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UMA VERDADE INCONVENIENTE

O que devemos saber (e fazer) sobre o aquecimento global

Páginas 38 a 40

Um herói da ciência
Roger Revelle

Cursando a universidade, nos anos 1960, estudei com um


cientista realmente notável, o professor Roger Revelle – a
primeira pessoa a propor que se medisse o CO2 da atmosfera
terrestre.
Revelle era uma figura imponente, com um ar de autoridade
excepcional, que impunha respeito a todos que se
relacionavam com ele. Eu e meus colegas percebíamos bem que,
além de ser um professor cheio de carisma, era em primeiro
lugar um cientista pragmático, dedicado à experimentação
cuidadosa e metódica, e à análise paciente das enormes
quantidades de dados que coletava.
Nos anos 1950, Revelle concebeu o que os cientistas chamam
de hipótese, mas que para mim parece um insight quase
profético: ele enxergou claramente que a expansão econômica
global pós-Segunda Guerra Mundial, gerada pelo explosivo
crescimento populacional e alimentada, sobretudo, pelo
carvão e o petróleo, produziria um perigoso aumento, sem
precedentes, na quantidade de CO2 na atmosfera terrestre.
Assim, ele concebeu e propôs uma nova e ousada experiência
científica: coletar amostras das concentrações de CO2 em
altitudes elevadas da atmosfera terrestre, em diversas
localidades, todos os dias, durante muitos anos.
Aproveitando ao máximo o Ano Geofísico Internacional, que
começaria em 1957, Revelle conseguiu financiamentos e
contratou um jovem pesquisador chamado Charles David
Keeling. Os dois estabeleceram sua principal estação de
pesquisas no topo de Mauna Loa, a mais alta de duas enormes
montanhas vulcânicas na grande ilha do Havaí. Eles
escolheram este local, no meio do Oceano Pacífico, porque as
amostras ali recolhidas não seriam contaminadas por emissões
industriais locais.
Um ano depois os dois começaram a lançar balões para
coleta de dados climáticos e analisar laboriosamente a
quantidade de CO2 presente nas amostras de ar coletado a cada
dia. Depois de poucos anos, a tendência já era evidente.
Em 1968, quando entrei pela primeira vez em sua aula de
ciências naturais, Revelle se tornara professor em Harvard,
e mostrou à nossa classe os resultados dos primeiros anos de
suas medições de CO2 em Mauna Loa.
Nunca vou me esquecer do gráfico que ele desenhou na
lousa, nem da mensagem dramática que este revelava: que
alguma coisa profundamente nova estava acontecendo na
atmosfera de todo o planeta, e que essa transformação era
causada pelo ser humano.
Para mim isso foi uma grande surpresa, até um susto. Se
somos capazes de alterar, de maneira tão rápida e
significativa, a concentração de um componente atmosférico
tão importante – e isso em todos os lugares do mundo – a
conclusão é que a humanidade está estabelecendo uma nova
relação com o planeta.
Revelle também expressou preocupação, já naquela época,
quanto à absorção sem precedentes de CO2 nos oceanos, assim
como na atmosfera. Ele logo percebeu que os oceanos teriam
de arcar com boa parte de todo aquele dióxido de carbono
extra, liberado pela queima de combustíveis fósseis.
Só recentemente novos e rigorosos estudos confirmaram que
Revelle tinha razão também nesse aspecto. Os oceanos estão
ficando mais ácidos por conta da enorme quantidade de CO2
que, combinado com a água, produz ácido carbônico e modifica
o pH. Isso se verifica primeiro nas águas mais frias, perto
dos pólos; mas em breve – se não mudarmos logo nossa maneira
de agir – ocorrerá em todos os oceanos do planeta.
Embora suas idéias fossem preocupantes, a lógica do
raciocínio do professor Revelle era sólida e verdadeira.
Ficou óbvio para o nosso pequeno grupo que ele próprio
estava surpreso e perturbado ao ver a rapidez com que o CO2
ia se acumulando. E o mais importante: ele compreendeu – e
nos comunicou com toda a veemência – quais seriam as
implicações futuras desses dados. Ele sabia que o rumo
tomado pela nossa civilização acabará por nos despachar
direto para a catástrofe, a menos que se possa reverter
essa tendência.
Para ele era difícil transmitir essa mensagem, e para nós
era difícil ouvi-la. Era uma mensagem que haveria de se
tornar, nos dias de hoje, uma verdade inconveniente.
Continuei em contato com o professor Revelle depois de me
formar, e acompanhei suas medições constantes e regulares,
ano após ano. Quando fui eleito para o Congresso como
o
representante do 4 distrito do Tennessee, ajudei a organizar
a primeira audiência parlamentar sobre o aquecimento global,
e convidei Revelle para ser o principal depoente. Eu
realmente acreditava que meus colegas do comitê parlamentar
teriam a mesma revelação que eu tive quando ouvissem esse
grande cientista expor suas análises tão claras.
Pois eu estava redondamente enganado. A premência do
assunto não tinha sido transmitida. Isso me deixou surpreso
e decepcionado. Eu havia subestimado a resistência – e
também o simples desinteresse – com que esse alarmante
prognóstico do aquecimento global seria recebido. E não foi
a última vez que tive essa experiência.
Voltei a encontrar a mesma dificuldade quando me tornei
senador e chefiei várias audiências e mesas-redondas sobre
ciência. Encontrei-a novamente quando, ao lado de outros
colegas, não consegui aprovação para os projetos de lei que
limitavam as emissões de dióxido de carbono. Encontrei-a
também em 1987 e 1988, quando me candidatei à presidência
pela primeira vez – o que fiz, aliás, também com o intuito
de chamar a atenção para essas questões. Nessa ocasião tive
grande dificuldade para tornar o assunto um foco central do
diálogo político americano. Experimentei-a mais uma vez como
vice-presidente, quando tentei convencer o Congresso a
aprovar medidas corajosas para resolver a crise climática. E
ainda mais uma vez quando tentei persuadir o Senado a
ratificar o Protocolo de Kyoto, que eu próprio ajudei a
redigir. E continuo encontrando essa dificuldade até hoje.
Mas não desisti de continuar tentando comunicar as
implicações da poderosa verdade que me foi revelada por
Roger Revelle naquela sala de aula.
Sou apenas um dos muitos alunos inspirados por Revelle.
Muitos outros cientistas também sentiram sua influência.
Entre eles o mais importante foi seu companheiro de
pesquisas, Charles David Keeling, homenageado como
verdadeiro herói científico por seus colegas e pelo nosso
país, antes de sua morte em 2005. Com extraordinário vigor,
habilidade e precisão, trabalhando fiel e arduamente,
Keeling mediu a concentração de CO2 do nosso planeta todos
os dias, durante quase meio século.
Revelle faleceu em 1991, antes que o mundo tomasse alguma
providência em resposta à sua mensagem. Eu o vi pela última
vez em San Diego, não muito antes de seu falecimento, e
ainda vejo sua família ocasionalmente. Sinto falta dele –
um verdadeiro grande homem. Minha vida foi transformada
pela sua investigação presciente, sua sabedoria, sua
insistência em darmos atenção aos sólidos fatos científicos
e, talvez mais do que tudo, pelo seu impressionante
gráfico.
Continuo mostrando, várias vezes por semana, o gráfico de
Revelle que indica o aumento nos níveis de CO2. Está mais
elaborado agora do que na primeira vez que o vi, pois as
medições tomadas em Mauna Loa já abrangem 48 anos. Mais
ainda, com as informações obtidas a partir dos testemunhos
(cilindros de gelo) extraídos na Antártida e na Groenlândia,
essa tabela foi muito ampliada; ela agora remonta a 650 mil
anos atrás. Com a ajuda de modernos supercomputadores e de
sofisticadas simulações climáticas, a tabela também pode ser
projetada muitos anos à frente, para medir o impacto futuro
das escolhas que fazemos hoje.
É um tributo à brilhante mente científica de Roger Revelle
o fato de que seja de sua autoria o núcleo essencial dos
dados de que dependemos para compreender as transformações
do nosso planeta. E é um tributo à sua sabedoria o fato de
aprendermos sobre esses perigos enquanto ainda temos tempo
de recolocar em equilíbrio a balança da Terra.

Páginas 122 a 125

A cidade
e o
campo
Eu respirava livremente, inspirando o ar
revigorante com o peito cheio – como jamais
poderia fazer nas ruas de Washington, DC

Desde que nasci até entrar na universidade, tive uma


experiência pouco comum: dividi cada ano da minha vida entre
dois lugares radicalmente diferentes. Como meu pai era
senador pelo Tennessee e trabalhava em Washington, DC,
durante oito meses por ano nosso lar era um pequeno
apartamento – o número 809 do Hotel Fairfax.
Minha irmã Nancy, minha mãe, meu pai e eu dividíamos um
único banheiro, que ligava o quarto dos meus pais ao nosso.
O restante do apartamento se compunha de uma saleta e uma
sala de jantar interligada à uma pequena cozinha. As
janelas davam para um estacionamento cimentado e para
outros edifícios.
Nos outros quatro meses do ano, morávamos em uma grande e
linda fazenda no Tennessee, com animais, luz do sol e muito
verde, aninhada em uma curva do rio Caney Fork, límpido e
cristalino. Alternar entre esses dois ambientes, ano após
ano, proporcionou-me algo que hoje vejo, em retrospecto,
como uma oportunidade excepcional de comparar essas duas
realidades – não do ponto de vista intelectual, mas
emocional. Ambos os lugares mudaram e cresceram durante
aqueles anos, mas de maneiras diferentes. E a cidade
cresceu muito mais depressa do que a área rural em torno de
nossa fazenda.
Com o tempo, passei a apreciar de forma cada vez mais
intensa meus dias na fazenda. Essas cenas hoje podem parecer
clichê mas, neste caso, os clichês têm vida: a relva macia, a
vastidão do céu, as árvores farfalhando, os lagos de água
fresca. Eu respirava livremente, inspirando o ar revigorante
com o peito cheio – como jamais poderia fazer nas ruas de
Washington, DC.
Não que minha família não fosse feliz naquele apartamento.
Éramos felizes. Mas tudo ali era fechado e apertado,
separado do mundo natural. Tal como milhões de famílias de
hoje, eu me adaptava com facilidade a essa separação; estava
acostumado a ela. Não lamentava o fato de nossa janela ficar
o
no 8 andar.
Na verdade, quando pequeno, costumava subir a escada de
incêndio até o teto, acompanhado de algum amigo, depois das
aulas. Nós amarrávamos uma linha em torno do pescoço dos
nossos soldadinhos de plástico, e os descíamos segurando
pelo carretel (da caixa de costura de minha mãe). Sete
andares e meio mais para baixo, lá estava o porteiro – e nós
fazíamos os soldadinhos baterem no seu chapéu, e o víamos
dar tapas no ar. Quando era um pouco mais velho, ia com meus
amigos jogar balões de água, a partir desse mesmo local
perigoso, em cima dos carros que paravam no sinal vermelho
na esquina da Rua 21 com a Avenida Massachusetts. Em outras
palavras, eu me divertia como podia – apesar de que essas
brincadeiras, se eu fosse meu próprio pai, teria me
aterrorizado.
A fazenda, contudo, proporcionava sempre uma experiência
diferente. Eu mal podia esperar para voltar lá. Eu amava
aquele lugar. Quando menino, sempre ia com meu pai
percorrer cada cantinho da fazenda, aprendendo com ele a
apreciar os detalhes do terreno. Meu pai me ensinou a
necessidade moral de cuidar da terra. Ele nunca usou
exatamente estas palavras, mas era este o espírito das suas
lições.
Ele me ensinou como reconhecer o mais tênue início de um
sulco escavado pela chuva que escorria por um campo arado.
Me mostrava como colocar pedras ou galhos no trajeto desses
riachinhos, para dispersar a água e impedir que ela
escavasse valetas no solo. Me fez compreender que, se a água
continuasse a seguir seu curso livremente, logo abriria
canais e crateras mais profundas, tornando a terra estéril
ao arrastar a fértil camada superior do solo, rica em
matéria orgânica.
Essas cicatrizes na terra eram comuns nos anos 1920 e
início dos anos 30 em todo o sul e outras regiões dos
Estados Unidos, e o instinto de meu pai de proteger e
reparar a terra foi transmitido a mim, de forma laboriosa,
por meio de instruções repetidas muitas vezes, em um tom de
voz brando. Se eu não tivesse aprendido essas lições bem
cedo, vendo-o fazer esse trabalho com suas próprias mãos, eu
poderia julgá-las totalmente abstratas e irrelevantes para
mim. Mas até hoje, quando caminho nessa fazenda que hoje é
minha, com meus filhos e netos, eu lhes ensino essas mesmas
lições – e até me surpreendo usando as mesmas palavras que
ouvi quando tinha 4, 12 ou 20 anos.
Com meu pai aprendi o dever de cuidar da terra. Mas foi com
minha mãe que aprendi a primeira lição sobre a
vulnerabilidade do planeta aos danos causados pelo homem.
Quando eu tinha 14 anos, minha mãe leu para nós Primavera
silenciosa, de Rachel Carson. Esse livro tanto lhe
impressionou que ela insistia em ler certas passagens em voz
alta, todas as noites depois do jantar, durante dez ou doze
noites seguidas. Minha irmã e eu nos sentávamos com ela à
mesa de jantar, e ouvíamos. Um dos motivos pelos quais me
lembro disso tão bem é que o livro de Rachel Carson foi o
único que minha mãe tratou dessa maneira. Ela vivia lendo
livros, e quando eu era bem pequeno, sempre lia para mim. Mas
depois que eu cresci, parou de fazer isso – exceto por esse
único livro, diferente de todos os outros. E eu nunca o
esqueci.
Primavera silenciosa fez a conexão entre as lições básicas
de cuidado com a terra que aprendi na infância com uma nova
lição: de que a civilização humana é agora capaz de
prejudicar seriamente o meio ambiente, de maneiras que não
eram possíveis no passado. E ignorar essa lição seria tão
errado como passar reto por uma valeta em formação na nossa
fazenda.
Passar tantos anos indo para lá e para cá, de Washington
para Carthage, também tinha suas desvantagens, sem dúvida.
Mas creio que isso me deu uma perspectiva valiosa sobre a
natureza – ou o meio ambiente, como queira. Se eu tivesse
me criado apenas na fazenda, talvez não desse tanto valor à
natureza. Mas como ficava privado dela ao fim de cada
verão, eu a conhecia de uma outra maneira – pela ausência,
e apreciava sua graça incomparável. Se tivesse me -criado
apenas na cidade grande, eu nunca saberia o que estava
perdendo, e nunca teria compreendido o alerta de Primavera
silenciosa em um contexto pessoal e moral.
Quando fui eleito para o Congresso, em 1976, Tipper e eu
decidimos seguir o mesmo esquema com nossos filhos: escola
na cidade grande, verões e natais na fazenda.

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