Aby Warburg e a ciéncia sem nome
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O presente ensaio tem como objetivo a situagio critica de uma
disciplina que, ao contrario de tantas outras, existe mas ndo tem nome.
Uma vez que o criador dessa disciplina foi Aby Warburg,’ s6 uma
atenta andlise de seu pensamento poder fornecer 0 ponto de vista
do qual tal situac3o se tornara possivel. E s6 a partir de tal situagao
sera possivel perguntar se essa “disciplina inominada” é suscetivel de
receber um nome € em que medida os nomes até agora propostos
respondem ao objetivo.
A esséncia do ensinamento e do método de Warburg, tal como
ficou expresso na atividade da “Biblioteca para as ciéncias da cultu-
ra”, em Hamburgo, que se tornou mais tarde o Instituto Warburg,” é
habitualmente caracterizada como uma recusa do método estilistico-
formal dominante na histéria da arte no final do século XIX e como
}
' A boutade sobre Warburg como criador de uma disciplina “gui, 4 inverse de tant d'autres,
existe, mais n'a pas de nom" [“que, a0 contrario de ovtras, existe, mas nio tem nome"]
€ de Robert Klein em La forme et Vintelligible (Paris: Gallimard, 1970. p. 224).
? Em 1933, com a chegada do nazismo, o Instituto Warburg foi, como se sabe, trans-
ferido para Londres, onde, em 1944, foi integrado 4 Universidade de Londres. Cf.
SAXL, Fritz, The History of Warburg's Library. In: GOMBRICH, Ernst. Aby
Warburg. An Invellectual Biography. London: The Warburg Institute, 1970. p. 325-326
(traducio italiana: Aby Warburg. Una biografia intelletuate. Milan: Felerinelli, 1983).
qlum deslocamento do foco da investigacio da histéria dos estilos e da
avaliagdo estética para os aspectos pragmiaticos ¢ iconograficos da obra
de arte, tal como eles resultam do estudo das fontes literarias e do
exame da tradi¢ao cultural. A lufada de ar fresco que a aproximacao
warburguiana 4 obra de arte teria soprado nas 4guas estagnadas do for-
malismo estético é confirmada pelo éxito crescente das investigacdes
que se inspiraram em seu método e que conquistaram um ptblico tio
vasto, mesmo para além dos circulos académicos, que se péde falar de
uma imagem “popular” do Instituto Warburg, A par desse alargamento
da fama do instituto, assistia-~se, porém, a uma obliteragio crescente
da figura de seu fundador e de seu projeto original, enquanto a edicio
dos escritos e dos fragmentos inéditos de Warburg era continuamente
anunciada e nao chegou até hoje a ver a luz.*
Naturalmente, essa caracterizagio do método warburguiano
reflete uma atitude perante a obra de arte que foi indubitavelmente
propria de Aby Warburg. Em 1889, enquanto preparava na Univer-
sidade de Estrasburgo sua tese sobre 0 Nascimento de Vénus e sobre a
Primavera, de Botticelli, deu-se conta de que qualquer tentativa de
compreender a mente de um pintor do Renascimento seria initil se o
problema fosse abordado sé de um ponto de vista formal,! ¢ durante
toda a vida manteve sua “honesta repugnancia” pela “histéria da arte
estetizante [dsthetisierende Kunstgeschichte]”* e pela considetagio pura-
mente formal da imagem. Mas essa atitude nao nascia nele de uma
aproxima¢ao puramente erudita ¢ antiquaria dos problemas da obra
de arte, tampouco de uma indiferenga pelos seus aspectos formais:
sua obsessiva, quase iconoclasta, aten¢do 4 forga das imagens prova,
se fosse necessario, que ele era até bastante sensivel aos “valores for-
mais”, € um conceito como o de Pathosformel, em que nao é possivel
distinguir entre forma e contetido porque designa um indissolivel
A publicacio da bela “biografia intelectual” de Warburg, da autoria do entio diretor
do Instituto Warburg, Gombrich, s6 em parte preencheu essa lacuna, Ela constitui
hoje [1984] a mica fonte para o conhecimento dos inéditos de Warburg, [Nesse
interim, iniciou-se na Alemanha, pela editora Akademie, a publicagio dos escritos
de Warburg]
+ Otestemunho é de SAXL, The History of Warburg's Library, p. 326.
A expressio pode ser lida em uma nota inédita de 1923, entre outras. Cf. GOM-
BRICH. Aby Warburg, p. 88.
te FILGAGAMBENentrelagamento de uma carga emotiva e de uma formula iconografi-
ca, é prova suficiente de que seu pensamento nao se deixa de modo
algum interpretar nos termos de uma oposi¢ao tao pouco genuina
como a de forma/contetido, histéria dos estilos/histéria da cultura.
O que é Unico e préprio em sua atitude de estudioso nao é tanto um
novo modo de fazer histéria da arte, mas mais uma tendéncia para a
supera¢ao dos limites da histéria da arte que acompanha desde 0 inicio
seu interesse por essa disciplina, como se ele a tivesse escolhido s6 para
introduzir nela a semente que a faria explodir. O “bom deus” que,
segundo sua célebre maxima, “se esconde nos pormenores” nio era,
para ele, o nume tutelar da histéria da arte, mas o deménio obscuro
de uma ciéncia inominada cujos tracos s6 hoje comegamos a perceber,
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Em 1923, quando se encontrava na clinica de Ludwig Binswan-
ger, em Kreuzlingen, durante a longa doenga mental que o afastou de
sua biblioteca por seis anos, Warburg perguntou aos médicos se lhe
dariam permissio de sair no momento em que provasse que estava
curado fazendo uma conferéncia para os doentes da clinica. O tema
que escolheu para sua conferéncia, os rituais da serpente dos indios da
América do Norte,‘ era inesperadamente retirado de uma experiéncia
de sua vida que remontava a quase 30 anos antes e que devia, portanto,
ter deixado uma marca muito profunda em sua meméria. Em 1895,
quando ainda nio tinha 30 anos, durante uma viagem 4 América do
Norte, ele tinha permanecido durante alguns meses com os indios
Pueblos e Navahos, do Novo México. O encontro com a cultura
primitiva americana (4 qual tinha sido introduzido por Cyrus Adler,
Frank Hamilton Cushing, James Mooney e Franz Boas) 0 tinha defi-
nitivamente afastado da ideia de uma histéria da arte como disciplina
especializada, confirmando nele uma ideia sobre a qual tinha refletido
longamente enquanto frequentava em Bonn as aulas de Usener e de
Lamprecht. Usener (que Pasquali uma vez definiu como “o filélogo
mais rico de ideias entre os grandes alemies da segunda metade do
“ A conferéncia foi publicada em lingua inglesa em 1939: WARBURG, Aby. A Lecture
on Serpent Ritual, Journal of the Warburg Iustitute, n. 4, p. 277-292, 1939 (tradugio
italiana: Hf rituale del serpente, Milan: Adelphi, 1998).
GIORGIO AGAMBEN A POTENCIA DO PENSAMENTO ~ ENSAIOS E CONFERENCIAS 113