assumem dupla função. Por um lado, introduzem (v.la), por ou-
tro, centralizam nossa perícope em alguns poucos conteúdos (v.1b e v.2).
A frase que menciona a idade de Abrão (noventa e nove anos) constitui-
se em um primeiro título. Em 21,5, esta data é retomada: aí, ao lhe nascer seu
filho Isaque, Abrão tem cem anos. Isaque lhe completa a vida; no cap. I? , ainda
lhe falta esta plenitude. É, pois, evidente que o primeiro título relaciona o cap. I?
aos que lhe são similares nestes capítulos sobre Abrão. O segundo título - refiro-
me a "e apareceu Javé a Abrão e lhe disse" - encabeça propriamente o cap.l ?
Põe-no sob o conceito do "aparecer" de [avé. Ao "deixar-se ver", [avé de todo se
105
compromete com Abrâo. Afinal, em cena, basicamente somente estão [avé e
Abrão. Este somente há de poder ser "íntegro" (v.lb}, e [avé, de promessa sem
volta. Eis os temas do v.lb e do v.2.
Estes conteúdos que encabeçam o capítulo são constituídos de cinco fra-
ses; em seu centro justamente está a frase "sê íntegro!". Trata-se aí da exigência
ética de ] avé a Abrão. A palavra usada inclusive está no plural: "integridades".
Penso que ela poderia estar resumindo o que exigiam os profetas: "integridades"
(Amós 5,10). A frase que completa esta que está no centro ("sê íntegro!") res-
salta a dimensão ética; o "andar", quer dizer a prática da vida, continuamente
precisa estar ciente de se situar 'diante de [avé'. Eis a meta que se quer alcançar:
um Abrão íntegro em meio aos povos, um 'Abrão' que seja precisamente o con-
trário dos reis que, até os tempos exílicos, pretendiam representar o povo de
Deus. Aqui, neste cap. I?, o guia do povo em meio aos povos é outro: um 'Abrão'
de "integridades".
Afinal, este 'novo Abrão' emerge de Deus. É o que se lê nas três frases que
se colocam ao redor do apelo ético "sê íntegro!". Bem no alto está uma 'frase
nominal', uma frase sem verbo, que, no hebraico, ressalta permanência e conti-
nuidade daquilo que nela se expressa. O apelo ético a Abrão provém do "eu"
divino que é e se apresenta como 'elxaday. Até aqui ainda não traduzi esta expres-
são, pois eu mesmo bem que gostaria de saber o que exatarnente se pretende vir a
dizer com estas palavras. O problema é traduzir exatamente xaday. Fomos habitua-
dos a ver-lhe dado o sentido de "todo-poderoso". Mas, por certo, esta significação,
oriunda da tradução grega, não é o significado de 'el xaday. Mas qual então? Em
meu entender, poderia tratar-se aí ou de "meus campos"/sadayou de "meus seios"/
xod. É possível que a compreensão mais antiga estivesse relacionada com "seios",
mas que nos textos bíblicos já se quisesse ver o termo relacionado a "campos",
considerando que 'el é masculino: 'el xaday = "Deus dos meus campos". O Deus
de Israel sob estes títulos é, pois, quem continuamente sustenta e move as posturas
éticas deste 'Abrão' pós-exílico, um ser-ético em meio aos povos. No v.I, vêm
agregadas mais duas frases que, em típica linguagem exílica, fundamentam a pos-
tura ética de mais dois outros enfoques. Por um lado, 'Abrão' está em "minha
aliança". No caso, "aliança"/beJitaqui há de estar levando o sentido de "promes-
sa", também por causa da frase que lhe está paralela, no final do v.2. Afinal, a
promessa da multiplicação da população "em muito, muito" justamente tem tudo
a ver com os tempos exílicos, quando a população judafta, comparada com a quantia
de gente em tempos pré-exílicos, havia sido reduzida a uns poucos milhares de
pessoas. Aí "aliança" leva o sentido de promessa, e esta, no concreto, é multiplica-
ção de gentes! Mas aí reside a ênfase destes nossos dois versículos, que encabeçam
o capítulo; esta multiplicação e as respectivas promessas ficam vinculadas à ética
'abrâmica': "sê íntegro!". Há, pois, que entender estes versículos e o próprio cap.l ?
106
à luz de tempos exílicos. Suas promessas visam um grupo de pessoas que há de se
dispor a revisar seus caminhos!
Portanto,javé 'aparece' (v.lb) como 'el xaday("Deus de meus campos"),
basicamente, sob o horizonte da promessa de aumento da população e, no apelo
ético, de integridsde! Esta teologia que encabeça nosso capítulo é caracteristi-
camente exílica. Nossos v.l b e 2, intuem, com estas suas palavras, uma síntese
para o todo de nosso capítulo.
Nos I~J-l6, segue nova subunidade. Ela está implícita em v.I b- 2 e daí
deriva.
São dois os títulos que novamente (confira acima v.la) introduzem ao
cenário. Inicialmente o v.J enfoca o conjunto maior dos v.3-l6: "e caiu Abrão
sobre seu rosto" (v.3a). Neste gesto, de lançar-se com o rosto em terra, expressa-
se a auto-humilhação diante de [avé, aliás diante de suas promessas e de sua
exigência ética ("sê íntegro! "). O segundo componente do título (v.3b) "e falou-
lhe Deus dizendo" abre os versículos que seguem em vA-8. Depois esta formula-
ção de um subtítulo é retomada em palavras similares "e disse Deus a Abraão"
(v.9 eIS). É, pois, a fala, a palavra que a tudo conduz. Indicam-no as introdu-
ções. Para que se faça o que é adequado (ser Integrol), a palavra indica cami-
nhos e detalha pormenores. Realmente estamos no exílio, ou melhor, em tem-
pos sem templo e sem reis!
Não há, pois, dúvidas de que estes v.3-l6 estão muito bem subdivididos:
v.3a, v.Jb-S, v.9-l4, v.15-l6. Aliás, para ser mais exato: v.3b-8 e v.l5-l6 formam
um quadro ao redor dos v.9-l4!
Os conteúdos dos v.4-8estão bem organizados. No vAa, uma frase-chave
introduz ("eu, eis, minha promessa [será] contigo"), e no final, v.8, se tem uma
bela conclusão ("e lhes serei Deus"). Em nossos versículos, a companhia de Deus
é o decisivo para Abrão/lsrael. Nem templo, nem terra, nem rei - nada disso
excede a presença bendita de Deus. Eis a linguagem exílica de uma nova teolo-
gia, em muito distinta da pré-exílical O que importa é ter a companhia, a bên-
ção de Deus, como o expressa o v.8b. E o que precede tal bênção, no vAa, é a
betit. Este termo, usualmente entendido como 'aliança', aqui novamente há de
significar "promessa". Javé Deus é como se fosse, em si, justamente isto: a pro-
messa! Afinal, é assim que no exílio se entende especificamente a Deus, a 'el
xaday. abre horizonte, cria futuro!
Esta aliança/promessa consiste, primeira e principalmente, em descen-
dência numerosa (v.S), ou melhor, de acordo aos vA-5, em "pai de multidão de
nações". Talvez até fosse melhor traduzir por "turbilhão/agitação de nações",
considerando que o texto quer dar ênfase a este burburinho que muitas nações
expressam. E este novo conteúdo da promessa/bênção - e, de fato, aí temos um
107
conteúdo impressionantemente inovador, considerando por exemplo 12,1-3, vol-
tado inteiramente para Israel - inclusive altera o nome, a identidade, a presença
de Abrão/ 'bramo Seu novo nome quer perfilar o novo conteúdo, relacionado às
nações: 'hraham! Este novo conteúdo, voltado às nações, altera a identidade, a
dimensão, o horizonte de Israel/judá: agora, no exílio, sua identidade estará volta-
da às nações/goyim e já não só ao seu povo Israel/judá! Veja Isaías 49,5-6!
Em meio a esta nova compreensão, que se passa a expressar de Abrão/
Abraão, o v.6 é significativo. Pois, nele, a grandíssima ("muito muito") fecundi-
dade do pai Abraão poderia estar-se conectando somente com Israel/Judá. Mas,
de imediato, o próprio v.6 evita tal compreensão, pois correlaciona a multiplica-
ção da descendência abraâmica a nações e a reis. A multiplicação mantém-se,
pois, como a de nações! (Veja, contudo, v.S.)
Há quem, e estes são muitos, diga que o v.7 restrinja o horizonte, referin-
do-se só a Israel/Judá. Mas, em nenhum momento, o texto o diz! Há que mantê-
lo no horizonte traçado pelos versículos anteriores. Entendo, pois, que este v.7
não pretende retomar a Abr "ml, mas justamente continua a ter Abraham como
referente. Neste sentido, a beJitnovamente é esta promessa inovadora, na qual,
em Abraham e em suas gerações, as nações são alcançadas e incorporadas. Este
é, pois, o horizonte da "promessa de eternidade", justamente porque envolucra
"multidão de nações". No caso, poder-se-ia atribuir ao conceito hebraico de
"eternidade" tanto dimensões de tempo quanto também de espaço; assim sen-
do, a promessa é abrangente em tempo e espaço. No caso, a tarefá de Abraham
é a de trazer continuamente à lembrança, como um memorial, em que o Deus
de Israel lança sua promessa de "ser-te Deus':
O v.S, este sim, tem a Abraão e sua descendência, especificamente a Israel/
Judá, como foco! Afinal, seu assunto é a dádiva da terra ("darei"). Esta terra é
específica: é a dos cananeus (veja a diferença em relação a 15,19-21). Aparen-
temente, trata-se aí de conceito histórico; cananeus seriam os habitantes pré-
israelitas da terra de Israel. Mas, em verdade, os tais cananeus podem também
ser aqueles senhores estrangeiros que no oitavo e no sétimo séculos ocuparam
Israel e Judá à moda imperialista, no caso assírios e babilônios, apoiados por
soldados de variados povos. Afinal, num trecho exílico, como o nosso, essa pare-
ce ser a compreensão mais adequada de "toda a terra de Canaã". Naqueles tem-
pos, "Canaã" era sinônimo de 'comerciantes' (veja Sofonias 1,11). Outra é a
compreensão que 'Abraão' há de ter do chão de plantio: o solo de vida e plantio
lhe há de ser "terra de peregrinação", como se nela fosse 'estrangeiro' (confira
Levítico 25,23b). A terra lhe é para a "eternidade", mas sob a forma da "posses-
são", da provisoriedade. Esta posse peregrina vai-se efetivando na medida em
que a terra estiver integrada à justiça social (como o diziam os profetas pré-
exílicos) e em que fizer jus aos caminhos, à etica de Abraão "pai de multidões de
lOS
nações". Considerando tais perspectivas, nem mesmo a dádiva da terra deste v.8
desconsidera a visão ecumênica cultuada no todo do conjunto dos vA-8!
Nos v. 15-16, reencontramos os vA-8. A diferença está em que a referên-
cia, agora, é Sarai. As palavras são dirigidas a Abraão; aliás, este é o único inter-
locutor de Deus em todo capítulo. Mas note-se que, em diferença ao vA de
acima, aqui Sarai é sujeito da mudança de nome: Abraão "será chamado" (vA) ,
Sarai "chamará" (v.IS) ! Eis, uma pequena, mas significativa diferença.
A mudança do nome de Sarai para Sara, v.1S, não altera em profundida-
de o sentido do nome. Pois Sarai/sarar remonta ao acádico, língua anterior ao
hebraico, na Mesopotâmia: sarratu significa "princesa" ou "dignitária". Em Gê-
nesis 11,29, sarar está em paralelo com n1l1kah/Milca, que significa "rainha".
Enquanto 'abram ou 'abraham é um nome próprio típico daqueles tempos, rela-
cionado com o enaltecimento do pai/Deus ("o Pai seja exaltado"), o de sarah e
sarar, a rigor, é um título: "rainha".
O conteúdo da palavra de Deus a Abraão em relação a Sara é marcado
pela bênção (v.16). A promessa da bênção é mencionada duas vezes, neste v.16.
Na primeira, ela tem como seu especial conteúdo "um filho". No caso, este filho
é "dela para ti", sendo este "tu" um masculino, Abraão. Nesta primeira promes-
sa, as bênçãos estão referidas a Abraão. Na segunda, é diferente. Novamente,
começa-se pela bênção, que, agora, se efetiva através de Sara(!) "para nações".
A mesma tónica se repete na última frase. Nela, em Sara, "reis de povos" terão
sua origem. Nesta frase final do v.16b, Sara é a pessoa de referência!
Reaparecem, pois, nestes v.1S-16 conteúdos já ditos, de modo semelhan-
te nos vA-8, mas também inovações. De todo modo, nossos v.1S-16 formam,
junto com os v.3+4-8, um entorno aos v. 9-14.
Estes v.9-14 são centrais, os vA-8 + v.1S-16 enquadram-nos. O rito em
questão é bem mais antigo que o exílio ou o pós-exílio, aos quais pertence este
nosso capítulo. Pode-se perceber a antiguidade do rito da circuncisão, por exem-
plo, nas formulações antigas de Êxodo 4,24-26. Como ela é parte de tradições de
muitos povos, inclusive não é, propriamente, um sinal de identificação de um só
povo. Aqui, no cap.17, contudo, para a experiência de Israel tornou- se sinal
diferenciador, possivelmente porque, na Mesopotâmia, para onde Israel e Judá
tinham sido transladados, e no ocidente greco-filisteu, igualmente não se prati-
cava a circuncisão. Estes novos contextos exílicos e pós-exílicos foram tornando
a circuncisão rito identificador de suma importância, como se lê aqui no cap.l Z.
No cap.1S, no 79 século, este recurso à circuncisão não chega a ser mar-
cante. A terra como que ainda era o sinal vital. Visto desde a própria terra, esta
ainda basta como sinal (veja por exemplo 12,1-3). Nas condições do exílio, em
terra estranha, a situação muda. Agora o símbolo maior já não é do povo inteiro,
mas da pessoa, ao menos do homem.
109
Mandamentos e punição caracterizam esta lei. Os v.9-13 mandam, e o
v.14 pune e ameaça. A determinação a ser aplicada ao não cumprimento da
circuncisão é a de morte: "será eliminada esta vida". Considerando estarmos no
exílio ou no pós-exílio, este 'eliminar' pode ser o de excluir da comunidade,
visto a comunidade religiosa judaíta e jerusalemitana não dispor nem de estado,
nem de exército. Ainda que este v.14 seja assim radical, seu final não diz que a
'lei' está sendo quebrada, mas a 'promessa'. Uma 'promessa'( berit pode ser pro-
movida por 'eliminação'?
Os v.9-13 se constituem de mandamentos: nos v.9.13a em segunda pes-
soa singular, e nos v.1Oa+ b.11.12.13b em segunda pessoa plural. A segunda pes-
soa não aponta, a rigor, para uma 'lei', em senso estrito, mas para um manda-
mento, uma orientação ética (a respeito, veja Êxodo 20-23). Se bem que o ver-
sículo final, v.14, se esmere na punição, a ênfase do conjunto é antes normativa
que legal!
Estes v.9-13 têm seu núcleo de intenções no v.fOb. "circuncide-se entre vós
todo macho". O v.11a reforça este mandamento. A rigor, um tal mandamento não é
passível de punições, pois configura orientações éticas. Daí se entende por que estes
versículos insistem na argumentação e, enfim, são tão longos. Acontece que neles, a
rigor, só a insistência e o argumento têm força, não a punição.
Há, pois, várias ordenanças ou mandamentos que circundam o central,
aquele do v.10b. O v.9 e o v.10a repetem, em duas frases similares, duas vezes o
mesmo mandato: "guardarásl'Y'guardareisl". Similar é o v.llb: "será para sinal".
Estas frases (v.9.10a.11b), que circundam a ordem de circuncisão (v.lOb e vl l.a),
apontam para o conteúdo expresso no mandamento central (v.10b). Percebe-se,
pois, que estes nossos versículos estão bem articulados dentro do jeito da lingua-
gem hebraica: coloca-se no centro o mais relevante, e, ao seu redor, juntam-se
frases que remetem a este núcleo.
Circuncisão constitui este núcleo no vI Ob. E seu derredor vem sustentado
por um outro termo chave para estes nossos versículos e para o próprio cap.17:
'promessa'Z berit. Em traduções mais antigas, costumava-se usar o termo 'aliança'.
Hoje preferimos "promessa", considerando que o termo hebraico em questão, be-
rit, não se refere aqui a uma atitude paritária e contratual entre Deus e as pessoas,
pelo contrário, este conceito, ao pressupor a diferença radical entre pessoas e Deus,
neste contexto teológico só pode ser traduzido seja por promessa, que vem a ser a
ênfase do próprio cap.17, seja por exigência. Portanto, circuncisão é integração na
promessa. E é isso que faz vislumbrar em sua exigência o caminho da promessa. A
promessa é portadora deste mandamento. Ambos não podem ser desvinculados!
Nos v.12 e 13, temos detalhamentos do mandamento. (A rigor, também o
v.14 pertence aos detalhes.) O v.12 estabelece o período para a realização do
rito: oito dias após o nascimento. E o v.U inclui a pessoa (o escravo) comprada.
110
Em ambos os casos, estamos diante de detalhamentos daquilo que está basica-
mente estabelecido nos v.9-11. E assim se percebe que o mandamento básico
(v.l Ob) vai sendo especificado.
O final do v.l l b, "será para sinal de promessa", é retomado e ampliado
após os mandamentos pormenorizantes dos v.l2-13: "e estará minha promessa
em vossa carne para a promessa de eternidade". A formulação está inchada. O
mandamento vai entrando em minúcias, e a teologia de "promessa", que o sus-
tenta, se faz barroca.
Ao ler estes v.9-14, importa, pois, ficar atento para a centralidade do v.10b!
Os v.J 7-22têm, como já salientei, semelhança com o conjunto anterior: v.3-
16; afinal, a frase que inicia o v.3 está repetida no v.l7: "e caiu Abraão sobre seu
rosto". A diferença está em que, a partir do v.3b, Deus toma a palavra, enquanto
que, no v.l7, a iniciativa é de Abraão: "sorriu e disse em seu coração"/pensou, "e
disse Abraão para o Deus". Nos v.3, a iniciativa é da palavra de Deus, nos v.17-22, a
de Abraão. Os conjuntos dos v.3-16 e v.17-22 são, de certo modo, paralelos.
"E sorriu", 'pensou' e "disse" - assim é, pois, introduzida a participação de
Abraão. Chama a atenção que o dito ("e disse") não coincide, propriamente,
nem com o sorriso, nem com os pensamentos. Ainda que, no começo, pareça
não haver palavra, a reação de Abraão tem sentido, pois ao "sorrir" e ao arrazoar
"no coração", isto é, ao 'pensar', isso deixa de ser segredo, porque, a seguir, vêm
escritas. Trata-se, pois, de pensamentos em 'voz alta' ou melhor em 'voz escrita'.
Ora, "sorriu" é explícito em seu sentido: no hebraico, "sorriu" é yishsq.
Sorrindo, Abraão representou o nome do filho a nascer, Isaque/yishaq (21,1-7)!
Neste sentido, o pai, ao nada dizer, diz tudo: expressa a promessa do filho! Os
v.3-S estão, pois, sendo retomados. O pai 'sorri' pelo seu filho 'sorriso'/lsaque! O
que o pai faz, ele o desfaz em seus pensamentos (v.l7b): aos noventa e aos cem
anos, já não há chance de paternidade ou aos de maternidade! Mas o que Abraão,
de fato, acaba dizendo (v.IS), está em tensão com o que está a pensar (v.17b)!
Abraão remete a Ismael, para nele alocar a continuação das grandiosas
promessas dos v.3-16. Este dará continuidade à promessa feita a Abraão de ter
sua vida com Deus:
"Anda diante de mim!" (v.2b) - referente a Abraão;
"Viverá diante de ti" (v.l8) - referente a Ismael.
Cabe, pois, papel decisivo a Ismael, na trajetória das promessas. Por isso é
que Abraão "sorriu". Logo, neste nosso trecho, Ismael não está em tensão ou
contraposição ao 'sorriso'/lsaque, mas em sua continuidade e paralelidade. A
rigor, ambos tendem a ser 'sorrisos'.
Segue a 'palavra' de Deus (v.19-21); ele "diz" (v.19) a Abraão. Esta reação
divina ao "dizer" anterior de Abraão, em v.17-18, coloca o acento no que importa;
111
encontro-o na terceira frase do v.19: "e estabelecerei minha promessa com ele
para promessa de eternidade". É esta promessa/berit o que importa; à sua luz,
exilados e pós-exilados desvendam seu caminho futuro. No final do dizer de Deus
nestes v.19-21, reenfatiza-se a promessa do v.19: "e minha promessa estabelecerei
com Isaque" (v.21). Isaque, como descendente, é importante, mas decisiva mes-
mo é a própria "promessa"! Em meio aos dissabores de sua história, o que indica
futuro é a esperança, a promessa. Superação do exílio - só no betit, na promessa!
O filho a nascer de Sara (primeira frase do v.19) é parte deste caminho da
promessa. O mesmo há de se dizer do nome do filho: Isaque (segunda frase do
v.19). Mas o decisivo mesmo é, como salientei, a frase final do v.19: a promessa!
Tal promessa não é excludente. A genealogia poderia tender a ser exclu-
dente, não a promessa. Ismael igualmente está na bênção! Será marcantemente
numeroso em sua descendência, bem como estará politicamente bem organiza-
do, com "comandantes" organizando uma "grande nação". A promessa é, pois,
inclusiva. E isso me parece fundamental neste nosso cap.17, obra do exílio. Bem
que se poderia haver optado por outro caminho, excluindo Ismael do horizonte
da história salvífica, como sucede, por exemplo, em Abdias/Obadias. Mas não é
assim neste nosso capítulo do Gênesis: por mais androcêntrico que seja, há nele
traços de ecumenicidade!
O v.22 "conclui" o conjunto literário de v.3-16+ 17-21. Sua tônica princi-
pal é a de Deus haver 'dito com ele', quer dizer, com Abraão. Na introdução a
este grande conjunto, Deus "fala" (v.3b). Na conclusão, à semelhança de textos
proféticos, Deus "diz". "Falar" é marcado pelo conteúdo profético dito; "dizer" é
caracterizado pelo processo comunicativo, cotidiano. E, assim, Deus se afastou
de junto de Abraão, de seu 'aparecimento' a ele.
Os atas são parte da palavra. Isso já ia transparecendo em v.I-2 e nas
explanações que lhe seguem: v.3-16 e v.17-22. Os mandatos no cabeçalho do
cap.17 se espraiam por todas as suas frases: "anda diante de mim e sê íntegro!"
(v.I b). Por isso, também tenho dito que o tema próprio deste nosso cap.17 é,
acima de tudo, a promessa e a ação que esta exige ("integridade"!). No final do
capítulo (v.2J-27), esta correlação é reafirmada. Narra-se a prática da circunci-
são, de adesão às promessas e à ética de integridade.
Estranho! Esta adesão às promessas vê-se realizada principalmente em
Ismael. Aqui reverbera o cap.16! Sua relevância, sua centralidade! Em Sara e
Abraão, "as nações" estão acolhidas (v.3)! Ismael precede. Isso não desmerecerá
Isaque. Mas permite perceber que, sem as nações e os povos, Sara e Abraão não
efetivam suas promessas. Então, entendemos que Ismael precede nestes versícu-
los finais, sim, precede a Abraão! Pois a circuncisão de Ismael é realçada no
v.23. Em seu final, a efetivação é sublinhada inclusive por uma formulação con-
112
clusiva que lembra a profecia "como falara com ele Deus" (v.23b). As ações de
Deus são de acordo com seu "falar"!
Atenção! Não se dá a mesma ênfase à própria circuncisão de Abraão. A
dele é antes alocada em sua biografia ("aos noventa e nove anos", v.24), como
também ocorre no versículo seguinte (v.2S "treze anos") com Ismael. Portanto,
no v.23 se percebe esta ênfase em Ismael.
Os v.26-27 retomam os anteriores; encerram o conjunto final dos v.23-
27. Nas ações condizentes às palavras dos versículos anteriores efetiva-se nossa
unidade literária.
Um resumo
Aqui, neste cap.17, temos diante de nós um capítulo muito bem formata-
do. Nele se articula teologia, como no cap. IS, mas de um modo ainda mais
intensivo.
A sequência dos conteúdos é marcante. Um duplo título encabeça o con-
junto, um que insere a narrativa teológica aos demais capítulos: "e aconteceu
Abrão [ser] filho de noventa e nove anos" (v.Ia): outro que indica o tema dos
conteúdos teológicos deste novo trecho: "e apareceu [avé a Abrão" (v.la). Se-
gue-se um belo cabeçalho que realça o que importa: a promessa e a ação ética
adequada: v.lb-Z; o que importa é "andar" na 'integridade'! Daí derivam dois
'diálogos' entre Deus e Abraão (v.3-l6 e v.l7-22)j em ambos se debate o futuro,
a promessa. Ela é delineada em sua especificidade do filho de Abraão e em sua
interrelação com as nações todas.
O capítulo não se fecha sobre os filhos de Abraão. Na conclusão, Ismael
chega a prevalecer. Busca-se a integração, a abertura a povos. Nesta profícua
tensão, há que ler nossa 'reflexão teológica'.
Este capítulo parece haver conhecido as demais tradições similares, seja
do cap.Iô, seja do cap. IS e de outros. Escreve-se, pois, por 'cima' do que estivera
escrito, não para substituí-lo, mas para sublinhar a especificidade dos filhos de
Abraão, sem perder de vista as nações.
Esta universalidade que prevalece neste capítulo tem a ver com seu im-
pulso ético. É que a simbologia específica - aliás, aparentemente especifica, já
que a circuncisão era, de fato, uma prática de muitos povos - agrega especifici-
dade ao que pertencem a Abraão, na medida da fidelidade à promessa e ao
comportamento da integridade. Os que pertencem a Abraão animam a história
dos povos com fé no futuro, e com ações confiáveis aos outros, a começar pelos
ismaelitas, protótipos da humanidade.
Neste sentido, circuncisão não aparta, mas integra. Fortalece os laços com
Ismael.
113
"E Sara riu"
Gênesis 18,1.. 15
114
segunda parte do cap.18, diferente da primeira, vai centrada na mulher,
em Sara. Algo similar - aliás, de grande relevância para a própria inter-
pretação - dá-se no final do cap.19; ele também está centrado em mu-
lheres-mães, no caso nas filhas de Ló, mães de dois povos, como se vê
em 19,29-38. Pelovisto, convém que se interprete estes caps.13(-14)+18-
19 de modo integrado e comparativo.
Percebidos estes aspectos iniciais, vejamos, pois, as cenas do cap.18:
115
tempo retornarei para ti, em um ano. E Sara terá um filho." 15E Sara ne-
gou: "Não ri". Pois temia. E disse: "Não, pois riste".
[l6Ergueram-se dali os homens...]
116
o v.la é propriamente um título, com destaque para a dimensão teológica, é
preciso constatar também que este título, a rigor, se refere aos v.I-8. Não chega
a ser adequado para os v.9-15. Além disso, penso que o v.1h pode passar a ser
considerado parte dos versículos que seguem: v.1b-S.
Quanto ao versículo final, v.16, tenho incertezas. O v.15 fecha a cena de
Sara e dos "homens"/visitantes, ainda que, como leitor, quereria saber algo mais,
por exemplo, se o menino nasceu dentro daquele um ano dado de prazo. Mas,
enfim, tais informações cabem antes em nova narrativa, na qual o cumprimento
da promessa é o destaque. E, de fato, é o que, em parcelas, lemos, por exemplo,
em 21,1-2. É bastante claro que a segunda ("e olharam sobre Sodoma") e a
terceira ("e Abraão foi indo com eles para os despedir") frases do v.16 encami-
nham para o que segue. Dúvidas poder-se-iam ter quanto à primeira frase do
v.16 ("ergueram-se dali os homens"). Talvez ainda seja parte dos v.I-15. Mas
parece-me que não, pois o verbo "erguer-se" não está vinculado ao que precede,
ao v.15, mas ao que lhe segue. Opto, pois, em ver concluída nossa unidade no
v.15. E anexo o v.16 ao que lhe segue (assim também a E/h/ia Hehraica).
Portanto, os v. 9-15 se constituem na segunda parte. Falta-lhes um título ou
uma frase introdutória nov.9. Igualmente falta uma conclusão, no v.15 (veja v.16?).
Esta há de ter sua razão em que a promessa de filho como que traz embutida uma
nova unidade posterior que se referirá ao nascimento, o que vamos encontrar,
ainda que de modo fragmentário, em 21,1-7.
Percebe-se, pois, que diferentes águas se cruzam nesta primeira unidade
de nosso cap.18. E isso torna especialmente rica sua leitura. Afinal, sendo diver-
sas suas águas, seus gostos também são variados. (Penso que, nisso, 21,1-8 lhe
seja similar.)
Porém, antes de trilharmos por sentidos e conteúdos de 18,la.lb-8+9-
15(16), convém tentar situá-los em seus contextos e tempos.
Épocas e condições...
Aqui estaríamos em um texto da fonte javista (de j). Isso até que é possí-
vel, considerando que as últimas palavras sobre a teoria das fontes documentais
no pentateuco ainda não estão ditas. Refiro-me, em relação a 18,1-15, à fonte
javista, porque o título em v.la se vale do termo "[avé", e o mesmo se dá nos
v.13-14. Não há menção de "Deus". Estes dados, medidos à base da teoria das
fontes, e associados aos demais trechos de nosso ciclo narrativo, em caps.13 + 18-
19, apontariam para o javista.
Seguro é que estes nossos capítulos efetivamente conformam uma sequ-
ência narrativa, como já vínhamos dizendo a respeito. Há, entre seus trechos,
coesão narrativa que não só se percebe no uso do termo "[avé", para referir-se à
117
divindade, mas também em aspectos, como, por exemplo, a semelhança entre
18,1-8 e 19,1-3. Contudo, daí ainda não se pode deduzir uma fonte redacional
para o pentateuco ou para estes caps.12-25 de Gênesis. Há redatores comuns de
narrativas, de ciclos, como sucede com nossos caps.13 + 18-19, mas há dificul-
dades de associá-los a uma fonte contínua, presente em todo um ciclo, em todo
o pentateuco.
Sob tais condições da pesquisa sobre as fontes literárias da torah!pentateu-
co, penso ser adequado argumentar em favor dos contextos histórico-redacionais,
passo a passo, estória por estória. Isso é mais trabalhoso e complexo, mas há de ser
mais eficiente para o atual estágio da pesquisa.
Constato, desde já, que no cap.18 há o que chamaria de adendos posterio-
res. Isso, aliás, não só é minha opinião: 18,16-21 e 18,22-32 são releituras - sim,
releituras muito interessantes - nos caps.18-19. Logo a seguir, voltaremos à ques-
tão destes trechos ao enfocar as unidades em questão. De todo modo, nossa uni-
dade do momento, 18,1-15, não é parte de reinterpretações como as dos dois
adendos subsequentes mencionados.
Adicione-se a isso ainda outro aspecto, justamente distinto do que postu-
lávamos em relação a 18,16-21.+22-33, que permite ver como os dois assuntos,
tratados em 18,1-15, claramente retornam no cap.l9. Ora, veja: 18,1-8, sem
dúvida, paraleliza com 19,1-3, e, mais, 18,9-15 tem como assunto - o do(s)
filho(s) a nascer - o tema que culmina na segunda parte de 19,4-29, particular-
mente em 19,30-38! Isaque é filho da promessa, Moabe e Ben-Ami resultam do
empenho das filhas pela sobrevivência. Entendo, pois, que 18,1-8+9-15, sendo
estórias próprias e antigas como caps.13 + 19, ajustam-se a estórias posteriores:
afinal, tanto em 18,9-15 o ápice da unidade é o filho a nascer, quanto no cap.l9
os filhos, apesar de tudo, dão sentido ao todo!
Podemos, pois, situar a literatura em questão - 18,1-8+9-15 - em tempos
não posteriores ao 8º século. É que lhe falta, como nos caps.13 e 19, linguagem
deuteronômica do 7º século, como a que encontrávamos no cap. 15. Igualmente
está ausente a ênfase na terra e em sua promessa, que ainda não parece ter-se
tornado um assunto urgente, como sucede após a invasão assíria a partir de
meados do 8º século.
Aliás, convém que retrocedamos inclusive para tempos anteriores a meados
do 8º século. Pois as duas cenas de nosso conjunto ainda estão centradas em seus
assuntos próprios: hospitalidade e promessa de filho. Estes assuntos não estão em
função de outros, mas em relação com eles mesmos. Por um lado, Abraão é bem
caracterizado em sua hospitalidade de apresentar aos recém-chegados mesa de abun-
dância, sim, excessivamente farta, e, por outro lado, Sara é bem caracterizada em
suas dúvidas. Tal tipificação tem ares antigos. O contexto de vida de pessoas como
Sara e Abraão era potencial portador de tais memórias.
118
Estamos, pois, diante de memoriais muito antigos, que versam sobre te-
mas do cotidiano: chegada de visitantes e nascimento de filho. Nisso reside a
alegria contextua] destes nossos versículos. Em famílias seminômades, tais cenas
estão bem ambientadas.
Depois, à semelhança do cap. 13 (veja v.18!), a narração foi fazendo parte
das tradições celebradas em Mame, perto de Hebrom. Estamos, pois, diante de
uma antiga tradição judaíta das montanhas!
Passemos, pois, aos conteúdos.
A cena destes v. 1-8é mesmo exuberante. O acento maior recai sobre o atare-
fado Abraão a encaminhar a recepção (v.3-5) e a preparar os alimentos (v.6-8).
Tal exuberância cênica não é acaso. O título já o vai indicando: afinal,
quem "se faz ver" é [avé (v.1a)! Em todo caso, sabemo-lo nós que lemos. Mas,
em verdade, sabe-o o próprio Abraão: aqueles "três homens" (v.Z) são, a rigor,
um singular: é "Adonaí" (v.3)! Ora, no hebraico, as vogais que se atribuem às
consoantes que, nós, lemos como Javé são oriundas de "Adonai"/meu Senhor.
Ao estar na presença de "três homens", Abraão está na presença do Senhor, de
Javé!
É [avé quem 'se faz ver' junto a "carvalhos", uma espécie de árvores impo-
nentes e sagradas, na região. Já estavam citadas em relação a Mame, próximo a
Hebrom, em 13,18: lá Abraão dispusera um altar, à semelhança de 12,7.8. Tais
locais de encontro são episódicos. O que sucede no encontro com [avé, é mais
eminente que o local. Javé é o Deus da companhia nos passos da vida, aqui, na
sombra de árvores magníficas. - Bem, na verdade, ao encontrar Abraão, Javé já
tem lá sua concretude na história. Refiro-me a que os tais "carvalhos" são os de
Mame, sabidamente um local, próximo de Hebrom, que, no tempo dos textos, já
tinha sua relevância como espaço sagrado, se bem que seu poder fosse moderado.
De todo modo, 13,18 havia-o mencionado. No tempo do texto, Mame há de ter
tido sua relevância como espaço religioso, mas sem que tenha podido impor-se
diante dos emergentes santuários de Hebrom e, em especial, de Jerusalém.
Aliás, no v.J, as relações entre "Adonai" e Abraão estão brilhantemente
caracterizadas: um é "Senhor"/Adonai, e outro, "escravo". E a "graça" é a acolhida
do humano pelo divino, torna alguém 'escravo' em Deus, livre entre pessoas. Nes-
te sentido, os autores de nosso trecho nos informam marcadamente que Abraão
reconheceu a especificidade divina do encontro, tanto no que tange ao nome de
Deus - [avé! - quanto em seu predileto conteúdo, qual seja o de fazer, de 'escra-
vos' agraciados, gente livre.
119
Contudo, antes de continuar a comentar os versículos que seguem ao v.3,
preciso dar uns passos atrás, na direção dos v.Ib-Z. Não que neles se manifeste
outro direcionamento; ora, no final do v.2, outra vez se vê que Abraão se sabe
diante de Javé: afinal, ele "prostrou-se em terra". Tal ato já indica que o humano
(Abraão) se sabe defronte do divino (javé). Contudo, de resto, os v.Ib-Z ten-
dem antes a dar atenção ao humano. Dão atenção a Abraão.
Este Abraão entra em cena em atitude diversa à de Deus: mantém-se "sen-
tado". No hebraico, trata-se de um particípio que dá a idéia da continuidade. No
v.1a, [avé já está em ação ("e se fez ver"); no v.1b, Abraão ainda está parado, em
um estado contínuo de "sentado". Sua pressa só vai iniciar quando, ao entender
quem são aqueles "três homens", começa até a "correr".
Abraão está 'parado' em sua cotidiana vida (na "entrada da tenda"), dife-
rente de [avé que 'se faz ver' no especial local dos "carvalhos de Manre". Mas a
hora é peculiar: "o calor do dia". Ora, esta hora é especial (veja Cântico 1,7!). É
hora do novo!
Ora, "o calor do dia" não é uma indicação acidental. É que na hora espe-
cial se dão cousas especiais que vão passar a requerer atitudes especiais de Abraão,
integrais de sua pessoa neste v.L, afinal a primeira parte tem a ver com os olhos,
e a segunda com os pés. Na primeira parte do v.2, constata-se ("eis"), na segun-
da se tira a consequência ("correu"). O ato de "correr" se deve, claramente, à
presença dos "três homens", e estes, como nós leitoras e leitores sabemos desde
o v.1a, assinalam a presença de [avé. Logo, o "erguer dos olhos", no início do v.2,
vem a corresponder ao "prostrar-se em terra" no final. Afinal, diante dele, de
[avé, Abraão, estava, em visão no "calor do dia". Importa, pois, perceber que
aqui não é desfeito nem o humano, nem o divino. Pelo contrário, desde o come,
ço o trecho caminha a dois pés:
"ergueu seus olhos e viu: eis, três homens parados diante dele,
e viu e correu ao seu encontro da entrada da
tenda,
e prostrou-se em terra. (v.Z)
Daí também se entende por que, no v.3, as palavras são tão exuberantes
quanto a "graça", como acima já anotávamos. E o v.4 segue por este caminho.
Aliás, os v.J,5formam um conjunto: são as palavras como que contidas na pres-
sa dos pés dos v.Ib-Z.
E estes v.3-5, de jeito similar a v.Ib-Z, têm belo estilo: agora, a ânsia é a de
que "os três homens"/Adonail"meu Senhor" 'não passem'. E é mesmo este verbo
que Lrormata os versicu
- Ios: ,,-
nao passes "(v.3) - "deooi
epois passai." (v.5) .I E tu d o ISSO
.
vai encabeçado pela "graça", pedida e pressuposta (v.3a). Ora, tal "graça" requer
interagir com o que Abraão tem a apresentar, uma vez desperto de seu 'assento'.
120
É, pois, para repeti-lo, a graça que sustenta que eles não passem. Na graça
reside a suspeita que algo irrecuperável se passaria, se eles passassem como uns
quaisquer.
Afinal, Abraão, de acordo a estes nossos versículos, pouco tem a oferecer,
para convencer. Diz-se "escravo"! Depois, as três dádivas do vA não são lá mui-
to sensacionais: "um pouco de água" para lavar os pés, e estar na proteção da
árvore. Isso aí não é lá muito. É oferta de escravo! Parece até provir de quem
ainda não sabe. O v.5 continua neste básico: Abraão promete um "bocado de
pão". No hebraico, é, de fato, assim indefinido "um bocado". É pouco! Mas,
seria o que daria para "depois passar", isto é, seguir viagem. Serve para animar "o
coração" (v.5a), mais do que repor as forças. E "os três homens" aceitam (v.5b).
O "bocado" é-lhes suficiente.
Porém, fica a surpresa-pergunta final: teríeis vindo para este "bocado",
para este lanche!? Aliás, este v.5b é de difícil tradução. Entendo-o no sentido da
dúvida. Um "bocado" fizera chegar o "escravo" Abraão?! A dúvida-afirmação
conduzirá a relação a novo patamar, nos v.6-S, como veremos.
Há de ser relevante estar atento a estas tensões que nos surpreendem. Por
um lado, são evocadas grandiosas expectativas: "e [avé se fez ver" (v.la) . Have-
ria o que pudesse suplantar a tal anúncio no cabeçalho? Também no v.3 não
haveria algo mais maravilhoso do que ser um "escravo" que esteja na "graça".
Mas, por outro lado, por mais encantadoras que sejam tais divinas maravilhas,
não desaparecem de diante dos olhos as condições de pequena vida, de pouco e
de bocados de que é constituída a cotidiana sobrevivência. A graça abre os
olhos ao novo, mas não os fecha ao real, ao 'pouco' do dia-a-dia. Eis, uma das
tensões vigorosas destes nossos versículos.
Mas, enfim, impõe-se a exuberância da linguagem celebrativa, no final
(v.6-b). Tentando conter-se no real, agora as palavras explodem em transbor-
dantes festejos. O "bocado" e "pouco" transforma-se no que já nem cabe: três
medidas de pão. Haja pão!
Então, os v.6-S são diferentes. Não que em versículos anteriores tivesse
faltada essa tônica da abundância, pois, afinal, lá, por exemplo no v.3, já se
celebrava a "graça". O que se dá, é que a superação flui, agora. O alimento em
preparação nos v.6-S é banquete para muita, muita gente.
Para dar-se conta desta festança, iremos deter-nos, agora, nas quantias
exuberantes de alimentos e no serviço de 'mesa'. Mas, de começo, chamo a
atenção ao final, à última frase do v.6b. Lá, novamente, como que ressurge a
sobriedade: afinal, diante daquelas quantias, "os três homens" "comeram". Qua-
se diria: 'somente' "comeram". Nada mais! Entenda-se esta renovada sobrieda-
de de nossa perícope à luz do que já víamos: por um lado, a divina exuberância
121
sobressai, mas, por outro, os gestos cotidianos e simples prevalecem. É o que
temos nestes v.6-8: o exagero no preparo dos alimentos (v.6-8) diante da 'desa-
tenção' na festa do consumo (veja final do v.8)! Além disso, a recatada atenção
ao consumo do alimento também há de ter um outro motivo: a nós, leitoras e
leitores, entrementes se impôs a percepção de que aqueles "três homens" se
transfiguram em [avé. E aí se torna um tanto difícil deter-se em algum exagera-
do consumo do alimento.
Bem, mas de todo modo, os v.6-8 se deleitam no preparo (v.6-7) e na
apresentação dos alimentos (v.8). Prepara-se, na hora, uma refeição com dois
pratos: pão (v.ó) e carne (v.7). Ao servir-se a mesa, mencionam-se mais dois
alimentos: "coalhada" e "leite" (v.S): ambos parecem já estar prontos, à diferen-
ça dos outros pratos, mencionados nos v.6 e 7. Tudo isso se dá sob a égide da
pressa: "apressou-se", "corre!" (v.6) e "correu" (v.Z), como já realcei. E, afora
isso, se introduzem mais dois personagens: Sara (v.6), que será central na cena
de v.9-15, e "o ajudante" (v.7).
Na primeira ação, no v.6, Abraão "se apressa" e repassa pressa a Sara: "cor-
re!". Sara se encontra na "tenda", mas não propriamente na 'sua' tenda. Há quem
entenda ser a tenda a de Sara, mas não é o que se lê no hebraico; lá está escrito
que a direção a que Abraão se apressa é "para a tenda", isto é "para Sara". Objeti-
vo desse apressamento e dessa correria é a preparação de "pães"/'bolos'. Para obtê-
los, usam-se, no hebraico, "três medidas de farinha", Na tradução grega - que aí,
ao racionalizar, há de ser a versão mais recente - só se mencionam "três medidas".
De que se trata de "farinha", está subentendido e, no processo de transmissão do
texto, o termo é, a meu ver, posteriormente, acrescentado explicativamente por
copistas. De todo modo, as "medidas" (obviamente "de farinha") precisam ser
'amassadas', sendo por fim 'feitos' os "pães"/'bolos'; aqui "fazer" há de significar
"assar", no caso sobre pedras especiais deitadas sobre as brasas, de acordo aos
costumes (veja Êxodo 12,39; Oseias 7,8; etc.). Veja só quantos detalhes neste v.6!
Além da pressa, que nos é encenada pelas palavras do v.6, surpreende tam-
bém o interesse pela quantia. Ainda que não saibamos exatamente quanto são
"três se'im/medidas", de todo modo não é pouco. Se uma "medida" corresponder
a uns 12 litros, os pães proviriam, no mínimo, de 36 litros de farinha. Haja pão!
Contudo, a "medida" pode ser maior, pois uma poderia ser mais de 12 litros. De
todo modo, não foi pouco o pão que se apresentou aos "três homens". Afinal,
entrementes já sabemos quão especiais são.
No v.], as frases continuam breves e incisivas, similares às do v.6. Indicam
pressa. Ao pão do v.6, adiciona-se, agora, a carne. Sim, celebra-se a carne, qua-
lificando-a: é de novilho (de "filhote de gado", como o expressa o hebraico nos
v.] e 8), é tenro, e é bom (para comer/bom, e para ver/bonito). Haja assado de
qualidade! Os 'bolos' são muitos, o assado, de primeira!
122
A presença do "ajudante", deste 'homem jovem', corresponde à de Sara
no item dos produtos de farinha. Aliás, tais auxiliares/jovens e similares também
se mencionam em 13,7-8; 14,24; 15,2-3; 17,23; etc. Chegam, pois, a ser típicos
para as estórias sobre Abraão.
De todo modo, a pressa prevalece, como o subscreve a última frase do v.7:
"apressou-se". Ela é epifânica: Abraão percebera estar diante do Senhor! A pressa
provém antes da experiência de Deus do que de exigências culinárias. Afinal,
comida feita às pressas diz-se não ser boa.
Ao preparo de pães e carnes, segue-se o serviço 'à mesa', no caso, sobre
tapetes no assoalho da tenda, como era de costume. Ao servir 'a mesa', Abraão
adiciona à carne (e ao pão, que aqui não volta a ser mencionado) ainda "coa-
lhada e leite". Ambos já estavam preparados, em especial a "coalhada". Tudo "é
dado/oferecido/colocado" à presença deles. A refeição é dádiva. A ela se junta o
serviço à 'mesa': Abraão é quem serve, como aliás já o dizia o v.3, em que se
designa de "escravo".
Aos hóspedes foram apresentados alimentos deliciosose foram também bem
servidos. Mas eles 'só' "comeram" (v.8)! Esta brevidade surpreende, após dar-se
tamanha atenção ao preparo dos alimentos e às quantias.
Penso que a continuação da estória o faz entender. A ação apropriada à
hospitalidade é, de verdade, o anúncio do filho a Sara e Abraão. É o que veremos
nos próximos versículos: nos v.l-8 as dádivas provêm de Abraão, nos v.9-15, dos
"três homens". Esta segunda parte se centra em Sara, a primeira, em Abraão.
123
A promessa de filho! Este' filho nascerá "no tempo da vida", o que bem
que poderia significar na próxima primavera. O tempo da primeira cena é "quando
do calor do dia", da hora de novas visões (v.1a), o da segunda é "o tempo da
vida" (v.lOa), o das águas e plantas, da fertilidade. Este tempo é o de um "filho
para Sara". Eis o conteúdo que marca nossos capítulos desde os começos, desde
11,301 Enfim, a promessa do filho está por se cumprir! Sim, o elã de nossos
capítulos se efetivará.
Esta promessa é "dele", do Senhor; o v.lO tem esta introdução em singu-
lar: "e disse". O v.9 ainda tivera um plural, "e disseram". Estes 'eles' são, no v.9,
"os três homens"; é, no v.lO, "ele"/Javé (veja v.13-l4). Entre estes dois conceitos
para o divino, há óbvia diferença, mas também evidente proximidade: para falar
de Javé se precisa também identificar as pessoas concretas que falam e agem, nos
caminhos de [avé. Aqui, [avé ainda está muito próximo; é como se "andasse
pelo jardim", para expressá-lo com Gênesis 3,S.
As palavras de "eles' (v.9) ou de "ele" (v.lO) se dirigem a interlocutores di-
ferentes: "eles" se voltam a Abraão, e "ele", a Sara. Logo, Sara em nada está dimi-
nuída. Pelo contrário! Abraão 'só' a localiza: "eis, ela está na tenda". A cena anterior
(v.l-S), de verdade, ainda não a incorporara no cenário (v.6); somente lhe dera uma
tarefa, como ao "ajudante". Agora, "ele"!Javé a vê no centro.
A palavra de "ele" é certeza. Penso que convém realçá-lo. Refiro-me à
promessa do v.lO: "certamente retornarei". No hebraico, este tipo de constru-
ção gramatical- "retornar/certamente retornarei" - expressa certeza, veracida-
de. À promessa do filho para dentro em breve não cabe dúvida, aliás, a ela não
caberia a dúvida que mais adiante Sara lhe atribui.
A cena se vai movendo de Abraão para Sara. Inicialmente o lugar da
mulher é fora "na tenda" (v.9). Mas, na medida em que as palavras dos "três ho-
mens", de [avé se referem a Sara, ela se realça. No v.IO,já se encontra na "porta da
tenda". Há, pois, uma gradual inclusão e um realce de Sara. O final do v.lO a situa
próxima, ainda que encoberta: "e ela (= Sara) atrás dele (= de Abraão)". Sara já
era, pois, participante da cena, se bem que Abraão ainda a estivesse a encobrir.
Esta gradual integração de Sara ao cenário é intenção de quem conta a estória.
Sara se vai incluindo! Sim, a cena chegará a seu auge quando ela estiver plena-
mente integrada, quando, pois, [avé lhe dirige a palavra (v.IS) !
Neste entremeio, o v.ll funciona como momento retardatário. Está diri-
gido a ouvinte e leitor da estória. Informa sobre Sara.
O tipo de frases é peculiar, pois as duas informações iniciais se encontram
em frases sem verbo. Nelas só há palavras substantivadas. Em v.lla, realça-se
que se trata de "velhos", de gente "entrada em idade" (veja 17,24). No caso,
importa que Sara seja "velha". Mas também se adiciona Abraão. Isso indica que
124
o v.ll - esta frase, que retarda o avanço da cena - é um adendo redacional:
afinal, no v.lO se havia passado a enfocar somente a Sara, o que continua no
v.12. Abraão já estava 'fora' do centro da cena, a rigor desde o v.9. Sua menção,
no v.l l , como que está fora do 'espírito' da subunidade conformada pelos v.9-
10+ 12-15.
o v.llb, enfim, se concentra em Sara. "O costume das mulheres", que
lhe cessara, é a menstruação. Já não lhe era possível engravidar.
No v.12, o assunto é o do v.ll: Sara diante da promessa de filho. Mas o
argumento difere: é menos preciso que o do v.ll (que se refere à menopausa),
mas, de certo modo, mais elegante. Convém, pois, entender o v.12 na sequência
do v.lO. Nele, Sara é sujeito - ao inverso do v.ll: "Abraão e Sara velhos..." -
sendo ela a que qualifica Abraão. Ela, neste v.l2, tem ausência de "prazer",
"desejo", de 'ednah < 'eden (lembre-se do Éden em Gênesis 2!). Ele, velho. Aí
não se diz, pois, expressamente que Sara não terá mais filhos, como no v.ll, mas
que será improvável. E nisso cabe que Sara "ri". Ela não ri da impossibilidade de
ter filho (v.ll), mas da improbabilidade (v.12). Aliás, a rigor, trata-se de Isaque:
o leitor hebraico logo sabe que é este Isaque de quem se está tratando. Pois, "rir"
em hebraico significa zahaq, a palavra hebraica Isaque (yizhaq) é derivada deste
verbo "rir" (veja 17,17). Convém, pois, que se atente para esta peculiaridade do
v.12.
Nele, "rir" não é, antes de mais nada, uma aberta afronta a mensageiros/
[avé. Antes, vem a ser "no interior" de Sara uma alusão ao próprio nome do filho.
Sara não nega, mas já vai dando nome a quem há de nascer!
De todo modo, riso e argumentação interior ocorreram sem que Sara es-
tivesse sendo vista. Ainda está valendo o final do v.IO: "e ela (= Sara) atrás dele
(= de Abraão)". Javé/mensageiros não a 'viam'; seu interlocutor ainda era
Abraão.
Contudo, nós estamos em outra posição. Vemos a cena de outro ângulo:
para nós, sim, Sara está dando os significados no encontro entre [avé/homens e
Abraão.
Quando, pois, nos v. 13-14, [avé volta a se dirigir a Abraão, Sara escuta,
ainda que continue "atrás dele". Ela ainda não se tornou 'visível'; está fora do
foco das visitas. A palavra segue dirigida a Abraão. Seu sentido se encontra no
final, no v.l4b, uma retomada do v.9a, do começo da subunidade dos v.9-l5.
Nela, o tempo é ainda mais decisivo que no v.9: lá já se mencionara que haveria
um retorno de [avé/homens "no tempo da vida", o que provavelmente significa
"no próximo ano, por este tempo"f'no próximo ano". Agora, no começo do
v.14b, ainda se adiciona uma expressão que deve significar o mesmo: "neste
exato tempo". Neste tempo preciso, daqui a um ano, "para Sara - um filho!':
125
como já o dizia o v.9. Esta é a promessa, desde o começo dos caps.l1 e 12. Sim,
assim já o expressava 11,30: "Sara era estéril; não tinha criança".
Neste v.14b, culminam as palavras de [avé a Abraão. Duas perguntas lhas
antecedem, uma em v.l3 e outra em v.l4a. Ambas estão relacionadas ao "rir" e
são retomadas, no v.15, sob este tema.
A primeira inquire pelo "por quê" do "rir" (v.l3). Novamente se está apon-
tando para o nome de Isaque e ao tema da subunidade. Este "por quê?" não deixa
de ser uma crítica. Pergunta-se, pois, na tônica da adversidade. Mas, quando se dá
o conteúdo merecedor do "por quê?", então, estranhamente, se volta ao v.12, e se
indica novo motivo. Agora, não é a falta de prazer (v.12), mas a velhice que impe-
de a gravidez, razão esta que se aproxima do v.11 (adendo!). O que Sara teria tido,
de acordo ao v.l3, não o disse. (A pergunta que Sara teria formulado, no v.l3b,
seria acréscimo?)
A segunda pergunta, no v.14a, confronta-nos, em forma de nova inquie-
tação' com um motivo decisivo. Diz, em forma positiva, que [avé é capaz de "ser
maravilhoso", em relação à "palavra", às "coisas", aos "assuntos". Aqui a "pala-
vra" é a gravidez de Sara! Quanto a esta gravtdez/t'palavra", [avé "é maravilho-
so"!
A primeira pergunta questiona, pois, as dúvidas de Sara, a segunda afirma
as maravilhas de Javé! Sara e [avé estão contrapostos, ainda que não se tenham
visto.
No v.15, como que se passam a ver, ainda que isso não esteja dito expres-
samente. Mas está pressuposto, pois, na agilidade de dito e contra-dito, já não se
menciona Abraão.
De um lado, se nega, de outro, se afirma. Sara nega haver rido. E o faz por
temor. Ele/Javé afirma que ela riu. "Rir"/zahaq claramente continua a aludir a
Isaque! A rigor, [avé se refere a Isaque. Em função dele, do filho, insiste em que
Sara "riu". Afinal, sob o ponto de vista de [avé, ela já está nesta alegria de seu
filho. Em [avé, "rir" está vinculado à promessa, em Sara, ao medo. O temor a
veda para os dias que vem.
A subunidade culmina, pois, na palavra que constitui os v.9-15: "rir"!
Sara é introduzida como fazedora de bolo e, no final, ela está diante de
[avé. O texto termina na tenda, [avé falando com ela!
Sara entra em cena produzindo pão, sai de cena diante de [avé, explican-
do seu riso, aliás, seu filho.
O v.16, em parte, ainda liga os v.l-15 aos v.17-19.20-33. Mas a unidade
dos v.l-15, a rigor, está concluída no v.l5.
126
Concluindo
127
Enfim, Sara "riu em seu interior" (v.l2), pois a promessa de filho não lhe
pareceu plausível. Com este "rir", está dado nome ao filho: Isaque. Como este
filho é promessa, nem mesmo o "rir" a pode desativar. Os "homens"/Javé com-
prometem Sara com este seu "rir". Pareceria que fosse para castigá-la, a fim de
não "rir em seu interior". Talvez. Mas não parece, pois não há referência a culpa
ou a castigo em relação a Sara. Por isso, o sentido há de ser outro: ao comprome-
ter a mãe com o "rir", também se a compromete com este filho que ri! Em jogo
não está uma crítica a Sara, mas uma animação a receber o filho! "Riste" - esta
é a palavra final de [avé. E isso não é uma crítica a Sara, mas a promessa do filho
que já a vai fazendo rir.
128
"Destruirás o justo com o injusto?"
Gênesis 18,16..33
Uma ponte
Estes versículos são, de certo modo, parte do que antecede e do que se-
gue. Afinal, o v.16 tanto se refere ao anterior, a 18, l-IS, quanto a este nosso
trecho que lhe segue no cap.l9. A primeira e a última frase deste v.16 dizem
respeito ao que precede, sendo, pois, de certa forma, parte de 18,1-lS: "ergue-
ram-se dali os homens, ... e Abraão foi com eles para os despedir". A frase do
meio difere destas duas, pois aponta para o que segue: "olharam sobre Sodoma".
Afinal, Sodoma ainda não fora o tema em 18, l-IS. Este passará a ser o assunto
a partir do v.17 e, em especial, no cap.19 . Vê-se, pois, que o v.16, em parte,
conclui a unidade precedente (18,1-6+7-1S) e, em parte, direciona-se para o
capítulo subsequente (cap.19). De todo modo, o olhar para Sodoma puxa nosso
v.16 para a unidade subsequente.
Nossa nova unidade é uma reflexão intermediária, entre a visita dos "ho-
mens" a Abraão e Sara e sua chegada a Sodoma. Tem, pois, a função de ponte.
16E ergueram-se dali os homens. E olharam sobre as faces de Sodoma. E
Abraão foi indo com eles para os despedir.
17E [avé disse: "Encobriria eu de Abraão o que eu estou fazendo? 18E Abraão
certamente será nação grande e forte, e nele serão abençoadas todas as
nações da terra, "pois o escolhi para que ordene a seus filhos e à sua casa
depois dele, para que guardem o caminho de [avé a fim de praticarem
justiça e direito, para que [avé faça vir sobre Abraão o que falou sobre
ele."
ZOE disse [avé: "O clamor de Sodoma e Gomorra, eis que se multiplicou, e
seu equívoco, eis que é muito pesado. zlDescerei e verei se fizeram desgraça
de acordo a seu clamor, que chega a mim. E, se não, saberei."
z2E os homens se afastaram dali. E caminharam para Sodoma.
129
justiça?" 26E disse [avé: "Se achar em Sodoma 50 justos em meio à cidade,
perdoarei o lugar todo por causa deles".
27E respondeu Abraão e disse: "Eis que me atrevo a falar a Adonai, eu que
sou pó e cinza. 28Talvez faltem aos 50 justos 5. Destruirás por causa de 5 a
cidade toda?" E disse: "Não destruirei, se ali encontrar 45".
29E continuou ainda a falar para ele e disse: "Talvez se encontrem ali 40".
E disse: "Não farei, por causa dos 40".
30E disse: "Não se zangue Adonai e falarei: Talvez se encontrem ali 30". E
disse: "Não farei, se ali achar 30".
31E disse: "Eis que me atrevo a falar a Adonai: Talvez se encontrem ali
20". E disse: "Não destruirei, por causa dos 20".
32E disse: "Não se zangue Adonai e só uma vez mais falo: Talvez se encon-
trem ali 10". E disse: "Não destruirei, por causa dos 10".
33E andou [avé, quando cessara de falar a Abraão. E Abraão retornou a
seu lugar.
V árias assuntos
Neste trecho, agrupam-se vários assuntos. Em todos eles, prevalece a re-
flexão. Neles, não temos, pois, uma nova narração. O que constitui estes versí-
culos são assuntos da narração anterior (18,1-16) ou posterior (cap.19). Ainda
assim, não constituem, a rigor, uma perícope própria com assunto diferenciado.
Comentam, não contam!
Uma parte de clara identificação é a que vai de v.22b até v.JJ. O v.22b
tem marca de título: "e Abraão ainda ficou parado diante da face de [avé".
Trata-se aí de uma introdução, em especial porque caracteriza a situação de
Abraão diante de Deus, a de quem ora, melhor, intercede. O 'diálogo' que se-
gue, nos v.23-32, é, pois, parte da intercessão!
Abraão ora em prol da cidade, devido aos justos que a habitam. A parte
maior do texto se refere à eventualidade de existirem 50 justos; a eles estão referi-
dos 4 versículos, os v.23-26. A seguir, a quantia de texto diminui à medida que a
quantia de justos diminui: 50 (v.23-26), 45 (v.27-28), 40 (v.29), 30 (v.30), 20
(v.31) e 10 (v.32). Tal abreviação de quantia de texto já indica que as pretensões
de impedir a destruição não levam chances.
A este cenário de intercessão precedem duas cenas' de reflexão, a dos
v.17-19 e a dos v.20-2l. Ambas têm uma introdução quase igual: "e Javé disse"
(v.17) e "e disse [avé" (v.20). A primeira autorreflexão divina (v.17 -19) enfoca a
destinação de Abraão. Lembra 12,1-3 e trechos similares em capítulos anterio -
res: a questão é o sentido de Abraão para seu povo, bem como para as nações.
Portanto, estes versículos não devem ser muito antigos, mas hão de pertencer a
quem arquitetou o conjunto das histórias de Abraão. A segunda autorreflexão
130
divina (v.20-21) se refere à investigação a ser feita por [avé, devido ao clamor
que sobe de Sodoma e Gomorra. Esta busca diz respeito aos conteúdos do cap.19,
para onde apontam esses nossos dois versículos.
E, por fim: as duas primeiras frases, isto é o v.22a, concluem remetendo
para o cap.19. Este v.22a se refere à segunda fi-ase do v. 16 ("e olharam sobre as
faces de Sodoma"). O v.33 igualmente tem tarefas de encerramento: o v.JJa reto-
ma v.22b, formando, assim, o quadro em tomo dos v.23 até v.32. O v.JJb retoma
à última fi-ase do v. 16 ("e Abraão foi indo com eles para os despedir"). Assim,
vemos que os v.17-33 estão literariamente bem organizados!
Reflexões pós-exílicas
É difícil situar e datar versículos como estes da segunda parte do cap.18.
Quem os atribui ao javista, como ainda continua a ser feito na atual exegese,
cria dificuldades para a interpretação. Afinal, o problema da dispersão de Israel
entre os povos não é o assunto do 10º século, quando Israel/Judá, enfim, o esta-
do davídico-salomônico, não está sob o domínio de estrangeiros. Pelo contrário,
dominava, principalmente em dias de Davi, vários estados circundantes.
Os povos se tornam o tema em tempos exílicos, quando Israel/Judá
vivia em meio aos impérios mesopotâmicos, em solo egípcio, em meio às nações
vizinhas siro-palestinas, como ocorreu com a família de Noemi do livro de Rute.
Aí, sim, povos e nações passam a ser referências vitais para a sobrevida do povo de
Deus. Aí, sim, emerge a pergunta: qual é nossa função em meio aos povos? E é a
esta situação e a estes tempos que pertence Gênesis 18,16-33. No cap.20, a pers-
pectiva se repete: Abraão e os seus são - ou deveriam ser - intercessores dos
povos junto a Deus ou, como o diria Dêutero-Isaías semelhantemente, "luz das
nações" (Isaías 49,6).
O assunto dos v. 22b-J2 é o da intercessão por cidades e povos estrangei-
ros. É o que temos em Jeremias 29,7. Também em Jonas, em especial em seus
caps.3-4, vê-se o povo assírio capaz de grandes conversões. Afinal, também Amós
1-2; 3,9-11; 9,7 e outros trechos do visionário de Tecoa indicam uma visão positi-
va de povos estrangeiros, cujo mal é inferior ao de Israel. Porém, são os tempos
exílicos e pós-exílicos os que mais exigem uma visão positiva dos estrangeiros
(cap.25!). Afinal, nestes séculos depois do exílio, vive-se como colônia submissa
às cotidianas decisões de imperadores e administradores estrangeiros. A interação
com cidades e impérios se tomou inevitável. Eis o assunto em foco em 18,22b-33.
Reflexões similares às dos v. 17-19 encontramos em outras passagens, às
quais, já acima, tomei a liberdade de atribuí-las, a tempos recentes. Aponto, a
título de exemplo, para 13,14-17 e 12,1-3. Tais formulações de bênçãos não são
nada antigas. Neste contexto, há que lembrar também de 21,22-34 (e no pró-
131
prio cap.20) , onde estamos em tempos pós-exílicos, para os quais é decisivo
conviver com os povos vizinhos nas terras destes; não basta ter os poços de
Beerseba, mas também é decisivo poder viver em terras filistéias, corno estran-
geiro!
Não convém, pois, atribuir datas antigas a nossas passagens. Antes importa
ver-se com elas em meio ao pós-exílio, em que um dos temas relevantes é, justa-
mente, a correlação de descendentes de Sara e Abraão com os de outros povos.
Sim, o ternário da justiça de Abraão já estava presente em tempos antigos, nas
primeiras formulações das estórias de Ló e Abraão. Este assunto está implícito no
cap.U. Encontra-se em 15,6. Aqui, nestes nossos versículos, o mesmo temário
obtém sua continuação, mas, agora, já no âmbito novo das correlações, nas quais
Abraão e os seus estão dispersos e enfraquecidos entre os povos. Ainda assim, sua
tarefa maior na história dos povos é constituir-se fonte de bênção e justiça.
132
e israelitas, mas, em parte, também porque as cidades se haviam cornplexificado,
já não sendo somente sedes militares, mas também grandes centros de convi-
vência e cultura, em especial fora de Israel. - Outra novidade que havia que
considerar é que cidades se iam tornando, no pós-exílio, refúgio de judaítas
migrantes e foragidos de suas terras palestinenses. Logo, fazia-se necessário redi-
mensionar a função das cidades. - E, não por último, um profeta como Isaías
começara a mostrar, já no 8° século, que cidades, mesmo as de Judá, eram locais
de contradições, com gente apoiadora de profetas, ainda que sob a forma de
minorias (veja Isaías 6-9), e de sabedoria, em meio a outros senhoriais como
dantes. - Tais novas ênfases requeriam novas reflexões. Temo-las, em parte, em
nossos versículos.
Mas, agora, antes de prosseguir e para poder interpretar o conjunto do
diálogo teológico e da intercessão de Abraão a [avé, devo dar foco ao sentido do
termo "justos" (sadiql"justo", 8 vezes no texto, sedaqahl"justiça", 2 vezes, além
de estar várias vezes implícito). Deste porto singra nossa história e para lá retor-
na. Para interpretá-la é preciso dar sentido ao ser "justo". Aí importa que não se
transforme "justo"l"justiça" em um padrão, uma medida. Pois estes conceitos
igualmente não expressam ações-padrão, princípios éticos. De fato, "justo"/sa-
diq não é uma padronização de ações, mas o respeito que se tem às contingênci-
as e necessidades de cada qual. Neste sentido, é "justo" quem atua em prol da
comunidade, do conjunto social e das pessoas em seu meio. E é por isso que
estes tais "justos" são tão decisivos. São em prol da comunidade, da cidade em
que vivem. Promovem o bem comum! Nem que só existam dez deles, uma cida-
de toda ficará preservada! Justo não se é, pois, para si ou só para Deus, em
sentido religioso; justo se é em prol da "justiça", das correlações sociais e huma-
nas que dão vida a todo um grupo. Bastam dez deles, e uma cidade corrupta, nas
proporções de Sodoma, estará salva. Sim, na Bíblia, justiça ou justos são ex-
periências, acima de tudo, comunitárias. Não convém querer individualizar o
que é bem de toda gente!
Haverá, pois, perdão (v.24). No v.26, esta é a expressa tese: "perdoarei ao
lugar todo". Este perdão desativa a ação destruidora; veja que o verbo "des-
truir", aliás, "não destruir", se repete com marcada frequência. O pensamento é,
por assim dizer, coletivo, não personalizado como em Ezequiel 18. Culpa e casti-
go não mantêm aqui uma correlação imediata e pessoal. Prevalece a necessida-
de do coletivo e a capacidade de minorias. Estas podem gerar "perdão", regene-
rar um conjunto social corrupto ao extremo: "perdoarei o lugar todo, por causa
deles"! O perdão é tão milagroso porque não conhece a matemática, só a exube-
rância! No hebraico, tal perdão se relaciona a "carregar". Poucos são capazes de
"carregar" a "muitos", a "todos". Menciono aqui tanto "muitos" quanto "todos",
pois, no hebraico, os dois termos cabem na mesma palavra (veja Isaías 53,11 !).
133
Mas por que a intercessão cessa aos dez? Cessa, pois, antes de alcançar o
número da família de Ló, que, no máximo, conforma seis pessoas: Ló e a esposa,
duas filhas e dois genros, que, no decorrer do cap.19, são reduzidos à metade, a
três. Por que não se chega à pessoa individual, como é a tendência em Ezequiel
18? Certamente, não há uma resposta única à questão, não por último também
porque o cap.19 precede, temporalmente, a 18,17 -33. Este comenta aquele. Por
isso, nem mesmo pode referir-se a quantia de "justos" a um número menor do
que o de dez pessoas. Não me parece que nosso trecho, no cap. IS, esteja cons-
trangido a parar em 10 pessoas para estar de acordo ao cap.19. Para em dez,
porque esta é a grandeza social elementar em uma sociedade tribal. Esta é a
condição elementar da vida! Vida é convívio de algo como dez pessoas, como
uma família, a entidade social e afetiva básica para a vida. Onde não há tal uni-
dade, faltam horizontes. E é isso que irá delinear o cap.19: aquele agrupamento
social de Ló já não tem suficientes critérios para realmente viver em caminhos de
justiça.
Perdão e justiça não são, pois, conceitos ideais, mas como que 'entidades'
vitais e sociais. O que importa é viver em seu âmbito, pois fora deles não há vida.
Fora deles a morte avança.
Justos não são destruídos com injustos. Este é o jeito de Deus entre os
povos. Esta é sua justiça internacional: ele é defensor dos justos na diáspora, em
meio aos injustos. Veja também cap.25!
134
multidão de nações" (17,4) é hermeneuta da história ampla dos povos (veja
também Gênesis 25).
Em Abraão, estão as bênçãos (o que vem sendo sublinhado no próprio
cabeçalho da coleção: veja 12,1-3). A bênção pareceria ser a de estado, como às
vezes se diz em relação a 12,1-3. Ora, não me parece que "nação/goy grande e
forte" tenha que referir-se a uma nação-estado (v.l8). Em referência estão os
israelitas e judaítas nas terras de Israel e Judá e também nas diásporas mundo
afora. A tarefa imanente à sua existência consiste em serem bênção para "todas
as nações da terra". Mas, atenção, esta "bênção" tem "justiça e direito" como
parâmetro (v.19). Deus "conheceu"l"escolheu" Abraão que, neste nosso v.l9,
são expressamente "seus filhos e sua casa depois dele", a descendência abraâmi-
ca. Esta descendência abraâmica é guardiã do "caminho de [avé". Neste caso,
"caminho" há de ter o sentido ético, quer dizer as práticas da "nação grande e
forte", mas também sua trajetória histórica com Javé. Aliás, até me parece que, no
presente v.19, "caminho de [avé" aponta acima de tudo para a identidade do
caminho através dos caminhos que [avé fez, faz e fará com seu povo/nação. De
todo modo, este caminho, este trajeto de Judá e Israel com seu Deus tem a meta
de "fazer justiça e direito". Afinal, este é o conteúdo da "bênção". Estar nela é
movimentar-se em "justiça e direito", a meta da descendência abraâmica é ser
"justa", como o expressam incansavelmente os v.23-32. A "justiça", como já assi-
nalávamos acima, são as ações que correspondem às necessidades da comunidade
(veja Juízes 5). Padrão da "justiça"/sedaqah é a necessidade das pessoas em comu-
nidade. E o "direito"/mixpatrefere-se àquilo que diz respeito a alguém, por exem-
plo, o pão para saciar a fome. Por exemplo, ao colher as espigas com seus discípu-
los, a fim de lhes saciar a fome, Jesus propõe um ato de "direito" (veja Marcos 2,23-
28). Nas terras de Abraão, valem tais ações de "justiça e direito".
E, assim, "o clamol' (v.20-21) se estabelece como valor. Sim, "clamor" só
tem valor quando há "justiça e direito" em jogo. Pois, de outro modo, "clamor"
teria uma conotação de 'lamúria', de 'choradeira'. Existe, mas nada implica.
Poderosos sempre agiram assim: alcançaram transformar o direito ao clamor em
uma licença à choradeira. Logo, a dor acaba em filas de dores sem rebelião!
Aqui 'o clamor" conduz a história. Nela, [avé está inserido. E esta é a forma
aprimorada de Javé "descer" à terra: ver "a desgraça" contra pobres, mulheres e
homens. Isso é profecia!
Concluindo
Estamos transitando entre uma cena (18,1-15) e outra (cap.l9). Estes são
os dois marcos referenciais. Aliás, nos caps.21-22, encontraremos um jeito simi-
lar ao dos caps.18-19: em meio a suas estórias temos um texto interposto, como
135
o nosso de 18,16-33; refiro-me a 21,22-34. Este e o nosso são trechos interpos-
tos.
Várias cenas sequenciam, em 18,16-33. Duas são palavras de [avé (v.l7-
19 e v.20-22), interdependentes, mas nem tanto. E a terceira, oração-diálogo
entre Abraão e [avé (v.22-33), tem conexões, mas pouco marcantes com as
anteriores. A sequencialidade narrativa deixa a desejar, se bem que isso se en-
tenda, considerando que, nesta segunda parte do cap.18, prevalece a argumen-
tação por sobre a narração.
Ainda assim, a estruturação está bem posta: o v.16 já abre o cenário para
nosso trecho (Ue olharam sobre as faces de Sodoma"). Seguem-lhe duas palavras
de [avé, duas autorreflexões divinas: v.17 -19 e v.20-21, simultaneamente autô-
nomas e correlacionadas. No final, destas duas cenas justapostas, o v.22 simulta-
neamente encerra o anterior (v.22a) e reabre para um novo trecho (v.22b).
Este, iniciado neste v.22b e encerrado em v,33, engloba a parte principal de
nossa unidade: a oração-diálogo entre Abraão e Javé (v.23-32). Portanto, a se-
quência do conjunto dos v.(16) 17-33 é evidente.
Não há grande facilidade de fixar seu tempo. É que ele se quer arcaico, mas
não o é em terminologia e ternário. Conhece a profecia e, em especial, sua última
etapa: aquela em que o mundo dos povos se toma mais e mais positivo (pense por
exemplo em Jonas). É nele que estão localizadas as minorias abraâmicas no poder de
resgatar povos e cidades, face à suas ruínas.
Nessa tarefa de resgatador, Abraão também é novamente profeta (veja
20,7), pois não só se trata de salvar os justos, mas também de manter a cidade. E
esta se salva e é resgatada por dez justos (por um grupo, uma comunidade, uma
'sinagoga' dos justos). São sal em meio à massa, estes justos. Podem carregar o
conjunto. Lógico, esta tarefa de intercessor do profeta antigo (Amós 7-9) passa,
agora, à tarefa do sábio argumentador teológico, que percebe a função dos justos
em meio aos injustos. A profecia já passou, mas se renova. Afinal, Abraão-pro-
feta é aquele que sabe dos segredos de Deus, de suas decisões mais íntimas, mas
estas, agora, devem estar em função de todos os povos, da justiça de Deus. Dian-
te dos povos e em meio a eles, os de Abraão conhecem os caminhos de Deus e
promovem a justiça, profética e sapiencial. Estamos em pleno pós-exílio, mas
não em Jerusalém, e, sim, em Judá, por onde também atuaram os deuteronomis-
tas e seus sucessores.
Abraão e os seus têm a função de manter o mundo em justiça.
136
Uma escolha em meio a ruínas,
e ainda assim há esperança
Gênesis 19,1~38
137
Ora, esta introdução, de súbito, nos está levando ao âmago do ternário do
cap.19. Ainda é cedo continuar por este trilho, afinal, nem mesmo apresenta-
mos a tradução. Vamos, pois, passo a passo, à nossa tarefa de caminhar com
Gênesis 19 de tal forma que seus mui antigos conteúdos sejam parceiros de ca-
minho para nossos dias. Comecemos por uma tradução, que tende manter a
proximidade ao original hebraico.
'E os dois mensageiros entraram em Sodoma, na tarde. E Ló estava senta-
do no portão de Sodoma. E Ló viu. E levantou-se para encontrá-los. E
prostrou o rosto por terra. 2E disse: "Eis, meus senhores, entrai à casa de
vosso servo. E pernoitai. E lavai vossos pés. E acordareis cedo. E ireis por
vosso caminho." E disseram: "Não, pois na praça dormiremos". 3E insistiu
com eles muito. E dirigiram-se a ele. E entraram em sua casa. E preparou-
lhes uma refeição. E assou pães ázimos. E comeram.
"Ainda não se haviam deitado, quando os homens da cidade - os homens
de Sodoma - cercaram a casa, desde o jovem até o velho, todo o povo,
sem exceção. SE chamaram Ló e lhe disseram: "Onde [estão] os homens
que vieram a ti esta noite? Faze-os sair a nós! E os conheceremos!" 6E Ló
saiu na direção deles para a entrada da porta. E fechou a porta atrás de si.
7E disse: "Não, meus irmãos, praticais o mal. SEis! Tenho duas filhas que
não conheceram homem. Farei-as sair a vós. E fareis a elas como [for]
adequado a vossos olhos. Contudo, a estes homens não façais nada. Pois,
afinal, estão sob a sombra de meu vigamento." 9E disseram: "Sai daí!" E
disseram: "Um que veio para ser estrangeiro certamente julgará agora?
Faremos mal a ti mais que a eles." E muito insistiram com o homem, com
Ló. E aproximaram-se para arrombar a porta. !OE os homens estenderam
suas mãos. E fizeram entrar Ló a eles, à casa. E a porta fecharam. 11E aos
homens, que [estavam] na porta da casa, infligiram com a cegueira do
menor ao maior. E se cansaram de encontrar a entrada da porta.
12E disseram os homens a Ló: "Quem ainda [está] aqui? Genro e teus
filhos e tuas filhas e todos que [são] teus, na cidade? Faze sair do lugar!
DEis, nós [somos] destruidores deste lugar. Eis, é grande seu grito diante
da face de ]avé. E enviou-nos [avé para destruí-lo." 14E Ló saiu e falou a
seus genros, os que estavam tomando suas filhas. E disse: "Levantai-vos.
Saí deste lugar. Eis, ]avé [está] destruindo a cidade." E era como alguém
que graceja aos olhos de seus genros. - 15E, quando a alvorada subia, insis-
tiram os mensageiros junto a Ló para dizer: "Levanta-te e toma tua mu-
lher e tuas duas filhas, as que forem encontradas, para que não pereças no
castigo da cidade." 16E hesitou. E os homens [o] puxaram pela sua mão e
pela mão de sua mulher, e pela mão de suas duas filhas, na compaixão de
138
] avé sobre ele. E o fizeram sair. E o deixaram de fora em relação à cidade.
17E aconteceu, quando os fizera sair - a eles - para fora, disse: "Escapa para
tua vida! Não olhes atrás de ti! E não permaneças em toda a planície! À
montanha escapa para que não pereças." 18E disse-lhes Ló: "Não, Adonay
(= meu Senhor)! 19Eis que, teu servo encontrou graça em teus olhos. E
tornaste grande tua solidariedade, que realizaste comigo, para fazer viver
minha vida. E eu não poderei escapar à montanha, para que não se me
apegue o mal e morra. 2°Eis aí esta cidade, próxima a fim de fugir para lá, e
ela [é] pequena. Escaparei para lá." 21E disse para ele: "Eis que levantei teu
rosto, em especial para este assunto, para que não destrua a cidade da qual
falaste. 22Apressa-te, escapa para lá! Eis, não poderei fazer algo [= nada],
até teu entrar lá." Por isso, chamou-se o nome da cidade Zoar.
23
0 sol saiu sobre a terra. E Ló chegou a Zoar. 24E [avé fez chover sobre
Sodoma e sobre Gomorra enxofre e fogo, de [avé, dos céus. 25E destruiu
estas cidades e toda a planície e todos os governantes das cidades e o
broto do solo. 26E olhou sua mulher atrás dele. E tornou-se coluna de sal.
- 27E Abraão madrugou na manhã em direção ao lugar onde estivera pa-
rado diante da face de ]avé. 28E olhou para baixo sobre a face de Sodoma
e Gomorra e sobre toda a face da terra da planície. E viu: e, eis, subia
fumaça da terra, como a fumaça do forno.
29E aconteceu ao destruir Deus as cidades da planície: lembrou-se Deus
de Abraão. E deixou ir Ló do meio da destruição ao destruir as cidades,
nas quais Ló morara. 30E Ló subiu de Zoar. E morou na montanha, e suas
duas filhas com ele. Afinal, temera morar em Zoar. E morou na caverna,
ele e suas duas filhas. 31E disse a primogênita à menor: "Nosso pai está
velho. E homem não há na terra para vir sobre nós conforme o costume
de toda a terra. 32Anda. Demos de beber vinho a nosso pai. E nos deitare-
mos com ele. E façamos viver de nosso pai descendência." DE deram de
beber vinho a seu pai naquela noite. E veio a primogênita e se deitou com
seu pai. E [ele] não [a] percebeu em seu deitar-se e em seu levantar-se.
34E aconteceu no dia seguinte: e disse a primogênita à menor: "Eis, deitei-
me ontem com meu pai. Dar-lhe-ernos de beber vinho, também nesta
noite. E entra, deita-te com ele. E façamos viver de nosso pai descendên-
cia." 35E deram de beber vinho também naquela noite ao seu pai. E levan-
tou-se a menor. E deitou-se com ele. E [ele] não [a] percebeu em seu
deitar-se e em seu levantar-se. 36E as duas filhas de Ló ficaram grávidas de
seu pai. 37E a primogênita deu à luz a um filho e chamou seu nome Moabe.
Ele [é] o pai de Moabe até hoje. 38E a menor, também ela, deu à luz um
filho. E chamou seu nome de Ben-Ami. Ele [é] o pai dos filhos de Amon
até hoje.
139
Uma estória bem contada
140
Feita esta opção em prol da unidade do capítulo, podemos passar a olhar
de modo mais acurado para as subunidades. Atentemos para a variedade de enfo-
ques temáticos e, simultaneamente, para as conexões que tornam o cap.19 um
mesmo conjunto.
Os v.1-J são um conjunto. Seu v.l assume um papel especial em relação
ao todo do capítulo. Além disso, os v.1-3 correm paralelos a 18,1-8, se bem que
lá o temário esteja bem mais elaborado que em nosso cap.19. A linguagem chega
a ser idêntica a dos primeiros versículos do cap.18. Há várias diferenças entre o
começo do cap.19 em relação ao cap.18. Lá a atenção estava voltada ao ban-
quete, aqui ao pernoite na casa de Lá, um convite que inicialmente é negado
pelos "mensageiros".
Os v.4-11 conformam nova subunidade. Trata-se de um trecho decisivo
para a narração bem como um conjunto de frases bem conectadas. Seu começo,
no vA, reaparece no final, no v.11: no vA, começa-se a ameaçar a casa de Lá, no
v.11 cessa o cerco. Quem predomina nestes versículos são "os homens da cida-
de ': enquanto que na próxima subunidade, a partir do v.12, serão os "homens"
- "mensageiros" chegados à casa de Ló. - Vários pequenos conjuntos se podem
perceber. Nos v.4-5, "os homens da cidade" cercam por ações (vA) e exigem por
palavras (v.S) a saída dos "homens" em visita a Ló, Nos v.6-8, Lá faz (v.6) e diz
(v.7-8) sua contraproposta. Sai de sua casa para falar com "os homens da cida-
de" (v.6) e se compromete a fazer sair suas duas filhas (v.7-8). Nega a entrega
dos "homens" que o visitam. Chama a atenção, nesta subunidade, que se fala de
"homens" - e não de mensageiros (v.I] - em visita a Lá. No v.9, há uma inversão
na sequência: precedem palavras, talvez até sejam gritos de uns e de outros dos
sodomitas, considerando que temos duas introduções com "disseram", no começo
do v.9. Na segunda parte deste v.9, o assunto são as ações de "os homens da cida-
de", que se estão dispondo a arrombar a casa de Lá. Os v. 10-11 já não têm fala, só
ações! No começo, dos "homens" visitantes (v.10-U), no final do v.l I, dos "ho-
mens da cidade". Os "homens" visitantes protegem Ló, e os "homens da cidade"
que, por fim, cegos, se cansam; sua ação se volta contra eles! - Esta subunidade
dos vA-l1 está sabiamente construída. Além disso, seu linguajar se distancia da-
quele dos v.I-3. Enquanto aquela subunidade culminara em "e [os mensageiros]
comeram", esta chega a seu alvo em "[os homens] se cansaram". Percebe-se, pois,
que tanto os detalhes quanto os conjuntos maiores estão bem correlacionados!
Sugiro que também se tome os v. 12-26+ 27-28 como uma só subunidade,
semelhante ao conjunto precedente (vA-l1), mas bem mais complexo que aquele.
O que permite juntar estes versículos é que neles prevalecem, em contraponto
aos vA-l1, as ações, e, em especial, as palavras são provenientes dos "homens">
"mensageiros" que chegaram à casa de Ló. Percebe-se três momentos diferentes
na subunidade, pois três vezes reinicia a intervenção dos "homens" - "mensa-
141
geiros'': v. 12-14, v.15-16e 17.17-26, adicionando-se ainda os v. 27-28. A terceira
parte (v.l7 -26[ + 27-28]) fez-se mais extensa, também porque nela, além de se
concluir o cenário da subunidade, incorporam-se informações que ainda se que-
ria mencionar. Neste sentido, justamente também se deve ver incorporados os
v.27-28, palavras sobre Abraão, um assunto que provém do cap.18.
Agora, ao inverso dos vA-9( + 10-11), nos v. 12-14 o assunto é posto pelos
"h omens.
" D a casa to dos devem sair. (12)
v. ,se bem que os tais . "h omens," aqui,.
não parecem saber quem está com Ló, pois, por exemplo, chegam a mencionar
"genro" - no singular! - e mencionam "filhos" de Ló. Adequada é a indicação
da tarefa dos "homens": destruir a cidade (v.l3). Ló reage, no v.14, com a atitu-
de adequada, tentando convencer a seus genros. Em vão!
Também nos v. 15-16 o assunto é posto pelos "homens", aqui chamados
de "mensageiros" (veja v.1). Estes novos versículos sucedem na "alvorada", en-
quanto os versículos anteriores, v.12-14, ainda parecem situar-se na noite ante-
rior (veja v-l l). Típico para estes v.15-16 é o verbo "insistir". Os "mensageiros"
insistem com palavras: "levanta-te e toma" (v.15). Com ações puxam Ló para
fora! Este e os seus vivem graças aos mensageiros que os puxam! Ló só saiu
porque foi puxado! Esta é a posição dos v.15-16. De acordo com os versículos
anteriores, v.12-14, pareceria que viria a sair por sua conta.
O terceiro trecho de nossa subunidade (v.17-26+ 27-28) assume função
especial. Afinal, é neles que Ló, por fim, se revela, já sem entomos e poréns. De
começo, as palavras, as posições de um e de outro lado são decisivas (v.17-22a);
depois tudo são açôes divinas (v.22b-28). Contrapostas estão a opinião de [avé-
mensageiros contra a de Ló. Aliás, desde que Ló teve que ser puxado para fora
de Sodoma, já não resta dúvidas quanto à sua posição. Seu caminho não é o
indicado pelos mensageiros. [avé-mensageiros querem que Ló vá à montanha
(v.17). Mas, nos v.18-20, Ló escolhe outra direção: "não, Adonay"! Não quer a
montanha, mas uma pequena cidade, Zoar, na planície. Nega-se, pois, à orienta-
ção de [avé-mensageiros' E, nos v.21-22, devido à pressa da hora, javé cede:
"escapa para lá", para Zoar. É, pois, a premência de tempo que leva Ló e os seus
a um local distinto daquele indicado pelos mensageiros: o alvo eram as monta-
nhas, mas ele se direciona a Zoar, algo como uma pequena Sodoma. [Sobre este
desencontro entre Ló e os mensageiros- Javé é que se baseia a estória das filhas
(v.29-38).] Os v.23-26 enfocam a destruição por enxofre e fogo, ao nascer do
sol. Na sequência do v.25, que indica a abrangência do aniquilamento, situa-se
a transformação da mulher de Ló (v.26). Sob este aspecto, o v.26 deixa de ter
jeito de adendo posterior. É, pelo contrário, parte do v.25. Outra mão redacional
temos nos v.27-28, que indicam Abraão como primeira testemunha sobre a ruí-
na de Sodoma, pois de lá "subia fumaça".
142
Têm havido dúvidas a respeito da pertença dos v.29~J8 ao restante da
estória do cap.19. Afinal, a própria linguagem destes versículos difere. Em ter-
mos de tradição, seu conteúdo difere das ênfases do cap.19. Em v.29-38, temos
anotações genealógicas, sobre a história das parentelas. Em sua história de ori-
gem, este conjunto de versículos finais pode ter sua trajetória própria. Mas, em
seu atual contexto literário, estes v.29-38 são essencialmente necessários para a
estória do cap.19, pois seu assunto obviamente não está concluído no v.26 ou
nos v.27-28. Afinal, [avé-mensageiros haviam destinado a montanha para Ló
(v.l 7), não Zoar. Sim, do grupo de Ló soubemos, até os v.27-28, o destino dos
genros e da esposa, mas, e as filhas, afinal, as primeiras a serem apresentadas no
v.8? Por isso, é necessário considerar os v.29-38 como parte do cap.19! E isso
inclusive se percebe no v.29 e no começo do v.30. Ambos são parte da transição
para os novos conteúdos a partir da segunda parte do v.30. Dos v.31 até v.38 a
sequência de conteúdos é simples e clara. A palavra é da primogênita (v.31 e
v.34); ela é quem planeja as relações sexuais com seu pai, em favor dela e de sua
irmã, o que transcorre sem maiores variações de linguagem, no que estes versí-
culos se distinguem dos anteriores. Linguagem igualmente repetitiva temos nos
versículos finais, que se referem ao nascimento e à concessão de nomes aos
bebês (v.36-38).
À modo de conclusão, poder-se-a destacar que as diversas partes deste
capítulo se encaixam muito bem. Os v.l-3 abrem a cena e, ao fazê-lo, direcio-
nam nosso cap.19 para o cap.18, o que de resto também se dá pela referência a
Abraão em v.27-29. Os vA-ll enfocam o problema, a ameaça dos homens em
visita à casa de Ló. O conjunto maior de versículos - v.l2-28 - trata do resgate
de Ló. O relativo insucesso deste prepara as cenas finais entre as duas filhas e
seu pai na caverna. Eis, uma narração bem sequenciada.
Origens e tradições
143
Ainda que o cap.19 se situe neste ambiente, sua linguagem é peculiar.
Afinal, a cidade à qual se refere não existiu, ao menos não nos tempos históricos
conhecidos. Esta cidade junto com a de Gomorra e outras (veja Oseias 11,8)
tipificam extraordinária maldade, ações de plena desumanização, contudo sem
que tenham existido em tempos memoráveis e históricos. São cidades típicas,
paradigmáticas. Sodoma é, pois, cidade-exemplo do mal contra sua gente e con-
tra visitantes. Nela, não vale uma das leis básicas, a da proteção de peregrinos e
hospedes.
Entendo ser provável que Sodoma e Gomorra se situavam, para o imagi-
nário de nosso cap.19, onde em tempos históricos e até hoje está o Mar Morto,
onde agora se cheira enxofre (19,24), se vê estelas de sal (19,26), onde, enfim,
acabou a vida, devido aos sais e à falta de chuva. Sim, aí - junto às águas do mar-
tudo é morto! Este é o lugar por assim dizer 'vivencial' do cap.19: através dele se
'explica' porque aquelas águas se tomaram antivida. Junto às águas, a vida se foi!
Um tal fenômeno raro da natureza abriga a memória. O contexto humano e social
do cap.19 é deveras histórico, não assim o local, a cidade, onde a narração está
ancorada.
Logo, o cap.19 pertence a um tipo de texto que conhecemos muito bem de
Gênesis 1-11. Em suas cenas, sediadas na origem dos tempos, e, em especial, na
primordialidade das experiências humanas, nosso cap.19 tem seu paradigma. Típico
de Gênesis 1-11 é que suas narrações se referem a experiências fundantes de nossa
vida, contudo, sem que estas queiram ser propriamente históricas, já que têm sua
existência sem que tenham que ter data. É o que lemos em Gênesis 1,1-2,4a ou em
2,4b-3,24. A 'data' de tais trechos é nossa vida, se bem que as narrações se situem
fora de datas históricas! Em textos como os de Gênesis 1-11, a vida está presente em
toda sua intensidade, se bem que não se possa querer interpretá-la somente através
de sua datação ou localização.
Paralelo especial a nosso cap.19 está em Gênesis 6-9. A chuva de enxofre
e fogo, em Sodoma, é similar a das águas, no dilúvio primordial. Há ainda outras
semelhanças: as razões que levam à ruína são tão radicais que não há como
continuar a manter a humanidade: em 6,1-13, os próprios "filhos de Deus" (ou
deuses) geram valentes e gigantes com "as filhas dos homens", dando formas
gigantes ao mal; em 19,5, "os homens de Sodorna'' querem manter relações se-
xuais com quem chegara de visita à casa de Ló, no caso, "mensageiros" de Deus!
Entendo que, nos dois textos, em Gênesis 6-9 e em 19, pretende-se indicar que
a desumanidade e a violência alcançaram um grau de tal exagero que já não há
como remediar. Há mais outros aspectos, nos quais Gênesis 6-9 e 19 se tocam.
Água ou fogo, forças que superam condições humanas, promovem uma destrui-
ção arrasadora, de dimensões radicais. Um pequeno grupo de pessoas é resgata-
do, lá, Noé e os seus, aqui, Ló e alguns; só um pequeno resto tem chance de
144
futuro. Estranha que nas cenas finais, em Gênesis 6-9 e em 19, tanto Noé e seus
filhos (Gênesis 9,20-29) quanto Ló e suas filhas (Gênesis 19,29-38) seguem ca-
minhos inusitados, nas cavernas e no vinho. Estas e outras semelhanças nos
indicam que Gênesis 19 é parte de uma linguagem similar a de Gênesis 1-11,
uma linguagem que busca expressar dilemas profundos da alma humana. Para os
antigos tais dilemas e mistérios da vida e, em particular, do mal têm a ver com a
mescla de violência e sexualidade, de desconhecimento de Deus e de cegueira.
Nas imediações desta comparação de nosso cap.l9 com Gênesis 6-9, cabe
mais uma história, se bem que esta se encontre em relato histórico. Refiro-me a
juízes 19-21: um levita pernoita em Gíbeá de Benjamim e os homens da cidade
estupram sua mulher. As semelhanças são várias. Menciono a devastadora derrota
militar que, nos caps.20-21, foi infligida aos benjaminitas por se negarem a extra-
ditar os homens de Gibeá. Similar a Gênesis 19 é a horda de homens cercando a
casa de hospedagem a reivindicar a entrega do levita. Estas e outras semelhanças
indicam que estamos no mesmo campo traditivo de nosso cap.19. Contudo, tam-
bém não convém desconhecer as diferenças: a mim me chamou a atenção que
Juízes 19-21 está ambientado na história. Refere-se à conhecida cidade de Gibeá
e tem um roteiro composto por episódios históricos. E, nisso, Juízes 19-21 e Gêne-
sis 19 diferem, principalmente na solução, extremamente dramática em Juízes 20-
21. Afinal, Juízes 19-21 não é tanto um desvendamento da maldade humana quanto
uma severa crítica à monarquia, tema dos livros de Samuel, que se encontram na
sequência de Juízes 19-21. Esta não é uma narrativa sobre as origens humanas,
mas sobre as origens de uma das instituições humanas, o reinado.
O local que Gênesis 19 ocupa na história traditiva de seu ternário lhe con-
fere suas particularidades. Como Sodoma não é uma cidade histórica, pode-se
exercitar junto a ela seus desvios éticos de forma mais radical.
E por que Sodoma (e Gomorra)? Haveria razões históricas que as expli-
cassem? Neste particular, não podemos passar de hipóteses. De todo modo cha-
ma a atenção que no vale do Jordão temos muitas ruínas de cidades e civiliza-
ções bem anteriores à história de Israel, que inicia na Terra de Israel por volta de
1250 a.C. Tais ruínas antigas estão ao sul do Mar Morto, em Zoar (citada em
nosso cap.19; veja v.22-23.30), a oeste, por exemplo na Arad pré-israelita. En-
contram-se a norte do Mar Morto, em Jericó, uma cidade de alguns milhares de
anos de história pré-israelita. E, no vale do Rio Jordão, seguem vários outros
tells de séculos anteriores à historia de Israel. No lado leste do rio, temos, em
atual território da Jordânia, vários teflsde tempos anteriores a Israel. Logo ao sul
do Mar da Galiléia está a antiga Bete-Seã, e, ainda mais ao norte, o sensacional
assentamento na cidade de Hazor, um magnífico te!! pré-israelita. Ou seja, o
valê do Rio Jordão foi uma área abundantemente habitada em tempos anterio-
res ao período do Ferro I (isto é, antes de 1250 a.C}, Tenho a impressão de que
145
as estórias sobre Jericó e sobre Sodoma podem ser entendidas como estórias
locais (etiologias) que tentam explicar fenômenos presentes através de alusões a
eventos históricos longínquos. Mas, tais narrações - como as de Gênesis 19 (so-
bre Sodoma) ou de Josué 2 (sobre Jericó) - não querem ser históricas. Antes são
memoriais e paradigmáticas. Explicam o que se vê - no caso o estranho fenôme-
no do Mar Morto ou as ruínas de Jericó - a partir de estórias típicas, primordiais.
Eis uma hipótese!
Estas reflexões nos ajudam a entender porque não deveríamos querer re-
correr a argumentações historizantes para compreender uma narração como a
de Gênesis 19. Antes, teremos que seguir por um caminho da argumentação
típica. E este dado típico vamos encontrar na adversidade que a história de
Israel gerou, em especial na sua profecia, contra os centros de poder urbano,
contra os 'covis de salteadores'. Neste sentido, Gênesis 19 narra um episódio
mui remoto, mas com um perfil típico da vida social nos tempos do Israel. De
quando é esta nossa história?
146
estórias. Tais motivos comuns entre os trechos indicam tradições comuns em
torno deste parâmetro ético decisivo, como é o da mística da hospitalidade.
Aqui, hospitalidade é foco. Em 18,1-8, o é ainda mais; aí a perícope chega
a ser hospitaleira. Este assunto retorna em outros textos. Um exemplo está, como
já indiquei, em juízes 19,15-21. Outros se repetem pela Bíblia. Logo, a hospita-
lidade de Ló (v.1-3), ainda que não seja descrita tão efusivamente como em
18,1-6, coloca-o entre os que seguem as diretrizes/leis de ]avé. Aí está seu lado
justo. O outro irá aflorar nos versículos que seguem ao v.4. E é aí, nos v.4-11, e
depois, nos v.12-14+ 15-16+ 17-26, que o Ló de Sodoma, e não o justo hospe-
deiro, passo a passo, vai saindo de seu casulo.
Enfim, em v.4-11 e v.12-26 estamos em ternário inovador. Ele é, ao meu ver,
também o mais antigo. Representa aqueles conteúdos de elaboração primeira. Os
exegetas adeptos da crítica literária das fontes designam seu autor como o javista,
tido, por muitos, do 10° século a.c. Estes versículos passarão a ser nosso interesse
maior ao enfocar, agora, os conteúdos.
147
enfim, está próximo ao local onde estaria seu futuro: a montanha (v.17,30!). O
problema é que, na montanha, se mete em caverna! Para os autores, caverna é
lugar sem saída. Lá, Ló fica sem palavras na boca, com vinho a entupi-lo.
Para as filhas, em especial a mais velha, a vida naquela caverna era sem
saída: a velhice do pai não dava esperança, e homens não viriam interessar-se
por elas, escondidas em caverna (v.31). Embriagando o pai, havia como "deitar-
se com ele" para "fazer viver descendência" (v,32 e 34). O vinho, dado ao pai,
fazia com que ele não tomasse conhecimento do que se passava (v,33). Assim,
na bebida, Ló sai de cena; seus últimos atos não lhe são conhecidos (v.35-36).
Há aí um impactante jogo de sentidos: Ló não conhece ao conhecer! Ora, o
verbo "conhecer" seguidamente expressa, no hebraico, a relação sexual (Gêne-
sis 4,1). Aqui, nos v,33,35, Ló não 'conhece' (= percebe) ao 'conhecer' (manter
relações sexuais). Desumaniza-se!
Estas ações humanas das filhas - hoje talvez se dissesse: deveras humanas -
em favor da sobrevivência são levadas a bom termo. Afinal, o plano dá certo!
(Confira Tamar em Gênesis 38.) Nascem-lhes dois filhos, origem de dois povos, no
outro lado do Mar Morto. Nos nomes dos filhos não se expressa crítica às mães.
Aliás, Ben-Ami é antes um nome plenamente favorável aos amonitas, pois seu
sentido é "Filho de Meu Povo". Enfim, Ló ter-se-ia esvaído na caverna. Se sua
vida não se acaba no vazio, então isso se deve às suas filhas.
Portanto, nossa estória termina pela mão das filhas! Penso que a isso pre-
cisa ser dado destaque. Afinal, elas entram em nossa narrativa, inicialmente,
pela mão de seu pai: oferecia-as aos homens de Sodoma em lugar dos homens
em visita a ele (v.b): "fareis a elas como for adequado a vossos olhos". Mas,
enfim, os homens de Sodoma não as quiseram. Portanto, sem palavras, as filhas
entram em cena por palavras do pai que as oferece: e o pai, em silêncio, sai de
cena pela mão das filhas que o usam. Nestes termos, os v. 29-38 já estão prepara-
dos a partir do v.8!
As filhas reapareceram nos v.12-14. Ló recebera a tarefa de retirar quem
era de suas relações. Investe em seus genros. É, Ló é assim: busca solução em
quem não lhe dá a mínima. E, eis, seus genros o ridicularizam (v.14). São fiéis
aos homens de Sodoma, não às filhas.
E, com Ló, as filhas são levadas para fora da cidade pelos mensageiros, nos
v.15-16. À semelhança do pai, parece que as filhas não se decidem pelos mensa-
geiros. São estes que se decidem por elas. Ou melhor: é "a mão", ou "a compai-
xão de [avé", que resgata a Ló e aos seus (v.16, veja v.18). Aqui as filhas não
diferem de Ló! Sodoma lhes gruda nos pés. Imobiliza aquela família. Por isso,
não creio que se devesse heroizar a ação das filhas na caverna, nos v.29-38. Seus
atos não são de heroínas, mas de sobteviventess
148
Nos v.17-28, as filhas não aparecem expressamente, se bem que estejam
no começo do v.17 ("quando os fizera sair - a eles'). Pai, 'noivos' e o próprio
narrador, nos v.17-28, não se importam pelas filhas. Quem se impõe são elas
mesmas! Sua teimosia as faz emergir. Nesta perspectiva, nosso capítulo é huma-
nizante, deveras humano.
Bem: quis ir direto a uma questão central, em que a estória passa de Ló a
suas filhas e a seus netos. Agora, precisamos retroceder ao início, a começar pelo
melhor que de Ló se pode dizer.
149
'comem'. Que bela sequência de verbos e de alternância de sujeitos! Ora Ló é
agente (três vezes), ora os enviados o são (três vezes)! A hospitalidade é íntegra.
Ló não merece ser só difamado!
150
"irmãos", são "meus irmãos"! Com eles é que Ló leva sua vida, e quereria levá-la.
Mas, enquanto os "homens't-sodomitas exigirem os "homens"-mensageiros, 'pra-
ticam o mal'. Aliás, a argumentação de Ló é insistente nos v.7-8. Recorre, ao todo,
a seis frases. À primeira delas acabei de referir-me: "não pratiqueis o mal". É o
cabeçalho à frente das demais. Quer impedir que os sodomitas assaltem a seus
hóspedes, os mensageiros, para deles abusarem sexualmente. As demais frases de
Ló deveriam ser algo como um detalhamento desta frase-cabeçalho. E o v.8 até
inicia com uma interjeição que parece vir a querer definir a situação: "eis!". Mas,
qual nada! Ao invés de insistir com os "homens" sodomitas para que não 'prati-
quem o mal', Ló indica uma 'alternativa', que, contudo, igualmente é um mal!
Este é o problema do v.8: nele, a solução é, para nosso texto, outra 'prática do mal',
de violência sexual, no caso contra filhas-mulheres. Ora, este v.8 não dá continui-
dade à proibição do v.7. Pelo contrário, lança as filhas aos "homens"-sodomitasl
Três frases o detalham: são virgens; Lá as fará sair da casa; os "homens"-sodomitas
farão com elas o que quiserem. Isto é fazer o mal às filhas! Isto significa, então, que
Ló se dispõe a deixar fazer às filhas o mal que acabara de proibir! Eis a contradição
que arruína a vida de Ló! - Na conclusão, em v.8b, as duas frases retomam aos
mensageiros. A primeira retoma o v.], onde se dizia que não se 'pratique o mal'. A
segunda poderia ser um certo pedido de desculpas dirigido aos sodomitas: devido
aos costumes de hospitalidade, Ló se vê necessitado a intervir pelos mensageiros.
Infelizmente não se consegue definir, exatamente, aquele "afinal" em v.8b: "afinal,
estão sob a sombra de meu vigamento", são meus hóspedes. Sim, Ló como que
defende vida, lançando-a, simultaneamente, em ruína. Eis um dos mistérios dessa
nossa perícope. Nas palavras de Ló, o ético e o perverso se mesclam!
Um desfecho é iminente! É o que transmite o v. 9. Nele, aparentemente,
temos duas reações dos "homens"-sodomitas; afinal, aí lemos duas vezes a intro-
dução "e disseram". Parece-me que, desse modo, os redatores indicam que entre
os sodomitas havia vários grupos de homens falando e apressando os fatos. Ora,
a pressão contra Ló crescia. Em todo caso, é Ló quem está em jogo. Já o diz a
primeira fala, um berro contra ele: "sai daí!" A segunda palavra dá ainda mais
detalhes: um estrangeiro, finalmente, não tem acesso às decisões no portão;
logo, não tem direito a julgar. A estas palavras são concomitantes as ações: os
sodomitas insistem e se põem a arrombar. No caso, 'insistir' implica em repetir
frases como as mencionadas no v.9, a fim de juntar forças para 'arrombar' a casa.
Ló não cederá os mensageiros. Os "homens'vsodomiras justamente que-
rem a estes! Uma decisão está à vista.
Nesta definição da situação, a cena passa a ser dos "homens'l-mensagei-
ros, nos v.10-ll. Três frases dão conta do resgate de Ló (v.10), duas do destino
dos "homens"-sodomitas (v.11). O resgate (v. la) tem a marca da pouca palavra,
da rapidez: Ló é puxado para dentro e a porta fechada. No v.lO, olhamos, pois,
151
para Ló. No v.ll, para os "homens't-sodomitas. O resultado é que abandonam o
intuito de 'encontrar a entrada', como se lê na última frase. E a penúltima? Nela
- isto é no começo do v.ll - se lê, a rigor, que os "homens" - sodomitas acome-
tidos de cegueira não foram todos, mas os que estavam nas imediações da casa,
tentando assaltá-la. Sua cegueira deriva, pois, do assalto àquela casa, à de Ló!
Na medida em que todos "sem exceção" (vA) a promoviam, também se cega-
vam. Neste sentido, os contornos do castigo são do perfil da injustiça, como o
mostram os profetas. Neste sentido, o "sem exceção" visado no vA, não contra-
diz a condenação dos envolvidos na açâo, no v.ll.
Estes v.4-11 contêm um dos aspectos da narrativa, o da culpa, o da de-
núncia do motivo da destruição, qual seja a 'prática do mal'. A narração não
poderia terminar aqui: faltar-lhe-ia o correspondente castigo. Devido à presen-
ça dos "homens"-mensageiros e da família de Ló na cidade, essa estória também
carece do salvamento ou resgate de alguns. Eis questões que nos remetem para
v. 12-28.
152
truição do lugar, que somente no final do v.l4 é chamado de "cidade"! Aliás,
duas das três frases se referem à destruição, e a do centro, ao motivo: "é grande
seu grito". Este motivo para a destruição não deixa de surpreender. Afinal, no
v.5, os "homens'vsodomitas queriam "conhecer", o que há de significar que que-
rem manter relações sexuais com os "homens"-rnensageiros. Contudo, aqui, no
v.11, o motivo não é de "homens" conhecerem "homens", mas de "grito" (veja
também Gênesis 18,20-21!). Ora, tal "grito" é um termo técnico no hebraico, e
se refere, acima de tudo, ao grito por socorro impetrado por pessoas injustiçadas
em sua reivindicação por justiça. E é neste sentido que também Ezequiel inter-
preta o "mal" de Sodoma: ele não é de violência sexual, mas social (confira
Ezequiel 16,49!). A causa da ruína de Sodoma passa, pois, no v.l I, a outro
nível! - E Ló trata de tentar resgatar seus genros (v.l4). No começo deste v.l4,
o texto, em meio à pressa dos episódios, de certo modo se demora em identificar
os tais genros; afinal, já os conhecíamos de versos anteriores! De todo modo,
suas palavras a eles também são concisas, rápidas: "saí!". Mas, os tais genros
ridicularizaram a seu sogro (v.l-lb). Afinal, para Sodoma, vida é um grito! Sua
ruína reside em lhe ser grito e injustiça qual gracejos! - Ora, nem parece que, a
estas alturas, o castigo de Sodoma houvesse iniciado: afinal, por lá prevalecia a
cegueira (v.11!). Estes genros de Ló já não deveriam estar cegos? E, ainda assim,
diriam o que falam no v.14?! Estranho. Pelo visto, há tensões entre tradições nos
v.4-11 e estes nossos v.12-14.
No v.l5, inicia uma grande subunidade que transcorre ao amanhecer; vai
do começo da alvorada (v.l5) ao raiar do sol (v.23). Engloba os v. 15 a 26. Na
manhãzinha é que caem decisões definitivas na Bíblia;sim, a ressurreição é evento
do amanhecer! - Agora, a partir do v.15, estamos propriamente na saída. Até
aqui ela era referida; agora, é narrada. Neste ponto das cenas, dá-se o decisivo.
Daí se entende por que se requerem tantos versículos.
Os v. 15-16 são como preâmbulo que já chega ao central. Os mensageiros
repetem, no v.15, a ordem já conhecida; temo-la semelhante no v.14. Mas há
uma decisiva diferença! No v.14, o ato de sair de Sodoma era um plural: Ló, sua
mulher e suas filhas. O v.l5 altera o foco: agora o sujeito é um singular, é Ló. E é
este, Ló, quem hesita! Dele é a decisão. E ele hesita, pois tanto quer permanecer
em Sodoma - onde, afinal, estão seus irmãos (v.S)! - quanto quer sair. Portanto,
no auge do cenário do resgate, Ló permanece indefinido. Quem decide por ele,
são os "homens't-mensageiros (v.16). 'Puxam' a Ló e aos seus; fazem-nos sair;
colocam-nos fora da cidade. Ló e os seus são, pois, 'hesitantes', passivos em seu
resgate. Não eles saem da cidade, mas "a compaixão de Javé" os resgata! Esta
inversão, que até aqui não teve destaque em nosso texto, mostra que a reflexão
teológica passa a assumir o sentido de nossa estória. Penso que aí está a razão
para nossos próprios v.l5-16: conteúdos dos v.l5-16, afinal, estavam ditos nos
153
versículos anteriores ao v.14. O realce teológico que o v.l6 impõe é que leva a
que se tenha reescrito o v.I4.
Os 17,17-25 desvelam os decisivos acontecimentos. E os autores não pou-
pam palavras: nove versículos! Contudo, estes nove versículos não se detêm em
detalhar o derramamento do enxofre sobre as cidades, mas, sim, em esmiuçar a
posição de Lá. Ora, ele nem mesmo "na mão" de mensageiros e de [avé se como-
ve a deixar-se levar pela graça divina. Interpõe seus propósitos que o arruínam.
O v. 17introduz um contexto peculiar: estamos já fora da cidade, mas, por
assim dizer, ainda diante das portas. Aí fora atua, ao menos no v.l 7, um singular,
[avé, lá dentro atuava um plural, dois mensageiros. As palavras de [avé são inci-
sivas, ultimativas, com quatro imperativos, duas ordens e duas proibições. A
ordem de [avé é de que Ló - e só a ele se dirige v.17 - 'escape'. Somente este
'escapar' leva "à vida". E esta, nas palavras de [avé, só é viável na montanha.
Olhar para trás, à cidade, ou permanecer na planície - para ambos [avé diz
"não". São inviáveis.
Ainda assim, Ló lhes interpõe seu "não", nos 17,18-20. Brevidade era a mar-
ca da fala de [avé, muitas palavras, a de Ló! As breves quatro frases do v.I7 clare-
avam a vida; Ló volta a se enrolar nos v.l8-20! lmpaetante! De todo modo, Ló
sabe estar defrontando as palavras de ]avé! Os autores do texto - aqueles que o
narram em terceira pessoa - até têm lá seu receio em manter tamanha transparên-
cia: dizem em v.I7 a que Ló 'diz a eles', quer dizer, aos mensageiros. A fala direta de
Ló é mais nítida; sabe estar diante de [avé. Por isso, nestes v.l8-20, sua reação às
duas ordens e às duas proibições, no v.l7, é um não a [avé: "não, meu Senhor!".
Para as afirmações e proibições do v.l 7, a reação de Ló é não: não lhe interessam
nem mensageiros nem as ordenanças de ]avé! Mesmo um recém-salvo, como Ló,
arrancado pelas mãos dos mensageiros da cidade do 'ma!', assume o direito de ir
discordando. Do belo hospedeiro dos v.I-3, pouco vai restando. Mas ele sabe das
maravilhas feitas por [avé, sabe da teologia. Ainda assim, prefere seguir seu pró-
prio caminho. Bem, sabe da teologia, porque a cita em duas lindas frases, no v.I9.
Por um lado, agrada-lhe ser servo na graça divina. Por outro, reconhece que vive
sua vida por causa da solidariedade de [avé (v.I9a, veja v.2a). Duas lindas confis-
sões, estas de Ló, Contudo, sua decisão prática vai às avessas. Sua decisiva palavra
afirma o "não" do começo do v.I8. Então, não irá à montanha, pois, para Ló, lá
está o "mal" (v.20). O lugar de Abraão seria, pois, o do mal e da morte! Logo, Ló
diz não poder 'escapa para lá'. Decide escapar a Zoar (este nome só aparece no
v.22), por estar próxima e ser pequena. Há lógica nesta opção. Ainda assim, falta-
lhe o caminho de [avé, cuja topografia é outra, é a montanha.
A reação de] avé, nos v.21-22a, é muito significativa. Afinal, no v.I 7 fora
tão clara, e tão avessa aos propósitos de Ló. E, agora, ela é tão acolhedora das
154
decisões de Ló! E, justamente, nisso lhe é idêntica, como se vê no v.2I. Este
versículo está na linha do v.19 ao exaltar a relevância teológica de Ló. Ora,
"levantei teu rosto" expressa que foi [avé que tornou Ló apto a suas decisões. A
cidade, à qual se refugiará, ficará preservada. Mesmo decidindo contra [avé,
seus enganos e desvios estabelecem prioridades nos caminhos de Deus! Aliás, as
três últimas frases, as do v.n, surpreendem: a proteção de Ló precede qualquer
ação divina! Precisa poder escapar e refugiar-se, antes. Em [avé, precede que
levante o rosto de pessoas (v.20), nele há graça e solidariedade (v.20) e compai-
xão (v.l?).
O v.22h conclui uma parcela de texto; entendo que esta seja a que come-
çou no v. J 7. Ainda que o nome da cidadezinha, Zoar, lhe atribua pouca impor-
tância: "insignificante", trata-se de uma cidade, vinculada a outra, todas pode-
rosas em fazer o "mal".
Os versículos seguintes (v.2J-28) têm, quase cada um, seu tema. É que aí
a estória está sendo arrematada. O v.2J ainda poderia estar vinculado aos v.21-
Tl, Mas a fixação da hora matinal como o da ruína da cidade já nos vem acom-
panhando desde o v.15: o salvamento de Ló e dos seus se deu entre o alvorecer
e os primeiros raios de sol. E estes raios são - no v. 24-25 - também quem faz
chover. O sol do amanhecer como que se torna "enxofre e fogo". Os raios e suas
cores se assemelham a "enxofre e fogo", caindo sobre a cidade. Aliás, esta uma
cidade tornou-se, agora e, depois, no v.28, duas: Sodoma e Gomorra. Em nosso
capítulo, esta última só se cita aqui, no v.24. Em outras partes da Bíblia, ambas
formam um par (Isaías 1,10), como neste nosso versículo. Esta destruição é ação
de [avé, como o v.24 o repete duas vezes. Já vinha sendo acentuado em versículos
anteriores que as ações decisivas tinham a [avé como sujeito; refiro-me, para vol-
tar a dar-lhes ênfase, ao v.l6, aos v.18-19 e ao v.2I. Nosso v.24 situa-se nesta linha:
a ruína de Sodoma e Gomorra provém de [avé. Aliás, o v.25 o especifica de um
modo peculiar. É que "a planície" e "o solo" ficaram aniquilados; e nisso se percebe
que os autores têm a região em torno do Mar Morto diante dos olhos, com suas
terras planas e secas. E [avé, igualmente, liquidou "os governantes"! Esta é a di-
mensão política da questão. Esta planície do Mar Morto, cheia de sais e várias
ruínas de tempos antigos, assim como que exige uma explicação para sua topogra-
fia e para os restos de cidades antigas. Ruínas de cidades tinha-se, na época, além
de Jericó, logo ao norte do Mar Morto, também Bete-Seã ao sul do Lago Geneza-
ré, bem como restos de cidades antigas no Vale do Rio Jordão, em especial na
margem leste do rio. Por um lado, a aridez e a ausência de vida junto ao Mar
Morto e nas margens do Rio Jordão, entre o Lago Genezaré e o Mar Morto, desa-
fiavam a mente da gente dos tempos bíblicos. E, por outro lado, a relativa abun-
dância de restos de cidades e civilizações, entre outras do período do bronze (an-
tes de 1250 a.C}, portanto próximas à origem de Israel, fez buscar uma resposta
155
aos fenômenos que lá se encontravam. Uma resposta é nosso cap.l9. (Uma outra
resposta se poderá encontrar em Josué 2-6, a tomada de [ericó.)
O v.26 é dessas anotações que surgem de algum fenômeno existente na
área. E, de fato, passando ao pé das montanhas, entre Mar Morto e as Monta-
nhas de Judá, poderás querer identificar, em mais de uma das configurações
rochosas por aí existentes, uma "coluna de sal". O tipo de terreno rochoso da
área é, pois, que fez surgir a informação de que, ao fugir, das cidades "a mulher"
olhou para trás. Ela 'hesitou', como se lê no v.16.
Os v.27-28conectam nossa estória a 18,17-33. Estes versículos fazem par-
te da edição final dos caps.18-19; talvez estejamos em tempos exílicos, no 6"
século. Chama a tenção que a linguagem do v.27 se aproxima do que viemos
lendo desde o v.lS: a "alvorada" (v.lS), o "sol sai" (v.23) e, agora, no v.27, "ma-
drugou na manhã". Esta preocupação com o comecinho da manhã como hora
do juízo contra as cidades caracteriza nossos v.lS-28. Neste sentido, os v.27-28
são parte desta subunidade, ainda que, em termos históricos, tenham sido agre-
gados. Mas, neste v.27, não só a hora da manhã como a da destruição de Sodo-
ma é relevante, mas também a alusão ao local, onde Abraão estivera "diante da
face de [avé", o que se há de referir a 18,22-33. O v.28 continua a indicar com
exatidão para onde Abraão, lá do alto das montanhas, dirigia seu olhar: a Sodo-
ma e Gomorra (também o v.24 se refere a ambas as cidades), e para a terra da
planície. E, enfim, após esta longa introdução dos v.24 e v.2S, lê-se o que o olhar
de Abraão constatava: a fumaça oriunda da ou das cidades. De longe, das altu-
ras da montanha, vê-se, pois, o resultado: a fumaça, o fim de Sodoma (e Gomor-
ra). Contudo, a estória não termina nesta fornalha de fogo e fumaça. Mas, se
conclui nos nomes dos filhos das duas filhas de Ló. Sobre isso já havíamos escri-
to acima, no começo desta nossa explanação sobre o cap.l9.
Concluindo
lS6
negativos, afirma-se que a cidade é ameaça à vida e à identidade dos pastores e
de suas famílias; em termos positivos, mantém-se uma esperança, a dos filhos
das filhas de Ló.
A crítica radical às cidades é tema central da profecia. A diferença reside
em que, na profecia, as cidades em crise e crítica são conhecidas como partes do
momento histórico vivido: Samaria, Jerusalém, Babel e outras tantas. Em dife-
rença a tal profecia antiurbana, a ênfase de nosso ciclo de estórias aprofunda o
antagonismo a longínquas distâncias, a tempos quase imemoráveis, em que as
terras junto ao Mar Morto teriam tido outra constituição geológica. Neste sen-
tido, nosso ciclo poderia estar em Gênesis 1-11.
Vindo da leitura dos caps.13 e 14, a gente pode-se surpreender com que
cuidado o cap.19 esboça Ló: simultaneamente tem seu perfil de dignidade, por
exemplo, na recepção dos hóspedes (v.1-3), em suas tentativas de argumentar
com os mensageiros (vA-11.17 -23), em sua sobrevivência na caverna (v.30-38),
e mantém-se adepto da escolha fundamental pela planície e suas cidades. Para o
autor, as opções se contradizem: ou se vive em plsntcie/cidedes, ou nas monta-
nhas, pois o jeito de viver em um e outro lugar se contradiz. Nem a continuada
argumentação de Ló desfaz esta contradição. Ainda assim, Ló poderia haver
feito outra escolha. Nosso cap. 19, é tão longo, porque espera por um outro Lá.
Este Ló nos caminhos de Deus emerge de suas contradições sofridas, na
inconsciência de pai embebedado usado pelas filhas. Ainda que em Israel não se
aprove tal atitude, talvez também não se a negue como último recurso da justiça
(veja Gênesis 38). No avesso, ainda pode haver verso, se bem que de avessas.
157
"Ela é minha irmã"!?
Gênesis 20,1 .. 18
158
Nossos caps.20-22, estão expressamente localizados no Neguebe. Em
20,1, Abraão chega ao Neguebe. Agar é expulsa para o deserto de Beer-
seba (21,14). Seu filho, Ismael, habita no deserto de Parã, ao sul do Ne-
guebe. A disputa de Abraão com Abimeleque e seu general Ficol ocorre
justamente em torno dos poços de Beerseba. Abraão se fixa em Beerse-
ba após o retorno de Moriá (22,19). Todas as histórias deste bloco de
capítulos estão situadas no sul, no Neguebe, mais precisamente em
Beerseba. Neste horizonte, também cabe o cap.16, a 'primeira' história
de fuga de Agar.
Estamos na região do pastoreio, do seminomadismo migrante. É terra
de "deserto" (21,14). Na origem de nossos textos, estão, pois, pessoas
que vivem do pastoreio, seminômades.
Neste ponto, este nosso bloco literário dos caps.20-22 difere do que
encontramos nos caps.13-14+18-19, cuja ótica era muito mais do cen-
tro de Judá, de Hebrom, marcado tanto pela vida pastoril quanto pela
agrícola.
Os caps.20-22 conformam, pois, uma nova linguagem e novos conteú-
dos nestas "genealogias de Terá". Os caps.13-19 haviam iniciado um te-
mário e o concluem. A terra é um de seus conteúdos mais relevantes.
No cap.20, temos novos temas e novos enfoques.
O estrangeiro é bem tratado. Isso se vê neste nosso primeiro capítulo
da série, isto é nosso cap.20. Mas esta perspectiva também prevalece
até o cap.25. Acontece que este estrangeiro não é o egípcio (12,10-20!),
mas são os vizinhos que são considerados todos parentes (cap.25!). Logo,
os caps.zo-zs situam-se entre parentes.
Isso não significa que não haja conflitos e injustiças. Mas tais desacertos
até nem ocorrem só entre adultos, mas estão enfocados em torno de
crianças, de poços, de defunto, de casamento, de parentesco. Como no
primeiro conjunto (caps.13-19), a conflitividade circulava muito mais em
torno da terra, a confrontação era maior, era de destruição total das
sedes da injustiça (cap.19!). Agora, no novo seriado de capítulos, a par-
tir do cap.20, a confrontação será menos total, será muito mais de ne-
gociações (21,22-34; 23) e achegos (cap.24). Os conflitos e problemas
anseiam por soluções (cap.21 e 22). Não podem resultar em cruéis de-
vastações como a do enxofre sobre Sadoma, como a da guerra de Abraão
contra os reis invasores a fim de alcançar o resgate de Ló (cap.14).
É, pois, de grande relevância para a interpretação desta segunda parte,
caps.20-25, que se considere sua especificidade, o ângulo sob o qual se
coleciona as estórias.
Passemos, pois, ao cap.20.
159
Já conheço! Está no cap.12. Até certo ponto é verdade, mas só até certo
ponto. Você como leitora ou leitor é para ter esta impressão: já conheço. Mas,
na verdade, aquilo que você pensa já conhecer é lido, agora no cap.20, de outro
jeito. Aí está a surpresa: sobre coisa conhecida, se realiza um estranhamento.
Além de se encontrar em 12,10-20, os conteúdos do cap.20 também se
acham em 26,1-11. Fica, pois, a tarefa de correlacioná-las. No momento, tomo a
liberdade de excetuar o cap.26, considerando que aqui não é nosso foco de estu-
do. Com relação a 12,10-20 e cap.20, não me parece difícil estabelecer a relação.
Afinal, 12,10-20 foi formulado como parte de uma abertura, de 'porta de entrada'
para "as genealogias de Terá" (11,27). Além disso, percebemos a presença de lin-
guagem deureronômico-deuteronomísrica (do 7º e 6º séculos) em 12,10-20, um
trecho que não só 'abre' as memórias de Sara, Agar e Abraão, mas também corre-
laciona 'as memórias de Terá' ao êxodo (veja a semelhança com a confissão deute-
ronomizada em Deuteronômio 26,5b-11 [v.5b: "arameu, prestes a perecer, foi meu
pai"!]). Não poderemos, pois, procurar um trecho de origem antiga em 12,10-20.
Isso vale antes para o cap.20? Nele não prevalecem padrões deuteronomizados.
Seu tom é mais antigo. E, em especial, o cap.20 está inserido como prefácio para
trechos relativamente antigos como os de 21,8-21 e também 22,1-19. Parto, pois,
da premissa que entre 12,10-20 e o cap.20 este último é o trecho que contém
memória mais antiga que no primeiro. Em 12,10-20, encontramos um interessan-
te trecho mais tardio, sob a influência da memória exodal e deuteronomística.
Podemos, pois, ater-nos ao trecho do cap.20, indo de imediato à tradução.
JE partiu dali Abraão para a terra do Neguebe. E habitou entre Cades e
Sur,
E foi estrangeiro em Gerar. 2E disse Abraão a Sara, sua mulher: "Minha
irmã [é] ela". E enviou Abimeleque, o rei de Gerar. E tomou a Sara.
3E veio Deus a Abimeleque em sonho da noite; e lhe disse: "Eis tu, estás
morto por causa da mulher que tomaste. E ela [é] uma que pertence a um
homem". "Mas, Abimeleque não se aproximara dela; e disse: "Senhor,
uma nação, em especial uma justa, matarás? 5Não [foi] ele quem me dis-
se: 'minha irmã [é] ela', e ela, em especial ela, disse: 'meu irmão [é] ele'.
Na integridade de meu coração e na pureza de minhas mãos fiz isso!" 6E
lhe disse o Deus em sonho: "Em especial eu soube que, na integridade de
teu coração, fizeste isto. Mas te retive, em especial eu, de pecar contra
mim; por isso, não te permiti que a tocasses. 7E, agora, devolve a mulher do
homem - eis que profeta [é] ele e intercederá por ti - e vive. Mas, se não a
restituíres, sabe: Eis que morrer morrerás, tu e todos que [estão] contigo".
8E levantou-se cedo Abimeleque na manhã: e chamou a todos seus escra-
vos; e falou todas estas palavras em seus ouvidos; e temeram os homens
muito. 9E chamou Abimeleque para Abraão; e lhe disse: "O que nos fizes-
160
te!? E em que errei em relação a ti? Eis que trouxeste sobre mim e sobre
meu reino grande erro. Feitos que não se fazem fizeste comigo". !OE disse
Abimeleque a Abraão: "O que pretendeste conosco que fizeste esta coi-
sa!" l1E disse Abraão: "Eis que! Dizia: 'Certamente não há temor a Deus
neste lugar.' E me matarão por causa de minha mulher. 12E, inclusive, ela,
de fato, [é] minha irmã, filha de meu pai. Só não [é] filha de minha mãe. E
me é para esposa. 13E aconteceu: quando me fez andar errante Deus da casa
de meu pai, disse a ela: 'Este é teu favor que farás comigo em relação a todo
lugar, para onde entrarmos: dirás em relação a mim: 'meu irmão [é] ele'",
14E tomou Abimeleque ovelhas e bois, e escravos e escravas. E deu a
Abraão. E reconduziu-lhe Sara, sua mulher. 15E disse Abimeleque: "Eis,
minha terra diante de ti: conforme [for] bom em teus olhos, mora!" 16E
para Sara disse: "Eis, dei mil [siclos] de prata a teu irmão. Eis, isso [seja]
para ti encobrimento dos olhos em relação a tudo que [houve] contigo; e
seu todo [será] correto." 17E intercedeu Abraão para o Deus. E curou
Deus a Abimeleque e sua mulher e suas escravas. E deram à luz. 18Eis que
reter retivera [avé de contínuo todo útero à casa de Abimeleque por cau-
sa da experiência de Sara, a mulher de Abraão.
A arte de contar
Temos aí um conto com esmero, com muita arte. É verdade, 12,10-20
também está bem escrito; mas seu jeito de contar está em função de sua meta,
de uma teologia narrada, envolvida em tradições da libertação do Egito. Aqui,
no cap.20, há igual arte, mas sem o compromisso tão imediato com o sentido;
ainda há mais soltura de linguagem, mais deleite em detalhes que, quanto ao
todo da mensagem, talvez nem tenham tanta relevância.
Fez-se aí um todo. São 18 versículos, mas como que sem cortes ou ruptu-
ras, no que se assemelham a 12,10-20. O trecho está bem integrado e conjuga-
do. Falta-lhes aquele tipo de versículo que promove digressões, como são aque-
les v.l4-1 7, frases sem nexos maiores com seu cap.H. O todo está, aqui, em
nosso cap.20, bem articulado com as partes. Eis, pois, uma estória bem contada.
O conto não é propriamente organizado e sequencial. Não esclarece de
início, por exemplo, que em Gerar cessara de ocorrer partos. Isso só se desvenda
no final, nos v.17-18, o que considero artístico. O narrador ou a narradora joga,
pois, com quem lê ou ouve a presente história. Preserva até o final um detalhe
que explica a premência do assunto em debate. Afinal, a ação do rei pôs em má
situação todo seu povo. E é isso, justamente isso, que põe em maus lençóis tanto
ao rei quanto a Abraão.
Há boa disposição e articulação do todo, dentro de uma arte narrativa bas-
tante singela e popular, não densa e menos centrada em conteúdos.
161
Começo a vislumbrar este todo, no final, nos 17,17-18. São certa surpresa,
pois não há grandes indicações para estes versículos no que lhes precede. Mas
há conexões. No v.7, designa-se Abraão de "profeta"/nsbi'. Este profetizar é aí
identificado como "interceder". A mesma raiz se encontra no v.17, de sorte que
se pode dizer que os v.17-18 são partes dos v.1-16 e não mero adenda posterior.
Depois há que assinalar que já no v.3 se diz que Abimeleque "está morrendo"
(v.3, veja também v.7), o que, por sua vez, explica o verbo "curar", no v.17.
Além disso, os conteúdos dos v.17-18 são, no geral, vitais para a compreensão
do todo dos v.1-16, e não adenda posterior. Os dois versículos finais lançam luz
sobre o todo, por exemplo, sobre a pressa de Abimeleque em liberar Sara de seus
domínios. Enfim, os versículos finais, v.17-18, integram de maneira constitutiva
a narração.
Duplo é o cabeçalho, 17,1-2. Seu início é um itinerário sobre as andanças
(17,1 a) no Neguebe, entre Cades e Sur, localidades no extremo sul. O v.I b, a
rigor, não cabe neste contexto, pois, em relação a Cades-Sur, Gerar está muito
ao norte. Logo, no v.1b, inicia algo novo que tem sua continuação no v.2. Os
17,1b + 17,2 encabeçam o capítulo. Uso aqui o conceito encabeçar porque conteú-
dos vitais do todo estão indicados nestes dois versículos iniciais. Sim, também o
conteúdo-tema principal que reside na frase de Abraão sobre Sara: "minha irmã
[é] ela". Dela deriva, em termos de conteúdo, a tensão da narração.
Os 17,3-7 são um primeiro conjunto do conteúdo da história. Derivam
claramente da frase-moto de v.1-2, dita por Abraão: "minha irmã [é] ela". Estes
v.3-7 são localizados à "noite" (v.3); o v.8 se dá em outro momento: "na manhã".
A iniciativa é de Deus, "em sonho" (v.3), a reação de Abimeleque (vA-5) e a
palavra final novamente de Deus "em sonho" (v.6-7). Abraão somente é refe-
rente, em especial nas palavras de Abimeleque (vA-5) que se refere à frase-
chave de Abraão no v.L, As palavras, com as quais Deus inicia a unidade retóri-
ca no v.3, anunciam a morte a Abimeleque. Na reação, o rei se declara "justo",
atribuindo às identidades, em que Abraão e(!) Sara se veem, a razão de sua
ação. E os v.6-7, nova palavra de Deus, mantém, no final do v.7, a pena de
morte, da qual Abimeleque se fez culpado. E, no encaminhamento desta amea-
ça, busca convencer o rei a liberar Sara. O tema no final das palavras de Deus
(v.7) é o do começo (v.3): versa sobre a pena de morte da qual o rei se fez
culpado. Enfim, os v.3-7 estão imersos em terminologia jurídica. Abraão e Sara
são referências nestes versículos, não sujeitos de fala ou ação.
Os 17,8-13 são outra subunidade, ainda que quanto ao conteúdo estejam
na continuidade dos v.3-7. A indicação do novo tempo, "na manhã", introduz
dois pequenos conjuntos iniciados pelo verbo "gritar". As frases coordenadas
por este "gritar", no v.S, referem-se ao que precedera (v.1-7). As frases do v.9 se
dirigem a Abraão, enfim puxam-no à cena. E, no final, denunciam-no com du-
162
reza: "feitos que não se fazem fizeste comigo". O v.lO parece um problema, pois
recomeça os conteúdos, sem relevantes novidades; talvez se tenha tornado ne-
cessário devido à clara estruturação dos v.8-9. Segue-se, de todo modo, e, diria,
enfim, a palavra de Abraão, nos v.l1-13. Aqui muda o argumento em relação
aos v.2 + S. A razão primeira é que Abraão temia por sua vida, caso se soubesse
que Sara fosse sua esposa (v.11). Só, em seguida, Abraão reafirma que Sara é, de
fato, sua irmã (v.12). E, por fim, v.13, Abraão diz que pedira a Sara que, nas
peregrinações, sempre se apresentasse como sua irmã.
Os v.14-16 são a conclusão, derivada da fala de Deus a Abimeleque (v.3-
7) e da de Abimeleque e Abraão (v.8-13). Primeiro, temos indenizações a Abraão,
e a devolução de Sara (v.l4). E seguem-se as declarações do personagem cen-
tral, Abimeleque, a Abraão primeiro, a Sara depois. A Abraão oferece seu país
para nele morar (v. IS). E a seguir a indenização é para Sara. O conflito, gerado
por Abimeleque, está, pois, solucionado. O que segue nos v.l 7-18 é a reciproci-
dade abraâmica.
Esta 'narração de diálogos' tem uma bela sequência, bem como formas
criativas de construir seu texto. A seguir detalharemos um pouco mais esta lin-
guagem peculiar de nosso capítulo.
Um tipo de processo
163
Tempos e espaços
164
o tema está indicado no começo, no próprio cabeçalho. Receberá emen-
das e variações, mas se manterá até o final. Refiro-me à frase emblemática do
capítulo inteiro: "ela fé} minha irmã'. Esta frase não detém, em si, o sentido que
movimenta o texto, mas ela o tipifica nos sentidos que vai assumindo no decor-
rer do conto.
Passo a passo tentaremos, pois, detalhar este sentido.
Retomo uma percepção de acima: é preciso diferenciar entre v.l a e v.lb-
2. A segunda parte introduz ao que segue; a primeira, possivelmente se lança ao
conjunto dos caps.20-22.
Nestes dois versículos, Abraão é a referência, sujeito da maioria das fra-
ses. Das restantes o sujeito é Abimeleque. A pessoa que de fato está em questão
- Sara - não é sujeito; eis, um dos problemas desta literatura. Bem que o trecho
gostaria de centrar-se em Sara, mas não é o que sucede. Portanto, só passaremos
a saber dela o que diz a ótica deles - Abraão e Abimeleque.
O v. la visa 'situar' Abraão a caminho; um itinerário indica sua vida e o
verbo "ser peregrino/estrangeiro" até o especifica. Caracteriza-se pelas andan-
ças por estepes, pelas terras não agricultáveis, mas ainda suficientes para o semi-
nomadismo de ovelhas e cabras. Nos tempos de chuva (novembro até março),
as terras têm outro uso que em tempos de seca, a partir de abril até outubro.
E o v.1a situa Abraão de diferentes maneiras. Básico há de ser que seja
localizado na "terra do Neguebe" ou, em tradução mais literal, "para a terra, o
Neguebe", "terra" leva, aqui, o sentido de "área", "região", e "Neguebe" signifi-
ca "sul". Temos em seguida uma segunda localização "entre Cades e entre Sur"
ou, menos literalmente, "entre Cades e Sur". "Cades"/santidade há de ser Ca-
des-Barneia, a uns 80 km a sul de Beer-Seba, e "Sur"/muralha talvez se situe,
ainda mais a sul de Cades, próximo ao território egípcio. De todo modo, a dire-
ção aí indicada é o contrária de Gerar.
Nestas regiões de Cades a Sur, Abraão "arranca as estacas'V''parte", e
"mora", e "é estrangeiro". Eis, a caracterização plena de sua vida seminômade.
O verbo "partir" ainda denota esta vida na estepe, pois literalmente a raiz he-
braica em questão se refere ao ato de arrancar as estacas que sustentam a ten-
das, ao desmonte de barracas.
Abraão "parte dali". Mas, qual é este local? De acordo ao final do cap.18
(18,33), este "dali" deve ser Mame (18,1), perto de Hebrom (veja 13,18). As
distâncias não são as menores, em especial, ao considerar que estamos em terras
de areias e desertos. Seria este o cabeçalho apropriado para os versículos que
seguem? Ou este itinerário visa outro horizonte?
Os v.lb-2diferem do v.1a tão marcado pela tradição do itinerário a sul,
no Neguebe.
165
Muda a perspectiva. Altera-se o perfil de nossos personagens, de Abraão
e também de Sara. Deixam de ter a liberdade de ir e de vir. Como que já não são
seminômades, donos de seus passos e do território de nomadismo. Esta mudan-
ça de cenário é decisiva. Ao dizer-se "e foi estrangeiro em Gerar", altera-se a
condição de vida de Abraão. Ele que vivia deserto afora, toma-se 'estrangeiro'
dependente dos senhores do território onde se situa. Gerar é o território de uma
cidade-estado. Tem dono! E donos tomam outros menos-donos, transformam-
nos em dependentes, enfim estrangeiros. Quem realiza estas mudanças são reis,
um rei como Abimeleque, cujo nome significa "o Pai do rei", sendo "o Pai" aqui
uma título divino. Reis criam limites, fronteiras, e, não por último, "estrangei-
ros". E, além disso, quando se é feito "estrangeiro", criam-se mentiras e inven-
ções criativas que permitam sobreviver. Daí surge a solução que Abraão "diz" à
"sua mulher" Sara, uma solução da verdade e da meia-verdade: "minha irmã [é]
ela". No hebraico, trata-se de só duas palavras: 'ahoti hi' (literalmente "irmã-
minha ela"). Estas 'duas'palavrinhas constituem nossa estória.
Há, pois, duas razões suficientes para que Abimeleque atue: na qualidade
de quem transforma outros em estrangeiros, e, no caso concreto de Abraão e Sara,
toma-os seus dependentes. E, além disso, ela pode ser 'agarrada', 'tomada'. Afinal,
"rei" tudo pode, contra gente 'estrangeira', mulher!
O espaço do v.la teria propiciado vida digna, para Sara e Abraão. Mas, o
espaço dos v.l b-2 está dominado, marcado pelas decisões do monarca. Em seu terri-
tório, ele tudo pode! Pode, até, decidir contra si! É o que passaremos a ler.
Os v.J-7 definem, julgam. O exercício de poder de Abimeleque ("e tomou
Sara") é prepotência; a solução inventada por Abraão ("irmã-minha ela") é meio
mentirosa. Nem um e muito menos o outro - a solução é bem mais simples. Por
isso, Abraão, ainda que no v.7 leve o título de "profeta" (v.7) no sentido de inter-
cessor, não é suficientemente justo para expressar a verdade da hora. Só Deus
mesmo, "em sonho" (v.3 e v.6)! Deus atua de modo profético-visionário (sonho)!
Afinal, ambos entram em cena já julgados, principalmente Abimeleque,
mas também Abraão. O v.2 concentrara em duas palavrinhas a justificativa de
Abraão: "irmã-minha ela". Mas, esta não é digna; Deus de modo algum a reto-
ma. O v.J, por igual, é breve e exato, São três os aspectos que realça, em relação
a Abimeleque. Começa por chamar-lhe a atenção: "eis tu!", Abimeleque. Em
seguida, lança a frase decisiva: "estás morto!". Esta é sentença jurídica. A ela é
acrescentado, em boa quantia de palavras, o motivo com duas formulações: "por
causa da mulher que tomaste", afinal ela é "mulher", quer dizer casada. A se-
gunda formulação não deixa dúvida: "e ela [é] uma senhora de senhor". Esta
expressão significa que é mulher casada.
Estes versículos iniciais (v.Ib-Z e v.3) já estabelecem as valorações. Abi-
meleque 'manda' e 'toma' a Sara. A esta ação Deus lhe atribui pena de morte:
166
"estás morto", pois se trata do rapto de mulher casada. A meia-verdade de Abraão,
ao apresentar sua esposa como irmã, por igual é rejeitada, afinal Sara já não é
irmã, mas, literalmente, "uma que pertence a um homem", "tem marido". Logo,
nem Abimeleque nem Abraão são exemplos de conduta, de justiça (veja v.6).
Este é o assunto da narração e dos diálogos.
Ainda assim Abimeleque tem como se defender em suas palavras dos v.4-
5, resposta à palavra condenatória de Deus no v.3. A defesa do rei reside em que
"não se aproximara dela" (= de Sara). Como em outras passagens (Levítico
18,6.14; Deuteronômio 22,14; Isaías 8,3), trata-se da aproximação da mulher
para relação sexual. Contudo, esta informação da redação do texto de que Abi-
meleque não se aproximara evidente não é, juridicamente, um dado suficiente,
considerando que o rei estaria depondo sobre alguém que estava sob seu poder,
de quem se 'assenhorara' (veja v.3b). Isso explica, porque a não-aproximação
não é mencionada entre os quatro argumentos que seguem nos vA-5. No cen-
tro, estão as duas frases capitais, usadas pelo rei em sua defesa: "não [foi] ele
quem me disse: 'minha irmã [é] ela'? e ela, em especial ela, disse: 'meu irmão [é]
ele'". Abraão dissera a Sara ser ela sua irmã (v.2). Para o texto, isso, como já
dizíamos, incrimina a Abraão, denuncia-o até aos olhos de Deus. O mesmo vale
para a idêntica frase de Sara - somente Abimeleque testemunha que ela foi dita,
o que certamente serve para incriminar aquelas palavras - de que Abraão seria
seu irmão. De todo modo, os três - Abimeleque, Abraão e até Sara - colaboram
em prática iníqua. Ainda que o trecho seja uma defesa de Sara, ela, ao menos no
testemunho de Abimeleque, estranhamente, colabora em ações que são contra
ela, contra seu marido e, em especial, contra Abimeleque. E é ele que se defen-
de nas duas frases que circundam (vA e v.6). Em uma oração-questonamento a
Deus ("Senhor" deve ser a alocução), o rei entende sua "nação" como "justa".
Uma tal haveria de ser 'morta'? A resposta, assim entendo, deve ser 'sim', pois os
descaminhos de reis são típicos para o conjunto social. É o que se aprende da
profecia (Amós 2,6-16 e 3,9-11). E é o que advém da perícope anterior, do
cap.19. Afinal, aos olhos de Deus, a 'nação' em questão não é justa, pois nela reis
raptam pessoas; uma nação justa é a que favorece as relações entre as pessoas, a
fim de que cada qual tenha chance de vida. Não é o que sucedia com Sara, feita
uma das do harém pelo soberano. Neste sentido, há que perceber que nosso
capítulo não pretende conviver com posturas mais ou menos adequadas, mas
com justiça, com aquele posicionamento de vida que promove o bem-estar, que
- de acordo ao final do v.5 (= v.5b) - promova "integridade" e "pureza". Sim,
um convívio social "justo" (vA), 'íntegro' e 'puro', esta é a medida das relações.
E, justamente, a estas relações sociais é que o rei não se ajusta. Ajusta-se tão-
somente a seu próprio interesse: Sara! Vale lembrar que, na expressão "integri-
dade de coração", "coração" se refere às 'intenções' e aos 'planos', e que, "pureza
de minhas mãos", diz respeito à 'ação' que não foram injustas nem derramaram
167
sangue inocente. As pretensões do rei são elevadas, mas suas 'mãos' "tomam"
(v.2!). Logo, a defesa de Abimeleque, o rei, evoca dignos e altos valores; o pro-
blema é que sua ação é de "tomar", de deixar um rastro de medo em sua trajetó-
ria (veja 12,10-20). Afinal, sua justiça é seu interesse! Logo, não convém dar
atenção às suas belas palavras e sua boa lógica, mas a seus gestos cotidianos.
Enfim, os v.3-5 como que necessitam de complementação, de novos dize-
res divinos, recebidos "em sonho" (v.6). Veja, aqui como no v.3, o sonho é a
experiência em que Deus orienta pessoas. Sem templo, similar à profecia! a
a
"sonho" não se amarra a instituições, como uma monárquica. que dele brota,
defende a vida, antes de tudo.
Nesta linha, os v.6-7resumem e recolocam à luz das intenções de Deus.
a v.6 resume os versículos anteriores; o v.l , ao iniciar com "e agora" projeta.a
ponto de chegada da fala divina é o mesmo do v.3: "mas, se não lhe restituíres,
sabe: eis que morrer morrerás, tu e todos que [estão] contigo". Tudo que está
dito nos v.6-7 está subordinado a esta frase final, afirmação de pena de morte,
agora reforçada pela ênfase nesta pena de morte: "morrer morrerás", "certamen-
te morrerás". Considero estas palavras finais dos v.6-7 de grande importância. a
que se lê nos v.6-7, está subordinado à divina sentença: "morrer morrerás".
A retrospectiva - 17.6 - lança os olhos para trás; retoma o final do v.5.
Logo, as três orações diretas se referem ao que foi. Por isso, não há que sobreva-
lorizar, por exemplo, a primeira frase, a que, retomando v.5b, diz: "em especial
eu soube que, na integridade de teu coração, fizeste isto". Não se trata de um
atestado de caráter, mas de uma característica concluída no passado ('perfeito'
hebraico!). Não é, pois, algo continuado, isso de o rei ter "retídão/adequação de
propósitos". Ainda assim, uma tal sentença dificilmente é parte de uma visão
profético-clássica, com sua crítica total à monarquia; é antes de tempos anteriores
ao 8 Q século, anterior, pois, a Amós (7,10-17) e Oseias (13,11). Em todo caso,
esta primeira oração direta do v.6 está no 'perfeito'; o que aí se diz, já está con-
cluído.
As outras duas frases - ainda estamos no v.6 - se referem propriamente à
questão em jogo, a de que Sara não tenha sido tocada por seu raptor Abimele-
que. A questão é a de não "tocar", o que em frases como a nossa se refere ao
toque no intuito da relação sexual, inclusive com uso de violência. É o que
também é chamado de "pecar", o que de acordo à raiz hebraica, significa "errar
de alvo". Vida fora de foco e de alvo é vida 'errada'. E esta é a do rei. Lida com
pessoas, com mulheres, como não se pode lidar.
Não se diz, pois, no v.6, como um rei é ou deveria ser, mas como f011 E só
não foi pior, porque Deus o 'reteve' e nem lhe 'permitiu' ações de violência
sexual contra Sara. Por melhor que o rei pense de si (v.óa)1 foi a ação de Deus
quem o conteve (v.6b)!
168
Por isso, urge o v.?! Derivo a urgência do advérbio temporal "agora!". As
palavras de Deus, a rigor, estão concluídas; o tempo de argumentos já se esvaiu.
Trata-se, "agora", de obedecer às ordens imperativas: "devolve a mulher do ho-
mem... e vive". Nestes dois imperativos, um exige ("devolve!") e outro promete
("vive!"). Percebe-se nesta conexão de exigência com promessa, que temos aí
uma formulação já cunhada, assentada. Que é assim, confirma-o a formulação
do objeto: "a mulher do homem". Aí se volta a perceber que a exigência em
questão não se vincula ao caso, mas a uma regra. É um mandamento.
A ele vai interposto uma espécie de comentário: "eis que profeta [é] ele e
intercederá por ti". Estas duas frases argumentam em prol das ordens que as circun-
dam. Vale a pena cumprir os mandamentos! Afinal, não se perde. Ganha-se, me-
diante a profecia, enfim, a vida. Em particular, neste nosso versículo, ganha-se a
"intercessão". Esta era um dos dons proféticos, tanto pré-literários (veja, por exem-
plo, 2Samuel12; Jeremias 37-39) quanto clássico-literários (Amós 7,1-6; Isaías 52/
53 e outros). Não "devolver'V'restituir", implica, como no v.J, pena de morte. Esta
sentença vem agora acompanhada de dois novos conteúdos. Acima de tudo temos
uma formulação verbal hebraica que pretende reforçar, ao máximo, uma afirmação:
o rei "morrer morrerá", isto é, "certamente morrerá". E, além disso, a ameaça incor-
pora na morte, além de Abimeleque, também a quem com ele estiver, ou seja, a
família e sua administração. Do v,3 para o v.7 a morte ameaçadora se expande.
Pode-se, pois, debater o assunto do rapto de Sara, pode-se achar desculpas de parte
a parte. Decisivo, contudo, é 'reverter' a condição de Sara.
Na segunda subunidade maior (v.8-1.3) do cap.20, só falam Abimeleque e
Abraão. Deus não intervém: nada diz, e ninguém a ele se dirige. Isso realmente
surpreende à luz de v.3-7. Suspeitaria que, nos v.8-13, Abraão como que se situa
no espaço que Deus tivera na subunidade anterior.
De todo modo, a hora das palavras de Abimeleque a Abraão é especial;
ocorrem "na manhã", por assim dizer, 'na hora de Deus'. Esta expressão "na
manhã" não deixa de ter certa proximidade com "em sonho" dos v.3.6 acima.
Nesta hora matinal privilegiada, Abimeleque age: "chama" (também no
. , no caso ,
v.9') . , "fa Iou" , e obtem
reumu, ' como reaçao- que" " ( v. 8). A
temeram
sequência é clara: o rei chama à reunião, dá as informações e obtém temor como
reação. O temor, que é "muito" e grande, provém de "os homens". Estes poderiam
ser 'os militares', como se dá em outros tantos casos. Mas, aqui, prefiro identifi-
car estes "os homens" com os que estão próximos ao rei. Neste caso, seriam
"seus escravos", se bem que, no caso, "escravos" são assessores ou ministros do
rei. A eles o rei transmite - aliás, coloca "em seus ouvidos" - "todas estas pala-
vras". Estas tais "palavras" são os acontecimentos e as falas que precederam, em
especial, nos v.3-7.
169
Em paralelo aos atas de Abimeleque, estão, nos 17.9+ 17.10, suas palavras.
A elas temos duas introduções, no v.9 e no vl O; ambas se referem às tais pala-
vras do rei.
As palavras do v.9, em quatro frases, estão construídas de forma paralela,
duas a duas. Duas são perguntas, no caso, críticas. Nelas, o rei denuncia a Abraão.
A pergunta "o que nos fizeste!?" é questionamento crítico. Critica o feito de
Abraão, de não haver dito ser Sara sua esposa. A segunda pergunta é paralela à
primeira, mas com novo acento: "e em que errei em relação a ti?". A primeira
pergunta quer saber dos desacertos (o verbo em questão significa "errar") de
Abraão, a segunda dos do rei. Sara é, óbvia e estranhamente, secundária, cá e
lá! E nem há referência à fraqueza de Abraão: que chances tem um seminômade
diante de um rei? E nem há reflexão sobre o 'erro'/desacerto praticado contra
Sara. Sim, a redação do texto tem lá suas agudas limitações. Ao texto falta uma
visão profética mais aguda, a partir da vida e da dor da mulher!
As duas frases argumentativas realçam a incompreensão do rei diante do
que sucede; parece que reis não entendem nem mesmo o mal que causam! Afi-
nal, o poder não alcança ver problema em si; vê-o em outros, no caso, em Abraão.
É ele que traz "grande erro", equívoco e desacerto. Para o rei, há, no caso, "erro",
e "grande", mas este é 'trazido' ao rei e ao "seu reino". A fragilidade de Abraão e,
em especial, a de Sara desaparecem: o motivo, que levou Abraão a tornar sua
esposa em sua irmã, some do horizonte dos narradores.
As palavras de Abimeleque fecham com uma frase bem feita: "feitos que
não se fazem fizeste comigo". Arte - é isso que aí temos. O verbo "fazer" (três
vezes!) constitui a frase! "Feitos que não se fazem" -lembra frases sábias como
as que temos em 2Samuel13 (veja em especial v.12.14) e em textos da sabedo-
ria, como Pv 17,22. Este Abimeleque de nossos autores exagera em suas pala-
vras. Afinal, mulheres também não podem ser 'tomadas' (v.2) para o harém, este
também é um dos "feitos que não se fazem".
O 17.10 não cai bem. Tem nova introdução do tipo da do v.9; falta-lhe,
porém, novo terna; e isso causa estranheza, ainda mais após frases tão bem feitas
como as do v.9. Penso, pois, que este v.lO pode ter sua origem junto aos leitores.
Trata-se de comentários anotados à margem ou entre as linhas que, com o tem-
po, foram incorporados. O v.l0 bem que pode ser reação de leitor, não texto
antigo de redator. Isso também explicaria porque as (rases, a rigor, não estão
concluídas. Enfim, penso que o verbo da pergunta inicial não é de se traduzir
simplesmente por "ver", mas por "pretender", o que cabe dentro do sentido do
verbo hebraico em questão: "o que pretendeste conosco?". A pergunta é crítica
aos métodos de Abraão. O mesmo vale para a continuação que se poderá subor-
dinar à frase anterior "que fizeste esta coisa!". "Esta coisa" -literalmente "esta
palavra" - se refere a versículos anteriores, em que Abraão apresenta Sara como
170
sua irmã (veja v.2). E o verbo deste final do v.lO retoma o criativo tríplice "fa-
zer" do versículo anterior (v.9). Vê-se, pois, que neste v.10 nada de novo se diz.
Repete-se o anterior. Por isso, este versículo se parece a um adendo.
A segunda parte de nossa subunidade contém palavras de Abraão (17,11-
13), que aqui, aliás, são suas únicas palavras junto com as poucas no v.2. Estes
versículos vivem de reminiscências! Parece que os acontecimentos sucedidos
em Gerar em nada influíram. O que continua a prevalecer nestes quatro versí-
culos é, pois, o verbo inicial "dizia"/pensava, que conduz os v.11-12, e o verbo "e
aconteceu" que marca o v.13. A interjeição "eis!", "sim!" chama a atenção para
os conteúdos do passado.
Nas palavras de Abraão, encabeçadas pelo "eis", reconhecem-se duas par-
tes, uma enfocando uma cena que imediatamente precede a nosso trecho (17,11-
12) e outra retrocedendo a um cenário dos tempos de Harã ou até de Ur (17.13).
Portanto, as palavras de Abraão não chegam a propriamente adentrar o presente.
Abraão não representa um avanço; este está reservado a Deus. As palavras divi-
nas, sim, estão no presente: "estás morto por causa da mulher que tomaste" (v.3).
Duas frases do v.11 trazem novas escusas de Abraão. Expressam sua sus-
peita. Nelas conclui haver falta de "o temor a Deus". Aqui, "temor" significa
prática, obediência a mandamentos; temer a Deus implica segui-lo em suas exi-
gências, em Israel ou entre os povos, no caso daqui, entre a gente de Gerar
(filisteus - um termo que não aparece em nosso capítulo). Este mesmo conceito
de "o temor dela Deus" também encontramos em outros textos destes capítulos
próximos (21,17; 22,12). Interessante é que tal temor faltaria "neste lugar ". Bem
que deveria estar escrito 'na terra de Gerar' (v.1). Deve haver um sentido espe-
cial para que, aqui, falte alusão à Filisteia. Quem sabe a expressão "neste lugar"
apontaria para uma fase de nossa história, quando ainda não estava alocada em
terras filisteias (como também Gênesis 26). De todo modo, a falta de prática
consoante a Deus - por exemplo, de defesa da vida - põe a vida em risco: "me
matarão"/assassinarão. Afinal, em jogo está um interesse, um assunto (em he-
braico: um dabar/"palavra"l"assunto") especial: adonar-se de Sara. O caminho a
ela passaria por sobre o corpo dele. Eis a questão!
O v.12 agrega, a este do v.l1, um arrozoado de qualidade nada superior,
aliás mal formulado: "e, inclusive, ela [é], de verdade, minha irmã - filha de
meu pai". Com duplo provérbio de asseveração ("inclusive, de verdade") e acres-
cido de duas exatas explicações de ser Sara irmã por parte de pai, mas não de
mãe, afinal é dito o que estivera dito desde o v.2: "minha irmã [é] ela". Bem:
crescem os argumentos, mas nada se adiciona em qualidade. Eis o que atesta a
frasezinha final do v.12: "e me é para esposa". Ora, sendo"esposa", os arrazoados
sobre parentesco tornam-se inócuos. Afinal, o que vale na vida entre Sara e
Abraão é que são casados! O restante é passado. Quanto mais nosso autor leva
171
as palavras de Abraão ao passado, tanto menos lhes cresce algum sentido. Difere
de Abimeleque que, ao denunciar seu "erro", abre um novo começo em sua vida.
No assunto em questão, Abraão parece ficar sem começo, só com marcha à ré.
Para trás, sim, aos inícios se direciona o v.1J. Vai ao "e aconteceu" distan-
te. Pior, o caso evocado não vem anotado em textos sobre aqueles primórdios.
Ainda pior, o conteúdo conturba: "quando me fez andar errante Deus". Afinal,
quando Deus teria "feito andar errante" a Abraão? Tal registro falta (veja contu-
do Deuteronômio 26,5, referente a Jacó). Além disso, vida seminômade não é
tão exposta a andanças sem rumo, mas a uma vida fragilizada de andarilhos e
estrangeiros (v.l l}, O problema é de "ser estrangeiro" (v.l ) , não a de "ser feito
andar errante". Afinal, Deus não prometeu perigos, mas bênçãos a Sara e Abraão!
De todo modo, este introito ao v.U não encontra formulações jeitosas! A con-
tinuação visa assegurar que Sara diga ser ele seu irmão, como está realçado no
final da frase. Isso é o 'favor' de Sara, "tua solidariedade", em "todo lugar". Tais
reforços às ordens a Sara não qualificam os conteúdos! Afinal, no longínquo
passado, não há solução para os medos de Abraão; esta se encontra no presente,
na confiança para com os povos com os quais se convive. Não estes, mas as
meias-verdades abraâmicas complicam a história.
Enfim, as palavras de Abraão pouca luz trazem; as de Abimeleque até que
veem bem os problemas, sem, contudo, solucionar a vida de Sara e de outras
como ela. É mesmo: poucas são as chances das saras. A luz da estória me parece
real, no caso, quer dizer sem saída.
Após dois conjuntos literários que clareiam o temário e, também, obscu-
recem o caso (v.3-8 e v.9-13), a estória chega à conclusão, nos v.14-16. Ações e
propósitos de Abimeleque são expressos. No início, estão ações em prol de Abraão
e, em seguida, palavras, primeiro a Abraão (v.l5) e depois a Sara (v.l6). Sara,
cuja dor é a causa da narrativa, só vem em segundo plano.
No v.14, as ações são indenizatórias: o rei "tomou", "deu" e "reconduziu" a
Abraão. Nisso há um crescendo. Os verbos "tomou" e "deu" se referem propria-
mente a indenizações ou compensações. Elas se constituem de "ovelha e boi" (em
singular no original). E adiciona-se "escravos e escravas", com valor bem mais
elevado. Afora as "ovelhas", os presentes indenizatórios não se situam no perfil do
seminomadismo. "Bois e escravos e escravas" representam agricultura, onde afinal
se situam os redatores de nosso trecho. Aliás, também em outras passagens são
atribuídos fenômenos agrícolas a seminômades (veja 12,4.16 etc.). Tais inversões
se explicam pelas redações que, afinal, provêm da sociedade agrícola, e não da de
pastoreio. Mas, enfim, a devolução principal - mencionávamos acima o crescen-
do dos conteúdos do v.14 - é a de "Sara, sua mulher". Com isso, o conflito está
solucionado, pois 'volta' e 'retorna' ao seu sentido originário. A estória encontra
sua 'conversão'. Retornando ao que fora, alcança-se o alvo.
172
Seguem duas falas nos v.15 e 16, uma a Abraão e outra a Sara, ambas intro-
duzidas pela interjeição "eis", que chama a atenção ao que segue.
A Abraão, o rei põe à disposição seu território - 'sua terra' - para nela
morar (v.15). "Terra" aqui assume contornos políticos; trata-se da "terra" sob do-
mínio político do rei filisteu. Por isso,o soberano a designa de "minha terra". Abraão
não só obtém a concessão para nela 'morar', mas ela até lhe é atribuída por impe-
rativo: "mora!". Linguagem de rei transforma permissão em ordenança! Na esco-
lha da região, Abraão há de deixar-se guiar pelo que é "bom em teus olhos". No
caso, este "bom" se refere à condição do solo; o termo indica, pois, o que nós
designaríamos por fértil ou útil. Com este v.15, está sendo preparada a estória de
Beerseba, em 21,22-34.
As duas frases do v.16, ambas iniciadas pela mesma interjeição "eis", são
dirigidas a Sara. A compreensão da primeira é clara: trata-se de uma indeniza-
ção em prata. A cota é muito alta: "mil". No caso, falta o termo 'siclos', que em
pensamento dever-se-á agregar, do que resulta uma soma estupenda (mais de 10
kg de prata). A indenização é "para teu irmão", para Abraão. Afinal, visão e
práticas de nosso capítulo são eminentemente androcêntricas (centradas no
homem, não na mulher). Daí surge a necessidade da segunda frase, neste v.Ió;
ela explica o conteúdo da primeira. Infelizmente, o final deste v.16b é de difícil
compreensão. Claro está que se trata de uma significação da indenização, pois a
frase inicia com "isto para ti", no sentido de "isto [seja] para ti". Na mesma frase
do v.16b, lê-se, logo adiante, que este "para ti" se deve entender "em relação a
tudo que [houve] contigo", em relação ao rapto para o harém de Abimeleque.
À esta desonra, à qual Sara foi submetida, diz respeito a cota dos, literalmente,
"mil de prata"l'mil ciclos de prata', como "encobrimento dos olhos". Esta ex-
pressão diz que outras pessoas passam a não poder olhar nos olhos de Sara para
dela caçoarem. Neste sentido, seus olhos passam a ter "encobrimento". A inde-
nização servirá de proteção contra "os olhos" de outros, a difamação, o desprezo
comunitário, a má fama.
O final do v.16b tem problemas de transmissão de texto. Quem sabe também
ele (veja v.10) se deve a leitores que adicionaram observações à margem. Assumin-
do, pois, uma pequena alteração, entende-se o final do v.16 como conclusão. Ao
aceitar o dinheiro de indenização e compensação, o assunto fica acertado, "correto".
Poder-se-à inclusive relacionar esta frase final ao conjunto dos v.14-16. Com as
medidas tomadas por Abimeleque (v.14) e o cumprimento de seus propósitos, ex-
pressos a Abraão (v.15) e a Sara (v.16), o "todo" do assunto fica adequado e encer-
rado. Neste sentido, o final do v.16 quer ser também a conclusão do impasse, da
injustiça praticada. Este final está novamente centrado não na mulher, mas, no
caso, no rei.
173
Os v. 17-19 contribuem com um digno término. Aliás, inesperado! Seu
principal assunto - Sara - era, até aqui, desconhecido do autor. E, enfim, Sara é
destacada como o dabar/palavra"l"assunto", tema da narrativa. Acho que aí
estamos diante de adenda de quando a narrativa particular foi incorporada ao
todo, quer dizer de tempos até antigos do 89 século. Afinal, Abraão, antes de
tudo - já o tivemos no v.7 -, agora volta a "interceder"; é profeta de "o Deus".
Em seguida, menciona-se a cura, outra ação típica de profetas, como Eliseu em
2Reis 5. No caso de nosso v.17, a cura tem a Deus como sujeito, o que, contudo,
não contradiz a ação profética, pelo contrário. A cura é a da esterilidade, de
sorte que a intercessão do Abraão profético resultou em partos. (Lembrando: o
restante do capítulo não se refere a estes assuntos dos v.17-18.)
O v. 18 continua o assunto do anterior, situando-se temporalmente antes
deste. Chama a atenção que Sara é causa do que se passava na casa do rei. Sara
detém, aqui, o dabar, a causa, a razão, a experiência para o que sucede na "casa de
Abimeleque", Na estória do restante do cap.20, este papel simbolicamente decisi-
vo está com Abraão. Também aqui, no final do v.18, ela não deixa de ser "a mulher
de Abraão", mas enfim é ela o motivo da cena, um papel que não tivera nos
versículos anteriores. Logo, este adenda dos v.17-18, em termos hermenêuticos,
assume uma perspectiva até mais interessante do que a do que lhe precede, tão
centrada em Abraão.
Concluindo
12,10-20 estava centrado em Sara. O mesmo não se pode dizer do cap.20,
com exceção destes últimos versículos, em que ela fica mais realçada. O assunto
mesmo se centra em Abimeleque e Abraão.
No caso, a certa simpatia que se direciona a Abimeleque tem a ver, certa-
mente, com o senso positivo que as estórias judaítas sobre Abraão desenvolvem
em relação aos povos circunvizinhos, e também em relação aos filisteus de Ge-
rar. Este talvez seja o aspecto mais significativo deste capítulo, sua simpatia com
estrangeiros. Veja também cap.16 e 21.
O Abraão deste capítulo já está permeado pela profecia. Ele é profeta. Ao
redor deste profeta, há proteção. Estamos no espaço da cura. Porém, poder-sé-ia
dizer de modo ainda mais nítido: estamos em âmbito, em que a fertilidade é o
centro de tudo. No caso, isso significa que Abraão é intercessor (veja Amós 7,1-
3.4-6!). Esta especificidade de profetas e profetisas (2Samuel 12!) é das mais
antigas dos visionários bíblicos. Este aspecto é central no Abraão de nossa nar-
ração.
Abimeleque tem seu poder real, monárquico. Mas tem-no dentro de cer-
tas limitações. Assemelha-se a Abraão e debate temas cotidianos como o do
174
rapto de mulheres. Esta dimensão 'menor' de um rei também irá aparecer em
21,22-34.
O jeito de Deus agir é peculiar neste cap.20. No capítulo anterior, Deus é
juiz. Aqui a pessoa pode discordar, discutir, argumentar. Prevalece um conceito
sábio de Deus.
Enfim, o cap.20 abre um novo cenário, retomando 12,10-20. Aí temos a
introdução tanto para 21,22-34 quanto para 21,1-21 e 22. Também o cap.23 já
aparece no horizonte.
175
USara amamenta um filho"
Gênesis 21,1 ..7
(Notas sobre caps.21-22 à luz de 21,1-7) Estes sete versículos têm carac-
terísticas especiais: não são propriamente uma perícope, mas também
não podem ser adicionadas, nem ao cap.20, nem a 21/8-21. Em seu nú-
cleo/ nos v.2-5, temos uma síntese de algo como narrações, sem que tais
versículos cheguem a ser propriamente uma narração. O que mais há de
convir é que se lhes atribua a função primordial de introduzir as outras
três unidades dos caps.21-22. No caso, 21/1-7 se assemelharia a 22/20-
24. No caso, sua tarefa lhe advém do conjunto.
Neste sentido, cabe um papel todo peculiar a 21/1-7/ por ser uma peça
literária de integração da unidade maior, tanto em relação ao cap.20
quanto aos caps.21-22+23-25, quanto também em relação ao conjunto
maior dos caps.12-25.
Neste sentido, temos nestes novos capítulos - refiro-me inicialmente a
caps.20-22, sem contudo esquecer-me da proximidade que com eles
têm os caps.23; 24 e 25 - esquemas de correlação de conteúdos dife-
rentes dos que observávamos nos caps.13-19. Aliás, não há de ser aca-
so que os antigos exegetas, que confiavam na crítica literária da teoria
das fontes, atribuíssem nossos capítulos a outra fonte (ao assim chama-
do eloísta). Ainda que não me disponha a seguir esta teoria, observa-
ções por ela feitas podem ser integradas em nossa argumentação, se
bem que eu o faça com outras funções.
Nossos versículos, tendem a agrupar e a indicar textos correlatos. Por
isso, seu v.1 aponta explicitamente para os caps.17 e 18. O vA conecta
com 17/12. Até mesmo os v.6-7, em si bastante autônomos, mantêm
vínculos com 17/24 e 18/12.
Esta tendência de 21/1-7 em remeter para além de si também marca
presença em outros conteúdos dos caps.21-22. O encontro de Abraão e
Abimeleque, enfocado no cap.20 e em 21/22-34/ aponta para 26/18-35.
E, por fim, 21/8-21 há de ser lido à luz do cap.16.
Poderíamos prosseguir neste intento de mostrar o quanto os caps.20-
22 estão inseridos no conjunto dos caps.12-25. E tudo isso confirmaria,
por ângulos sempre novos, que estes nossos três caps.20+21+22 estão
176
bem mais comprometidos com a própria origem de nossa unidade lite-
rária dos caps.12-25, do que estão os caps.13-19! Nosso conjunto lite-
rário do Ciclo do Neguebe nos aproximam da própria dinâmica que cons-
tituiu e consolidou a literatura dos caps.12-25!
Algo fragmentário
177
Os v.2~5 constituem a parte narrativa maior. São obviamente uma narra-
ção em miniatura, em síntese. Aos autores deve ter faltado um conto sobre o
nascimento de Isaque, uma estória paralela ao cap.l6 (sobre Ismael; veja 21,8-
21). Típico destes v.2-4 é que neles estão os verbos, necessários a uma narração:
"engravidou", "deu à luz", "chamou" (o nome), "circuncidou". Esta narrativa
dos v.2-4 conclui e culmina na circuncisão, tema do cap.17! Os verbos de todo
modo são de narração; mas esta lhes falta. Ao invés de mais conteúdos de narra-
ção, aparecem referências a ordenanças divinas, do tipo que se lê em v.2 e 4, e as
datas (v.5). Estes versículos poderiam tender a uma narração, mas consideraram
mais relevante somente fornecer breves notas sobre seus personagens. Parece-me
que aí estamos junto a um texto feito a partir de outros, gerado a partir de seu
contexto literário, conjugado a antigas memórias, como as dos v.6 e v.l .
Fragmentos não são, pois, só a matéria prima literária destes versículos,
mas também sua intenção. Diria que estes v.I-7 são de tempos recentes, são de
quando se confeccionou a coletânea dos caps.20-22 ou da própria formulação
do pentateuco, aí pelo quarto século. Não só não se conhecia uma história sobre
o nascimento de Isaque, mas já não havia como criá-la e adicioná-la.
178
"E Abraão circuncidou Isaque" - v.2-S
A linguagem destes versículos é padrão. Encontramo-la em outros textos
circundantes (nos caps.I? e 18 e outros, como acima já vimos). Comparando tais
trechos, pode-se dizer, com muita certeza, que estes nossos versículos, bem como
o v.1, foram escritos à luz do que já estavaescrito. Em outros termos, isso significa
que estamos junto à última redação.
O menos relevante nesta narrativa do nascimento de Isaque é que Sara
tenha engravidado, o mais relevante é a circuncisão do menino. À gravidez se
refere, em v.2-4, um só verbo ("e engravidou"), sem maiores detalhamentos, se
bem que o v.l , em terminologia poético-teológica, já aludira a ela (veja 18,9-
15). De todo.modo, a gravidez não é, aqui, o detentor do sentido. Este está na
circuncisão.
O v.4 expressa o mais relevante: Isaque foi circuncidado no dia adequa-
do, no oitavo dia! A palavra de Deus expressamente diz respeito a esta data! O
tempo é decisivo, pois ele é portador da bênção. Quanto mais práticas religiosas
se afastam de suas origens, mais se formalizam em gestos e datas. Em 17,12, já há
referência à data da circuncisão, mas em meio a outros aspectos.
A idade de Abraão também tem alguma relevância, se bem que o v.5em
questão seja uma complementação ao v.4. Enquanto este nos faz olhar para o
gesto simbólico decisivo, a circuncisão para a datação, situando-nos no tempo.
Tanto o gesto quanto o tempo (cem anos!) são tempos plenos! Acima deles,
contudo, situam-se as palavras de Deus (v.l ): de tão sublimes que são, tendem à
poesia!
Em relação a estes v.4 e v.S, os v.2-3 são complementares. Auxiliam. No
v.2, o assunto principal é o do nascimento de Isaque. É dádiva de Deus, como já vem
dito desde o v.1: Isaque brota das "velhices"; provém da fala de Deus; e, enfim, tem
seu "tempo determinado". Este conjunto de signos teológicos é o mais decisivo. O
texto não se fixa em Isaque, mas nos significadosteológicos de que vem acompanha-
do. Aqui prevalece a teologia, não a história!
À semelhança do v.2, também o v.J tem suas tônicas especiais. O assunto
primário é o da formulação do nome do nascido. Porém, esta frase, que a rigor,
haveria de ser tão simples, se alonga e complica, até que, enfim, alcança formu-
lar: Isaque. Antes disso a frase 'dá voltas', vai por contornos. Dizer em frase
relativa que este Isaque "nascera de Sara", ainda caberia nos conteúdos. Contu-
do, isto já não é o decisivo num texto tardio como este, acondicionado em meio
a teologizações. Por isso, um tanto desajeitadamente, adiciona-se que o menino
"fora nascido", para realçar, assim, o sujeito divino implícito em tal formulação.
Afinal, ele provém de Deus, como se o afirma desde o v.l , Este v.1 parece conter
o então novo sentido do nome de Isaque: "[avé olhou com atenção". Sabia-se
179
de outros sentidos anteriores para Isaque, mas o que, agora, vale é um novo. É
por isso que os v.6 e v.7 tomam ares de adendo a nosso texto.
Nestes v.2-5, a ação principal de Abraão tende a ser a da circuncisão. No
mais, as ações são antes de Deus, em especial em relação a !saque, que, antes de
nascer, foi nascido. As teologizações prevalecem; os versículos tendem a ser re-
centes.
180
v.7b é, claramente, um complemento à primeira frase (v.7a). Aí, no v.7b, diz-se,
em termos não poéticos, o que o v.7a expressa de modo mais artístico: Sara deu
à luz um filho para os tempos da velhice de Abraão. Mais artístico é o v.7a.
Entendo que se trata aí de uma exclamação e simultânea interrogação, expres-
sando a surpresa. E isso se dá em tom poético: de cada lado temos, em hebraico,
três palavras:
"Quem há de anunciar a Abraão:
'Sara amamenta um filho'!?"
Além da linguagem ser poética, também o é o própria conteúdo. Diz-se
aí, neste v.7a, o mesmo que expressa o v.7b. Mas a melodia se faz outra. Um
alguém é convidado a fazer-se porta-voz da bela notícia: "Sara amamenta um
filho"! E o primeiro a ouvi-lo é o pai, Abraão.
Um adenda
181
"E Deus ouviu a voz do menino"
Gênesis 21,8..21
(Um conjunto literário!?) O cap.20 parece não ter sequência. Nesta pa-
recença, o cap.20 repete outras tantas unidades em que o assunto em
debate se atém a uma só unidade literária, como, por exemplo, o pró-
prio conto de 12,10-20. Porém, não é o que se dá com o cap.20. Ele,
efetivamente, tem continuidade, se bem que depois de uma breve in-
terrupção narrativa.
Em 21,22-34, o cap.20 continua!
Também 21,8-21 dará a impressão de que se encerra com seu versículo
final. E, em termos narrativos, isso de fato condiz, se bem que aparente-
mente. Pois no cap.22 temos a 'continuação' deste conto; é obvio que o
cap.22 é paralelo a 21,8-21.
Pareceria que nas genealogias de 22,20-24 tivéssemos o fechamento
dos caps.20-22. Até que isso poderia estar acontecendo. Mas, não! Es-
tas genealogias de 22,20-24 não podem ser consideradas como fecha-
mento dos caps.20-22, simplesmente porque estes versículos finais do
cap.22 não dizem respeito aos personagens dos caps.20-22. Tão-somente
se referem a Abraão, oferecendo a seu respeito alguns dados familiares
a mais. Os caps.20-22 poderiam estar encerrados sem que ainda se vi-
esse a falar de Sara (cap.23) e de seu filho (24)?
Por isso, convém que se observe que os caps.20-24(incluindo talvez o
cap.25) representam um convívio de estórias; são uma espécie de 'con-
domínio' literário. Em tendência, aqui temos a emergência de um 'livro'.
Há problemas com o começo desta nova unidade. Seu final está bem elabora-
do, mas seu início é fragmentário, incompleto. Parece-me que, ao serem incorpora-
dos os v.l- 7, perderam- se os começos da estória em questão.
Esta nova unidade está na continuidade dos versículos anteriores, de 21,1-7.
O v.8 não tem marcas de começo de uma narração. Este se há de ter perdido
através da inclusão dos v.l + 2- 5 + 6- 7.
Contudo, 21,1- 7 também se fez necessário, pois havia aí uma narrativa, à
qual pertenciam os personagens Isaque e Ismael. Porém, Isaque ainda nem nas-
182
cera. Portanto, para chegar a contar de Isaque, fazia-se 'necessário' seu nasci-
mento, os v.I-7 do cap.21.
Pode-se dizer também que 21,1-7 é preparatório para 21,8-21. Acontece
que o v.8 tende a dar continuidade aos v.l- 7. Mas o caráter fragmentário destes,
dos vl- 7, não nos permite uma decisão muito clara. Há que dizer, pois, que a
formulação de 21,1- 7 há de ter afetado estrutura e integridade da segunda estó-
ria sobre Ismael. Vamos, a seus conteúdos, em uma tradução literal.
80 menino cresceu e foi desmamado. E Abraão fez um grande banquete
no dia em que Isaque foi desmamado.
9E Sara viu o filho da egípcia Agar, que dera à luz a Abraão, brincando.
lOE disse a Abraão: "Expulsa esta escrava e seu filho. Ora, o filho desta
escrava não herdará com meu filho, com Isaque."
llE o assunto aborreceu muito aos olhos de Abraão por causa de
seu filho. 12E disse Deus a Abraão: "Não [te] aborreças aos teus
olhos a propósito do jovem e a propósito de tua escrava. Ouve tudo
o que Sara te disser com sua voz. Eis que, através de Isaque será
nomeada tua descendência. l3E, em especial, o filho da escrava
para povo o porei. Afinal, ele [é] tua descendência."
14E Abraão levantou cedo na madrugada. E tomou pão e um odre de água.
E deu a Agar. Pôs o menino sobre seus ombros. E a despediu.
E (ela) andou. E vagueou no deserto de Beerseba. 15E acabou a água do
odre. E lançou o menino debaixo de um dos arbustos. 16E andou e sentou-
se para si em frente, longe como de tiros de flecha. É que dizia: "Não terei
que ver a morte do menino." E sentou-se em frente. E ergueu sua voz. E
chorou. - 17E Deus ouviu a voz do menino. E o mensageiro de Deus cha-
mou Agar a partir do céu. E disse a ela: "O que [há] contigo, Agar? Não
temas! Eis, Deus ouviu a voz do menino, ali onde ele [está]. "Levanta-te.
Ergue o menino. E segura tua mão nele: eis que para grande nação o porei."
19E Deus abriu seus olhos. E [ela] viu um poço de águas. E foi. E encheu o
odre de água. E deu de beber ao menino. 2°E Deus estava com o menino.
E cresceu. E morou no deserto. E se tomou flecheiro. 21E morou no deser-
to de Parã. E sua mãe tomou para ele uma mulher da terra do Egito.
183
com muito menor intensidade em narrações. Preferencialmente, provêm de quem
diz. Narrações permitem diversificar gestos e ações.
Escolhi o v.N para exemplificar esta minha percepção de que é o verbo
que matiza os conteúdos desses nossos versículos:
E Abraão levantou cedo na madrugada.
E tomou pão e um odre de água.
E deu a Agar.
Pôs o menino sobre seus ombros.
E o deixou solto.
E (ela) andou.
E vagueou no deserto de Beerseba. (veja v.14)
Sete verbos em um só versículo! As frases são eminentemente sóbrias, sem
adornos 'desnecessários', tudo ao contrário da linguagem deuteronomística, com
suas retomadas e emaranhados (veja, por exemplo, Deuteronômio 15,1-11).
Não se poderia querer deduzir somente desta insistência em breves frases
que estamos diante de um jeito antigo de comunicar-se. Mas, sem dúvida, po-
der-se-à aludir também a este seu aspecto, para induzir que nosso trecho é mui-
to antigo.
É antigo
Estes nossos versículos são antigos. No item anterior, já assinalei um dos
argumentos a recorrer: a linguagem singela de frases muito breves. Mostrei-o no
v.14, mas poderemos verificá-lo por toda parte em 21,8-21. Tal linguagem apon-
ta para tempos antigos.
Tradicionalmente se agregava este trecho à fonte eloísta, a escritores do pen-
tateuco em torno de 800 a.C, Não me parece que possamos contar com uma tal
fonte, nem com outras, como o assim chamado javista ou o escrito sacerdotal. Po-
rém, a conexão à fonte (inexistente, a meu ver) do eloísta pode-nos auxiliar indire-
tamente: nossos versículos são mesmo antigos.
Ora, a questão em disputa é familiar e clânica. E mesmo o conceito de
Deus não vem de modo algum institucionalizado. Quem resolve, são as pessoas
envolvidas no caso: Agar e Ismael tomam novas direções na vida, distantes de
Sara, a que vê problemas em uma demasiada proximidade entre os dois meninos.
Estamos, pois, em práticas sociais visivelmente clânicas, Falta o estado, mas até
não há nem presença de tribos ou outras instituições sociais mais amplas. As pes-
soas envolvidas é que têm que achar uma solução para que seus caminhos se
tornem viáveis, suas vidas seguras.
É verdade, nos v.I l-]J, entram em cena novas perspectivas. Abraão
passa a ter papel central, e se recorre a argumentos da história da salvação
184
para justificar sua açâo, ao enjeitar Agar e Ismael. Para quem lê o todo dos
caps.12-25, estas ações violentas de Abraão, ao empurrar Agar e Ismael à morte,
estranham. A seguir ainda voltaremos a estes aspectos. Agora tão-somente
nos cabe dizer que estes v.ll-13 obviamente não são parte original da estória
da expulsão de Agar e Ismael. São adendos posteriores. Poderíamos atribuí-los
inclusive a adições da redação final do pentateuco, similares a 21,1-5.
Portanto, excetuando os v. 11-13, possivelmente oriundos de quem con-
cluiu o pentateuco, o restante de 21,8-10+ 14-21 pode ter sido formulado ainda
em tempos tribais, anteriores às monarquias de Israel e Judá. Esta nossa antiga
história não deve estar muito distante do texto originário do cap.l ó, e dos v.6 e
v.] que, no cap.21, lhe precedem.
Contudo, não me parece que o começo de nossa narrativa de 21,8-10+ 14-
21 esteja preservado. O que precedia ao v.8 deve ter sido vitimado pelos atuais
v.I-7 do cap.Zl ,
Sequência narrativa
185
No todo, há marcante similaridade com o cap.Ió, como também se verá
nos conteúdos.
186
atribuído, pelo nome, a Isaque, pois este é que está vinculado a "brincar", ao verbo
shq > yishaq/"Isaque"f'(ele) brinca". Mas, atenção, quem vê Ismael semelhante a
Isaque é Sara. O texto não diz que Ismael estivesse desejando substituir a Isaque.
Quem assim interpreta a situação, que só é de conflito para ela, e que não vem
carregada de conflito de parte de Ismael ou de Agar, sua mãe, é Sara.
Ela é que tem os olhos e o poder de definir o que se passa. O texto não diz
que aquilo que ela vê acontecendo, de fato estaria ocorrendo!
O v. 10 exprime-o muito bem: entre o olhar de Sara e sua palavra, sua
explicação, há direta correlação. Ela, Sara é a verdade! E ela a repassa a Abraão:
"e disse a Abraão". E explicita o que está em jogo: a herança! Ismael não pode
herdar com Isaque. À luz deste interesse de Sara, pode-se revisitar o v.9: não
pode haver semelhança entre Ismael e Isaque; Ismael não pode valer-se de um
termo - o de "brincar"/shq- 'reservado' para Isaque. Na medida em que ambos
podem "brincar", ambos poderiam "cc-herdar". E isso, para Sara, e, em seguida,
para Abraão, é impossível.
Por isso, Ismael e sua mãe ficam condenados à morte! Bem, o v.9a ainda
não o expressa desse jeito. "Expulsar" não tem o deserto, explicitamente, como
alvo. Mas, implicitamente, o tem, pois Beerseba, onde a narrativa se desenrola
(v.14b), está em meio a terras desérticas. "Enxota esta escrava e seu filho" só
pode ter o deserto como meta! Isso não está dito no v.10, mas esta é sua substân-
cia. Sara exige, pois, pena de morte! Não só deseja separação, mas morte!
A morte é, no v.14a, a concretização do que líamos no v.9. Abraão faz o
que Sara diz. No v.14a, são usadas cinco frases para realizar o tal do "enxotar"
(do v.10a). A mim me impacta esta arte literária simples, mas eficiente. Para
"enxotar'V''expulsar", Abraão se "levanta cedo". "Dá" a Agar pão e água, e lhe
põe a criança "sobre seus ombros". E a "despede". Há sequência lógica nesta
açâo. O caminho à morte, ditada por quem pode, é assim lógico, transparente,
visível, compreensível. Não se dá às escondidas. Sucede às claras. Não vê quem
não quer! Esta nossa estória é estupenda na desumanidade em que alcança ser
narrada. Dá calafrio!
Quem lia ou ouvia esta narrativa simples e de tremenda dor, interrom-
peu-a por instantes, nos v.l l-L], Imagino que lhe soasse difícil desmentir Sara e
Abraão, porque, aí pelo quarto ou terceiro séculos, em tempos, em que o penta-
teuco passava por sua redação final, seus personagens já tinham coloridos dema-
siado elevados. Mas, de todo modo, os leitores e as leitoras alcançaram formular
um critério teológico, semelhante ao que encontramos em 16,9.15-16, para sus-
pender algo de seus efeitos.
Penso que o v.11 contenha os dois distanciamentos mais significativos,
retomados no v.U. Por um lado, Ismael é chamado de "seu filho". No restante
187
de nossa unidade, falta esta filiação de Ismael a Abraão. Ele só é tratado de filho
de Agar! Ao voltar a ser "seu filho", Ismael volta a ser visto em outra categoria.
(É a que também prevalece em caps.16 e 25!) Por outro lado, usa-se um verbo
de raiz de sentido marcante para caracterizar a opinião e os sentimentos de
Abraão ao levar seu filho ao deserto, à morte: "aborreceu"l"foi ruim"l"foi im-
prestável", e não só isso: "foi muito imprestável". É visível como a redação final
tenta distanciar-se da ação de Abraão e de Sara ao maltratarem Ismael. Esta
ênfase volta nos v.12-13, em especial no v.13.
Ainda assim, a solução teológica, dada no v.l Z, não alcança a insatisfação
expressa no v.11. O v.12 argumenta com a história da salvação. E, nela, cabe
primazia a Isaque: "em relação a ti a descendência será nomeada" (v.13b). Por isso,
Abraão é chamado a ouvir as decisões de Sara, por exemplo, em enjeitar a Ismael.
Acontece que a postura de Sara está inserida na história da salvação, ainda que
por linhas tortuosas. A nós, tais caminhos parecem demasiado tortuosos, até mes-
mo em termos histórico-salvíficos. A intenção da morte de Ismael não favorece
encaminhamentos de promessa para Isaque. Aqui, nestes nossos versículos, sim!
Assim o expressa o v.13, "em especial" interessado em Ismael à semelhança do
v.1I. Tomar-se-a "nação", na descendência de Abraão!
Portanto, os v.ll-13 - apesar deste seu método histórico-salvífico, para
mim um tanto estranho - reencontram um significativo equilíbrio, em termos
teológicos: Isaque é afirmado, mas o espaço de Ismael não é negado. Do ponto
de vista de Sara, esta similaridade salvífica entre Ismael e Isaque estava a perigo.
Nosso adendo posterior, dos v.ll-13, tende a superar a unilateralidade anti-
Ismael da posição de Sara e da prática de Abraão, nestes primeiros versículos
(v.8+ 9-14a). Porém, alcançam seu objetivo pela programada eliminação de Is-
mael. Eis, a questão!
No seguimento da história antiga, nos v.14b-16 e v.l ?-22 a devoção de
[avé aos mais frágeis rompe as palavras e atitudes da Sara e Abraão por outros
meios.
"Levanta-te!" - v.14b-18
Chegamos ao auge! E, nele, estão contra e justapostos dois 'personagens',
duas atitudes: a de Agar (v.14b-16) e a de Deus (v.I? -18).
Por um lado, Agar'anda' até lançar fora o menino (v.14b-15). Em segui-
da, volta a 'andar' até se distanciar (v.l6a). E, por fim, 'senta-se' para chorar
(v.16b). Da agitação do andar, alcança a aparente calma do choro! Por outro
lado, Deus não só promete: "ouviu a voz do menino", como também desfaz o
temor (v.I?) . Só depois manda apelar ao agito: "levanta-te" (v.I?) . Logo, Agar e
Deus se diferenciam em suas ações.
188
Nos v.14h~l6, os quatro verbos realçam o quarto. Os dois primeiros expres-
sam que o "andar" de Agar, carregando Ismael (v.l4a), se transforma em um "va-
guear"f'andar errante", sem água. E isso ocorre em pleno "deserto de Beerseba", nas
vastidões de areia que se estendem ao sul de Beerseba, região na qual estão localiza-
das as estórias dos caps.Zü-ZZ. Daí deriva a frase final, o primeiro auge da desespe-
rança nestes v.L[b-Ió: Agar 'lança' o menino "debaixo de um dos arbustos". O "ar-
busto" indica a pequena proteção que a mãe busca para seu filho, a esperança que
lhe resta: um arbusto! - O v.16 recomeça com o mesmo verbo que iniciara o v.14b:
"andar". Mas lá, no v.l4b, ela "anda" carregando seu filho Ismael, agora, no v.l ó,
anda 'carregando' a si mesma. Para o menino, importava estar debaixo de um arbus-
to. Para a mãe Agar, o que interessa é estar sentada na distância adequada: a fim de
não estar 'no âmbito' da morte do menino, de não poder nem ouvi-lo em suas dores
de morte e nem vê-lo. Debaixo do arbusto e à distância do tiro de flecha é à distância
da morte. - Enfim, aí "se senta". Grita ("ergue a voz") e chora. Agar começa 'andan-
do' (v.l-lb) e termina suas ações no desespero de gritos e 'choro'; no começo da
cena, carrega seu filho, no final só lhe restam lágrimas. A curva da vida lhe é descen-
dente.
Nos v.17~ 18, o encontro de Deus com Agar e Ismael respeita este deses-
pero da mãe e do filho. Ela está sem ação. Deus não exige, mas age em favor de
Ismael. Em síntese, Deus "ouve"! Isso diz tudo; o restante das frases que seguem
tão-somente é a explicação desta: "e Deus ouviu a voz do menino" (veja Êxodo
3 e 6!). Este é o título de tudo, pois "ouvir" é também realizar. Quando Deus
"ouve", as adversidades se desfazem. Com uma só frase de poucas palavras, a dor
se vai! O que segue é detalhamento. E isso se percebe até em um breve aspecto:
no começo do v.17, o sujeito da atuação é imediatamente o próprio Deus/'elo~
him. Quando o texto, a partir da segunda frase, encaminha os detalhamentos da
intervenção divina, já não se refere a 'elohim/Deus, mas, sim, ao "mensageiro de
Deus". O que segue, pois, no v.l7, após a frase salvífica lapidar "e Deus ouviu a
voz do menino", é detalhe e concretização. Em Deus, há, pois, um novo ato
salvífico. E este não dá sequência à gramática humana, às ações verbais, sejam
elas de Ismael ou de Agar. Seu ato é inovador; é o advento da esperança, para
gente escrava como Agar e crianças enjeitadas como Ismael.
A partir da segunda frase do v.17, temos o detalhamento. Há nova intro-
dução, que prevalecerá no restante do v.17 e no v.1S: "e o mensageiro de Deus
chamou Agar a partir do céu". Interessante: o mensageiro/intermediário parece
mais distante que o próprio Deus: comunica-se a partir do céu!
Mas, enfim, a surpresa maior, ao meu ver, reside em que Deus ouvia a voz que
ninguém ouviu ou quis ouvir. Afinal, nos versículos anteriores, v.14b-16, se insistia
em dizer que o menino sob um dos arbustos não queria ser ouvido pela mãe. No
choro da mãe, chegavam a seu ponto final as atitudes da mãe (final do v.16). Contu-
1S9
do, não é a ela que Deus ouve! Ele justamente escuta o menino! A quem nem a mãe
quer ouvir, a ele Deus ouve! Deus está mais próximo que a própria mãe. Esta é uma
tese do texto; ela me surpreende! Aí a teologia se faz aguda na humanização. Ao se
humanizar, Deus se diviniza! Aí é que é Deus!
As palavras do mensageiro de Deus primeiramente repetem as de Deus:
"Deus ouviu a voz do menino, ali onde ele [está]". O 'anjo' faz coro a Deus. E,
antes disso, ausculta e anima a Agar: em especial o "não temas" é superação da
dor havida. Desta maravilhosa ação de Deus resulta um novo caminho (v.18).
As quatro frases deste v.18 retornam as ações antes da cena de dores sob os
arbustos. A ordem "levanta-te" tem por meta o apoio ao menino, pois, afinal,
ele é portador de bênção, a de ser "grande nação", terminologia já mencionada
no v.13.
Estes v.14b-18 expressam o decisivo: "Deus ouviu a voz do menino". Eis,
o que importa na Escritura: os ouvidos de Deus estão postos nos mais persegui-
dos. Estes são os caminhos de Deus, aqui, com Ismael, e, logo adiante, com
Isaque.
190
Também no v.20, é Deus quem age em prol de Ismael; v.19 e v.20 têm
quase o mesmo início: "e Deus...". A presença de Deus no v.20 é de bênção; a
primeira estabelece esta perspectiva, sendo as demais frases do v.20 suas deriva-
ções. "Estar com ..." expressa bênção, diferindo do v.19, onde a presença de Deus
se faz de modo salvífico. Este "estar de Deus com ..." no v.20 se expressa pelo
"crescer" de Ismael, por seu local de moradia ("no deserto"), e por sua profissão
("flecheiro"j diferente em 16,9-12). Este v.20 claramente pertence ao final da
perícope: a nova condição de vida dos personagens do episódio é caracterizada.
Também o v.21 se comporta à semelhança do v.20. Informa-nos sobre o
nome deste "deserto", em que Ismael morava: Parã, nos desertos ao sul de Judá.
E, por fim, sua mulher veio da terra do Egito, de onde Agar, a mãe egípcia a
"tomou". De resto, o cap.21 não caracteriza Agar como egípcia. Por isso, este
dado há de provir do cap.16. Portanto, terá diante de si a própria redação do
pentateuco.
Perspectivas
Deus ouve - este é o coração da narrativa. E ouve onde já nem são ouvi-
dos gritos, pois à estória lhe falta o 'grito'. O ouvir de Deus nem mesmo depende
do grito. O nome Ismael tem a ver com o "ouvir" de 'e#Deus. Neste seu aspecto
central, nossa narração corresponde à do cap.l6, em que, contudo, o 'ver' de
Javé é decisivo (16,11). Aos seus - escravas e seu filho, estrangeiros - Javé/
Deus 'vê' e 'ouve'. Eis o milagre que as estórias bíblicas testemunham, em
consonância com o êxodo. O cap.16 e esta nossa parte do cap.21 reforçam-se,
pois, mutuamente.
Eis: a verdade é mesmo concreta, simples, e estranha.
Os v.II-13 já tiveram dificuldades de conviver com tamanha radicalida-
de de testemunho. São versículos que como que se irmanam conosco, em nossa
dificuldade com tão magnífica e surpreendente afirmação. Afinal, estas surpre-
sas, que são encenadas ante nossos olhos com os cenários de Agar e Ismael,
põem-nos em maus lençóis. Ainda que estes v.l1-13 queiram escusar a Abraão
por sua brutal ação de enjeitar Agar e seu filho em pleno deserto, não deixam de
indicar também que o anseio divino não se submete a estes caprichos abraâmi-
cos, nem aos de Sara e aos nossos. Deus ouve e vê, apesar de tudo e contra
todos!
Este testemunho bíblico a partir de Agar e Ismael deseja ser entendido na
correlação com o que ocorre, 'em seguida', com Isaque (cap.22). Portanto, não
se leia o cap.22, sem o cap.21!
191
Abraão sabe o que importa
Gênesis 21,22..34
192
o texto em seu tempo
Há dificuldade em datar este trecho. As opções variam na fixação da data
desta duplicata de 26,26-33, em que os conteúdos, contudo, dizem respeito a
Rebeca e Isaque.
Pode-se optar pela precedência temporal de nossos versículos. Porém, tam-
bém se pode atribuir a anterioridade ao cap.26. Sou dos que preferem a prece-
dência de 26,26-33. Neste cap.Zó, temos uma unidade específica sobre Rebeca
e Isaque, que se interpõe ao fluxo narrativo de 25,19-34 + 27,1-46 (sobre a
disputa pela primogenitura entre Jacó e Esaú}, Nesta narração sobre Rebeca e
Isaque no cap.26, tanto a memória sobre Rebeca (v.1-1 I) quanto a sobre o poço
em Beerseba precedem à data da escrita em 20,1-18 e sua continuação em 21,22-34.
Um dos motivos principais reside em que no cap.26 os assuntos são mais nume-
rosos, sendo, pois, 20,1-18 + 21,22-32 só uma parte, um excerto no cap.26, e
não o inverso.
De acordo a esta linha de argumentação, estamos, pois, em tempos pós-
extlicos, tanto no final do cap.20 (v.17-18) quanto em relação a nosso episódio
junto ao poço. Afinal, naqueles tempos Judá disputava sua presença no sudoeste
de Judá, no Neguebe, entre Beerseba e a terra dos filisteus (Gaza). Esta região
era, a seu modo, atribuída a Judá, desde os tempos das peregrinações de Sara e
Abraão (12,9!). Nelas, Hebrom e, em suas imediações, Macpela, bem como o
N eguebe, a oeste e leste de Beerseba, são caracteristicamente terras abraâmicas,
judaítas. Porém, desde o final do 8 Q século e, em especial, também em tempos
exílicos (veja o livro bíblico de Abdias/Obadias), estas terras eram um corredor
comercial que, na altura de Beerseba, conectava as terras dos nabateus (ex-Edom)
ao Mar Mediterrâneo. Sob tais condições, Beerseba não só era região relevante
em tempos de Abraão e Isaque, mas tomou-se principalmente área de interesse
comercial regional, envolvendo filisteus, judaítas e 'edomitas'/nabateus.
Há que considerar que o cap.20 situa-se mais a sudoeste do caminho
comercial que vincula os nabateus/edomitas ao Mar Mediterrâneo e seus portos.
Neste sentido, não há uma necessidade premente para vincular as partes princi-
pais do cap.20 às relações entre judaítas e edomitas/nabateus. Outra é a localiza-
ção de Beerseba, situada justamente nos caminhos que põem em circulação
pessoas e produtos de regiões edomitas/nabateias (veja Gênesis 25!) na direção
mediterrânea. Por isso, convém buscar uma datação para a cena de Gerar (cap.20)
e outra para a questão dos poços em nossa subunidade de 21,22-34.
Neste ambiente conflitivo, foram esboçadas estas nossas estórias sobre a
luta pelos poços no Neguebe. Uma delas está em nossa narração de 21,22-34,
outras mais, no cap.26, sendo de todo modo 21,22-34 (e alguns adendos no
cap.20?) posteriores ao cap.26.
193
Cabem, pois, em tempos pós-exílicos, quando o Neguebe cada vez mais
foi disputado por judaítas e aqueles que usavam o Neguebe como conexão entre
as terras edomitas/nabateias, no sul da Transjordânia, e a beira-mar mediterrâ-
nica ocupada pelos filisteus. Este problema advém de séculos anteriores, quando
os edomitas cada vez mais estendiam suas ocupações no Neguebe do oeste, como
o indica a própria arqueologia. Diz-se que, já no 7" século, encontram-se vilas
edomitas no sul de Judá!
Nestas disputas, nossas estórias, interessantemente, não assumem posi-
cionamentos beligerantes. Antes tratam de falar bem dos filisteus e dos povos da
Península da Arábia, descendentes de Agar-Ismael. Portanto, os conteúdos das
estórias justamente não querem reafirmar as beligerâncias e guerras, mas bus-
cam indicar soluções de paz.
É o que passaremos a ver nos conteúdos.
Fontes?
194
Sequência dos assuntos
195
IIE acertaram um acordo" - Conteúdos
196
"Não mentirás" - (v.22b-24)
Em perigo se encontram um rei (Abi-meleque "o pai do rei") e seu "co-
mandante militar" (Picoi)! Ambos requerem proteção de diante de Abraão, um
'estrangeiro' (v.24 e 34!)! Que estranhas relações: um 'estrangeiro' em maior
segurança que um rei e seu generalíssimo! Que inversão!
Sim, os conteúdos são mesmo mui estranhos. No final do v.22, rei e co-
mandante constatam bênção, bem-estar e sucesso em Abraão, literalmente "em
tudo o que tu fazes", o que, por sua vez, significa, no concreto, que "Deus -
contigo!". As bênçãos testemunham, pois, da fidelidade de Deus.
Diante deste homem abençoado, Abimeleque pede por proteção (v.23):
"não mentirás"! As bênçãos abraâmicas são um perigo a seu entorno, porque
este Abraão mostrou poder ser desleal (no cap.20), colocando em perigo todo
um povo. Pode não vir a ser 'solidário'. O pedido do rei filisteu para que Abraão
tenha "solidariedade" é idêntico a que "não minta". Ao mentir sobre a identida-
de de Sara, no cap. 20, pôs em perigo a seus interlocutores (Abimeleque e PicoI),
sua casa e "a terra", o país dos filisteus.
Aqui estamos, pois, diante de uma inversão que, aliás, continua pelos
próximos versículos. Não são os filisteus que ameaçam a Abraão, mas este àque-
les! É desta posição inusitada que a descendência de Sara e Abraão precisa dar-
se conta, senão põe os povos a perigo. A descendência de Abraão precisa voltar-
se a esta tarefa de "solidariedade" com as nações. Pois não é Abraão que está em
insegurança, ao ser 'estrangeiro' entre as nações, mas são estes os que hão de
tremer!
E Abraão, este personagem pós-exílico em meio aos povos, diz sim à sua
surpreendente tarefa: "eu juro"!
Esta me parece uma linguagem clara e mui inusitada! E ela se prolonga
por nossa perícope... A rigor já esteve em 18,16-33!
197
ele, Abraão, um 'estrangeiro' entre os filisteus, quem se coloca na perspectiva do
conflito: "e repreendeu Abraão a Abimeleque!". "Repreender" de fato leva esta
tônica não só de chamar a atenção, mas até de ameaçar com um processo. Além
de similar, ainda mais ofensivo a este é outro verbo, com o qual Abraão incrimi-
na aos "servos'V''súditos" do rei filisteu; chama-os de ladrões, pois sua ação é de
"roubar". Nestas cenas, Abraão é, de todo, senhor de si, e em muito, hegemôni-
co em relação ao rei e a seu general.
Assim, Abimeleque apela à sua inocência: "não soube", 'não fui informa-
do', "não ouvi" (v.26). Cada uma destas negações é introduzida, no hebraico,
por uma partícula que sublinha e realça ("em especial") e não só adiciona ("tam-
bérn"). O v.27 dá seguimento ao detalhado apelo de inocência, reconhece-o
implicitamente.
De todo modo, prevalece a pressa. E, já no v.27, chega-se rapidamente a
uma resolução. E, assim, este versículo funciona como síntese; no começo da
nova cena (v.27) se expressa o todo que, nos versículos subsequentes, passa a ser
esmiuçado. Enquanto Abimeleque como que ainda se situa em meio a um arra-
zoado de desculpas (v.26), Abraão já encerra as negociações: "e eles dois acerta-
ram um acordo" (v.27b). Com isso, não mais que de repente, o caso, o dabar/
"palavra" está encerrado, sem que Abimeleque se tivesse recuperado de haver
sido 'repreendido' e chamado de 'ladrão' (v.25). O acordo "foi cortado", como o
expressa o hebraico. Aliás, antes disso, "ovelha e boi" haviam sido repassados de
Abraão a Abimeleque. O presente do acordo estava, pois, entregue. E este efe-
tivado. O poço era, pois, de Abraão!
Nos v.28-29, iniciam as tratativas de um detalhamento do acordo já efe-
tivado no v.27, e lá 'assinado' com o presente de "ovelha e boi". Agora já não se
trata da pertença do poço, pois este já é de Abraão (v.27). Agora, no v.28, o
assunto é a origem do poço, sua escavação.
A mediação simbólica do acordo já não são as tais "ovelha e boi", citadas
no v.27, mas, agora, passam a ser as "sete pequenas ovelhas separadas", repetida-
mente mencionadas (assim nos v.28.29.30). Nos v.28 e 29, a ênfase recai sobre
esta repetida expressão. Elas são colocadas por Abraão (v.28), sendo que a rea-
ção de Abimeleque não vai além da constatação do que diante dele fora posto.
Decisivo para a interpretação das "sete pequenas ovelhas separadas" é o
v.JO. E nele, não se usa o conceito "acertar um acordo"l"cortar um acordo"
(v.27). O conceito é outro: as "sete pequenas ovelhas separadas" "me serão para
testemunho". Elas não efetivam simbolicamente um berit/"acordo", mas uma
'edahl"testemunho"! E é por isso que há que distinguir entre a "aliança",' beritdo
v.27, e este "testemunho"/ 'edah, no v.30. O "testemunho" se refere à obra de
escavação do poço, como se lê expressamente no v.30b, enquanto que berit/
"acordo" diz respeito à posse do poço (v.27).
198
Estabelecida esta diferenciação, pode-se também presumir que o v.Jl se
refere a um dos conteúdos de nossa subunidade, e o v.J2a, a outro. O v.32a ("e
acertaram/cortaram um acordo em Beerseba") remete para o v.27. Os v.27 e
v.32a conformam, pois, o arco narrativo externo, enquanto que o v.31, ao reme-
ter para v.28, consolida o tema iniciado no v.28. Não há, neste v.31, um termo/
conteúdo que remeta expressamente para os assuntos dos v.28-31. Porém, não
resta dúvida de que o verbo "jurar", relacionado, por sua vez, ao nome Beerseba,
no final do v.31, se relaciona ao assunto do "testemunho".
Através do acordo firmado com Abimeleque, o poço é de Abraão e de
seus descendentes! Através do testemunho 'de ambos, acorda-se que o poço
inclusive foi cavado por Abraão! Este é o duplo conteúdo dos v.25-J2a. Abraão,
um seminômade, atento e sábio, leva a melhor sobre os senhores do sul-palesti-
nense, os filisteus, sem que o acordo por ele alcançado seja raiz de intrigas;
afinal, um acordo fecha a cena.
199
Concluindo
É possível viver em terras estrangeiras e conviver com estrangeiros. Aliás,
um Abraão que 'acabara' de fazer-se usuário primeiro do poço de Beerseba e vai-
se ao 'exterior', aos filisteus para lá viver, chama a atenção. Afinal, deveria ter
permanecido junto ao poço sobre o qual acabara de adquirir direitos originários.
Mas prefere as "terras dos filisteus"!
Estamos, pois, não em tempos antigos, abraâmicos, mas em tempos re-
centes, em dias de uma Sara e de um Abraão dispersos, vivendo em meio a
outros povos. A vida em meio aos povos não só é ruína, é chance também. Não
estamos, aí, junto às primeiras gerações pós-exílicas, mas quando por séculos já
se havia experimentado a vida na dispersão. Aí Sara e Abraão se fazem símbolos
desta vida, partilhada em terras estrangeiras, mas em um cotidiano de paz.
Reis são militares (Abimeleque e Picol)! Nosso trecho não o esquece.
Sabe das condições adversas nas quais se vive no exterior. Mas reis e generais
não controlam tudo, nem são deveras sábios. Com agilidade de argumentos e
rapidez de decisões, é possível superá-los. O poço de Beerseba é apresentado
como um exemplo. Estas fontes de Beerseba, tão tipicamente judaítas, até elas
são de "[avé, o Deus eterno", porque Abraão foi um sábio negociador.
200
"Não estendas as mãos"
Gênesis 22,1 .. 19.20..24
201
para si o cordeiro para holocausto, meu filho". E andaram ambos juntos.
9E chegaram ao lugar, que lhe dissera o Deus, e construiu ali Abraão o
altar, e empilhou as madeiras, e amarrou Isaque, seu filho, e colocou-o
sobre o altar sobre as madeiras, IOe estendeu Abraão sua mão, e tomou o
cutelo para imolar seu filho. 11E chamou-o o mensageiro de [avé dos céus,
e disse: "Abraão! Abraão!". E disse: "Eis-me!". lzE disse: "Não estenderás
a tua mão ao menino, e nada lhe farás. Eis, agora sei: 'Eis, o temente de
Deus tu [és], e não negaste teu filho, teu único a mim. '" l3E ergueu Abraão
seus olhos. E olhou. E, eis, um carneiro, atrás. Foi mantido preso na mata,
em seus chifres. E foi Abraão. E tomou o carneiro. E o ergueu para holo-
causto em lugar de seu filho. 14E chamou Abraão o nome daquele lugar
'[avé provê', do qual, hoje, se diz: em 'o monte de [avé aparece'.
15E chamou o mensageiro de [avé para Abraão segunda vez dos
céus. 16E disse: "Por mim jurei, dito de [avé: eis, por haveres feito
esta palavra e não negado teu filho, teu único, 17eis que abençoar te
abençoarei e multiplicar multiplicarei tua descendência como as
estrelas dos céus e como a areia que [está] sobre a praia do mar. E
tomará posse tua descendência da porta de seus inimigos. ISE se
abençoarão em tua descendência todas as nações da terra, porque
ouviste minha voz."
19E retornou Abraão a seus jovens. E se ergueram. E foram juntos para
Beerseba. E habitou Abraão em Beerseba.
ZOE aconteceu depois desses episódios.
E foi anunciado a Abraão o seguinte: "Eis, deu à luz Milca, em
especial ela, filhos para Naor, teu irmão: 21Uz, seu primogênito, e
Bus, seu irmão, e Quemuel, o pai de Arã, ZZe Quesed, e Haso, e
Pildas, e Idlap, e Betuel, Z3e Betuel gerou Rebeca. A estes oito deu
à luz Milca, para Naor, o irmão de Abraão. z4E sua concubina - e
seu nome [era] Reuma - deu à luz, em especial ela: Teba, e Gaham,
e Tahas, e Maaca."
202
contribuir a indicar esta sua bela coesão interna, em que de frase em frase e de
ação em ação rapidamente se caminha em direção ao cumprimento da tarefa,
aparentemente, atribuída por "o Deus" a Abraão: "oferece [teu filho] para holo-
causto" (v.3). Para reparar nesta tensão típica de nosso capítulo, também se
pode comparar este seu senso dramático com a linguagem dos v.IS-IS, mais
'alongada', menos exata, Aliás, os v.20-24 igualmente têm lá seu outro e próprio
jeito de se comunicar.
Também este cap.22 tem seu título, em parte similar a outras perícopes:
"e aconteceu depois destas coisas: e o Deus pôs à prova a Abraão" (v.I a). Este
título, por um lado, tem uma frase genérica de introdução ("e aconteceu depois
destas coisas"). Este mesmo tipo de titulação também está no v.20. Por outro
lado, há um título temático, típico para nossa narração: "e o Deus pôs à prova a
Abraão". Aí é estabelecida a diretriz temática de interpretação: tratar-se-ia de
uma 'prova', de um 'teste'! Um tal título específico de conteúdo também se
encontra no mesmo v.20a: "foi anunciado a Abraão o seguinte". Percebe-se aí a
intenção de correlacionar v.I-19 e v.20-24.
Prefiro, pois, realçar coesão e sequencialidade nos v.I-14; desisto de pro-
por subdivisões. Elas não aparecem claramente formatadas. Ainda assim outros
exegetas marcam rupturas: na Tradução Ecuménica da BíbliarrEB, igualmente
são pressupostas diversas divisões dos v.I-14. Tais opções obviamente, em tese,
bem que são possíveis. Aqui, prefiro não considerá-las, a fim de poder realçar
este sentido de coesão da narração. Sua beleza também reside nesta sua com-
pactação, com frases correlacionadas e entrançadas.
As belas sequências
203
levado (jumento, jovens, Isaque, madeira). Os v.4-5 enfocam uma parada da
comitiva à vista "do lugar", de Moriá. No v.6, recomeça a caminhada, agora sem
os "jovens"; típico deste v.6, em que de certo modo, estão centrados os v.3-8, é
o que filho e pai, respectivamente, carregam. Nos v.7-8, prevalecem as palavras,
em continuidade às dos v.4-5. O filho quer saber onde está "a ovelha para o
holocausto" (v.7); na resposta de Abraão, "Deus proverá" (v.S). Afinal, desde o
título da narração, no v.I ª, sabemos que a narração se refere a uma 'prova', não
a um holocausto!
Uma vez visto o todo dos v.3-8, vamos com mais atenção a suas partes.
De imediato seguem-se, pois, no v.J, outras cinco (seis?) frases. Estão
literária e imediatamente encostadas e imiscuídas nas anteriores: sua ação cor-
responde à palavra divina precedente (no v.1b-2). As ações são de Abraão; com
exceção das duas últimas, as anteriores são específicas: "levantou-se" e "enci-
lhou" formam um conjunto, sendo que o mesmo se há de dizer das três/duas
últimas: "rachou madeiras" e "ergueu"l"foi". No meio destas cinco/quatro ações
verbais, está aquilo que decide a cena: Abraão "tomou dois de seus jovens con-
sigo e Isaque, seu filho". Em torno destas pessoas, definir-se-ão as cenas que
seguem. Aliás, aqui o verbo "tomar" está no centro, acima, no v.L, estivera no
começo. O problema é "tomar"!
Os v. 4-5 vêm iniciados, aparentemente, por novos conteúdos, pois pare-
ceria que a marcação do tempo, "no terceiro dia", expressasse novas iniciativas.
Mas este não é o caso: a cena continua. Três ações enfocam Abraão: "ergueu...
seus olhos", "viu" e "disse"; seu interesse está na boca, no dizer. O "dizer" se
dirige aos jovens, informando-os sobre a ação que, agora, lhes compete junto ao
jumento, e a que dizem respeito a Abraão e a seu "jovem"/filho. Sobre este,
Abraão diz que: "iremos", "adoraremos" e "voltaremos". Esta informação parece
ser imprecisa, senão até falsa. Ou como explicaríamos a sequência destes três
verbos que não se referem à 'prova', ao holocausto?! Enfim, há que considerar
que estes nossos dois versículos, de todo jeito, não são lá muito precisos.
De todo modo, no v.6, o narrador e com ele o ouvinte, sabem o que está
em preparação: um holocausto. Isaque toma e carrega o peso: madeiras, Abraão,
o que representa perigo (fogo e cutelo). Novamente "tomar" tem relevância. E
assim ambos "andaram juntos". Estes verbos prevalecem em v.4-5+6, mas sem
que os conteúdos sejam afunilados.
Os v. 7-8 estão centrados nas palavras a caminho, como nos v.4-5, sendo
que o pai parece saber o que o filho não sabe. Isso é típico deste começo: as pala-
vras são ditas em desigualdade de condições de conhecimento; o filho ignora o
que se passará, o pai (e nós, leitores e leitoras, com ele) o intui! A palavra central
nesta diferença está no verbo "prover" (v.S).
204
E assim, andando e falando, Abraão, seu filho, o jumento e os dois jovens
(v.3-8) se achegam "ao lugar" (v.9). Do segundo momento deste "andar" (v.6-8),
só participam pai e filho! Só eles 'chegam'!
O verbo que encabeça os v.9-l4 é "chegaram". Enquanto "levantar-se"
(v.3) e "ir"l"andar" (v.3.6.8) são típicos dos v.3-8, "chegar" (v.S) caracteriza a
segunda etapa da narração (v.9-13). Os v.3-8 se dão no caminho, os v.9-l4 no
lugar. Esta diferenciação da narração em duas etapas maiores - por um lado, os
v.3-8 e, por outro, os v.9-13 - é nítida, pois o começo do v.9 até remete para
v.I b-2: "o lugar, ao qual Deus se referira". - Estes v.9-13 têm organização de fácil
percepção. Organizam-se de acordo a quem fala ou age: Abraão (v.9-IO) - o
mensageiro de [avé (v.lI-12) - e de novo Abraão (v.13). Decisivas são as pala-
vras do mensageiro! Elas inclusive alteram a ação abraâmica, sem, contudo,
eliminar falas de Abraão. - Enfim, enquanto v.3-8 se dão a caminho, os v.9-13
interpretam um lugar, o altar!
Os v.9-l0 têm Abraão como sujeito. Os verbos que o enfocam são sete!
Dentre estes sete, o primeiro e o último são diferenciados. O primeiro ainda reme-
te ao que precede, aos v.3-8; está no plural ("chegaram"); tem a Abraão e Isaque
como sujeitos. Também de resto esta primeira frase do v.II conecta com cenas
precedentes, sim, vai mesmo ao próprio começo das cenas, aos v.Ib-Z. As subse-
quentes cinco frases têm só a Abraão como sujeito; enfileiram suas ações de enca-
minhamento do sacrifício: "e construiu", "e empilhou", "e amarrou", "e colocou-
o", "e estendeu". Minúcias são o que é enfocado com tantos verbos; com tais
detalhes se esmiúça a ação de que Abraão é capaz: sacrificar o filho. Aliás, ainda
falta a menção à última frase: "e tomou para imolar". Na ação ("e tomou") e na
função de tudo ("para imolar") - aí não parece haver espaço para o 'prover' de
Deus (v.S)! Aos olhos de Abraão, pareceria que Deus só 'provê' em perspectiva.
Em todo caso, esta última frase "e tomou o cutelo para imolar" surpreende, ao
menos em relação aos v.5 e 8. Isso significa que, ao menos em termos formais, há
que realçar esta última frase "e tomou para imolar". Formalmente falando, ela tem
função similar à primeira "e chegaram ao lugar" (v.9a). Neste sentido, a ação de
Abraão contemplada com sete verbos se subdivide em I + 5 + I: "e chegaram"
introduz, cinco verbos detalham ("e construiu", "e empilhou", "e amarrou", "e
colocou-o", "e estendeu"), e o último, surpreendente, expressa o auge ("e tomou
para imolar"). Em termos Iormais, estes dois versículos, v.9-lD, são obra de arte!
A mesma, senão arte superior, se encontra nos v.ll-l2. Esta, agora, é
mais complexa, em todo caso. Pois, seus conteúdos fluem como que em dois
níveis. Três frases como que estabelecem um primeiro contado; afinal, está-se
por imolar uma criança! Assim, três verbos inicializam: "e chamou", "e disse" e
"e disse" (v.II). O que segue aos dois "e disse", neste v.l l , respectivamente são
como se fossem gritos: ''Abraão! Abraão!" - "Eis-me!". Estes "dizeres" de "o
205
mensageiro de [avé" e de Abraão encontram-se abrigados no verbo "e chamou",
um verbo, cujo foco está no conteúdo que a seguir se expressa; este "chamar"
como que abriga o que segue nos v.11-12. Estes três verbos iniciais realizam o
decisivo: param a ação em andamento: a imolação do menino! - O decisivo já
se fez: a ação de "tomar para imolar" ficou suspensa. E, agora, no v.12, pode
seguir-se uma ação mais comedida, detalhada. Volta a ser começada por um "e
disse", o terceiro, na sequência do "e chamou/proclamou". Tenho para mim que
se poderia pensar que os três "e disse", que seguem ao "e chamou" são detalha-
mentos deste primeiro verbo "e chamou". De todo modo - vejam só! - são cinco
verbos, os que expressam o "disse" de "o mensageiro de [avé": "não estenderás",
"e não farás", "sei", "és"/frase nominal, "e não negaste". Mas, sua disposição
difere daquela nos v.9-10. Sua meta é outra. Iniciam com duas frases proibitivas
paralelas: "não estenderás" e "e não farás", a fim de que "nada" suceda ao meni-
no! A estas duas proibições seguem duas frases introduzidas por "eis", por uma
chamada de atenção, porque nelas se expressa o principal, sendo que a primeira
prepara a segunda: "eis, sei: eis, o temente de Deus tu [és]". Portanto "eis, sei"
aponta para o que importa, que está dito na frase que segue, expresso em frase
nominal, uma frase cujo conteúdo permanece: "eis o temente de Deus tu [és]"!
Eis, o que é central para nossa estória: nela 'se proclama' (veja a primeira frase
no v.II!) que "o temente de Deus", ao 'não negar seu filho' (veja a última frase
do v.12), tem preservado seu filho! - Enfim, ao meu ver, os v.lO-ll se asseme-
lham aos v.9-l0.
Com os v.1J e v.14, somos situados no final da cena iniciada no v.9. Am-
bos são entre si diferentes, mas semelhantes em sua tarefa de fechar a cena dos
v.9-14. São qual dois nós no final da cena principal da estória. Em ambos os
versículos, Abraão é sujeito, o v.13 até o explicita duplamente. O v.19 está na
continuidade destes dois versículos: v.13 e v.14. Ambos completam a cena mar-
cante a partir do v.9. Um, o v.13, encaminha a seu final a cena do sacrifício, no
seu devido "lugar" (v.9). Outro, o v.14, nomeia aquele "lugar" em relação ao
verbo "ver".
O v. 19 difere da função destes dois versículos. É que ele se vincula a toda
estória, e não só a uma das cenas como sucede com os v.13 e v.14. Após os
episódios de 22,1-18, Abraão retorna a Beerseba (veja 21,33-34).
Os v. 15-18 a rigor deveriam seguir ao v.12 e não aos v.13+14. Isso já
indica tratar-se de um adenda, a respeito do que argumento mais adiante. O
v.IS e o primeiro verbo do v.16 repetem, no básico, o v.lI; ou, dito de outro
modo, o v.l l é matriz literária do v.IS (e começo do v.16). E, a partir daí, o
restante dos v.16-l8 é fala de "o mensageiro de [avé"; ditos divinos tão longos
(de três versículos!) inexistem em versículos anteriores do cap.22. É, os três
versículos são longos. Por igualo são as frases; a linguagem já não é breve como
206
a do restante do capítulo. Quatro frases, bem interligadas, expressam os conteú-
dos: em sua cabeça está o juramento divino (v.16a: "por mim jurei, dito de [avé").
Deste juramento brotam as três frases que seguem. A primeira é de bênção em
geral: "abençoar te abençoarei" (v.I 7a) e também a última (v.18), se bem que na
primeira o sujeito é [avé (v.17), e na segunda são os próprios povos (v.18), todos
vivendo nas bênçãos de [avé. Em meio (v.17b), esta bênção é especificada; para a
descendência de Abraão, a bênção implica aumento populacional: "multiplicar
multiplicarei". Falta referência à dádiva da terra! Isso indicaria que estes versí-
culos adendos são pós-exílicos. Semelhantes formulações da bênção também
temos em outros trechos de Gênesis (veja em especiaI17,2.4-7).
O final do cap.22, de fato, não é parte de seus v.I-19. Os v.20-24 têm
seu caminho próprio. Em quase nada aludem à primeira parte, a não ser que se
queira entender o começo do v.20 ("aconteceu depois desses episódios") neste
sentido. Pois, já se fizera presente no v.16 "esta palavra"/isto, se bem que os
dois sentidos da expressão não sejam coincidentes. De todo modo, os v.20-24
apresentam dupla introdução (no v.20a). Entendo a segunda como a mais
antiga: "e foi anunciado a Abraão o seguinte". Já o v.20a pode estar preten-
dendo vincular os v.20-24 aos precedentes, pela expressão "essas palavras"/
esses acontecimentos.
De resto a subunidade dos v.20-24 contém genealogia, lista das descen-
dências, no caso de Naor. Oito lhe são nascidos de Milca (v.20-23) e quatro de
Reuma (v.24). Comentário especial recebe o último filho, Betuel, pai de Rebeca
(v.23a). Aí o cap.24 está em preparação, o que aliás indica que esta nossa gene-
alogia não pretende só encerrar, mas abrir novas temáticas.
207
quiseram mostrar-nos que, até o cenário do holocausto, o próprio Abraão a rigor
estava como que equivocado, crendo que com ele falava Javé, quando na verdade
era 'só' "Deus" ou "o Deus". Deste é a "prova", mas sua superação provém do
nome que está acima de todos os nomes: "[avé".
Daí se vê, exemplarmente, que até mesmo o uso diferenciado de "o Deus"/
"Deus" ou de "[avé", ao menos no caso enfocado, não tem a ver com fontes
literárias, mas com intencionalidades!
Tempos e contextos
Se a fonte literária E/eloísta existisse e se pudéssemos alocar Gênesis 22 a
esta suposta fonte, então estaríamos, primeiro no norte/lsrael, e, segundo, na
segunda metade do 9º século. Mas estas são conclusões de pouca probabilidade,
porque o cap.22 é claramente judaíta, interessado em Jerusalém, não no norte/
Israel. E, além disso, é mais justificável defender a localização histórica para a
segunda metade do oitavo século.
Mas, antes de dar seguimento a esta argumentação, convém identificar
melhor o problema. Pois, na verdade, são três os trechos a identificar na história.
Por um lado, trata-se de localizar a parte principal do capítulo, basicamente os
v.l-14+ 19. Por outro lado, há que situar os v.l5-1S, a segunda fala do mensagei-
ro de [avé. E, por fim, cabe-nos alocar os v.20-24. Convém, pois, enfocar cada
uma destas partes de modo diferenciado.
A parcela mais antiga pode ser a genealogia, os 17.20-24. Afinal, lista de
descendência cabe no âmbito familial e clânico, onde marca a identidade das
pessoas. Especial é, na presente lista, seu interesse nas mulheres. Para ambas, é
utilizada uma expressão que traduzo por "em especial ela". Há, pois, inclusive
certo interesse em realçar as duas mulheres-mães. Além disso, estes v.20-24 ten-
dem a apontar para as histórias de Jacó e Esaú em Gênesis 25-36, um trecho em
que tanto é dada relevância a mulheres, em especial para Rebeca, a filha de
Betuel, quanto é destacada a família de Naor, cuja descendência é posta em
destaque nestes nossos versículos. Isso nos permite intuir tratar-se de nossos
versículos de uma memória e talvez até de um texto muito antigo. Digamos que
seja bem anterior ao 8 9 século, cultivado em tradições familiares e seminômades
do norte, de Israel.
Longa trajetória terá tido nossa narração propriamente dita. Refiro-me aos
17.1-14+19 Sua redação é posterior à estória similar em Gênesis 21,8-21 (sobre
Ismael). É menos elementar que aquela. Lá a narrativa similar ainda está forte-
mente inserida no âmbito familiar. Este já não é o caso do cap.22.
Seu local é mais formal. Afinal, Moriá (v.2) há de ser indicação para
Jerusalém, onde se situa o altar para a gente de Judá. Além disso, a meta é o
20S
sacrifício corno holocausto (veja v.13). Poder-se-ia realçar, em prol de urna
origem ainda arcaica, que Abraão é quem sacrifica, sem que se tenha necessi-
dade de algum outro intermediário templar ou sacrificial (sacerdote). Mas a
isso não se poderá atribuir grande valor de antiguidade, considerando que
Abraão corno que continuamente está envolto em sacrifícios (corno por exem-
plo: 12,7; 13,3-4; 15; 17).
Afora isso há que considerar que sacrifício de pessoas é típico de socieda-
des formatadas em estado e a caminho dele. Sacrifício de crianças e de pessoas
não é peculiar a sociedades clânicas. Ternos vários indícios de que em Israel o
sacrifício de pessoas cedo veio a ser parte da própria trajetória. Pensemos, por
exemplo, na filha de [efté (Juízes 11,34-40), no filho de Davi com Bateseba
(2Samuel 11-12), dos primórdios da história israelita. Mas, ainda mais marcan-
tes são os cenários de sacrifício de pessoas no 8º século, em meio às suas guerras
e conquistas devastadoras dos assírios. Conta-se na obra deuteronomística de
história (a assim chamada Obra Historiográfica Deuteronomista: Josué, Juízes,
1+ 2Samuel, 1+ 2Reis) que reis de Jerusalém fizeram passar pelo fogo do sacrifício
filhosseus (2Reis 16,3-4). Também em Oseias ternosesta temática (veja por exemplo
4,4-19). Situaria, pois, a temática principal de nosso capítulo, este do sacrifício de
crianças, no oitavo século, os tempos da profunda crise de Israel e Judá.
Aliás, o âmbito deste trecho no cap.22 é, sem dúvida, judaíta, de gente
leiga. Corresponde à visão interiorana da religião e não propriamente jerusale-
mitana. Portanto, a estória propriamente dita no cap.22 se diferencia de 14,18-
20. Pois 14,18-20 se situa mais no âmbito urbano de Jerusalém, o que não há de
valer no cap.22, porque neste se olha para Jerusalém dentro dos interesses e na
perspectiva interiorana, judaíta, leiga.
Enfim, os v. 15-18 hão de pertencer às redações mais recentes. No caso,
penso realmente em redação, não em origem oral, o que em todo caso valerá
para urna etapa inicial tanto dos v.20-24 quanto para v.1-14+ 19. Os v.1S-18 são
ampliação de um texto já escrito. Penso aí no pós-exílio, em tempos em que a
torahllei estava sendo literariamente consolidada.
Acima fizemosdiferenciações entre as várias parcelas do cap.22. Este nosso
capítulo tem um crescimento. Cabe-nos agora, nesta última processo de revisi-
tação de nosso capítulo, reconsiderando em termos de conteúdo as várias par-
tes, insistindo também na integração do todo.
209
"E aconteceu..." - v.1a
o cabeçalho é duplo: "e aconteceu depois destas palavras" e "e o Deus
pôs à prova a Abraão". Esta duplicidade já indica que pessoas variadas estão
interessadas em editar nosso capítulo.
O primeiro dos títulos tem estilo profético. Afinal, aqui estão em aconte-
cimento "palavras", eventos portadores de sentidos que dão identidade ao povo
de Deus. Tanto são eventos quanto são sentidos! Na concretude da vida, reside
a 'coisa', a 'palavra' que orienta a vida. Disso tratavam capítulos anteriores e o
presente. (Veja cabeçalhos similares, por exemplo, em 15,1; 21,22; 22,20.)
A "palavra" de agora é a do segundo cabeçalho: "e o Deus pôs à prova a
Abraão". Este é propriamente o título para o cap.22. Menciona os dois princi-
pais 'personagens': Deus e Abraão. Logo, podemos deduzir, de início, que aqui
estamos diante de uma história teológica, similar a dos caps.15 e 17. E a relação
de ambos é que "o Deus" tem a iniciativa. Esta é expressa de modo estranho:
"testou". Em seu ponto alto, nos v.l2-13, este verbo não é retomado; sua função
se atém ao cabeçalho temático. Mas, é decisivo que nós, leitoras e leitores, de
começo somos informados que as cenas que seguem são 'teste', não propriamen-
te intenção de Deus. Neste v.la, com "por à prova" não se está exigindo propria-
mente um sacrifício, mas se está fazendo um 'teste'. Não estamos, pois, no âmbi-
to das exigências divinas, mas do exercício de compreensão, no espaço da sabe-
doria. Afinal, o verbo "testar" é usado neste âmbito da sabedoria (IReis 10,1).
Por isso, há de se entender o motivo que leva os redatores deste v.l a a não se
valerem da palavra "[avé", mas de optarem por um conceito menos específico,
mais genérico "o Deus". O 'teste' não provém de [avé, mas de "o Deus". Afinal,
em Canaã havia muitos destes "o Deus", deste ha-elohim, como se expressa o
texto original.
210
frase agora em questão: "toma teu filho, teu único, que tu amas, Isaque". Impor-
tante são outras características de Isaque. Antes de tudo: é "teu filho", o tão
esperado (11,30!). Além disso, é "teu único", um termo que só aqui, no cap.22,
é aplicado a Isaque (nos v.2.12.16). Seu caráter único reside no 'amor' com o
qual o pai o envolve. O verbo "amar" nem é tão frequente em nossos trechos:
aqui identifica a relação de cuidado, proteção e afeto de pai para filho e, em
24,66, de homem para mulher. Sim, a dedicação de Abraão pelo seu filho é
especial.
Em seguida, Abraão e seu filho querido hão de "ir" a um local peculiar, "à
terra de Moriá". Este termo depois é retomado (veja abaixo referente aos v.l2-
15). O debate sobre "a terra de Moriá" e, em 2Crônicas 3,1, sobre "o monte
Moriá" é complexo. Dois aspectos me parecem evidentes: por um, este Moriá
tem a ver com Jerusalém (já em foco em 14, lS-20!), e, por outro, está vinculado
ao verbo "ver", o que nos induz a dizer que entre "a terra de Moriá" e as expla-
nações nos v.12-14 há estreitas relações.
Por fim, a frase decisiva: "o Deus" manda sacrificar "o teu filho". O sacri-
fício será de holocausto, de total queima. É o que perfaz o sentido da expressão
hebraica: "fazer subir para holocausto". A mesma expressão está no v.13, relaciona-
da aí ao carneiro. - Chama a atenção que o local é referido nesta frase final do
v.2 por "ali", como o temos de novo, mais adiante, no v.9. E, afora isso, esta
terceira frase é concluída com nova alusão ao local "que direi para ti" ou "que te
estarei identificando". O local exato é, pois, importante. A expressão "a terra de
Moriá" já diz algo sobre ele, mas a estória pretende que se saiba com precisão
ainda maior qual seja este local. Aliás, veremos que, no último conjunto, o dos
v.9-14, introduzirá mais outro conceito em torno do tal local. Os redatores que-
rem, pois, que leitor e leitora entendam qual seja este "lugar", como veremos a
seguir.
211
ram a tendência de se querer fazer prevalecer os verbos, neste v.3. O que marca
a diferença são respectivamente o terceiro e o sexto verbo! No terceiro, é deta-
lhada a comitiva a caminho: "e [Abraão] tomou dois de seus jovens consigo e
Isaque". No começo, trata-se, pois, de quatro pessoas e um jumento. Em segui-
da, à vista do lugar (v.4), estes são reduzidos a dois (v.S), e, mais adiante, a um
contra o outro, Abraão contra seu filho (v.8! e, em especial, v.10). Não é, pois,
acaso que este aspecto, crucial para a narração, seja realçado aqui, no v.3. - E,
além deste, sobre outro mais recai luz especial: a sexta frase - "e foi para o lugar,
do qual lhe falara o Deus". O v.2 também já esteve dedicado a este lugar, parti-
cularizando-o: "vai-te para a terra de Mona e oferece-o ali para holocausto
sobre um dos montes, que direipara d' (v.Z). Veja só quanto detalhe! Juntando-
o ao que sobre o mesmo assunto se diz no v.3, poder-se-ia afirmar, desde já: este
lugar é deveras relevante para nossos editores do texto! Aqui o menino a ser
sacrificado é como que menos relevante que "o lugar", que - ao meu ver - é o
monte de Jerusalém. Há aí uma tendência em pôr este "lugar", esta cidade, seu
altar em foco! Deste lugar Deus falara!
No terceiro dia! O decisivo se dá neste terceiro dia. Pois nele "o lugar"
fica à vista (v.4-S). E, enfim, nele Isaque é levado ao sacrifício, e, por fim, resga-
tado (v.6-8 + 9-14)! Tudo ao terceiro dia! A maior parte do texto enfoca, pois,
cenas do terceiro dia!
Os v. 4-5 têm "o lugar" ao longe. Os "olhos" de Abraão já o alcançam e o
"veern", mas "de longe". Mesmo estando longe, "o lugar" já implica alterações.
Ali permanecem "o jumento", provavelmente porque era considerado impuro
para estar junto ao altar, e "os jovens". Não há uma razão para que "os jovens"
fiquem. Aliás, o termo hebraico usado para Isaque é o mesmo aplicado a estes
acompanhantes. Parece-me que a cena do sacrifício do filho não poderia ter
testemunha. Afinal, Abraão não se refere ao sacrifício a ser oferecido, mas 're-
duz' a ação em "o lugar", ali adiante, à adoração, o que a rigor se há de estar
referindo à oração. Mas disso nada se diz nos versículos que seguem. Parece-me,
pois, que neste v.S Abraão se esquiva de formular o objetivo daquela viagem, ou
dito de modo positivo: não alcança olhar de frente a tarefa que se lhe impôs, o
sacrifício do filho, ou dito de modo ainda mais positivo: Abraão antevê profeti-
camente os acontecimentos que se seguirão. De todo modo, quem permanece à
distância não sabe o que está para suceder! Ou até haveria que sobreinterpretar
o último verbo: "e voltaremos", como se aí estivesse aludindo a uma 'conversão'
de Abraão? É possível! De todo modo, estes v.4-S ainda tendem a estar em
aberto, oscilam no sentido. Afinal, aqui não se pode dizer tudo, porque aí os
versículos que se seguem seriam dispensáveis.
Os v. 6-8 formam um conjunto. Cobrem o espaço, a partir de onde, "de
longe", se via "o lugar" (v.4), caminhava-se a este "lugar" (v.6-8) e a ele se chega
212
(v.9a). Os v.6-S perfazem, pois, o último trajeto, aquele feito à vista de "o lugar".
No v.6, mencionam-se as ações; os v.7-S descansam sobre o assunto da hora:
"onde [está] o cordeiro?" Como a frase final do v.6 é a mesma do final do v.S ("e
andaram ambos juntos"), é óbvio que estes versículos efetivamente são um con-
junto.
O v.6 reúne quatro frases; continuamos, pois, diante de informações não
plenas, incompletas; no caso, considero quatro um tal número não pleno, mas
provisório. Ao 'andarem', Abraão e Isaque estão juntos, como o expressa a últi-
ma frase já mencionada no v.6 (e também do v.S). Diferentes são, contudo, suas
cargas. Aliás, o menino carrega pesado: "as madeiras do holocausto". Abraão
leva "o fogo e o cutelo". Peso maior está com o menino; o que é mais perigoso
com o pai. Sob cargas diferentes, o que importa é que andam "juntos".
E assim falam juntos, conversam (v. 7-S). A proximidade dos pés dá ache-
go às línguas. O começo da conversa tem o mesmo jeito das palavras entre Deus
e Abraão nos v.1b-2:
v.Ib-Z (Deus a Abraão) v. 7 (Isaque a Abraão)
E disse a ele: "Abraão" E disse Isaque... "Meu pai"
E disse: "Eis-me" E disse: "Eis-me, meu filho"
E disse: "Toma teu filho..." E disse: "Eis aí o fogo e as
madeiras ..."
O que nos v.lb-Z desemboca em ordem, no v.l , toma-se pergunta. Deus
manda (v.Ib-Z), o filho questiona (v.7-S). A companhia a caminho ("e andaram
ambos juntos", no final dos v.6 e S) forma o quadro à pergunta do menino.
O filho quer saber do "cordeiro para holocausto". Havendo "o fogo e as
madeiras" - o primeiro, aos cuidados de Abraão, o segundo, dele, Isaque (veja
v.6) - "onde [está] o cordeiro?" Este "cordeiro" é um animal macho de gado
menor. E o "holocausto" é o sacrifício, no qual o animal todo é queimado. Isaque
coloca, pois, a questão central da estória.
A resposta seria, de acordo ao v.S: "adoraremos". Mas aquele argumento
provisório para definir a tarefa da ida para "o lugar" em "a terra de Moriá" já está
superado. Fogo, madeira/lenha e cutelo falam outra linguagem, não a da adora-
ção ou oração, mas a do sacrifício.
Logo, a resposta, agora, já não é 'provisória' como fora a do v.5. Passa ao
que importa: "Deus proverá para si". Esta resposta segue ao jeito de Abraão
(veja v.S!). Cada uma das respostas de Abraão faz intuir uma solução surpreen-
dente a vir. Nosso v.S, agora, já se vale do verbo que passa a ser chave nos v.I3 e
14. O verbo "ver", com Deus como sujeito, insiste na surpresa. Na profecia (veja
Isaías 6, I), "ver" se relaciona com visão. O próprio profeta pode ser chamado de
"vidente". Aqui, em nosso capítulo, sendo o próprio Deus sujeito do "ver", assu-
213
me o sentido de "prover", providenciar. Este mesmo "ver" nós o temos, por
exemplo, em Gênesis 16,13-14 e 21,19. Trata-se aí de "ver" para além do ver,
um "ver" que dá visão.
Se Abraão e 1saque antes desta conversa dos v.7-8 "andaram juntos",
porque isto resultava do caminho comum, agora porque uma compreensão co-
mum começa a se constituir. E é isso que marcará a próxima subunidade, os v.9-
14+ 19.
214
ocorre com os objetos: no início, é identificado "o lugar", ao qual chegam Abraão
e Isaque. Este "o lugar" é a seguir duas vezes referido com "o altar", onde, por
fim, se imolaria ou abateria o menino. O lugar se torna altar, e este, local de
imolação. Vê-se aí que a sequência de frases e conteúdos afunila!
Os v.11-12 são o avesso dos versículos anteriores (v.9-10). Lá, tudo fora
ação de Abraão. Aqui, quase tudo provém de [avé, de "o mensageiro de [avé",
Exceção seja feita à breve reação de Abraão: "eis-me!". Às ações de Abraão,
opõem-se as de "o mensageiro de [avé", Ele traz a reviravolta!
Até aqui agia 'elohiinI"Deus" ou ha-'elohiml"o Deus". Não é acaso que,
agora, no ponto alto do texto já não seja mencionado "Deus", mas [avé. Aliás,
mais corretamente, é perceber que, no v.l l , a menção é a "o mensageiro de Javé".
Ora, "o mensageiro" é a busca de uma intermediação de [avé, o que 'elohim tam-
bém é (veja Salmo 8)! A diferença não é muita, mas já é vital, pois este "o mensa-
geiro" é o bastante para perceber que, no espaço divino, sacrifício de pessoas, de
crianças é impossíveis. Mesmo que a divindade venha lá de longe, do alto "dos
céus", mesmo que a presença não seja do próprio [avé, "o mensageiro", um jeito
humano de Deus se fazer presente, é suficiente para dirimir quaisquer dúvidas:
[avé, o Deus de Israel, não quer sacrifício humano. De jeito algum! Ou seja, não é
necessária muita teologia para dar-se conta de que [avé não quer holocausto hu-
mano, sacrifício de crianças.
A proibição é dupla (v. 12a). E, no final do v.l2, o elogia a Abraão igual-
mente será de frases repetidas. Aliás, "o mensageiro" apela em repetição do
nome de Abraão (v.Ll "Abraão! Abraão!"). Eis, o jeito literário destes nossos
v.II-12!
A dupla negação (no v.12a) não deixa dúvidas quanto à visão de "o men-
sageiro de [avé dos céus" sobre sacrifício de gente! Não e não (veja v.12a)! Esta
é a posição de "o mensageiro (de [avé dos céus)". Abraão fica proibido de "es-
tender a mão", quer dizer, de agarrar, de segurar o menino. "O mensageiro"
proíbe, pois, tocar no menino/E também exige fazer-lhe "nada". A rigor, o sacri-
fício não é explicitamente proibido. A proibição não só enfoca o holocausto do
menino, não, muito mais, proíbe tocá-lo ou de esticar a mão em sua direção. "O
mensageiro" proíbe não só holocausto, mas qualquer toque no menino! Penso
que este tipo de argumentação não tende a ser sacerdotal, mas antes é leiga.
Nosso capítulo diz respeito a um santuário e a sacrifício, mas não os vê na ótica
do sagrado e, sim, na perspectiva do usuário do lugar sagrado, do leigo.
A principal dupla de frases se encontra na segunda parte do v.12. Aí te-
mos duas chamadas à atenção, com "eis!"l"atenção!". Primeiramente, o próprio
Deus realça com esta interjeição "saber" algo novo sobre Abraão. Este "saber" é
experiencial: Deus acabara de 'experimentar' que Abraão segue a suas palavras.
Exigira-se-lhe seu filho, e ele estava por entregá-lo, por sacrificá-lo. E, em segui-
215
da, duas frases, ditas por "o mensageiro", expressam o que é este 'sabe': Abraão
é "temente de Deus". Isso significa que, no concreto, segue a Deus. Além de
"temer" frequentemente assumir este sentido de "seguir", isto novamente indi-
ca que, nossa perícope, vem calçada por visões sapienciais da vida. Aliás, a frase
paralela o diz expressamente: "não poupaste teu filho". Esta atitude concreta de
não negar o filho, o único, é idêntica a "temer" a Deus. Logo, neste e em muitos
outros casos, temer a Deus não é tanto tremer diante de sua presença, mas é
segui-lo em seus mandamentos.
No v.13, prevalece a rapidez. As frases são breves, curtinhas. Temos sete
destas orações; agrupando-as são cinco. E as artes esmiúçam ainda mais! Ora,
veja! Cada versículo é um pequeno conjunto de frases. O v.U e o v.14 expres-
sam seu sujeito no começo, depois os verbos o têm implícito. No v.U, temos
quatro frases. As duas primeiras introduzem e repetem seus conteúdos: "e er-
gueu Abraão seus olhos" = "e olhou". Expressam o mesmo conteúdo. A terceira
cita o novo, isto para o que se olha de olhos abertos: "e, eis, um carneiro". E a
quarta frase explica: "fora mantido preso na mata". Estas quatro frases, com seus
três conteúdos, dirigem sua atenção ao centro, ao carneiro, pelo qual Isaque já
havia perguntado (v.7!). Ele, desde a pergunta do menino, como que já estivera
lá, preso "na mata", mas não fora visto. Poder-se-ia dizer que, desde a pergunta
do menino no v.l , lá estava o carneiro à espera de quem o visse. - Na segunda
parte do v.U, novas três ações. Tornam-se duas, porque os dois verbos "e foi" e
"e tomou", em verdade, se integram em uma mesma ação, precedentes a do
sacrifício daquele carneiro. O sacrifício é de substituição; é feito em lugar do
sacrifício do menino.
Portanto, o sacrifício do carneiro substitui; está "em lugar do filho". O tre-
cho está ciente de que há e havia sacrifício de pessoas. Mas este, agora, na atuali-
dade do texto, no 8º século a.C, já não pode ser realizado. Abraão e seu filho, no
caminho a "o lugar", já foram intuindo que [avé não carece de humanos sacrifica-
dos. Mas permanece o sacrifício de animais. Neste particular, nossa história não
alcança ainda seguir os profetas que negaram qualquer sacrifício de sangue (como
o defendem: Amós 5,21-27; Oseias 6,6; Isaías 1,21-26 e Miqueias 3,9-12). Para
este Judá, que se expressa em Gênesis 12-25, Jerusalém e seu templo pertencem à
identidade das terras judaítas. Aliás, a arqueologia vem mostrando que até as
invasões e destruições assírias de 705 até 701 era comum que, nas cidades e aldeias
do interior, houvesse templos e altares.
O v.U é breve, compacto. Mas encerra de modo brilhante a narração.
216
Trata-se de uma só frase, longa. Não se está aqui na prosa elevada dos
versículos anteriores. A linguagem aqui é peculiar. Acima fala-se de "o lugar",
agora de "aquele lugar". O termo "o lugar" já o identificava; "aquele lugar"
precisa ser identificado com seu nome. E, afinal, qual é este "nome", esta iden-
tidade de "aquele lugar"? Obtemos duas respostas. Na primeira, o nome está
próximo ao episódio, ainda que o termo que se usa para qualificar o evento
teologicamente não seja parte da narrativa: "[avé, ele vê" ou "[avé provê". A
raiz hebraica, da qual se deriva a tradução "ver" ou "prover", não está enraizada
na estória do cap.22! Talvez quisesse estar inserida no nome "a terra de Moriá''.
Mas, enfim, a explicação não encaixa. Ou em outras palavras, a etiologia e o
local não coincidem propriamente! Mas, enfim, isso sucede outras tantas vezes.
Ou ainda haveria que entender este "ver" em correlação ao " 'elohim ouve" de
21,17 (veja 16,11.13). - A outra designação, que considero mais recente, por-
que deixa entrever que "[avé vê/verá/provê", não se refere a um local, mas qua-
lifica uma experiência, independente de local. Neste aspecto, a nova designa-
ção, a de "hoje" (deuteronomista?), refere-se ao "monte", um termo que aliás
não está presente na estória. Nela, "o lugar" não aparece designado como "mon-
te". Nem no vAb, onde "o lugar" está "ao longe". Mas, de todo modo, "o monte
de [avé" é o Sião! (Veja Isaías 2,2-51) Com isso, o local se identifica. Está em
Jerusalém (veja 14,18-20). É lá que "[avé aparece", onde ele "se faz ver". Trata-
se, pois, aqui de duas explicitações teológicas interessantes. Num caso, [avé é
sujeito; ele vê pessoas. Na outra, [avé é referente; ele se faz ver. Teologicamente
falando, entre ambos há bela complementação. O caso é que nenhuma delas,
nem a do v.2 ("o lugar de Moriá"), é intrínseca e inerente à própria história.
Nela, muito antes a intuição humana, a do filho, mas também a de Abraão, 'vê'
que sacrifício humano carece de sentido! A transmissão mais antiga do texto
contém a teologia mais elementar!
O v. 19 encerra a narração e um conjunto todo. Por um lado, o retorno ao
local, em que haviam deixado os dois jovens, é inerente à própria narração an-
terior. Estivera prometida no texto, no v.5. Lá Abraão dissera usando o mesmo
verbo do v.19: "voltaremos a vós". É o que se cumpre no começo do v.19. De lá
todos foram juntos a Beerseba: Abraão, Isaque, os dois jovens e o jumento.
Beerseba era, pois, a rigor, o alvo do 'retornar'. Esta localidade fora cenário do
encontro com Abimeleque e Pico! (21,22-34). Por outro lado, Beerseba é mora-
da. Lá Abraão vive. - Chama a atenção o jogo de palavras no hebraico: Abraão
"retorna" para Beerseba e lá "habita". Para poder 'morar', é preciso 'voltar'!
Também aí se percebe que estamos em um trecho que conclui certa parte das
memórias abraâmicas.
217
Bênção contra os inimigos - v.15-18
Os v. 15-18 formam uma subunidade, com uma introdução (v.15-16a) e
um longo dito de "o mensageiro" (v.16-18). Ao assim dar ênfase às palavras de
"o mensageiro", aproximam-se dos v.ll-12, dos quais são uma retomada. Assim
sendo, a rigor, deveriam seguir ao v.12! Em todo caso, em v.16-18, os ditos de "o
mensageiro" estão várias vezes ampliados. Considerando serem as palavras de "o
mensageiro" muitas, prefiro traduzir o verbo hebraico em questão no começo do
v.15 por "proclamar", diferente que no v.11a onde o traduzi de modo mais colo-
quial ("chamar").
Mas de todo jeito, o que mais distingue esta segunda fala "a partir dos
céus" são seus conteúdos. Entendo que estejam bem organizados: penso que
começo e final se aproximam, pois em ambos a fala de Javé é destacada. Aliás,
estes v.15b-18 se esmeram em ser palavra divina. No começo (v.16), temos um
juramento divino, secundado por um dito divino, ambos típicos na profecia! O
juramento implica inclusive a vida/existência de Javé em seu cumprimento ("por
mim juro"). Este juramento implica autocondenação em caso de não realização.
No final, é dada por [avé certeza de que o prometido sucederá. Pois, não é
qualquer "voz" que falou, mas a de [avé; foi a esta que "ouviste. Juramento
(começo) e asseveração (final) transformam esta 'profecia' de [avé em certeza.
Visto este entorno à 'proclamação', às asseverações de [avé, vejamos os con-
teúdos do restante do v.16 e dos v.17-18. Aí temos cinco frases, relativamente lon-
gas, mas claramente constituídas. Na cabeça, está a condição, em frase subalterna,
típica de discursos ou sermões. A condição é a obediência! Quem lê o trecho sob
esta ótica, tem aqui - neste adenda! - seu apoio!
A condição é um "fazer" humano, a ação de Abraão em dispor-se a sacri-
ficar o menino! A frase, a rigor, não é tão explícita. Não narra, mas sintetiza.
Refere-se, pois, ao quase-sacrifício de Isaque como sendo "esta palavra", quer
dizer "isto". No caso, "esta palavra" é o encaminhamento de Isaque ao sacrifício.
Ira é o que a frase paralela expressa na via negativa: "não negaste teu filho" (veja
v.12b). A frase tomada do v.12b é, pois, interpretada no v.16 no sentido positivo
de dispor-se a levar o menino ao altar. Este é o elogio ético a Abraão, base das
promessas que seguem. A obediência é, pois, aqui, em tendência base para as
promessas.
Estas promessas vêm encabeçadas por um chamado à atenção: "eis!". Esta
interjeição assinala para quatro frases, com os conteúdos das promessas em vir-
tude da obediência: o tema da bênção circunda as promessas e é seu conteúdo
maior (v.17 e v.18b). Receber o anúncio de que Javé, aliás de "o mensageiro",
"abençoar te abençoarei" ou "certamente te abençoarei", é o conteúdo próprio
do caminho de Deus com seu povo (12,1-3). Mas surpreendentemente esta bên-
218
ção para "ti" não destitui a de "todas as nações da terra". Esta bênção não vem
a parte ou contra a descendência abraâmica, mas por meio do respeito a ela.
Afinal, nestes tempos pós-exílicos, em que estes v.l5-18 foram formulados, a
descendência de Abraão era formada de gente pobre, dispersa e ameaçada em
meio às nações. Ainda assim sua bem-aventurança é partilhada com as nações!
A descendência de Abraão não é portadora mesquinha das bênçãos de Javé!
Em meio a estas duas frases de bênção e encaminhamento da tarefa de
Israel junto aos povos, expressam-se as dádivas, pelas quais o Israel colonizado
em suas terras e disperso entre os povos almeja: ser muita gente e ser respeitado
pelos inimigos (v.17b). Ser muitos - eis a questão de relevância maior. Estrelas e
areia - sem conta! Em textos mais antigos de bênção, como 12,1-3, a multiplica-
ção não chega a ter uma ênfase tão marcante, como em trechos que, como aqui,
pressupõem a aniquilação do norte (veja Oseias 2,1-3) e do sul (Gênesis 13,16;
15,5). A terra tende a não despontar como conteúdo primeiro das esperanças,
como é o caso de Deuteronômio 26,1-11, mas, sim, o povo, as multidões. Pois,
afinal, nas destruições do 8º, do 7º e do 6º séculos, Israel e Judá ficaram reduzi-
dos a um pequeno punhado de gente, ainda por cima disperso pela Transjordâ-
nia, Mesopotâmia e pelo Egito. Por isso, a expectativa de voltar a ser incontável
torna-se a esperança maior. Aqui recorre-se a estrelas e areia do mar como ter-
mos comparativos da expectativa. Ora, trata-se aí de extremos, desde uma pers-
pectiva judaíta; num extremo estão as estrelas, lá nos céus, no outro está o mar,
por onde termina o mundo. Que seja o próprio povo como o que, nos extremos
da criação, é o mais numeroso: areia e estrelas! - A respeito de tais miraculosas
quantias, não há que esquecer que, no hebraico, quantidade e qualidade se asse-
melham. O que é muito é também muito forte e bom. É o que claramente ex-
pressa a última frase do v.17: "e possuirá tua descendência a porta de seus inimi-
gos". Ser 'muitos' é, também, ser 'muito forte'; e estes tais "inimigos", se bem que
devem ser aqueles que, em Judá, estão próximos (veja [oel l-'Z) merecem ser ven-
cidos, para que se volte a poder respirar. Estes seriam gente como os persas e suas
guarnições opressoras por Judá, Israel e mundo afora.
[avé jurou que essas e outras tantas opressões terão fim, pois há de fazer
valer sua palavra!
219
A identidade pessoal e familiar é a matriz social de tais listas de familiares. Elas,
via de regra, remontam a tempos antigos, o que há de ser o caso em nossos
versículos. Deve ser este o nosso caso: o saber destes versículos há de ser clâni-
cc-tribal, pré-estatal.
Duas são as introduções para estes versículos. A mais antiga, originária,
há de ser a segunda do v.20: "e foi anunciado a Abraão o seguinte". Esta não tem
relação maior com o que lhe precede no cap.22. Lá também não se usava o
verbo "anunciar". Neste sentido, poder-se-ia insistir em afastar estes v.20-24 de
perto do restante do capítulo em questão. Mas, a primeira introdução, aquela
com a qual começa o v.20, esta, sim, está vinculada ao cap.22. Pois "e aconteceu
depois desses acontecimentos/episódios/dessas palavras/coisas" (início do v.20)
está diretamente relacionado ao comecinho do v.I: "e aconteceu depois destes
acontecimentos/episódios/dessas palavras/coisas". As formulações são idênticas.
Estão, pois, em sequência! Logo não convém distanciá-las, fazendo de v.I-19 e
de v.20-24 duas perícopes autónomas. Trata-se em ambas de subunidades de
uma mesma perícope que abrange todo o cap.22.
Naor é relevante nestas genealogias dos filhos de Miles e de Reuma. O
caráter patrilinear é nítido na enumeração, na qual filhas nem aparecem, se bem
que hão de ter sido parte da família. Ainda que prevaleça o masculino, o femini-
no igualmente emerge. Afinal, as mães são mencionadas em primeiro lugar, tan-
to no v.20b quanto no v.24. A destinação dos filhos é para o pai, "para Naor", ao
menos no caso dos filhos de Milca. Ainda que estes filhos caracterizem o pai -
por exemplo Uz é "seu primogênito", isto é, filho mais velho de Naor - a mãe
não desaparece. Isso também há de indicar para tempos mais remotos, em que a
posição das mulheres e mães era mais destacada, como, por exemplo, o vemos
nas próprias estórias de Sara, Agar e Abraão (Gênesis 12-25), em que mulheres
e mães detêm espaços sociais marcantes.
Os filhos de Milca são oito, os de Reuma, quatro. Ao todo, temos, pois,
doze. Aqui prevalece, pois, aquele que também será o número típico do tribalis-
mo, uma aliança entre seis ou doze tribos. Os números simbólicos relevantes na
primeira parte do capítulo (cinco e sete) não são os decisivos nesta genealogia,
em que doze o é.
Por fim, a Quemuel e Betuel são agregadas relevantes observações, talvez
entre si complementares. Um recebe o adendo de ser "o pai de Arã", o que virá
a ser muito importante nas histórias de Jacó (veja Gênesis 29-30; Deuteronômio
26,5b). E de Betuel será dito ser o pai de Rebeca, personagem bonita e central
em Gênesis 24 e, a partir daí, nos contos sobre Jacó e Esaú. Isso significa que os
caps.24 e seguintes estão sendo aqui encaminhados. Logo, 22,20-24 não fecha
uma umdade, mas encaminha-a adiante, para os capítulos subsequentes.
220
Finalizando
221
pressam no cap.14 e nos caps.15 e 17. Os caps.13-19 como que provêm
de uma coletânea; e os caps.2D-22 se direcionam a ela.
Uma tem sua 'sede' em Hebrom-Manre, junto a suas árvores. E a outra
era memorizada em Beerseba, em especial na área de seu poço. Isso
são possibilidades.
222
Sepultura e posse de terra
Gênesis 23,1 ..20
Os capítulos anteriores têm por tema a vida em seu vigor. Rapto da mãe
(cap.20), ameaça a jovens filhos (caps.21-22), disputa por poços de água, o as-
sunto da sobrevivência ao sul de Judá (21,22-34). O cap.23 difere; seu cenário é
o de sepultamento. O cap.24 inclusive já abarca a próxima geração. Portanto, é
justo que se identifique esta diferença entre os caps.20-22 e nosso cap.23.
Penso que o assunto é a sepultura. Muitos são os argumentos, para cá e lá.
Porém, o tema mesmo é conseguir encontrar o local de enterro da "morta". A
compreensão certamente terá a ver com este tema, o do local da sepultura.
Passemos, pois, para a tradução, que mantenho o quanto possível literal.
Isso nos fará estranhar algumas frases, mas também nos dará uma pequena chance
de estar mais próximos ao jeito em que o texto foi dito e pensado. Afinal, pode
não nos parecer muito relevante debater tão demoradamente, como o fazem os
homens desta perícope, sobre o local de enterro.
'E aconteceram as vidas de Sara: cem ano, e vinte ano e sete anos: anos
das vidas de Sara. 2E Sara morreu em Quiriat-Arba. Ela [é] Hebrom, na
223
terra de Canaã. E veio Abraão, a fim de lamentar por Sara e para chorá-
la.
3Ese ergueu da presença de sua morta e falou aos filhos de Het, dizendo:
"Estrangeiro e residente eu [sou] convosco. Dai-me posse de sepultura
convosco. E hei de sepultar minha morta de diante de mim." sE respon-
deram os filhos de Het a Abraão, dizendo-lhe: 6"Ouve-nos, meu senhor!
O líder de Deus tu [és] em nosso meio. No melhor de nossas sepulturas,
sepulta tua morta. Nenhum homem dentre nós te negará sua sepultura ao
sepultares tua morta." 7E ergueu-se Abraão e se curvou ao povo da terra,
aos filhos de Het. 8E falou com eles dizendo: "Se for de vosso agrado
sepultar minha morta de diante de mim, ouvi-me e insisti por mim junto
a Efrom, filho de Zohar. 9E me dará a caverna de Macpela que lhe [per-
tence], que [se situa] no canto de seu campo. Que ma dê por prata cheia
em vosso meio para posse de sepultura." !OE Efron morava em meio aos
filhos de Het. E respondeu Efrom, o heteu, a Abraão aos ouvidos dos
filhos de Het e em relação a todos os que chegavam à porta de sua cidade,
dizendo: 11"Não, meu senhor. Ouve-me! O campo te dou. E a caverna que
[está] nela te a dou. Diante dos olhos dos filhos do meu povo dou-te-a.
Sepulta tua morta!"
12E se curvou Abraão em direção às faces do povo da terra. 13E falou a
Efrom aos ouvidos do povo da terra, dizendo: "Ah, se me pudesses ouvir:
dou a prata do campo; torna]-a] de mim; e hei de sepultar minha morta
ali." 14E respondeu Efrom a Abraão, dizendo-lhe: IS"Meu senhor, ouve-
me: uma terra de quatrocentos sidos de prata entre mim e ti o que [é]
isso? Tua morta sepulta!".
16E ouviu Abraão a Efrom. E pesou Abraão para Efrom a prata que men-
cionara aos ouvidos dos filhos de Het, quatrocentos sidos de prata, moe-
da corrente. 17E passou o campo de Efrom, que [está] em Macpela, que [se
situa] diante de Mamre, o campo e a caverna, que [está] nele, e toda a
árvore, que [existe] no campo, que [há] em toda sua região circunvizinha
18para Abraão para propriedade aos olhos dos filhos de Het, entre todos que
entram à porta de sua cidade.
19E depois Abraão sepultou Sara, sua mulher, na caverna do campo de
Macpela diante de Mamre - ela [é] Hebrom - na terra de Canaã. ZOE
permaneceram o campo e a caverna, que nela [existe], para Abraão de
posse de sepultura a partir dos filhos de Het.
Sequências
O texto está bem feito, bem arrumado, com arte de contar. Às vezes, a
linguagem escolhe um caminho mui próprio. É o caso dos v.17-18, com suas
224
muitas frases relativas. No mais, as palavras aí escritas fazem fluir e entender o
que está em jogo.
Os v. 1-2 nos iniciam em assuntos e personagens. Passamos a saber de
Sara, de Abraão e do local, Hebrom.
O grande conjunto é o dos v.J-l5, que trazem a marca das negociações
entre Abraão e os filhos de Het, particularmente com Efrom: v.3-4 (Abraão),
v.5-6 (os filhos de Het), v.7-9 (Abraão), v.IO-lI (Efrom), v.12-13 (Abraão),
v.14-15 (Efrom). As falas são seis, sendo três de cada lado. Para chegar a uma
solução que estivesse no interesse de Abraão, a substituição de interlocutor (dos
filhos de Het por Efrom) é decisiva. Este conjunto dos v.3-15 é decisivo para a
compreensão da narrativa.
Às negociações, juntam-se ações nos v. 16-18. Nelas se narra a efetivação
do acerto negociado na subunidade anterior. O v.17 parece desempenhar um
papel especial nesta concretização do acordo. De todo modo, não se pode es-
quecer que as duas subunidades maiores - v.3-15 e v.16-18 - se complementam:
uma centrada na fala outra nos gestos.
Por fim, temos a conclusão, nos v. 19-2D, paralelizando com a introdução,
nos v.I-2.
As informações necessárias para a compreensão destes 20 versículos en-
contram-se neles. Não requerem informações adicionais para seu próprio enten-
dimento. Tampouco olham para além de seu próprio conteúdo. Estamos, pois,
diante de uma típica perícope, de um trecho desconectado do restante das estóri-
as. Surpreende, por exemplo, que não haja referência a Isaque, tão marcantemen-
te presente no capítulo anterior, o cap.22.
Fala e sabedoria
Seria muito bom, se pudéssemos alocar o capítulo a determinada época e
contexto. O problema é que, no caso, o anseio por tal correlação temporal e
social não é fácil de satisfazer. E isso permanece como problema também para
quem se socorre na alocação a uma suposta fonte, no caso seria a P/escrito sacer-
dotal, do 6º e 5º séculos.
Poder-se-ia recorrer à introdução (v.I-2) e à conclusão (v.19[20?]) para
aí perceber características da linguagem sacerdotal (P). O problema reside em
que estes poucos versículos realmente não configuram um estilo de notas genealó-
gicas. Antes diria que aqui o gênero literário genealógico só está preservado em
linguagem de segunda mão, tardia.
Depois, para indicar um argumento decisivo que afaste nosso capítulo de
tradições de escritores sacerdotais - caso estes, de fato, tenham existido, o que en-
225
tendo ser, hoje, de difícil comprovação - é que nele não temos nem mesmo uma só
referência a Deus, um conceito de uso contínuo no escrito sacerdotal.
Já por isso, irei procurar os portadores de tema e texto como este nosso
em círculos sapienciais. Afinal, eles, lendo e conhecendo as estórias antigas,
complementaram-nas com assuntos como o nosso. Retomando literariamente
uma linguagem mais antiga, como a das genealogias, delas se valem, não para
recriá-las exatamente, senão que aproximadamente.
As duas partes centrais - a do diálogo (v.3-15) e a da narração (v.16-18)
- devem ter relações, ainda que distantes, com estilos de linguagem mesopotâ-
micos, em que acertos jurídicos e comerciais eram registrados através da memó-
ria das negociações havidas. Há semelhanças com nosso trecho, sem que estas
fossem a detalhes.
Para alocar nosso capítulo na linguagem sapiencial, tem relevância a qua-
se completa falta da articulação da experiência de Deus. Vindos dos caps.20-22,
surpreende a falta da teologia, no seu sentido expresso. Aqui, em nosso cap.23,
Deus só é mencionado uma vez, e o é na 'voz' de "os filhos de Het". Não esta-
mos, pois, em linguagem histórico-salvífica, mas, assim entendo, na sapiencial.
Pois a questão em jogo neste cap.23 é a condução da língua, da argumen-
tação, da sabedoria das palavras. Qual sábio, Abraão vai conduzindo seus dize-
res e seus argumentos até alcançar seu objetivo. E ele o alcança plenamente. E,
no final, na parte narrativa (v.16-18), os resultados do diálogo são concretizados
em parecer jurídico. Esta proximidade entre a sabedoria argumentativa e as de-
cisões jurídicas também encontramos, por exemplo no livro de Rute e no Ecle-
siastes/Coélet. Não são, pois, tão distantes um do outro, ambos vivenciais no
âmbito de 'leigos'. O que vale, é a 'força' das palavras, seus argumentos. Génesis
23 é, pois, sapiencial Vive da cultura do portão, com seu saber da vida e suas
decisões de direito. Afinal, o próprio resultado do trecho é a definição de um
direito: Abraão e os seus passam a ter direito de sepultura no lugar cúltico cen-
tral da Grande Judá, em Mamre, junto a Hebrom. Lá também estão alocados os
caps.13-19!
Chama a atenção que preço e, em especial, 'dinheiro'y''prata" desempe-
nham um papel de relevância. Porém, isso já não se refere às estruturas de lin-
guagem, mas à origem histórica do texto, a seus dias.
Seus dias
226
bém a terra passa a ter preço (veja a posição mais antiga em 1Reis 21). Através
de compra e venda, o solo agricultável e uma caverna podem passar de um a
outro proprietário, mediante uma negociação pública e a memória de um docu-
mento referente à aquisição.
Há que lembrar também que, em tempos exílicos e pós-exílicos, o territó-
rio de Judá estava sob disputa, inclusive arqueologicamente confirmado. O su-
deste de Judá foi sendo gradualmente ocupado a partir das terras de Edom, ao
sul da Transjordânia. Grupos edornitas, posteriormente nabateus, se assentaram
ao sul de Hebrom, em terras judaítas. Nosso cap.23 refere-se, pois, a este confli-
to, vendo-o a partir da perspectiva judaíta. A gente de Judá está disposta a
conviver com os novos convivas nas tradicionais terras da tribo, mas exige seus
direitos, estabelecidos segundo critérios pós-exílicos, pela compra, pelo dinhei-
ro, a "prata". Este Judá que se articula através de Abraão e Sara não é um grupo
muito poderoso. Antes, é frágil, mas tem na sagacidade (21,22-341) e em discur-
sos sábios e medidas jurídicas adequadas seus melhores conselheiros. Judá vai
reafirmando, no pós-exílio, sua presença com sabedoria e tratados.
Penso que seja adequado recordar que os capítulos anteriores são, parcial-
mente, encerrados no final do cap.22, nas genealogias dos v.20-24. Nosso cap.23
é, pois, posterior aos caps.20-22, que compunham uma unidade literária peculiar,
do que acima já falamos. Os adendos a estes caps.20-22 têm todos eles caracte-
rísticas que os encaminham, quanto à datação, ao pós-exílio. E, além disso, tan-
to o cap.23 quanto o cap.24 estão marcados pela sabedoria. Nos próximos dois
capítulos, em cap.24 e cap.25, ainda deveremos observar outros argumentos
específicos que, como os que se referem ao cap.23, os lançam ao pós-exílio.
227
referentes, ainda carece de nossa compreensão. Enfim, significativo me parece,
por igual, que 'vida' se entenda, no hebraico, como um plural "vidas". Tais plu-
rais são mencionados nas segmentações quando da indicação dos próprios anos
(100,20,7 = 127).
Dois são os conteúdos do 17.2, um assinala o local de enterro, outro designa
a chegada de Abraão. A morte não chega a ser tematizada. Em seu lugar, o local
de enterro, este, sim, é de grande relevância, do que trata o miolo de nossos versí-
culos. Sara morre em Hebrom, onde o sítio arqueológico referente à antiga cidade
se situa, hoje, em uma colina, dentro da atual cidade. Esta Hebrom se chamava
antes de Quiriat-Arba (35,27), quando ainda era parte da terra de Canaã. Se
estivermos corretos de que, quanto aos tempos de redação, efetivamente, já esta-
mos em períodos pós-exílicos, então este v.2a estaria se esforçando em dar ares
antigos a um texto recente, pós-exílico.
A segunda parte, o v.2b, tem novo sujeito, Abraão. Ele "veio"; aparente-
mente não estava em Hebrom/Quiriat-Arba, No caso, estaria vindo de Beerseba
(22,19), onde 'fixara residência'. E por que Sara estava em Hebrom? De todo
modo, Abraão está em Hebrom para os ritos fúnebres, expressos aqui com dois
verbos: "lamentar" e "chorar". Há que entendê-los como complementares. "La-
mentar" é mais abrangente, por envolver ritos e sons, dos quais "chorar" é um
dos componentes. O começo do v.3 também indica que lamento e choro tinham
lugar na presença da pessoa morta.
Os 17.3-15, centrados em fala, e os 17.16-18, em narração, conformam o
núcleo do trecho. As palavras estabelecem negociações e acordo, os aconteci-
mentos realizam o acordado.
Nestes 17.3-15, as palavras são de diálogos entre Abraão e "os filhos de
Het" ou "Efrorn", um dos seus, no caso o possuidor das terras que interessam a
Abraão. Temos aí palavras, trocadas em três etapas, cada uma delas com ênfases
especiais, inclusive com alteração de parceiros, no caso, troca de "os filhos de
Het" por "Efrom".
A primeira etapa de diálogo/palavras, os 17.3-4+ 5-6, se dá entre Abraão e
"os filhos de Het''. Esta conversação ou negociação, a rigor, já chega, no geral, a
um acordo quanto ao sepultamento. Vejamos algo de seus detalhes.
As introduções às palavras, sejam de Abraão (v.3-4) sejam dos filhos de
Het (v.5-6) e dos diálogos posteriores, obtiveram redação similar - indícios de
uma redação uniforme do trecho. O primeiro verbo "erguer-se" tanto tem cone-
xão com a presença de Abraão junto ao velório de Sara (veja início do v.3 em
relação ao v.2), quanto com as posteriores introduções à fala; no v.7 também
temos tal "erguer-se". No mais, as introduções às palavras estão padronizadas.
As três iniciativas de começo e retomada das negociações iniciam de modo si-
228
milar: "erguer-se'v''inclinar-se" (v.Z, v.] e v.12), "falar" (v.3, v.S e v.U), conclu-
indo com "dizendo" (v.3, v.S e v.U). Este "dizendo" também se encontra nas
três reações dos filhos de Het ou de Efrom (v.5, v.lO, v.14), as quais estão intro-
duzidas por igual por "e respondeu" (v.5, v.lO e v.14). Este levantamento indica
claramente o quanto esta redação é uniforme, correspondendo a um só processo
de criação.
O primeiro conjunto de 'fala' e 'resposta' está nos v.J-4+ v.5-6, fala Abraão
e respondem "os filhos de Het''.
O objetivo da ocasião, da cena, é o sepultamento de "minha morta", de
Sara. Com ênfase nisso, concluem estas primeiras palavras de Abraão, na frase
final do v.4. A rigor, é também assim que começa o cenário: o velório de "minha
morta" (v.2b e v.3); eis o tema que enquadra o restante do v.4.
A necessidade está expressa de modo claro, breve e imperativo: "dai-me
posse de sepultura convosco". Estas palavrinhas são chaves; conduzem o conto.
A sepultura precisa ser "convosco", pois Abraão e sua família ainda não eram do
local. Diríamos: ainda não eram cidadãos de Quíriat-Arba/Hebrom. Este aspec-
to é aqui decisivo: Abraão quer ser concidadão. Outros lhe precedem; com eles
quer ser conviva; não se promove como seus sucessores ou substitutos (veja ao
contrário Amós 2,9 ou Josué 1-12). Afinal, ele pede que se lhe dê ("dai-me!")
sepultura. Veremos a seguir que este 'dar' é 'vender'; usa-se, pois, um termo das
relações sociais antigas, nas quais a entreajuda clânica era realizada como dádi-
va, doação, colaboração, como "dar", atribuindo-lhe, porém, o sentido de novas
relações, nas quais sepultura e terra têm preço. Afinal, mais adiante, sepultura/
terra serão compradas. O que é solicitado "dar" é designado de "posse de sepul-
tura" ('ahusat qereb). Nesta expressão, "posse de sepultura", é importante per-
ceber que "posse" tende a se referir à terra, à gleba, aqui à terra de "sepultura".
O conceito da "sepultura" engloba o entorno a ela, a "posse" de uma certa gleba
de terra. E esta é a questão decisiva em jogo neste cap.23: a junção de "sepultu-
ra" e de "posse" de terra, roçado. Pois, nestes tempos, sepultavam-se os mortos
no campo, na gleba da terra familiar (veja a respeito 1Reis 21). E este costume
de integrar a "sepultura", o morto, com a terra de trabalho, o roçado, é que
dificultava e impedia sua venda, já que, vendendo-a, se perdia o cemitério farni-
liar-clânico. Entende-se, pois, que Abraão, aqui obviamente pensado nos mol-
des de um lavrador judaíta, não poderia, em pensamentos de gente agrícola que
é transmissora do texto(!), sepultar sua "morta" sem a terra-posse.
E agora se compreende porque as palavras de Abraão começavam de modo
aparentemente estranho: refiro-me ao começo do v.4: "estrangeiro e residente
eu [sou] convosco". Ora, qual seria a relação entre esta frase e a que lhe segue,
na qual Abraão exige "dai-me posse de sepultura". É que um "estrangeiro e resi-
dente" não tinha nem "posse"/terra e, em consequência, carecia de "sepultura".
229
Ao pedir por "sepultura", 'pede' por terra. A primeira pode-se "dar", a segunda,
a "posse", só por pagamento, para que seja definitiva. Então, o assunto premente
neste trecho é o de vincular "sepultura" e "posse" de terra. E obter tal posse
torna um "estrangeiro e residente" e um "homem", um concidadão.
A reação (v.5-6) vem de encontro a Abraão, quanto à questão da sepul-
tura. Sem dúvida. Porém, não toca no tema da "posse"! Eis o problema!
A resposta é de "os filhos de Het". A eles Abraão já se dirigira no v.3, e
continuam a ser mencionados em v.lO.16.18.20 (veja também 25,10). Em 10,15,
estes heteus/hetitas são parte dos cananeus. Está, pois, fora de ótica o sentido
original de hititas, povo antigo da Ásia Menor. Em nosso capítulo, bem como
em 10,15, são um designativo para os cananeus, como moradores antigos, pré-
israelitas das terras de Israel. Deles vem a resposta ao apelo de Abraão, no vA:
"dai-me posse de sepultura".
A "sepultura", sim! Sobre a "posse", silêncio! É o que lemos nas últimas
duas frases do v.6. Lá, chega-se a mencionar a raiz "sepultar"/"sepultura" quatro
vezes! Mas não há alusão alguma à "posse"! Aliás, à "tua morta" cabe "o me-
lhor"/"o selecíonado" dos túmulos. Isso, sim. Quanto ao túmulo, não há dificul-
dade nem restrição alguma. Mas, nada se diz sobre a "posse". Este silêncio sobre
um dos aspectos e a ênfase noutro é sintomático. Não há, pois, só que apontar
para a 'generosidade', mas também, e com igual ênfase, para o não-dito. No
caso, o dito tem relação ao não-dito! O excesso de palavras para a sepultura
encobre a não-menção da terra.
Aliás, dentro deste direcionamento, seguramente vale mais uma notinha
na mesma linha: as sepulturas mencionadas por "os filhos de Het" sempre já
estão ocupadas, pois são" nossas sepulturas", são "sepultura dele", quer dizer de
um dos de Het. (Para entendê-lo há que lembrar-se que, na época, as sepulturas
eram coletivo-familiares, no geral situadas ou escavadas em pedras.) A partilhar
seu túmulo/caverna, a isso é que "nenhum homem" se negará. No caso, "ho-
mem" é um dos 'cidadãos' livres, com posse de terra, habitantes de Hebrom.
"Homem" tem, pois, aqui e em outros muitos trechos este sentido de 'homem
livre', social e economicamente autônomo. E este não cede, em Hebrom e seus
arredores, uma gleba de terra, mas só permite que Abraão - já, no capítulo, um
homem de renome e importância - continue a ser, em Hebrom, um "estrangeiro
e residente" (v.3).
É verdade, também há reconhecimento de honradez, em especial no come-
ço do vA. Abraão é nomeado de "meu senhor". E, em especial, é-lhe atribuído o
título de "o líder de Deus", uma liderança clâníco-tribal que, chamada por Deus
e orientando-se em seus mandamentos, conduz o povo (veja Êxodo 22,27). O
título é relevante, mas é honorífico. Nada diz a respeito da "data", da "possessão
230
de sepultura", pedidas e exigidas. Para chegar a obter "posse" e "sepultura" a
estratégia terá que ser outra.
Requer-se, pois, um novo passo, outra investida. E as mudanças se tor-
nam marcantes. Afinal, o trilho andado só trouxera belas palavras. Sara ficaria
sem "sepultura" própria, e Abraão e seu(s) filho(s), sem "posse".
A segunda rodada de tratativas (v. 7-9+ v.10-11) traz principalmente
uma mudanças de porte. Chega, de fato, à questão: como obter a "posse de
sepultura"?
Os v.7-9 enfocam a Abraão; os v.9-10 a Efrom. Os primeiros ocupam
mais espaço. Isso se deve a que somente nas palavras de Abraão esteja um
clareamento de sua proposta. Mas não só nas palavras há mais detalhes, tam-
bém na introdução, no v.] e no começo do v.8. No v.], precede, nas ações de
Abraão, como no v.3, o verbo "erguer-se". Mas, agora, é logo como que inver-
tido em um "curvar-se", um verbo que em outros textos (18,1 e 19,1) se refere
à reverência a Deus e seus enviados. Mantém-se, pois, o respeito aos de He-
brom, mas intensifica-se, como veremos, quanto aos conteúdos, as reivindica-
ções. Mais reverência - mais exigência! - A esta peculiaridade, agrega-se ou-
tra: os de Hebrom obtêm nova designação. São, agora, nomeados como "o
povo da terra". Tenho dificuldade em vê-los no sentido que tinham em Ageu
("o povo da terra" = camponeses) ou em 2Reis 11: camponeses da Sefelá
judaíta. Penso que, nesta equiparação de "os filhos de Het" com "o povo da
terra", estes últimos não têm tanto em mente que se trata de camponeses, mas
de não-judaítas, de estrangeiros.
As quatro frases da fala de Abraão, nos v.8-9, fazem avançar a cena. A
primeira ("se for de vosso agrado sepultar minha morta de diante de mim,
ouvi-me") retoma conteúdos da primeira rodada de conversações, nos v.3-6.
Aí, o começo das palavras é o apelo "ouve-nos, meu senhor!", na boca de "os
filhos de Het", Aqui, no v.7, manifesta-se Abraão com similar apelo: "ouvi-
me". No que precede a ele, está sendo retomada a resposta, em princípio,
afirmativa dos hebronitas em colaborar no sepultamento. Este "agrado" de
ajudar é algo de "vossa alma". É isso que se deu de parte de "os filhos de Het"
nos v.3-4 + 5-6: mostraram seu "agrado". E este passa a ser, agora, nestes nos-
sos v.7-9, o esteio para o passo seguinte. O que segue, pois, a esta frase de
retomada da primeira subunidade (v.3-4.5-6) expressa a proposta concreta de
Abraão. Nos v.3-6, sucedeu o acordo entre 'as almas'. Agora virá o que, em
definitivo, é a proposta de Abraão. Na primeira rodada de conversações, não
se passou, pois, de aproximações, de agrados, que aproximaram, mas sem uma
proposta específica e explícita de parte de Abraão. Agora, passa a ser explici-
ta, dita em três frases (no final do v.S e em v.9).
231
Para poder haver um acordo, tudo precisa ser claro, bem explicitado e
acordado. É este o esforço de nosso texto, eminentemente jurídico, que o leva a
esmerar-se em exatidão de linguagem. Cabe ao interessado no assunto em ques-
tão - Abraão, no caso - lançar as propostas. Nestes nossos v.8 (final) e v.9, é
que se encontram as definições; são três as frases em questão, cada uma clara e
explícita. A elas introduzia o v.8a.
A frase inicial já traz uma mudança significativa: "e insisti por mim junto
a Efrom, filho de Zohar" (v.8b). Entra um novo personagem. E teve que entrar
em cena, pois, com "os filhos de Het" ou com "o povo da terra", nem daria para
negociar. Deles, como que bastava obter a complacência, alcançada, como vía-
mos, nas primeiras tratativas (v.3-4+ 5-6). Então, este novo personagem até aqui
nos era desconhecido: Efrom, filho de Zohar. Outra pessoa com tal nome não
volta a aparecer. Com ele há que "insistir", a ele "apelar". Este imperativo está
dirigido a "os filhos de Het". Para chegar a este Efrom era, pois, necessário con-
tar com o apoio deste grupo. As referências a este Efrom somente ocorrem na
correlação com a sepultura em Mame (veja ainda 25,9; 49,29-30 e 50,13). De
resto, Efrom e palavras similares se referem a uma montanha!
A frase seguinte (v.9a) também inova, ao especificar: "e me dará a caver-
na de Macpela que lhe [pertence], que [se situa] no canto de seu campo". Ain-
da não inova no uso do verbo; continua a valer-se da raiz "dar" (veja vA), mas,
sim, especifica na designação do que se lhe há de 'dar': "a caverna de Macpela".
Até aqui Abraão requerera uma "posse de sepultura" (vA). Agora, tal objetivo
se toma específico, localizável e 'escriturada', no caso, para Efrom (da frase an-
terior). Trata-se, pois, em concreto, de "a caverna de Macpela". Uma "caverna"
é fenômeno frequente nas montanhas. A de Macpela só aparece no contexto de
nosso cap.23 (v.9.17.19; 25,9; 49,30; 50,13). No termo hebraico, transparece
tratar-se, no caso de Macpela, de uma caverna "dupla", de dois espaços inter-
nos, considerando que o nome hebraico de tal caverna contém a raiz "colocar
duplo". Esta "caverna de Macpela" é, retomando a terminologia do vA, "posse"
"dele", de Efrom, como o indica a primeira frase relativa "que". Enquanto isso, a
segunda frase relativa (novamente "que") define o local da "caverna". Situa-se
"no canto do campo dele", de Efrom. O termo, traduzido por "campo", e que em
hebraico é sadeh, é utilizado para indicar a área plantada da terra, herdada dos
antepassados; e, neste sentido, aproxima-se do conceito, historicamente mais
recente, da "posse" (veja acima vA). A caverna se situa no "canto" do tal cam-
po. Melhor talvez fosse traduzir, "no fim", "na extremidade", pois é a isso que se
refere exatamente o termo hebraico em questão. Tais precisas definições do 'ob-
jeto' - em processo de doação, ou melhor, como o dirá a próxima frase, em
compra e venda - indicam o quanto estamos em âmbito jurídico, que ainda
reaparecerá fortemente em versículos posteriores.
232
E, enfim, na terceira das frases (v.9b), irrompe o conteúdo novo, aquele
que viabiliza uma solução: "que ma dê por prata cheia em vosso meio para posse
de sepultura". Já conhecemos a linguagem de começo e fim. O apelo é que "os
filhos de Het" providenciem junto a Efrom que "dê" a Abraão a tal caverna. Passará
a ser sua "posse de sepultura" (veja vA), expressão que, já sabemos, significa algo
como obter um campo-posse com uma sepultura. Mas, o novo não está em que se
vai clareando que em jogo não só está a sepultura, mas sua "posse", seu "campo"
anexo e parte da sepultura. Não, o novo reside na pedida de preço: "por prata cheia
em vosso meio". Esta expressão se refere à quantia de "prata'l/rnoeda-dinheiro; em
jogo passa a estar o preço. Isso de a "prata" ser "cheia" há de significar 'pura', não
misturada (veja a respeito Isaías 1,22).
Irrompeu o novo nas negociações. Da sepultura, passou-se ao campo e,
deste, ao preço. Que se vincule a sepultura ao campo, à posse é característico do
primeiro milênio, considerando que, na Palestina, o túmulo estava inserido na
roça. Inovador não é tanto que a solução de se viabilizar o sepultamento se dê
pela obtenção do solo conexo, mas que este seja pago. O pagamento em prata é
marcante, e nos lança, com o texto em sua atual forma, ao pós-exílio, aos tem-
pos persas.
A reação de Eirom ocupa o v.l I. O v.lO ainda está dedicado à sua apre-
sentação; aí temos duas caracterizações de Efrom. A primeira expressa (v.l Oa),
em frase nominal, algo contínuo, o permanente residir e viver de Efrom em
Hebrom, "em meio aos filhos de Het". A segunda frase (v.lOb) já relaciona Efrom
com os assuntos em debate.
No v.lOa, haveria um conteúdo diferenciado, caso pudéssemos entender
o verbo hebraico no sentido de "governar", e não de "morar", o que há de ser o
caso. Afinal, em nada se percebe que em Hebrom houvesse um rei. Já o v.lOb,
este, sim, inova em seus conteúdos: nele se insiste em nomear a plateia que,
junto a Efrom, ouvia a resposta de Abraão: "aos ouvidos dos filhos de Het e em
relação a todos os que chegavam à porta de sua cidade". Isso há de significar
que, para as palavras de Abraão, as testemunhas são muitos, o que, para a lin-
guagem jurídica de nossos autores, é de primeira importância. Este 'público'
ouvinte são "os filhos de Het", que desde o começo estão aí, e os passantes de
ocasião ("todos os que chegavam à porta").
Os acontecimentos destacam, pois, o público, que pode ser amplamente
atestado. O texto é, pois, conduzido por sábios autores com senso jurídico. Em
outros termos, após esta marcante introdução à palavra de Efrom, esperar-sé-ia
que, agora, no v.ll, houvesse uma solução. Qual nada! É a negação, o "não" que
conduz a resposta. De resto, estamos no começo do v.6. E, de fato, o "não" que
encabeça o v.ll marca as demais frases. Ora, este "não" diz respeito ao final do
v.9, à decisão de Abraão em pagar em "prata". E é a isso que se dirige o "não"!
233
Logo, nas três frases ditas por Efrom, só se usa o verbo "dar". Efrom 'dá' "o
campo"/roça. E repete duas vezes 'dar' "a caverna". Como no v.6, as palavras de
Efrom são fechadas pelo imperativo de sepultar "a morta". É o que urge! Cresce
a pressa, não a solução de acordo às intenções de Abraão. As palavras de Efrom
não vão muito além das de "os filhos de Het''. E agora?
Os v.12-1J+ v. 14-15, enfim, desatam o nó, na terceira volta das conver-
sações. Agora, as palavras são menos. Importa o essencial. Os três verbos que
levam à fala de Abraão, nos v.12-l3, já são conhecidos do v.7-S: "curvou-se",
"falou", "dizendo". De novo há especiais complementos, no propósito de assegu-
rar-se de testemunhas: ao "povo da terra", Abraão se curva, e depois fala aos
"ouvidos" dos mesmos. Os autores dos textos se asseguram, pois, num tal emba-
te quanto ao que importa; cada passo é parte de um processo. Há que ter sabe-
doria em tais casos!
E, isso posto, já estamos nas palavras ditas por Abraão no v.U. Começam
por um apelo a "ouvir". Em v.6 e 11, tal apelo estivera na boca de "os filhos de
Het" e de Efrom; agora, no auge, troca de lado! É Abraão quem apela! Os con-
teúdos visados pelo apelo são três.
Na ponta, está "a prata" pelo "campo"! O que no começo não fora citado
(v.3-6), o que na segunda rodada de negociações estivera no final das propostas
em negociação (v.7-11), agora está em primeiro lugar: "a prata", o dinheiro a ser
pago. Falava-se antes da "posse de sepultura", agora, claramente e em primeiro
lugar, do "campo". O interesse principal se perfilou e, enfim, está pronunciado,
em palavras poucas mas exatas! Basta que Efrom aceite "a prata": "toma de
mim!". E, em seguida, assim parece, "minha morta" há de estar sepultada. Nem
mesmo se menciona a sepultura! Acima dela está: "o campo"! Em termos mais
breves e claros, talvez tivesse sido difícil dizer o básico.
A resposta de Efrom (v.14-15), por igual, é breve, sem excesso de pala-
vras, como já se vê na introdução, no v.14: mais breve não poderia ser - Efrom
"respondeu", "dizendo". E o dito é a restrição ao essencial. As palavras de Efrom
começam similares às de v.6.l1 e à de v.l3: "meu senhor, ouve-me". E, em segui-
da, está a resposta aos breves e claros termos de Abraão: o preço do campo! O
"campo" é "uma terra de quatrocentos siclos de prata", diz Efrom. É muito!
Jeremias pagara 17 siclos de prata pelo campo que resgatara em Anatote (32,9).
Mas, enfim, este "campo", esta "posse" em Hebrom é a primeira que Abraão/
judaítas assumem como 'seu' em Judá, em sua cidade central, em Hebrom, por
compra, não por guerra e nem por conquista. Aí temos uma alternativa às solu-
ções promovidas em Josué, lógico, quando lido de modo superficial. Em lugar de
guerras e chacinas, negociações e apelos a antigos direitos. Enfim, há também
que considerar que estamos em tempos pós-exílicos, quando os judaitas já nem
234
tinham exércitos para sair a lutas e guerras. Assim, a terra lhes advém de sábias
palavras e de ponderadas negociações. Isso lembra Gênesis 21,22 -34!
Ao diálogo (v.3-15), segue a narração (v.16-18). O acerto alcancado pelas
sábias e jurídicas palavras, ditas por Abraão, passa a ser efetivado. Abraão "ouviu
a Efrom" quer dizer que "assentiu", "concordou" e "obedeceu" a ele. O acordo é,
antes de tudo, sobre a "posse", o que os versículos anteriores já nos haviam mos-
trado. O debate não era sobre a "sepultura", mas sobre a "posse"! O problema não
era sepultar Sara, mas sepultá-la na propria "posse", na roça!
O acesso à "posse" é mediado pelo dinheiro, pela "prata", nestes nos-
sos tempos persas, pós-exílicos. Naqueles tempos, paga-se não em moeda,
mas, à moda antiga, em peso de prata. Conforme combinado, o preço é o dos
"quatrocentos siclos de prata" (veja acima v.14). Temos algum problema de
compreender o que seja exatamente a expressão 'ober Ie-soher, no final do
v.16; talvez realmente signifique "moeda corrente". Este detalhe realça que
não só o pagamento do campo foi feito em público, mas também em um
valor corrente da moeda. Tudo foi feito às claras e em público, de modo
sábio e juridicamente correto! No final, o v.18, retomando o v.16, reafirma
este caráter público e transparente da compra: "aos olhos dos filhos de Het,
entre todos que entram à porta de sua cidade". Ninguém pode questionar a
transação!
Exato e público não só é feito o pagamento, também é a descrição do que
foi comprado. Disso fala o centro dos v.16-18: em especial o v.17 (e o começo do
v.l8). Neste intuito da exaridão, a formulação deste v.l7 se fez bem complexa.
Caracteriza claramente o que passou para Abraão "para aquisição/propriedade"
(v.l Sa). Antes de tudo, "o campo de Efrom" "passou". Ele é identificado em
detalhes no v.l7: tinha sido de Efrom, em Macpela, "diante de Mame". Nestas
definições, o cuidado é claramente jurídico. Num segundo momento, também
há referência à "caverna", mas sem destaque maior. O que importa continua a
ser o "campo"! Por fim, com destaque maior que a "caverna", também são men-
cionadas as "árvores" em Mame, pois elas caracterizavam aquela localidade e o
culto nele praticado (13,18! veja 13,18 e 18,1). Portanto, aqui as informações
são exatas e publicamente acessíveis.
Porém, novamente, chama a atenção que Sara fica à margem dos cenários!
Nos versículos finais, v.19-2O, ela volta a ser mencionada. Mas a tónica
de linguagem não se altera: tudo é dito de modo exato, e um tanto sem graça.
Realmente a poesia narrativa do cap.22 e a repetitividade jurídica do cap.23
mantêm entre si uma significativa distância!
Os conteúdos daqui tendem a repetir os dos v.l6-18, mas a si mesmos se
entendem como situados "depois". Desse jeito realmente pretendem concluir.
235
No v.19, é relevante que Sara seja mencionada. Afinal, todos os detalhes
da cena têm a ela como referente. A sepultura volta a ser definida com exatidão,
sendo-lhe acrescentada a localização "na terra de Canaã". Trata-se aí, por assim
dizer, de um arcaismo.
O versículo final também repete, como o versículo anterior. Abraão ficou
de posse de "o campo e a caverna". Posse é a sepultura e a roça, em que se situa.
Concluindo
Estamos em tempos pós-exílicos, ao meu ver, persas. A vida que está em
jogo não é a crise de identidade dos primeiros tempos de aniquilação de Jerusa-
lém, em 587 a.C. Também não me parece que estejamos no final do 6º século,
quando da construção do segundo templo de Jerusalém, inaugurado em 515
a.c. Estamos em tempos posteriores, em que a dominação persa está já devida-
mente organizada. As terras nacionais e suas culturas se tornam internacionais
em meio à dominação nova que se estabelecera. Nas terras judaítas, ainda vi-
vem descendentes da história de Judá, mas estão mesclados a edomitas e filis-
teus, em terras internacionalizadas pela dominação. Aí nosso trecho, ao mesmo
tempo em que tenta estabelecer sua identidade específica, no coração das terras
judaítas, em Hebrom, também precisa conviver com seus novos 'antigos' vizi-
nhos (calebitas, hebronitas e cananeus).
Este cap.23 é peculiar. Sua linguagem vem carregada pelo cuidado jurídi-
co. As relações entre as pessoas e, em especial, as condições de vida em Judá já
não são regulamentadas por estruturas de estado ou de tribo. Afinal, nestes tem-
pos pós-exílicos convive-se em Judá com novos grupos sociais, inclusive com
vizinhos que se foram localizando em terras judaítas em tempos exílicos. Por
isso, os judaítas têm que reafirmar-se em suas antigas terras, e aí reagrupar-se,
ainda que também estes judaítas estejam convivendo com os vizinhos nas terras
destes (veja cap.20 e 21,22-34!). É neste ambiente que as tradições de Abraão
voltam a ter sinais de identificação (veja Ezequiel 33,24!).
Sara é o motivo. As palavras não a colocam no centro. Afinal, morrera.
Porém, é de sua presença, de sua presença-ausência de morta que ela avaliza as
sábias palavras de Abraão. É o corpo desta mulher que, junto às palavras sábias
e as competentes negociações juridicas de Abraão, demarca o 'primeiro' roçado
da trajetória de Israel. Sua sepultura constitui a primeira herança, ou, nos ter-
mos de nosso cap.23, a primeira possessão de Israel.
Nascera Isaque, providencia-se-lhe a terra. Não é acaso que o cap.23
segue ao cap.22. Quem nasce precisa de chão, de "campo". É assim a vida agrí-
cola. Este "campo" é o cerne de nossa história sábia e juridicamente pensada.
A rigor, pois, só "campo" serve de "sepultura", e campo como herança de
família (1Reis 21), como possessão.
236
"No caminho, Javé me conduziu" - A gente age,
pensa e comemora, e Deus conduz
Gênesis 24,1 ..67
237
Estes versículos e alguns outros insistem em amarrar o cap.24 após o cap.23 e
antes do cap.2S, 1-18.
Em meio a tais primeiras observações e inquirições, passemos à tradução
literal:
'Abraão [era] velho, entrado em anos. Ejavé abençoava Abraão em tudo.
2E disse Abraão a seu servo, o antigo de sua casa, o que mandava em tudo
que [era] seu: "Põe tua mão debaixo de minha coxa. 3E te farei jurar em
[avé, o Deus dos céus e o Deus da terra, que não tomarás mulher para
meu filho dentre as filhas dos cananeus em cujo meio eu [estou] moran-
do. "Eis, para minha terra e para minha parentela irás, e tomarás uma
mulher para meu filho, para Isaque." 5E disse-lhe o servo: "Talvez não
queira a mulher andar atrás de mim para esta terra. Certamente conduzi-
rei de volta teu filho para a terra de onde saíste?" 6E disse a ele Abraão:
"Cuida-te, para que não faças voltar meu filho para lá. 7Javé, o Deus dos
céus, que me tomou da casa de meu pai e da terra do meu nascimento e
que me jurou dizendo: 'à tua descendência darei esta terra', ele enviará
seu mensageiro diante de ti, e tomarás mulher para meu filho de lá. 8E, se
não quiser a mulher vir atrás de ti, estarás inocente deste juramento a
mim. Somente meu filho não faças voltar para lá." 9E pôs o servo sua mão
debaixo da coxa de Abraão, seu senhor, e jurou a ele sobre este assunto.
!OE tomou o servo dez camelos dos camelos de seu senhor e andou. E
todos os bens de seu senhor [havia] em suas mãos. E se levantou e andou
para Aram-Naharaim, para a cidade de Naor. 11E fez agachar-se os came-
los fora da cidade junto ao poço de água, à hora do anoitecer, à hora do
sair das que tiram água. 12E pensou: "[avé, Deus de meu senhor Abraão,
faze acontecer diante de mim, hoje, e faze solidariedade com meu senhor
Abraão. 13Eis, eu estou parado junto ao olho d'água. E as filhas dos ho-
mens da cidade [vem] saindo para tirar água. 14E acontecerá: à moça, à
qual me estiver referindo [ao dizer]: 'Inclina teu cântaro, para que beba',
e [ela] disser: 'Bebe, e também a teus camelos darei de beber', designaste-
a para teu servo, para Isaque, e nisso saberei: Eis que fizeste solidariedade
com teu servo." 15E aconteceu: ele antes que concluísse de falar, eis que
Rebeca saindo, que fora nascida a Betuel, filho de Milca, a mulher de
Naor, a irmã de Abraão, e seu cântaro sobre seu ombro. 16E a moça [era]
beleza de aparência, virgem, e homem não a conhecera. Desceu à fonte.
E encheu seu cântaro. E subiu. 17E o servo correu ao encontro dela. E
disse: "Deixa-me sorver um pouco da água de teu cântaro". 18E [ela] dis-
se: "Bebe, meu senhor". E rápido desceu seu cântaro sobre a mão e lhe
deu de beber. 19E concluiu de dar-lhe de beber. E disse: "Também para
238
teus camelos tirarei até que concluam de beber". 2°E apressou-se e esva-
ziou seu cântaro no bebedouro. E correu novamente ao poço para tirar
(água). E tirou]-a] para todos os seus camelos. 21E o homem 'olhando'
para ela, manteve-se em silêncio para saber: [avé teria levado ao sucesso
seu caminho ou não? 22E aconteceu, quando os camelos concluíram de
beber, tomou o homem um pendente de ouro de meio siclo de seu peso e
duas pulseiras para punhos dela de dez ouro de seu peso. 23E disse: "De
quem tu [és] filha? Anuncia [-o] a mim! Haveria na casa de teu pai lugar
para nós para pernoitarmos?" 24E disse para ele: "Filha de Betuel eu [sou], o
filho que Milca deu à luz a Naor". 25E disse a ele: "Também [temos] palha,
também muito pasto conosco, também um lugar para pernoitar". 26E se
ajoelhou o homem e adorou a Javé. 27E disse: "Bendito [seja] Javé, Deus de
meu senhor Abraão, que não abandonou a sua solidariedade e sua fidelida-
de de junto de meu senhor. [Quanto a] mim, no caminho [avé me condu-
ziu [à] casa dos irmãos do meu senhor."
28E a moça correu e comunicou à casa de sua mãe de acordo a esses acon-
tecimentos. 29E Rebeca [tinha] um irmão e seu nome [era] Labão. E cor-
reu Labão para o homem, fora, junto à fonte. 30E aconteceu - quando viu
o pendente e as pulseiras nas mãos de sua irmã e quando ouviu as palavras
de Rebeca, sua irmã, dizendo: 'assim me falou o homem' - e foi o homem.
E, eis, estava parado junto aos camelos, à fonte. 31E disse: "Vem, bendito
de Javé! Por que estás parado, aí fora? E eu mesmo preparei a casa e o
lugar para os camelos." 32E fez entrar o homem à casa. E desamarrou os
camelos. E deu forragem e pasto aos camelos, e água para lavar seus pés e
os pés dos homens que [estavam] com ele. 33E foi colocado diante dele
para comer. E disse: "Não comerei, até que fale minhas palavras". E disse:
"Fala". 34E disse: "Servo de Abraão [sou] eu. 35E [avé abençoou meu se-
nhor muito; e se tornou grande. E lhe deu ovelha e boi, e prata e ouro, e
escravos e escravas, e camelos e jumentos. 36E deu à luz Sara, a mulher de
meu senhor, um filho a meu senhor depois de sua velhice. E deu-lhe tudo
que lhe [pertence]. 37E fez-me jurar meu senhor, dizendo: 'Não tomarás
mulher para meu filho das filhas dos cananeus, em cuja terra eu estou
morando, 38certamente para a casa de meu pai irás e a meu clã e tomarás
mulher para meu filho'. 39E disse a meu senhor: 'Talvez não queira seguir-
me a mulher'. 4°E me disse: '[avé, em cuja face ando, envia seu mensagei-
ro contigo. E dará sucesso a teu caminho. E tomarás mulher para meu
filho de meu clã e da casa de teu pai. 41Então estarás desobrigado de mi-
nha maldição se vieres para meu clã; e, se não te a derem, estarás livre de
minha maldição.' 42E cheguei, hoje, à fonte e disse: '[avé, Deus de meu
senhor Abraão, se tua existência der sucesso a meu caminho sobre o qual
239
eu ando, 43 eis que eu estou parado junto à fonte de águas e acontecerá: a
moça que saindo para tirar e disser para ela: 'Dá-me de beber um pouco
de água de teu cântaro' 44e me disser: 'Também bebe tu, e também para
teus camelos tirarei água', ela [é] a mulher que [avé assinalou para o filho
de meu senhor. 45Eu antes concluía ao falar a meu coração. E, eis, Rebeca
saindo, e seu cântaro sobre seu ombro, desceu para a fonte. E tirou [águas].
E [eu] disse a ela: 'Dá-me de beber!'. 46E apressouj-se] e baixou o seu
cântaro de sobre ela. E disse: 'Bebe e também a teus camelos darei de
beber'. Bebi e também aos camelos deu de beber. 47E lhe perguntei e disse:
'De quem tu [és] filha?'. E respondeu: 'Filha de Betuel, filho de Naor que
lhe nasceu de Milca'. E coloquei o pendente em seu nariz e as pulseiras
sobre seu braço. 48E inclinei-me e adorei a [avé. E abençoei a [avé, Deus
de meu senhor Abraão que me conduziu em caminho de verdade para
tomar a filha de meu irmão a meu senhor para seu filho. 49E, agora, se
haveis de fazer solidariedade e verdade com meu senhor, fazei-me saber, e
se não, fazei-me saber e ou para a direita ou para a esquerda." SOE respon-
deram Labão e Betuel e disseram: "De [avé saiu o assunto. Não podemos
dizer em relação a ti mal ou bem. 5lEis, Rebeca diante de ti. Toma, e vai,
e seja mulher para o filho do teu senhor, conforme falou [avé." 52E aconte-
ceu, quando ouviu o servo de Abraão suas palavras, prostrou-se em terra
diante de [avé. 53E tirou o escravo objetos de prata e objetos de ouro e
vestidos e [os] deu para Rebeca, e coisas boas deu a seus irmãos e a sua
mãe. 54aE comeram e beberam ele e os homens que [estavam] com ele.
54bE pernoitaram e se levantaram na manhã e disse: "Deixem-me ir a meu
senhor!". 55E disseram seu irmão e sua mãe: "Permaneça a moça conosco
dias ou dez. Depois irá." 56E lhes disse: "Não me detenhais. E [avé deu
sucesso a meu caminho. Deixem-me ir. E irei a meu senhor." 57E disseram:
"Chamemos a moça. E perguntemos pessoalmente." 58E anunciaram a
R e b eca e lh e diisseram: " Q
ueres'rr com este h " E respon d eu: "I'"
omem. rer.
59E despediram Rebeca, a irmã deles, e sua ama, e ao servo de Abraão e a
seus homens. 6°E abençoaram Rebeca e lhe disseram: "Nossa irmã, tu hás
de ser para milhares de milhares. E tomará posse tua descendência da
porta de seus inimigos." 61E se ergueu Rebeca e suas moças e montaram
sobre os camelos e foram atrás do homem. E tomou o servo a Rebeca e
partiu. 62E Isaque veio o caminho de Beer Lahai Roi. E ele habitava na
terra do Neguebe. 63E saiu Isaque para meditar no campo, ao cair da tar-
de. E ergueu seus olhos e olhou e, eis, camelos chegando. ME ergueu Re-
beca seus olhos e viu Isaque e apeou de cima do camelo. 65E disse ao
servo: "Quem [é] aquele homem que vem no campo ao nosso encon-
tro?", E disse o servo: "Ele [é] meu senhor". E tomou o véu e se cobriu. 66E
240
contou o servo a Isaque todos os acontecimentos que fizera. 67E condu-
ziu-a Isaque para a tenda de Sara sua mãe. E tomou Rebeca. E (ela) tor-
nou-se para ele para mulher. E a amou. E encontrou consolo Isaque de-
pois de sua mãe.
Longa
Esta narração é longa. Trata-se da mais longa entre as de Sara e Abraão.
Também as sobre Abraão e Ló têm sua extensão: caps.l J (-14) + 18-19. Mas este
é, como dizíamos, um ciclo de várias estórias, bastante independentes umas das
outras. Aqui, no cap.24, é diferente: contempla um só assunto em uma só estó-
ria, em cenário coeso e breve em termos de tempo. Nosso cap.24, situa-se, pois,
à parte dos demais textos de Gênesis 12-25 quanto à extensão.
Bem que poderia constituir narração tão própria, a ponto de poder ser
chamada de 'livreto'. Temos muitas semelhantes, no próprio Gênesis, como é o
caso dos caps.34 e 38, que conformam narrações relativamente próprias, com
pouca vinculação ao fluxo narrativo em que se encontram. Em boa medida,
independem do contexto literário.
De todo modo, quem conta uma cena como a do cap.24, com tamanho elã
e fascínio, habilitou-se a ter alegria no conto, nas narrações. Já por isso devemos
estar em tempos pós-exílicos, próximos a pessoas como as que contaram de Rute
ou de Jonas. Porém, sobre estas questões de alocação temporal e social da estória,
ainda temos mais a dizer, logo abaixo.
241
uma origem antiga. Gênesis 24 é, devido à sua linguagem e teologia, parte da
literatura bíblica recente.
Não pode passar desapercebido o tamanho de nossa história: ao todo, 67
versículos! Nosso capítulo supera, em tamanho, o livro de Jonas. E é um pouco
menor que Rute. Pela frente temos, pois, como que um livrolseperbíblico. Aliás,
às vezes ainda se percebe que nosso cap.24 tem tradições e momentos em que se
aparta de seu contexto: por exemplo, penso no detalhe de faltar ao tal "servo",
que empreende a viagem às terras de Rebeca, uma identidade clara; afinal, mui-
tas vezes só é chamado de "o homem" (veja entre outros, por exemplo, v.21.22.26).
Sim, esta versão, na qual o condutor da narrativa é "o homem", pode ser mais
antiga que aquela na qual o tal "o homem" é "o servo". Neste particular, por
exemplo, ainda podemos ver algo do gradual crescimento de nossa narrativa, a
ponto de ir alcançando o tamanho de um livro/ seper!
Nesta sua qualidade, o cap.24 pode ser comparado, como já dizíamos, a
Gênesis 34 e 38. Estes lhe têm em comum certa desvinculação do contexto
literário. São estórias interpostas, com alguma vinculação com seu contexto li-
terário, sem que este lhes seja muito determinante. Gênesis 24 pertence a estas
perícopes soltas. Estão tão desenvolvidas e com um tema tão próprio que se
apartam. Também por isso não convém querer enquadrar nosso capítulo com os
textos circundantes.
Conhecemos a tradição, na qual o cap.24 se situa. Trata-se das narrações
sobre casamentos, como as temos em Êxodo 2,15-22 e em Gênesis 29,1-14. Ambas
são versões mais antigas que nosso cap.Z'[. Poderemos situar Gênesis 29 entre
aqueles trechos anteriores a 722 a.C., quando o ambiente histórico de preserva-
ção das narrativas sobre Jacó foi destruído pelas invasões assírias. Afora isso, é
muito marcante quão extensa é a narração de nosso cap.24, aliás, não só muito
longa, mas, além disso, marcada por uma teologia que se tem chamado de con-
dução divina dos acontecimentos e das pessoas, como abaixo ainda veremos.
Portanto, comparado com narrativas similares, nosso cap.24 chama a atenção
pela ampliação de seu perfil e por seu peculiar interesse na condução divina ou,
como preferiria dizer, no desenrolar sábio das vidas.
Quando! É óbvio que temos dificuldades em localizar nosso cap.24 na
história da escrita. Porém, tendo a situá-lo na proximidade de inclusões medi-
tativas ou reflexões teológicas, nas quais não há grande atenção para detalhes
históricos, mas em que um tema teológico se sobrepõe sobremaneira, como,
aqui, o da sabedoria inerente à existência. Estaremos, pois, naqueles tempos
pós-exílicos, nos quais as desolações dos primeiros tempos já passaram, e o
povo da sociedade judaíta vai identificando, após a construção dos muros por
Neemias, sua nova posição entre as sociedades da época. Buscaria nossa está-
242
ria entre círculos de reflexão teológica, marcados pela sabedoria, no final do
5º século.
Decurso da narrativa
Há unidade neste cap.24; as variadas cenas se completam e interagem.
Daí resulta coesão na narrativa.
Na primeira subunidade, v. 1-9, ainda se percebe o quanto a narração sai
de dentro das de Abraão, como o cap.23, que o antecede, e o cap.25, que lhe
segue. Afinal, neste começo, Abraão é o personagem destes versículos. À introdu-
ção, conformada pelo v.I, seguem palavras: de Abraão (v.2-4), do servo (v.5), de
Abraão (v.6-8), concluídas pelo juramento do servo (v.9). Este começo está em
função do que segue: "tomarás uma mulher para meu filho" (v.4). No final do
cap.24, este começo (v.I-9) é retomado (veja v.54-66).
Uma segunda subunidade pode ser vista nos v.10-27, cujo cenário é o
poço, a fonte. Seu assunto é típico: "o servo" encontra justamente a quem pro-
curava! Sua meta se lhe torna um achado/Sendo este seu alvo, poucas palavras
são atribuídas à viagem, longa, difícil, perigosa; o v.l Obasta para o translado da
Terra de Canaã à distante Aram-Naharaím. Os v.ll-14 abrem-nos aos pensa-
mentos do servo, às palavras que diz a si. São estas palavras-pensamentos justa-
mente as que se efetivarão, o que diz muito sobre o sentido do capítulo. Efeti-
vam-se na oração dos v.26-27. Logo, as cenas em meio a v.ll-14 + v.26-27 são
um quadro; têm a função de explicitar o que este indica! Aliás - e isso em nada
é acidental- o tal quadro tem em seu centro(!) uma retomada, justamente no
v.2I! Os v.15-16 apresentam Rebeca; os v.17-21, em que o v.21 tem função
especial(!), descrevem sua ação de servir água ao servo e, em seguida, aos came-
los; e, finalmente, nos v.22-25, o servo pede que a moça se apresente: Rebeca.
Logo, a parte narrativa (v.IO, v.15-16, v.17-20, v.22-25) coincide com a inter-
pretativa (v.lI-14, v.21, v.26-27). Não resta dúvida: este texto está magnifica-
mente interconectado!
A "casa" vem a ser o novo âmbito dos acontecimentos, a partir do v. 28.
Ela já estava anunciada nos versículos anteriores, no v.25 e, em especial, no
v.27. Agora, ela passa a ser o cenário dos acontecimentos. Sim, 'passa' a ser:
afinal, os v.28-32 têm a função de translado, da transferência do cenário do poço
para o da casa. Isso significa que não se há de atribuir aos v.28-32 uma função
própria, mas a de transferência, ou de introdução ao que segue ao v.33. A partir
dos v.28 estamos em novo âmbito, não mais no dos v.IO-27. Isso se percebe já no
v.28: ele leva Rebeca à sua mãe, ao novo espaço. De lá sai correndo seu irmão
(v.29-30) a fim de convidar (v.3l) e conduzir o servo visitante ao âmbito de sua
família (v.32). O translado, assunto dos v.28-32, está, pois, efetivado. Mas este
243
temário não é um assunto próprio. Tão-somente é introdutório, preparatório ao
que segue.
Segue-lhe o grande conjunto de v.JJ-54a. A rigor, o v.JJa ainda seria
parte dos versículos precedentes. Após a recepção (v,32), vem a alimentação
(v,33a); dela é parte. Ora, esta sequência é interrompida: "não comerei enquan-
to não..." (v.33b). O pedido do "servo" para expor o motivo de sua viagem, é
atendido. A exposição das razões da viagem se estende de v.J4 até o v.49. Estes
16 versículos são fala do servo. A reação de Labão e Betuel é a de assentir à
intenção: "toma-a e vai-te" (v.50-51). Oração e troca de presentes ainda são
parte da subunidade (v.52-53). E só daí temos, no v.54a, a continuação do v,33a:
os v,33-54a formam, pois, um só conjunto, saído de dentro dos v.28-32, que lhes
servem de preâmbulo, e concluído no desejo de regressar, no começo do v.54,
em v.54a.
A conclusão começa no v.54b e se estende até o final, v.67. Está marcada
pelo tema: regresso. Corresponde ao tema da chegada, nos v.I-9. E é complexa
como aquela. Mas, desde o v.54b, o noivo e o último assunto estão focalizados:
volta. Um assunto da partida das terras de Naor e outro da chegada nas de
Isaque marcam a volta. Na saída (v.55-6l), os familiares queriam que Rebeca
permanecesse por mais alguns dias em sua companhia. É a própria Rebeca quem
decide iniciar logo a viagem. Na chegada (v.62-63 +64-65), o encontro de Isa-
que com Rebeca ocorre no caminho, por providência, dir-se-ia quase que por
acaso. Ambos erguem os olhos (v.63 e v.64). E, enfim, "ele a ama" (v.67). O
juramento do "servo" (no v.9), mencionado não por acaso no v.66, realiza-se.
Concluo, pensando haver identificado ações introdutórias nos v. 1-9, e
conclusivas nos v.54b-61 O v.67 conclui o cenário da estória, remetendo dis-
cretamente para o cap.23; de todo modo, não é ponte para o cap.25. A parte
principal da narração se divide em dois grandes conjuntos literários: o primeiro,
v. 10-27, dá-se no poço, o segundo, v.JJ-54a, no qual uma fala do "servo" englo-
ba nada menos de v.34-49, tem lugar na casa de Labão. A história é longa, mas
sua estrutura, simples.
244
servo é inocentado, ainda que permaneça a tarefa (v.6-8). Esta, enfim, se torna
conteúdo do juramento (v.9).
A linguagem e, em especial, várias expressões parecem ser mais recentes,
nestes nove versículos introdutórios, que no restante da narração. Nestes versí-
culos, podemos estar mais próximos dos redatores finais. Estes, contudo, devem
ser anteriores aos do cap.25.
Aliás, o Abraão de nosso capítulo parece ser mais velho que o do cap.25.
Aqui, v. 1, já está sem condições de viagem, lá, no cap.25, casa outra vez! No v.1,
Abraão não viaja por velhice! Afinal, o termo "velho" adjetiva-o. Era "entrado
em dias/anos". A tal velhice em dias/idade avançada era vivida em bênção;
"[avé abençoava". Uma das bênçãos é a própria história que segue. O v.I nos diz
das condições de vida, e da bênção vivida por Abraão. Estas "velhice" e "bên-
ção" que marcam o v.l poderiam parecer um título. Mas também podem ser,
simplesmente, o começo da narração.
Contudo, estas afirmações do v.l não são retomadas no restante do cap.24,
em especial não no final. O v.67 realça Sara, não Abraão.
Os v. 2-4são fala de Abraão a seu "escravo"l"servo", sem nome. A intro-
dução, no v.2a, se alonga na apresentação deste que é chamado principalmente
de "servo", mas também de "homem", nos versículos subsequentes.
"Escravo'7"servo", em que sentido? Certamente não é um súdito da gle-
ba; este é o sentido feudal de "servo". Bem, mas não estamos em tais tempos da
Idade Média. Poderia ser um "escravo" em sentido bíblico-social: uma pessoa
caída em dívidas ou em prisão de guerra, e vendida a outrem, no caso a Abraão.
Talvez. Porém, o mais provável é que aqui nem se tenham em mente relações
socioeconôrnicas, mas que "escravo" expresse relações de interconexão pessoal.
Este "escravo", afinal, era "o que mandava/governava em tudo que [era] seu".
Não se trata, pois, de "escravo" comprado, antes temos aqui um título honorífico,
não de uma categoria social, mas de relação de confiança. "Servo" é o que repre-
senta a seu amigo. De resto, 'manda' e 'governa'. O título "escravo" é, aqui, hono-
rífico.
Em v.2b-4, temos gesto e juramento ordenados por Abraão ao servo. O
gesto de colocar a mão debaixo da coxa pertence ao juramento, como também
lemos em 47,29-31. Tal gesto corrobora o juramento, assunto dos v.3-4. O v.3 abre
o juramento com titulação a [avé, em termos da era persa: "o Deus dos céus e o
Deus da terra" (veja Esdras 1,2; Neemias 1,4-5.9). Segue-lhe o conteúdo primeiro
do juramento, que reside em não casar Isaque com uma "das filhas dos cananeus".
Só daí, no vA, se ressalta ("eis") quem há de ser a esposa de Isaque: de "minha
terra" e de "minha parentela", expressões estas que lembram 12,1. A respeito des-
tes conteúdos, veja também nossa própria narração nos v.35-37. Enfim, a língua-
245
gem intrincada deste juramento não aponta para tempos antigos, mas pós-deute-
ronômicos, pós-exílicos.
No v.5, a reação do 'escravo' às exigências de Abraão interpõe-lhe uma
dúvida. Trata-se de uma reação algo estranha; afinal, Abraão fala em termos de
juramento, o servo, de pretensão. E que, aparentemente, curiosa proposta é esta
de levar Isaque de volta às terras de onde Deus fizera sair Abraão sob promessas
(12,1-3)? Propostas algo raras!? Penso que isso se explica sob as condições pós-
exílicas, quando grandes quantias de deportados permaneceram em terras per-
sas, antigas assiro-babilónicas. Em meio a tais debates pós-exílicos, nosso texto
toma posição à luz de Judá, não da diáspora. Veja, porém, Jeremias 29,3-7!
Esta linguagem, digamos, sobrecarregada ou intrincada, também está pre-
sente nos v.6-8, em especial no v.7a e no v.8a, com seus sintomas do estilo pós-
deuteronomista.
Estes v.6-8 afunilam os v.2-4 após a intervenção do servo no v.S. Talvez
seja esta a razão que os torna bastante exatos. Vejo que suas frases são cinco. Em
seu centro, encontra-se a que tem conteúdo claro e simples: "tomarás mulher
para meu filho de lá" (veja já no vA!). Este é o objetivo da viagem do escravo/
servo. À luz do v.S precedente, o "de lá" é relevante, não poderia ser um 'para
lá'. A esposa do filho Isaque tem que vir, ele não pode ir. A ótica que prevalece
no texto, aqui, não é a da mulher, mas do homem, não é a da diáspora, mas a
judaíta.
A primeira e a última frases são idênticas. E isso indica que as palavras de
Abraão são formuladas com consciência: "não faças voltar meu filho para lá"
(v.2b e v.8b). Ambas se voltam contra o conteúdo do v.S.
A segunda e a quarta frases - ambas um tanto complexas e longas - con-
têm conteúdos de apoio. O v.7a realça o aspecto teológico, em frase longa e dos
tempos de teologia sob o impacto persa. Refiro-me ao "Deus dos céus", título
daqueles tempos pós-exílicos, recheados de tardios deuteronornismos, como é o
caso da promessa da terra e da celebração das origens. Enfim, é um "mensagei-
ro" (ou seria um "anjo"?) que está no caminho diante do povo. - Mas o autor
não pode deixar de reconhecer, em sua quarta frase, a possibilidade de haver
uma negação - da mulher - aos desígnios de Deus: "se a mulher não quiser vir
atrás de ti, estarás inocente deste juramento" (v.Sa}. Afinal, naqueles tempos
dos persas, eram muitos os que já não queriam vir às terras das promessas.
Neste sentido, o v.S e os v.6-8 nos alocam bastante bem nos tempos per-
sas, que são os de nosso capítulo.
O v.9 encerra, retornando ao vA. Neste sentido, o v.S e os v.6-8 contêm
justamente os conteúdos propriamente dos dias dos autores. O servo jura, mas o
246
conteúdo deste ato já não é mencionado. Afinal, no v.8a, o objeto deste jura-
mento - prover o casamento de Isaque com uma mulher das terras dos antepassa-
dos - acabara de ser posto em dúvida. Logo, o conteúdo específico é substituído
por termos mais gerais: "sobre este assunto". O "assunto", a "palavra" é o matrimô-
nio de Isaque com não-cananeia, com alguém de sua linhagem, mas sem que isto
estivesse dito. Pelo visto, a diáspora vai assumindo um papel marcante para o povo
de Deus.
O assunto, a rigor, não continua. Para por aí. Outros trechos voltarão a
ele, a seu modo, por exemplo, Génesis 34, Rute, Ester, logo a seguir, Génesis 25,1-6.
Em nossa perícope, a introdução o deixa transparecer com mais destaque, a parte
certamente mais recente da estória. Mas o assunto volta (v,37-38!), pois esta questão
é um dos corações temáticos e de conteúdo do capítulo.
247
vana. Ora, suas intenções são peculiares, de representação, não tanto históricas.
De todo modo, há conexões entre os nomes e a genealogia conclusiva em 22,20-
24, onde nossa perícope estava em preparação, como dizíamos.
Voltamos a percebê-lo em seguida, nos v.11-14; neles, prevalecem inten-
ções, reflexões.
No começo, v.ll, temos breve narração; depois, nos v.12-14, somente
intenções, pensamentos. Neles, o servo "disse", ou melhor, "pensou" (v.12).
Em seu começo, o v.II parece ainda estar em continuidade ao v.l O. Po-
rém, em seguida, no v.ll b, se percebe sua nova ênfase: episódios janto ao poço.
Lá, fora da cidade, os camelos descansam de seu longo caminho. Contudo, não
é esta jornada da Terra de Canaã à "cidade de Naor" propriamente o assunto,
mas as mulheres que, ao anoitecer, se dirigem ao poço em busca de água. Como
contactá-las e como identificar, entre elas, a moça a pedir em casamento em
favor de Isaque?!
A identificação da moça é, aqui, a questão teológica por excelência. Não
é só questão prática: sair a perguntar, por exemplo. A identificação deve ser de
tal forma que resulte em designação divina, como o expressa o v.14. Uma iden-
tificação se torna quase que a solução de um mistério.
Não é, pois, acaso que o início (v.l Za) se dê em linguagem teológica, em
oração, petição. [avé é invocado. Seu título obedece aos padrões do Gênesis:
[avé é "o Deus de Abraão", ampliado por "meu senhor Abraão". A petição do
servo implora pelo "fazer acontecer"; este conteúdo se refere ao objetivo da
viagem: esposa para Isaque. Em seguida, o servo pede, no v.12b, em favor de
Abraão, a rigor, invoca, em outros termos, em prol do mesmo conteúdo da frase
anterior: implora pela "solidariedade" de Deus com Abraão. A oração é, pois,
intrínseca aos acontecimentos em andamento; seus conteúdos são os dos perso-
nagens, Abraão e o servo.
Nos v.13-14, chegamos ao mais relevante. No começo, está uma interjei-
ção "eis". Os dois versículos, que precedem a este "eis", são-lhe preparatórios. O
servo relata; é como se ainda o estivesse a fazer a Deus (v.13) . A cena é detalha-
da. Ele, o servo, parado junto à fonte. As filhas vêm chegando da cidade "para
tirar água". Quem há de ser a futura esposa de Isaque (v.13)! A moça que otere-
cer água (v.14) lEste 'acontecimento' haverá de ser o sinal a identificá-la. Nisso,
é decisivo que às palavras do servo ("inclina teu cântaro para que beba") corres-
pondam às da moça ("bebe, e também a teus camelos darei de beber"). Esta será
a 'designada'! O que importa é identificá-la adequadamente. Eis a sábia teolo-
gia, a sabedoria teológica deste cap.24: para que se saiba das ações de solidarie-
dade de Deus, é preciso identificá-las. Ao verificá-las, até por palavras 'pré-
ditas', como que se tange os desígnios de Deus. Aí "saberei", como o expressa a
248
última frase do v.14. A providência é divinamente prescrita, mas está humana-
mente circunscrita. Eis um dos desafios teológico da sabedoria. Para saber, é
preciso observar o que se passa, como o dirá o v.2U Aliás, como já vimos, este
v.21 se situa na continuidade dos v.ll-l4, este misto de oração e esforço de
compreensão.
Os v. 15-20+21 têm lá suas especificidades; vem encabeçados pelo verbo
"e aconteceu". Entre si, os versículos estão bem integrados. É verdade, pode-se
apartar os v.15-16, não porque se situem fora da temática, mas porque sua aten-
ção descansa em Rebeca, na intenção de apresentá-la a leitores e leitoras. De
resto, prevalece a sequência de conteúdos nestes v.15-21, com exceção do v.21
que, como víamos, retoma os v.11-14.
Os v. 15-16 apresentam aquela, de cujo "acontecer" brota o que segue:
Rebeca. E, deste seu assunto, provém a diferença entre estes v.15-16 e os que
lhe seguem: os dois versículos a apresentam, além de dela narrarem.
O "escravo"l"servo" ainda está a pensar/orar, ainda está formulando as
condições sob as quais pretende reconhecer a moça que lhe está designada/
determinada (v.14). E Rebeca - para nós que lemos - já entra em cena: "e eiS'!
A resposta como que precede a formulação das condições para ser reconhecida
como tal.
Ela, antes de tudo, cumpre a cena: "Rebeca vem saindo", "seu cântaro
sobre seu ombro" (v.15), e "desceu à fonte; e encheu seu cântaro; e subiu" (v.16b).
Estas são, aliás, suas marcas decisivas; são elas as que a tomam a 'designada'
(v.14). É parte do que, na situação, 'tem que' acontecer, como também o expres-
sam os v.17-21. Para entendera roteiro de Deus, é preciso olhara que acontece:'
É assim que a sabedoria faz teologia. E é por isso que descreve acontecimentos até
os mínimos detalhes. Afinal, nosso cap.24 é o mais longo em Gênesis! É, pois, tão
longo também por razões teológicas! É preciso desvendar sabiamente os trilhos da
vida humana para ler os desígnios de Deus.
A família completa estas indicações que se obtêm do roteiro de vida. É o
que temos em v.15b: Rebeca "fora nascida a Betuel, o filho de Milca, a mulher
de Naor, a irmã de Abraão" (veja as conexões com 22,20-24!). Começando por
Abraão, chega-se a Rebeca. Ela não está, pois, fora dos quadros genealógicos.
Não só é alguém, mas também, à moda pós-exílica, situa-se dentro da parentela.
Ela cabe em critérios conhecidos de Esdras e 1Crônicas.
Porém, da mesma relevância, aliás, ainda mais celebradas e decisivas são
as qualidades da moça, como o lemos no v.16a. São dois seus dons: beleza e
virgindade. Ambas são ressaltadas com várias palavras. A primeira é formulada
com exuberância: "a moça [era] beleza de muita aparência". A segunda, por
249
igual, "virgem, e homem não a conhecera". Celebra-se a moça com termos como
que 'barrocos' ou utópicos.
O que o 'servo' de Abraão ainda não sabe, nós, leitoras e leitores, agora já
sabemos: esta é a moça procurada! O que nós sabemos por palavras do narrador,
ele saberá por sua experiência com ela, como o continuam a narrar os v.17 e
seguintes. Em termos de conhecimento, estamos com o narrador, mas em ter-
mos éticos e experienciais, com o "escravo"l'servo'.
A iniciativa das ações é de Rebeca, como acima já indiquei em relação
aos v.15-16. Aliás, são relativamente muitos os verbos que dão detalhes dela,
culminando na água que faz subir da fonte (v.16b).
A esta ação de Rebeca (v.15-16), segue-se a do servo (v.17); ele, por
assim dizer, intui e testa uma candidata possível (veja v.21). Pede-lhe por "um
pouco de água". Dito nestes termos, o pedido por água parece tender ao fortuito
("um pouco...''). O gesto que o acompanha não: afinal, o servo 'corre' em dire-
ção de Rebeca. Palavra e ação estão em tensão.
A reação de Rebeca (v.18-20) condiz antes com a necessidade embutida no
'correr' do servo. No caso, as ações estão prevalecendo sobre as palavras. No final,
no v.20, as ações verbais se sobrepõem com destaque, à base da pressa: "apressar-
se" e "correr". Já no v.18-19, percebe-se que a ação é de urgência. A palavra de
Rebeca ao senhor é breve "bebe, meu senhor". Mas a ação é "rápida" e completa;
"rápido" alcança a água e dá até saciar: "concluiu de dar". No v.19, retorna esta
insistência de que a água seja para saciar (no caso, os camelos). Pessoas e animais
são saciados em sua sede, por Rebeca, com pressa. O pedido do servo é excedido:
ao invés de "um pouco", Rebeca dá água para saciar completamente; ao invés de
só atender a pessoa do servo, Rebeca inclui os camelos todos. A ação excede em
muito (v.20), as palavras ainda não.
No v.21, deparamo-nos de novo com o olhar sapiencial sobre os aconteci-
mentos (veja o verbo no começo do v.15: "e aconteceu"!). É "no silêncio" de
dúvidas, reflexões e argumentos que se forja o "saber". O "caminho", a tarefa do
servo estaria concluída, teria chegado a bom termo? Seria Rebeca a moça para
Isaque? Nós, leitoras e leitores, já sabemos, e, justamente por isso, percebemos
quão cuidadoso se precisa ser como sábio. Não lhe basta uma só evidência. Preci-
sa-se de mais outras. A sabedoria é uma arte de persistência, não dos arroubos
imediatos. Nosso texto não só conta um caso, também, e principalmente, fàrma
para aprender a "saber':
Um novo "e aconteceu" dá início a uma nova subunidade Iliterária, conti-
nuando a enfocar o encontro entre o escravo/servo e Rebeca (v.22-27). Estes ver-
sículos concluem a cena junto ao poço. Transladam-napara 'a casa' de Betuel (v.24-25).
Neste sentido, nossos v.22-27 são conclusivos para a primeira parte (v.10-27).
250
Nos v.l5-21, percebíamos que as ações inovavam. Agora, passa a ser o
inverso: são as palavras que conduzem o cenário.
Já o vemos na primeira intervenção do servo em cena (v. 22-23). Aliás,
estes versículos receberam uma formatação toda especial, para o local que ocu-
pam. Aí inicia uma nova subunidade, como já vimos, os v.22-27. Isso está carac-
terizado, em nossa narração, pela introdução "e aconteceu" e por uma breve
retomada da subunidade anterior: "quando os camelos concluíram de beber",
anotação que remete para v.19b. Tais detalhes assinalam para a forma artística
que nosso trecho assume. Quem aí escreve} sabe escrever! É sábio!
A ação do homem/servo precede a palavra nestes v.22-23. Mas é a pala-
vra a que importa, ao inverso da subunidade anterior (v.l5-2l). Não que a ação
- quer dizer os belos e ricos presentes à jovem - não fossem maravilhosos. Afi-
nal, o presente é de "um pendente" e de "duas pulseiras", tudo de ouro em
quantidade.
Porém, mais que tais valiosos presentes são as palavras, as duas perguntas
(v.23): uma pela filiação da moça, e outra por pernoite. A rigor, não deveriam
vir tão em seguida, considerando que a segunda depende da resposta à primeira.
É que, agora, há pressa nas ações; o que importa é que as palavras sejam adequa-
das. E elas são. Decisiva, de todo modo, é a pergunta pela filiação, pois se insta
peIa resposta: " . ,"O
anuncra. . verbo 31' usado ("anunciar
. ") tem a ver com comu-
nicações públicas, formais.
Para quem escreve, a resposta a esta questão como que já está pressuposta
no sentido desejado. Por isso, o texto já agrega a pergunta por pernoite (v.23).
Contudo, as questões são, de fato, diferentes. Isso se vê nos v.24-25.
Aí, Rebeca responde separadamente às duas perguntas. Primeiro, v.24, dá
sua identidade familiar no sentido do v.15a: é filha de Betuel, neta de Milca e
Naor (veja 22,20-24). Daí segue, após nova introdução em v.25a ("e disse a
ele"), a resposta à questão do pernoite (final do v.25). E a moça ainda agrega
outras ofertas de sua casa: "palha" e "muito pasto" para os animais, a respeito do
que o servo nem perguntara. Este 'a mais', Rebeca vem oferecendo desde a
subunidade anterior, desde o v.15. Suas ações e palavras oferecem mais que se
lhe pede. Ela não só atende ao pedido, mas vem de encontro a todas as necessi-
dades daquele homem, que, aliás, ainda nem conhece.
O homem/servo encontrou, pois, de modo sábio} a moça adequada: é da
mesma tsmili«, e é sábia, temente em suas palavras e sções.
Entende-se, pois, que o trecho junto ao poço conclua com adoração. De
joelhos, o homem/servo adora a [avé (v.28). O gesto (v.26) e as palavras (v.27)
excedem os de acima: nos v.12-1S, o servo diz/,pensa', no v.21, 'silencia para
251
saber', e, em nossos versículos, 'adora' de joelhos e 'bendiz' (v.26-27). Assim é
um sábio, uma sábia!
No v.27, estamos como que no refrão de salmos. Ao bendito a "[avé, Deus de
meu senhor Abraão", junta-se a motivação: este Javé jamais deixa de ser 'solidário'
e 'fiel'! E não se esquece do servo que conduziu à casa dos irmãos de Abraão, à casa,
à qual havia que conduzi-lo. Emjavé estão os caminhos da vida; esta tese sapiencial
é a que este nosso capítulo celebra, por excelência (Amós 3,3-8! Salmo l!). Neste
sentido, a afirmação teológica própria de nosso capítulo não é hínica, mas é sapien-
cial e encontra-se no final do v.27: "no caminho javé me conduziu [à] casa dos
irmãos do meu senhor". Nossa estória é uma narrativa de condução divina, à seme-
lhança de Jonas e de Rute, de Provérbios e Cantares, até de [ó. Mas, para saber que
ela é uma história de divina condução, é preciso buscar por sinais, por indícios, por
intuições de oração. A história é, pois, de condução divina, vista desde a perspectiva
humana, antropológica, uma história do saber, do aprender a saber.
No final desta primeira grande parte de nosso capítulo que, principal-
mente, reúne cenas junto ao portão e ao poço (v.l-9 e v.IO-14, e v.15-21 //v.22-
27), a estória já alcança seu auge, conquanto o sentido, conquanto sua espirituali-
dade. Concentra-se na sábia e justa vivência; as experiências, vistas com sabe-
doria, vão desvendando, passo a passo, mas com repetida evidência e clareza, o
caminho de Javé em meio a nossos caminhos.
252
mesmo dos v.I7.20.29) e informa a respeito "a casa de sua mãe", a tenda da
mulher (veja a respeito também 18,1-15). Esta expressão não reaparece. Indica,
contudo, o espaço próprio da mulher e da mãe na família seminômade. Para
entender a relevância que as mulheres assumem nas histórias de Gênesis, é de
importância dar-se conta de seus espaços e de seus âmbitos próprios de decisão.
(Veja também Gênesis 16.)
Este dado do v.28 é relevante, ainda que esteja isolado. Afinal, não me parece
que lhe seja dado seguimento. Ao contrário, o v.29- sem um ajuste pleno ao v.28 -
não lhe dá seguimento. Antes introduz o irmão de Rebeca, Labão, que é quem dará
seguimento à cena. Agora, é ele quem 'corre'; antes esta era a atitude de Rebeca:
"correr" em cena! Rebeca é substituída por Labão, seu irmão. Ele estará "fora, junto
à fonte". Anteriormente, nas cenas dos v.10-l4, v.I5-21 e v.22-28, por assim dizer
ainda não estávamos fora. Estranho!?
O v.JOa está no desajuste. Sua parte final ("e, eis, [o servo] estava parado
junto aos camelos, à fonte", v.JOh) está na continuidade ao v.29 ("e correu La-
bão para o homem, fora, junto à fonte"), mas o v.30a não se situa apropriada-
mente. Sucede o que dizíamos acima: estes versículos titubeiam quanto à sua
sequencialidade. Este v.30a é retomada de versículos anteriores, iniciados com
"e aconteceu", expressão típica daqueles versículos.
Mas, enfim, a palavra nova de Labão só está no v.LI. Nos v.29 e v.30, a
linguagem oscila, não avança. Decisivo é o convite à casa de Betuel (ou de
Re beca.7)": vem..I" Em h e brai
raico, "vem.I" equiva
. Ie a diizer "entra..
I" A a Iocuçao
-
do "bendito de [avé" está encaminhada no v.27. Há que recordar também que o
v.30 foi reescrito a partir do contexto. As frases que seguem reforçam o convite.
Pressupõe-se que à pergunta ("por que estás parado, aí fora?") não haveria res-
posta; afinal, o assunto da fonte já estava solucionado. E os camelos continuarão
a receber seus cuidados.
O v.J2 está bem construído; aí reencontramos o tipo de linguagem, à qual
nos havíamos habituado nas subunidades anteriores. Refiro-me, primeiro, a que
o servo/homem é acomodado na casa. Depois, dá-se esta atenção aos camelos;
em seguida, estes recebem "forragem e pasto". No final, a atenção se volta de
novo ao começo, ao servo, ao qual são lavados os pés, bem como a seus acompa-
nhantes. Do servo se trata no começo e no final, dos camelos, no meio. Esta
sequência é típica na linguagem hebraica, semelhante ao linguajar que acima já
observávamos.
Enfim, não podemos deixar de perceber que a transição, abrigada nos
v.28-32, não alcança uma suficiente inteireza de linguagem; há adendos e refor-
mulações. Uma delas é que, de Rebeca, a atenção passa a Labão, Na fonte, ela
era a que definia seus passos e suas palavras. Junto à casa, Labão tende a assumir
seu lugar.
253
Segue um longo trecho de muita fala (v.JJ~54a). Há marcante diferença
entre a sequência destes e a dos versículos anteriores. Aliás, são difíceis de per-
ceber em sua organicidade, e até em sua intuição. Na fala, por exemplo, nos
v.39-49, muito do precedente se repete. Porém, não sem que lhe faltem novas
ênfases.
Percebo duas molduras.
Uma primeira, muito nítida, é a que se tem no começo, no v.33a, e no
final, no v.54a. Entre ambas há clara correspondência:
v,33a - "e foi colocado diante dele [isto é, do servo] para comer".
v.54a - "e comeram e beberam, ele e os homens que [estavam]
com ele".
Estas duas frases formam a moldura para o quadro dos v.33b-53. É o que
também conforma a grande unidade destes nossos 23 versículos.
Além desta moldura externa, temos outra, digamos, interna: é a do v,33b
e dos v.50-53. No início, o servo anuncia a prioridade de suas palavras; no final,
Rebeca é liberada ao casamento por seus familiares (v.50-51), e o servo dá os
respectivos presentes (v.52-53), considerando que suas palavras (v.33b) foram
bem-sucedidas.
Um duplo arco é, pois, lançado ao redor de nossa grande unidade: v,33a e
v.54a, num primeiro, e os v.33b e v.50-5! + 52-53, num segundo entorno. No
mais, temos um discurso/monólogo do servo.
No v,39, quase chega a haver uma interrupção da fala do servo. Como que
divide os ditos do servo em duas partes: v,34-38 e vAO-49. E isso provém do fato de
os v,34-38 terem semelhanças com os v.l-9, e os vAO-49 com os v.lO-27. Em outros
termos, peculiaridades da intervenção de "o homem", nos v,34-38 + 40-49, ainda
deixam entrever o gradual crescimento de nosso capítulo!
No mais, os v.33-49 repetem. Penso que não devêssemos repetir o de ta-
lhamento dos conteúdos que, de modo geral, acima já foram enfocados. O que
me interessa é realçar aquilo que, agora, através das palavras do servo sucede de
modo especial.
O que o servo 'diz' e 'fala' (veja v.50) tem clara e lógica sequência. Os
acontecimentos de sua vida são sequenciados e explicitados em sua lógica inter-
na. Aí não há acaso ou acidente, mas acontecimento atrás de acontecimentos.
Suas palavras o captam e o sequenciam. Eis a obra da sabedoria! Ou, ao menos, da
sabedoria deste nosso capítulo. Eventos são elaborados e separados do acidente e
do acaso. O que se passou com as pessoas faz sentido. Veja Gênesis 37~50!
O referente destes acontecimentos que passam a ser vistos como sequen-
ciados é Javé. Mas este [avé não é quem inicia os procedimentos, pois, no come-
254
ço da nossa narração, não está a palavra divina e, sim, a vontade humana de
Abraão. Nem tampouco [avé vai interferindo, explicitamente, cá ou lá, para
conduzir os eventos a bom termo. As pessoas envolvidas no empreendimento
de obter esposa para Isaque têm que agir da melhor maneira que podem, tendo
eles mesmos o risco do sucesso ou insucesso, de bênção ou maldição. Porém,
uma vez que se tenha vivido o que havia que viver, percebe-se - e esta é uma das
funções da fala do servo - os caminhos de [avé. Deus está em ação, mas isso não
dispensa que a pessoa tenha que agir sob sua responsabilidade. Nossos versículos
visam, após os acontecimentos, enaltecer a [avé em seu maravilhoso cuidado,
em seu "assinalar" os caminhos. Nosso capítulo, em especial nestes nossos versí-
culos, é, pois, uma das obras-primas da espiritualidade sapiencial. As pessoas
têm que viver o risco entre bênção e maldição, em devoção e oração, para que
tudo seja acolhido em [avé. Há quem chame isso de providência divina; nem
sempre recomendaria o uso deste conceito, porque, na sabedoria, tal 'providên-
cia' resulta do achado sapiencial (veja Provérbios 17,22)!
A questão é identificar! Nos vAO-48, este é o assunto. Ora, a moça preci-
sa ser exatamente identificada, pois ela tem que estar imbuída de "verdade" e
"solidariedade". Não basta, a rigor, que seja moça para Isaque, mas que ela tenha
as qualidades da própria sabedoria (veja Provérbios 8!). A identificação é, pois,
feita, em parte dentro dos critérios estabelecidos pelo próprio Abraão, de que
seja alguém de seu povo, mas é óbvio que além deste há outros critérios mais, e
estes são detalhadamente apresentados. Rebeca age solidariamente; realiza mais
do que o usual ao servir o servo e os animais de água, depois de alimento, e, por
fim, ao conceder abrigo e farto alimento ao servo visitante. Este é o modelo de
vida sapiencial! A questão é, pois, ética, como o diz o vA9 de modo conclusivo.
Às muitas palavras do "servo" (v.34-49), a resposta de Labâo (e Betuel,
adendo?) é breve (v.50-5l). É interessante que, nos dizeres de Labão, os aconte-
cimentos, memorizados pelo servo (nos v.34-49), são "a palavra"; isso é dito no
começo do v.50 ("de [avé saiu a palavra/assunto") e no final da fala de Labão
("conforme falou [avé", v.51b). Portanto, os 'acontecimentos', detalhadamente
narrados pelo servo, tornaram-se "a palavra". Este é o jeito sapiencial da 'palavra';
não é o jeito profético! A 'palavra' sábia é a que a vida vai evidenciando; a 'pala-
vra' profética é inspirada, vocacionada. Logo, para uma narração sapiencial, como
a nossa, haver ouvido a "palavra" resulta em testemunho do ouvinte! Na profecia,
o ouvinte não raro justamente procede ao contrário: opõe-se à palavra profética
que lhe foi dita (veja Amós 7,10-17)!
"A palavra" que emergiu da trajetória do servo não merece adendo algum.
Está concluída, ou, como Labão o expressa em sua cultura, "não podemos dizer
em relação a ti mal ou bem". A palavra/assunto está completa! E este assunto é
255
o de Rebeca. Quanto ao que compete a Labão falar, Rebeca passa a estar "diante
de ti". Entendo que isso significa que ela é liberada para o casamento com Isa-
que. Aliás, é o que expressa claramente o v.51b: "toma, e vai, e seja mulher
para o filho do teu senhor". Por mais definitiva que esta concessão do matri-
monio pareça, esta, na verdade, não é ainda a última palavra sobre o assunto,
como veremos alguns versículos adiante (veja v.59-60). Na sabedoria, há mais
que uma palavra de autoridade! Labão a tem, mas Rebeca também demons-
trará tê-la!
A cena se fecha rapidamente nos v.52-53 + 54a. O final, o v.54a, remete
para o v.33; portanto, a rigor, estes v,33-54a constituem um amplo conjunto
textual em que a primeira parte de nosso capítulo é retomada. O acordo 'estabe-
lecido' é celebrado somente pelos homens. O congraçamento festivo que sela o
acordo matrimonial é cenário de homens; seu local há de ser a tenda destes.
A ceia vai precedida por presentes; celebram e confirmam o acordo ma-
trimonial, feito, até aqui, entre homens. São "as palavras" de Labão (e Betuel)
dos v.50-51 que selaram as tratativas. E dois gestos exteriorizam o evento. Por
um lado, a adoração a [avé (v.52b: "prostrou-se em terra diante de [avé"). A
sabedoria que está na matriz de linguagem de nosso capítulo vai de mãos dadas
com a oração, como, aliás, podemos ver nos próprios salmos. Por outro lado, não
podem faltar os presentes, que constituem a própria memória do evento: princi-
palmente, enfeites e tecidos para Rebeca. Chama a atenção que Rebeca (e sua
mãe) são, agora, incluídas nos acontecimentos. Aliás, é o que passará a suceder
nos versículos subsequentes. Afinal, o acordo estabelecido com o servo não ti-
vera a participação de Rebeca, a principal interessada no assunto em questão.
O v.54a pareceria começar a conclusão do conto. E, de fato, v.54b encon-
tra-se nesta sequência: o acordo parecia estar acertado e selado; as partes pode-
riam separar-se, cada uma para sua 'casa' ou, no caso do servo, para seu senhor,
para Abraão. Por isso, pouquinhas - duas, no hebraico - são as palavras do
servo: "Deixem-me ir a meu senhor!". Sua tarefa parece estar realizada; sua
meta é prestar contas a 'seu senhor'.
256
por um tempo de despedida "dias ou dez", enfim, algum tempo. Contudo, não
há acordo possível com o servo. O v.56 é conclusivo: não! "não me detenhais!".
A negação é marcante; o jeito hebraico de expressá-la mostra que a decisão do
servo é irredutível. Afinal, ele até apela a [avé ("ele deu sucesso!"). E reafirma o
verbo com que, no v.54b, começara suas palavras: "deixem-me ir!". Não há como
deter este servo! O cenário está por ser fechado. Aliás, o v.56 é conclusivo;
depois dele nada há que dizer; nada mais cabe.
Cabe, sim! Este é o estilo sapiencial: não há palavras últimas, porque não
há quem se possa arrogar tais últimas e derradeiraspalavras. A toda palavra, há
outra palavra. A cada vontade, pode-se contrapor outra vontade, a ponto de o
humano poder contrapor-se a Deus (veja já!). Por isso, cabem novas palavras,
pessoas e vontades, mesmo que, para o servo (v.56), estas já não caberiam. Cha-
ma-se, pois, por Rebeca! Ao entrar em cena, faz desaparecer o servo, como por
encanto; iI vontade que, agora, importa é a dela. Realmente, a sabedoria enten-
de a relação entre as pessoas de modo tcndencislmente novo!
A partir do v.57, efetiva-se a mutação. As frases são igualmente (veja
v.54-56) breves; são sapiencialmente exatas. Duas frases breves perfazem a troca
de rumo, no v.57: trata-se de 'chamá-la' e, principalmente, de perguntar-lhe
pessoalmente, de ouvir a resposta da sua boca. Que ótica interessante! Ela passa
a ter sua palavra, sua boca. É a ela que se há de ouvir. Mas, para minha surpresa,
a pergunta inicial nem é sobre o assunto em pauta; ora, este assunto é o tempo
de permanência em casa, com a família. A pergunta é outra; é se ela "que ir com
este homem". Tanto é 'estranho' que a pergunta é sobre algo 'já resolvido' entre
os homens, nos v.54-56, na ausência da moça. Ora, esta resolução já tomada
agora é definida outra vez! E é decidida por quem cabe decidi-la: Rebeca. Além
disso, soa algo estranho que a pessoa que fizera as tratativas de casamento nos
versículos anteriores, sendo lá designada de "servo", aqui é chamada de "este
homem". Em termos literários, percebe-se, aí, bastante nitidamente que a sabe-
doria tem à sua disposição outra antropologia e outros recursos de linguagem
que a linguagem autoritativa.
Somente após as decisões de Rebeca, procedem-se as despedidas (v.59-
61). Agora, sim, sucede o "deixar ir" (o verbo neste v.59 é o mesmo do v.54!).
Deixam-na ir com a ama, com o servo e seus homens, o que vai repetido no v.61.
Esse v.61 e o v.59 conformam um arco em torno da bênção-promessa do v.60.
Na perspectiva dos v.57-61, a decisão de Rebeca era fundamental para poder
haver casamento!
Ao "deixar ir", a bênção acompanha (v.60. Ela é simultaneamente fami-
liar e política. Entendo a primeira frase da bênção do v.60 no sentido do povo: o
casamento de Rebeca visa filhas e filhos; mais exatamente, o povo que dela
257
provém será "milhares de milhares". (Veja, contudo, também v.66!) Isso é ex-
presso conquanto desejo e promessa (que assim numeroso seja o povol). Tal
acento corresponde aos anseios pós-exílicos. Afinal, Israel estava reduzido a
Judá, um punhado de, no máximo, umas 200 mil pessoas. Afora esta ânsia de
serem poucos, como que em assimilação pelos poderes circundantes - primeiro
persas e em seguida edomitas e gregos -, a promessa também precisava dar âni-
mo para o enfrentamento com os "inimigos", que colonizavam Judá e manti-
nham Israel ocupado. Por isso, a promessa-esperança para a "descendência" de
Rebeca é a retomada do que está alienado, no caso de suas "portas", dos locais de
tomada de decisão pública e política. Nesta promessa em forma de poesia, se vê o
quanto a sabedoria pós-exílica é política. Ela não detalhava as coisas da vida coti-
diana, como aqui, no cap.24, um contrato de casamento, por acaso; mas tais dera-
lhamentos são encenações para a reapropriação política do que lhes fora tomado
pelos impérios invasores.
A bênção-promessa do v.60 é, pois, o que se tem em meta nos v.59-61,
postos ao derredor do v.60, das duas promessas. E, simultaneamente, é Rebeca
que lhes interessa. É o que podemos perceber, uma vez mais, no final, no v.61 a.
Pois, aí, no v.ó l a, o sujeito das ações é ela, Rebeca; quem empreende a viagem é
ela e seu modesto séquito. O inverso vale para o v.61b! Aí é "o servo" - o sujeito
dos v.54b-56 - quem determina as ações; é ele quem "toma" e "parte". Portanto,
as diferenças de perspectiva são tão nítidas, nos versículos precedentes, que o
trecho requer duplo fechamento!
Final e auge é o encontro de Rebeca com Isaque. A respeito, os v.62-67não
fornecem detalhamentos; mas dizem o que importa. O encontro dá-se no "cami-
nho" (v.62-66) e na "tenda" (v.67). Diz-se, obviamente, mais sobre o "caminho",
ou melhor, considerando a formulação hebraica, sobre a "chegada", o encontro,
do que sobre a tenda do amor. O texto sabe ser discreto.
O v.62 é interessante, observado na perspectiva do estilo. Começa con-
tando sobre a ação de Isaque: "veio". Só depois localiza o ambiente de sua vida:
"a terra do Neguebe". O que importa para o estilo é a açâo, o v.62a, ao qual a
seguir é dado continuidade pelo verbo "saiu". Mas, em verdade, mais interessan-
te que este pequeno dado gramatical é, neste v.62, que Isaque se encontra em
Beer Lahai Roi ("Poço para o Vivente que Vê"), situado entre Cades e Berede.
De acordo com 16,14, lá Javé decididamente apoiara a Agar! Este é o encontro
primeiro entre Isaque e Rebeca. O sofrimento de Agar junto àquele poço é,
agora, resgatado, no encontro sábio e livre entre Rebeca e Isaque.
O encontro é enfocado de duas perspectivas, inicialmente da de Isaque
(v.63) e, depois, da de Rebeca, com mais detalhes (v.64-65). A cena se dá "ao
cair da tarde", no campo aberto. Isaque saíra para lá. Infelizmente não sabemos
258
exatamente para fazer o que, pois o verbo que expressaria a função não nos é
inteligível. Traduzi-o por "meditar". Em meio a esta sua 'meditação', Isaque vê
aproximarem-se camelos. É interessante como o hebraico o expressa em deta-
lhes, e, na sequência: ele 'ergue os olhos', 'vê' e "eis". Trata-se aí de três etapas
da percepção: "erguer os olhos" refere-se ao que se vê quando o objeto ainda
está distante. Ao 'ver', a percepção já é melhor. Quando se trata de um "eis",
então é porque já se pode identificar que se trata de camelos. Ainda falta ver as
pessoas.
Ora, as pessoas são o enfoque do v.64. Porém, nele, muda-se de ótica;
agora, estamos com os olhos de Rebeca. Também ela, do mesmo modo que Isa-
que no versículo anterior, 'ergue seus olhos'. Porém, seu "ver", já feito com maior
proximidade, identifica o que vê: Isaque! Seus olhos já sabem que é Isaque,
ainda que pareceria carecer de perguntá-lo: "Quem é aquele... I" (v.65). Como
ela já sabe tratar-se de Isaque, desce "de cima do camelo", pois o encontro há de
dar-se no nível do chão e, como o dirá o final do v.65, sob a cobertura do véu.
Entre a descida do camelo e a colocação do véu, dá-se a identificação formal do
homem que Rebeca já reconhecera como Isaque. O que o servo faz ao identifi-
car "aquele homem" com Isaque já estava feito. Veja que sabedoria a destes
escritores!
O versículo final (v. 61,) não diz o óbvio, como sucederia se o v.66 fosse a
conclusão. O v.66 surpreende. Afinal, o v.67 situa-se no quadro da memória de
Sara, sepultada na narração do cap.23. A ela voltam a primeira e a última frase.
A tenda de Sara passa a ser a de Rebeca. À mesma Sara, refere-se a última frase.
No amor de Rebeca, Isaque "encontrou consolo" de sua mãe. E, assim, também
o cap.23 passa a estar em conexão com o cap.24!
Porém, o decisivo não são, obviamente, começo e final deste último ver-
sículo da narração. Decisivo é o que se encontra em seu meio. As afirmações são
duas: por um lado, Isaque e Rebeca casam. E, por outro lado, o que raramente se
diz na Bíblia, surge amorl Isaque "a amou". A sabedoria é uma busca do amor.
Leia-se, pois, em continuação, o Cântico dos Cânticos!
Ênfases
Aqui não estamos sob o impacto do pré-exílio. Nele, "a palavra" leva o
matiz da profecia: ela acontece e irrompe, sem pedir licença. Nem os profetas
têm como eximir-se dela, ainda que quisessem, como Amós 3,3-8 ou Jeremias 1
e 20. Não estamos, em verdade, nos tempos desta palavra profética.
Aqui estamos em meio a outro jeito da palavra, da palavra do jeito da
sabedoria, semelhante ao cap.23, com seus procedimentos jurídicos. A vida é
259
delineada de modo sábio. Cada pessoa precisa ser sábia, ir aprendendo a deixar
de ser néscia. Aí, no final, brota amor, pois as pessoas e as partes atuantes nas
cenas dizem suas palavras e realizam seus atos, com liberdade, sem constrangi-
mento e coerção. Urgentemente, precisamos incorporar este jeito de ver a pes-
soa na teologia. Afinal, ainda vivemos em tempos em que a sabedoria não chega
a ser, de verdade, parte da Escritura. Fica à margem. Por isso, comunidades e
igrejas não conseguem tentar sair de dentro do autoritarismo. A sabedoria pode
fazer-nos um imenso bem, porque, passo a passo, nos constrange à liberdade, a
que cada pessoa tenha seu espaço, sua palavra, seu desejo. E, sem isso, não
haverá vida digna, em parte alguma. As igrejas de verdade ainda não acharam o
caminho da liberdade. Por isso, o amor não é seu forte, seu tema.
A estória é longa. Repete. Descansa sobre detalhes. Cada qual precisa
dizer suas palavras e expressar seus desejos. Ainda assim, nem todos falam; em
especial muitas mulheres continuam sendo silenciadas. Mas há um esforço de
melhor distribuição da palavra, como tão bem se percebe na tensão entre a
narrativa centrada no servo e aquela que faz emergir palavras e vontades de
Rebeca. Os muitos versículos que se vão fazendo necessários têm a ver com este
direito à palavra, que começa a ser cultivado nesta nossa sábia narração...
260
Diferentes e solidários
Gênesis 25,1 .. 18
Uma lista como a do cap.25 nos é um tanto estranha. Este tipo de enume-
ração já não é parte de nossos costumes. Afinal, quantos ainda saberiam o nome
de seus avós?
Ora, para dominar é preciso desestruturar. Afinal, gente com raízes e me-
mória não é fácil de domesticar. Os antepassados são parte desta memória. São
memoriais.
Gente sem passado é povo sem futuro. Seu futuro muito se parece à esta-
bilização do estabelecido.
É óbvio: não vamos poder retroceder no tempo e nos costumes. Dificil-
mente, "genealogias" voltarão a ser nosso modo de firmar e reler memória. Te-
mos novos canais, novos memoriais: as lutas de nosso vilarejo, a trajetória de
nosso sindicato, a história da organização das mulheres. Nossa própria identida-
de pessoal é nossa 'genealogia'.
Na Bíblia, a genealogia é uma das maneiras decisivas para constituir me-
mória. Cria identidade. Estabelece projeto. Não só é raiz, é também horizonte. É
algo como compadrio: formula laços e expectativas.
Sim, nossas 'genealogias' são outras. Mesmo assim, nos ajudam a intuir o
profundo valor das genealogias bíblicas, do 'compadrio' delineado em nosso ca-
pítulo. Afinal, nele chegam a seu alvo as "Genealogias de Terá", as histórias de
Agar e Sara, Lá e Abraão (11,27 até 25,18).
E, é verdade, em nosso cap.25 fecham-se portas, e abrem-se outras.
261
Lá no começo, em 12,4, já há uma nota sobre a idade de Abraão. Anota-
ções similares acompanham os capítulos: 17,1; 21,5 etc. Isso também vale, em
grau menor, para Ismael. Em nossos versículos, esse assunto das idades se fecha:
Abraão morre aos 175, e Ismael, aos 137 anos.
A herança de Abraão é tema desde o cap.15 (v.3-4). Nossos v.5-6 e v.11
retomam-no em seu ponto mais crítico: na relação entre Ismael e Isaque.
Quando nosso v.l2 se refere à "egípcia Agar, a escrava de Sara", remete-
nos para os caps.Ió e 21.
a final do v.18 retoma claramente 16,12, ao constatar que os ismaelitas
se "estabeleceram diante de todos seus irmãos".
E aponto ainda para o que desempenha um papel, como veremos, bem
especial, no centro de nosso texto: a sepultura em Macpela. Assim estamos na
continuidade do cap.23.
Por aí se vê que nossos versículos tecem fios que vêm dos capítulos ante-
riores. Por certo, são seletivos na escolha de seus enfoques, como veremos.
Além de abrirem a porta para textos anteriores, abrem-na para temáticas
subsequentes.
Afinal, o início de nosso v.12 ("e essas são as genealogias de Ismael") está
em certa concorrência com um versículo logo a seguir: "e essas são as genealogias
de Isaque" (v.19). Não seria inclusive adequado fazer começar com nosso v.12
uma nova e grande composição literária, a que conta os conflitos entre Esaú e
Jacó (25,19 até 36,43)? De certo modo sim, porque as "genealogias de Ismael"
de nossos v.12-18, seguramente se veem completadas precisamente no final das
histórias de Esaú e Jacó, no cap.36: "e essas são as genealogias de Esaú".
Não resta, pois, dúvida: a menção de Ismael, em nossos versículos, apon-
ta para a composição que lhe segue, nos caps.25 até 36.
Em nossa unidade 25,1-18, confluem, pois, os capítulos que lhe antecedem,
e se preparam os que seguem. São porta que abre para dois lados.
Mas, agora, é hora de olhar mais atentamente para o próprio texto. Co-
mecemos pela tradução. Apresento-a já esquematizada. As razões explico em
seguida.
'E continuou Abraão e tomou uma mulher. E seu nome [era] Quetura. 2E
lhe deu à luz Simrá, [ocsã, Medã, Midiã, [isbaque e Sua. JE [ocsã gerou
Sebá e Dedã. E os filhos de Dedã foram: Assurim, Letusim e Leumim. 4E
os filhos de Midiã: Efá, Efer, Enoque, Abida e Eldaa. Todos estes, filhos de
Quetura.
SE deu Abraão tudo o que lhe pertencia a Isaque. 6E para os filhos das
concubinas, que Abraão [tinha], Abraão deu presentes. E mandou-os
262
embora de Isaque, seu filho, estando ainda em vida, para o oriente à terra
do oriente. 7E estes [são] os dias dos anos de vida de Abraão, que viveu
175 anos. sE desfaleceu. E Abraão morreu com bela idade, velho e satis-
feito. E foi reunido a seu povo. 9E sepultaram-no Isaque e Ismael, seus
filhos, na caverna de Macpela, no campo de Efron, filho de Zoar, o heteu,
que está diante de Mame, lO(n)o campo que Abraão comprara dos filhos
de Het. Ali foram sepultados Abraão e Sara, sua mulher. JIE aconteceu
depois da morte de Abraão: abençoou Deus a Isaque, seu filho. E Isaque
morou junto a Beer-Lachaí-Roi.
12E estas [são] as genealogias de Ismael, filho de Abraão, que dera à luz
Agar, a egípcia, a escrava de Sara, a Abraão. 13E estes [são] os nomes dos
filhos de Ismael, de acordo a seus nomes, de acordo a suas gerações: o
primogênito de Ismael [foi] Nebaiote, e Quedar, Adbeel, Mibsão. 14Mis_
má, Dumá, Massá, "Hadade, Temá, [etur, Nafis e Quederná. "Estes [são]
eles, os filhos de Ismael. E estes [são] seus nomes em seus assentamentos
e em seus acampamentos: doze líderes para suas tribos. 17E estes são os
anos de vida de Ismael: 137 anos. E desfaleceu. E morreu. E foi reunido a
seus parentes. 18E moraram desde Havilá até Sur, diante do Egito, como
quem vai à Assíria. Diante de todos seus irmãos, estabeleceu-se.
No centro: a sepultura
263
V5- 11 estão no centro. A eles, volta-se a atenção. Talvez por isso são um
pouco complicados. No centro das atenções, apinham-se as pessoas; aqui as
informações se avolumam, se sobrepõem.
Comecemos pelo que parece mais central. Vamos logo ao foco. E isso são
os v.7-IO.
À primeira vista, parece que idade (v.7) e morte (v.S) fossem o mais rele-
vante. E, de certo modo, é, porque estes dados desencadeiam os demais. Porém,
o que interessa mesmo é a sepultura. Os v.9-IO se demoram em identificá-la:
Macpela! E o final do v.IO, encerrando, sublinha-o: "ali Abraão e Sara foram
sepultados".
O v.II retoma os v.S-6: Isaque é o abençoado (v.II); é ele o herdeiro de
Abraão (v.S). Outros vão ao oriente (v.ó}; Isaque permanece em Beer-Lahai-
Roi, o poço no qual aqueles estiveram.
Portanto, os v.S-6 e v.l I circundam os v.7-IO. O conteúdo destes v.7-1O,
por sua vez, é progressivo: idade, morte e, principalmente, sepultura de Abraão.
\1.12-18 têm seu jeito próprio. O v.I2 compõe com o v.l7. E o que está
intercalado (v.13-16) igualmente é um conjunto. São os nomes dos descenden-
tes de Ismael: a expressão que inicia, "estes são os nomes" (v.l3), é também a
que conclui (v.I6)!
O v.I7 claramente remete para os v.7-8: falam de idade e morte de Abraão/
Ismael. E o v.I8 assinala para o v.II: localizam Isaque/Ismael,
No quadro maior, estes v.l2-18 (principalmente v.l3-16) correspondem a
v.I-4: enumeram a descendência de Quetura e de Ismael.
Outros detalhes mais poderiam ser anotados. Porém, talvez possamos dis-
pensar tais minúcias. Creio que já ficou bastante transparente que nossos versí-
culos não são resultado de algum acaso. Estão dispostos de modo intencional.
Estão bem organizados. É o que convinha sublinhar.
E isso nos leva a tentar localizar nossos versículos. A tarefa, também nes-
te cap.2S, é complicada.
No título que segue, já tento indicar minha proposta:
Um texto do pós-exílio!
Na pesquisa bíblica, estes v.I-I8 não são tidos corno antigos. Diz-se que
são recentes. No geral, são localizados nos tempos do exílio (6" século). Assim
procede quem atribui parte de nossos versículos ao assim chamado escrito sacer-
dotal (= P). E inclusive se chega a ponderar que algumas partes seriam ainda
posteriores, adendos ao tal escrito sacerdotal, como seria o caso dos v.1-4.
264
A meu ver, tais estudos indicam na direção correta. Realmente nossos
v.I-I8 não provêm de tempos antigos. Não foram formulados nos tempos dos
reis de Israel e Judá, portanto, efetivamente, não são anteriores ao 6° século.
Porém, acho que, seguramente, também não são exílicos (6° século). E
isso derivo dos conteúdos. Ora, veja, nossos versículos insistem em mostrar que
ismaelitas e outras tribos das regiões desérticas a oriente do rio Jordão são des-
cendentes de Abraão. São, pois, parentes.
Não vejo como localizar tais conteúdos em tempos exílicos. Pois, justa-
mente deste período provêm textos que olham para os vizinhos mais próximos
do outro lado do rio Jordão, particularmente aos edomitas ou, na direção con-
trária, os filisteus. Basta ler o livro de Obadias/Abdías, a ser datado no 6° século,
tão profundamente antiedomita. Acontece que, em 587 a.C; quando da des-
truição de Jerusalém pelos babilônios, setores destes povos de além do Jordão
forneceram tropas auxiliares. E, assim, "fez violência a seu irmão Jacó/Judá"
(Abdias 10).
Em tais tempos exílicos, dificilmente terá surgido um texto como nosso
cap.25, sem dúvida, bastante simpático aos parentes a oriente, próximos e geo-
graficamente bem distantes. Por isso, excluiria estes tempos exílicos e do come-
ço do pós-exílio.
Foram outras as circunstâncias históricas as que tornaram os parentes a
oriente significativos. Estas têm relação com uma profunda reorientação da vida
social e econômica, por um lado, em direção ao Mediterrâneo. Em pleno perío-
do persa, já a partir da primeira metade do 5° século, as guerras entre persas e
gregos vão direcionando a economia para o ocidente. Este ocidente grego, este
mundo do Mediterrâneo, se vai impondo economicamente bem antes das con-
quistas macedónias sob Alexandre Magno no final do 4° século. Ora, de acordo
a Neemias 5, já em meados do 5° século, em Jerusalém, são vendidas pessoas,
principalmente crianças, para os gentios, leia-se para o mercado escravocrata
grego.
Esta economia grega, por outro lado, atraiu especiarias e certas mercado-
rias típicas da Península Arábica. Condimentos e perfumes tinham no ocidente
mediterrâneo seu valor especial. No segundo século, vamos deparar com o esta-
do nabateu, com sede em Petra nas montanhas de Seir, baseado justamente no
controle deste comércio de especiarias. Seria acaso que Quetura significa: "aquela
que está envolta em aroma"?
Aliás, nosso próprio texto se refere aos nabateus, a meu ver. Pois, o primo-
gênito de Ismael é Nebaiote. Penso que este Nebaiote é uma clara referência aos
"nabateus", como eram chamados no pós-exílio tardio os sucessores das monta-
nhas de Edom.
265
Neste contexto, Jerusalém é reedificada, por Neemias, em torno de 450
ou de 420 a.c. Volta a ser cidade! Mas esta 'segunda Jerusalém' (a primeira fora
arrasada em 587) não está direcionada somente para o norte, para a Mesopotâ-
mia, como a primeira, mas igual e, a meu ver, principalmente para o ocidente.
Esta Jerusalém, após 450, está, pois, relacionada e vinculada com as regiões
arábicas, com as rotas das especiarias do noroeste desta península. Ora, a grande
maioria de povos, tribos e localidades citadas em nossos versículos é precisa-
mente destas regiões, ainda que nem todas possam ser identificados com exati-
dão.
Nossas genealogias são, principalmente, destes tempos após Esdras e Ne-
emias. São frutos dos tempos da 'segunda' Jerusalém!
Pareceu-me oportuno descrever este aspecto com maior insistência, por-
que, via de regra, não se ado ta esta datação para nosso cap.25. Mas - e é isso que
de fato me importa - é precisamente esta localização que nos faz reconhecer a
relevância de nossos versículos. Situando nossas genealogias dentro deste contex-
to, adquirem uma importância toda especial. Contextualizando estas enumera-
ções de nomes, seu significado cresce.
Quando não se procede deste modo, então, no geral, estas genealogias
deixam de ter importância maior. Viram encerramento desinteressante das
"Genealogias de Terá". Mas, lidas em seu contexto, assumem um papel bem
peculiar.
Porém, antes de assinalar para estas implicações de conteúdo, quero ten-
tar descrever a situação ainda um pouco melhor. E aí, digo-o claramente, entra-
mos no âmbito das possibilidades.
'Compadrio' popular?
266
Sim, círculos de sábios se internacionalizam. Em Provérbios 30 e 31, te-
mos textos de gente das regiões arábicas! E, veja só, [ó, um estrangeiro da terra
de Uz, torna-se modelo!
Este há de ser o ambiente de nosso cap.2S, seu mundo não é nada estreito.
Tem amplos horizontes. Tem gosto no convívio com gente diferente.
Porém, veja mais: para dizê-lo, não recorre a uma linguagem sapiencial
(veja cap.24!), nem mesmo narrativa. Vale-se do jeito mais singelo. Recorre ao
que é bem acessível, popular. Formula a interconexão com gente vizinha, pelo
caminho singelo da enumeração de parentes.
Isso não nos levaria à pergunta: nossas genealogias não estão sob a influên-
cia de setores populares, das experiências que hoje chamaríamos de 'compa-
drio'? Talvez...
Contudo é o conteúdo que, agora, importa. Identifiquemos, pois, algumas
de suas marcas.
267
É o que se percebe também no tema predileto de nossos versículos.
Macpela!
Víamos acima que o tema da sepultura é central (v.7-10, veja também o
cap.23). As genealogias estão dispostas a seu redor. Aliás, isso é algo simbolica-
mente marcante para nossa unidade: o túmulo no centro, os parentes ao redor!
Celebra esta sepultura de Abraão. Sabe-se onde está, em Macpela. E lo-
cal da sepultura sempre tem algo a ver com o direito de uso da terra que a
rodeia. (Nas nações indígenas também é assim: através dos cemitérios seus di-
reitos à terra estão - ou devereriam estar - assegurados!) Portanto, não se afirma
o local da sepultura assim por acaso. Sepultura estabelece direitos agrários. (Veja
cap.25 e IReis 21.)
E isso diferencia Abraão de Ismael. De ambos se cita: idade, desfaleci-
mento e morte (v.7-8), mas só de Abraão a sepultura (v.9-10).
Mas Ismael não deixa de estar relacionado a Macpela. Afinal, ele e Isaque
encabeçam o cerimonial de enterro de Abraão (v.9). E, com isso, tem direito de
acesso ao túmulo.
E, além disso, diz-se tanto de Abraão quanto de Ismael que "foram reuni-
dos a seu povo" (v.S e v.17). Essa expressão, em parte, parece ser sinônima de
'enterrar'. Mas, afora isso, tem algo a ver com o significado simbólico do respec-
tivo antepassado. Equivaleria a dizer que tornou-se símbolo de sua gente; virou
memorial. E isso tanto vale de Abraão quanto de Ismael. Ambos são ilustres
antepassados. São ancestrais de seus respectivos povos.
Aqui devo apontar para mais outro detalhe. Nele, novamente veremos o
quanto o texto está centrado em Abraão, sem jamais desmerecer os diferentes.
Ora, sabemos que a sepultura de Abraão é o que importa. Sim, mas esta caverna
de Macpela tem sua origem nos heteus, em Efron! Veio tornar-se sepultura de
Sara (cap.23) e, agora, de Abraão, porque para tal houve um acerto de contas
com os heteus. Macpela não foi tirada de outros, mas contratada e comprada.
"Ali" - como acentua o final do v.IO - está o túmulo. Logo, é possível conviver,
pactuar, negociar com estes que são diferentes, com estes heteus (em Hebron),
com estes filhos de Quetura, com estes filhos de Ismael.
Em foco está Abraão-Isaque, sem dúvida. Mas Ismael e outros estão igual-
mente reconhecidos. A diferença é mantida, mas também é superada. Enfim,
estrangeiros são parentes!
Pelo visto, isso que parece uma seca listagem de nomes tem sua beleza,
seu encanto. Para apreciá-la, é preciso mergulhar em suas facetas.
268
Todos parentes!
Sim, estes destaques para Abraâo-Isaque nem mesmo merecem tanta aten-
ção. Afinal, nestes nossos versículos, passam-se coisas tão inusitadas que são
elas as que merecem a maior atenção. O restante, estes certos privilégios para
Isaque, é o óbvio.
Ora, acabávamos de anotar que a Isaque é destinado Beer-Lahai-Roi, o
poço de Agar. E isso não só desmerece a Ismael. Pelo contrário, também signifi-
ca que Isaque se integra no jeito de Agar-Isrnael. Assume ares daqueles, também
é seminômade de deserto, beduíno. Ambos têm o jeito daquele poço, promotor
de rebeldia (veja v.18 e compare 16,12).
Como morador de Beer-Lahai-Roi, Isaque é seminômade. Vive como Is-
mael e sua gente, em 'assentamentos' ou 'cercados provisórios' e em 'acampamen-
tos'. É o que lemos no cap.26 referente a Isaque. Nos capítulos subsequentes, será
contado de Jacó. Isaque e Ismael são irmãos de sina, seminômades por igual. O
território que os diferencia não é o de roça, mas o de pastoreio migrante.
Diz-se, no v.16, que a organização maior dos ismaelitas era formada do
jeito seminômade, por doze representantes tribais. O mando político nascia de
dentro das tribos; era colegiado, não monárquico. E é justamente o que irão
propor as "Genealogias de Isaque" (caps.2S,19 até 36,43): Israel é, como proje-
to, o convívio de doze tribos, com doze líderes. Ismael e Isaque se organizam por
igual, tribalmente. Estão mesmo irmanados.
E estes parentes são, assim diria, todos gente da "terra do oriente" (v.6).
Isso vale para filhos, netos e bisnetos de Quetura (v.IA), se bem que nem de
longe saibamos localizar a todos. E o mesmo se há de dizer dos filhos de Ismael.
São gente do oriente. Aliás, um deles, Quedemá (v. IS), até significa "oriente".
Faltam todos os outros, aqueles que são os parentes primeiros de Abraão,
os filhos de Terá. A eles remetia 22,20-24. Mas aqui estão ausentes, de todo,
ainda que nos capítulos seguintes terão papel decisivo: as histórias de Jacó em
boa parte se passam junto aos de Harã. As "Genealogias de Terá" terminam por
colocar os de Terá sob nova ótica, sob a do parentesco com os do oriente, das
regiões arábicas.
As genealogias souberam reler as novas circunstâncias dos tempos da 'se-
gunda' Jerusalém e alcançaram incorporá-la criativa e ecumenicamente. Eis uma
das maravilhas destas nossas listas que, à primeira vista, poderiam parecer can-
sativas, nada mais.
Por detrás destes nossos versículos está uma bela intuição. Nesta segunda
parte do pós-exílio, os beduínos e Judá foram aproximados dos filhos do oriente.
Poderiam haver rejeitado esta aproximação. Mas afirmou-se a integração.
269
Judá soube trabalhar a nova experiência de modo integrativo. Manteve sua
própria identidade de filhos de Abraão/lsaque, mas soube encontrar um modo que
estabelecesse um convívio de amizade e encontro com o oriente, reconhecendo,
naquelas tribos irmãs, igualmente filhos de Abraão.
Não houve conquista, houve encontro. Nossa unidade é um esforço his-
tórico-genealógico para tal encontro.
Encerrando e começando
O cap.25 remete para a unidade inicial, para 11,27-12,20. Lá as "Genea-
logias de Terá" emergem de dentro das "genealogias de Sem" (11,10). Aqui, os
filhos de Abraão reafirmam sua proximidade com os filhos de Quetura e de
Ismael.
Lá, em 11,27 até 12,20, foram realçadas a promessa da terra e a liberdade
de Sara contra opressões faraónicas. O Deus das profecias e das libertações con-
tra as opressões trilha estes caminhos.
Aqui, no final, o parentesco aparece como o espaço histórico e social para
uma vida que pode respeitar os diferentes. Esta irmandade entre gentes tão dife-
rentes é parte deste jeito serninômade, na qual, enfim, todos necessitam de to-
dos para poder viver. Ninguém precisa ser eliminado.
Em 11,27 até 12,20, temos crítica ao estado, tanto 11,17-12,9 (o estado
precisa estar aí para as famílias da roça), quanto 12,10-20 (faraó e o patriarca
Abraão precisamser libertados da opressão que impõe a outras pessoas).
Em nosso cap.25, temos um paradigma ao contrário: entre gente a cami-
nho, entre pessoas pelos desertos, há espaço até para gentes em oposição, para
diferentes.
Em prol deste caminho dos parentes e convivas, estão ditas as promessas
das filhas e dos filhos, da terra e da libertação das casas faraónicas.
O cap.25 encerra as "Genealogias de Terá" e já vai abrindo as "Genealo-
gias de Isaque".
270
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Sentenças e provérbios - Sugestões para a interpretação da Sabedoria, São Leopoldo,
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No prelo
Génesis 12-25, São Paulo, Edições Loyola, 2009. (Comentário Bíblico Latino-Americano)
Em preparação
Oseiss, São Paulo, Edições Loyola, 2009/10. (Comentário Bíblico Latino-Americano)
O direita dos pobres, tradução ao português da tese de doutorado.
Pedidos - milton.schwantes@metodista.br
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