You are on page 1of 282

O Sorriso do Flamingo

Reflexões sobre história natural

Stephen Jay Gould

Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
Martins Fontes
São Paulo 2004
Título original: THE FLAMINGO’S SMILE.
Copyright © 1985 by Stephen Jay Gould.
Copyright © 1990, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1ª edição
setembro de 1990
2ª edição
março de 2004

Tradução
LUÍS CARLOS BORGES

Revisão técnica
Zysman Neiman
Preparação do original
Pier Luigi Cabra
Revisões gráficas
Elaine Maria dos Santos
Maria Corina Rocha
Silvana Cobucci Leite
Produção gráfica
Geraldo Alves
Composição
Antonio José da Cruz Pereira
Oswaldo Voivodic

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CEP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gould, Stephen Jay, 1941- .


O sorriso do flamingo : reflexões sobre história natural / Stephen Jay Gould ; [tradução Luís Carlos Borges]. - 2a ed.
- São Paulo : Martins Fontes, 2004.

Título original: The flamingo’s smile Bibliografia.


ISBN 85-336-1964-2

1. Evolução - História 2. Evolução - Obras de divulgação 3. História natural - Obras de divulgação 4. Seleção natural -
História I. Título.

04-1306 CDD-508

Índices para catálogo sistemático:


1. História natural: Ciências 508

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867
e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br
Para Deb por tudo
Índice

Prólogo

1. ZOONOMIA (E EXCEÇÕES)
1. O sorriso do flamingo
2. Só restaram suas asas
3. Sexo e tamanho
4. Convivendo com ligações
5. Um paradoxo muito engenhoso

2. TEORIA E PERCEPÇÃO
6. O umbigo de Adão
7. O congelamento de Noé
8. Falsa premissa, boa ciência
9. Na falta de uma metáfora

3. A IMPORTÂNCIA DA TAXONOMIA
10. De vespas e WASPs
11. Opus 100
12. A igualdade humana é um fato contingente da história
13. A regra de cinco

4. TENDÊNCIAS E O SEU SIGNIFICADO


14. Perdendo a forma
15. Morte e transfiguração
16. Reduzindo enigmas

5. POLÍTICA E PROGRESSO
17. Apresentando um macaco
18. Preso pela grande cadeia
19. A Vénus hotentote
20. A filha de Carrie Buck
21. O patrimônio (e o matrimônio) de Cingapura

6. DARWINIANA
22. O ombro esquerdo de Hannah West e a origem da seleção natural
23. Darwin em alto-mar — e as virtudes do porto
24. Um caminho curto para o milho

7. A VIDA AQUI E EM OUTROS LUGARES


25. Justamente no meio
26. Mente e supermente
27. O programa SETI e a sabedoria de Case Sengés

8. EXTINÇÃO E CONTINUIDADE
28. Sexo, drogas, desastres e a extinção dos dinossauros.
29. Continuidade
30. A dança cósmica de Sivã

Bibliografia
Prólogo

Num dos vitrais medievais da catedral de Canterbury, um anjo surge diante dos sábios
adormecidos e os adverte para que voltem diretamente para casa e não retornem a Herodes. Abaixo,
o evento correspondente do Antigo Testamento ensina que cada momento da vida de Jesus reencena
um trecho do passado e que Deus colocou significado no tempo — Lot volta-se, e sua esposa se
transforma numa coluna de sal (o vidro branco forma um contraste surpreendente com as cores
cintilantes que a rodeiam). O tema comum de ambos os incidentes: não olhe para trás.
O sorriso do flamingo é o meu quarto volume de ensaios publicados nas colunas mensais da
Natural History Magazine, ele também contém a minha centésima contribuição para um gênero que
certa vez considerei o mais efêmero e o mais impossível de se manter. Assim, vou quebrar a injunção
de Lot, ter esperanças de um destino mais agradável e correr o olhar pelos volumes anteriores.
Certa marca de uísque muitas vezes enfeita as contracapas do New Yorker com a sua afirmação de
que Mac-qualquer coisa (e os da sua raça) vem praticando o tento de caber no mesmo campo desde
1367, uns anos a mais ou a menos. “Algumas coisas nunca mudam”, diz a legenda. Seria melhor que
algumas coisas mudassem (por mais difícil que isso seja sob o equilíbrio pontuado), ainda que
apenas para diminuir o tédio, mas temas fundamentais (assim como um blend bem- sucedido)
deveriam se regozijar na persistência. Se os meus volumes funcionam, afinal, eles devem sua
reputação à coerência fornecida pelo tema comum da teoria da evolução. Tenho uma vantagem
maravilhosa entre os ensaístas, porque nenhum outro tema abrange tão belamente as particularidades
que fascinam e as generalidades que instruem.
A evolução é uma dentre a meia-dúzia de ideias avassaladoras que a ciência desenvolveu para
subverter esperanças e suposições passadas, e para esclarecer os nossos pensamentos presentes. A
evolução também é mais pessoal que o quantum ou que o movimento relativo da Terra e do Sol; ela
vai diretamente ao encontro das questões da genealogia que tanto nos fascinam — como e quando
surgimos, quais são as nossas relações biológicas com outras criaturas? E a evolução construiu todas
essas criaturas numa variedade atordoante — uma fonte inesgotável de prazer (embora não o motivo
para a sua existência!), para não falar de ensaios. Tendo em mente mapear as modificações dentro
dessa persistência, reli os prefácios dos meus outros livros e encontrei o tema coordenador,
vinculado às épocas de composição, de cada um deles. Rever SINE Darwin (Darwin e os grandes enigmas
da vida, Martins Fontes, 1987), na condição de primeira tentativa, apresentava os elementos básicos da
evolução como visão de mundo abrangente com implicações para um mundo político (de anos
imediatamente subsequentes à guerra do Vietnã), que tratava a diversidade humana de modo mais
generoso. The Pandas Tumba (O polegar da panda, Martins Fontes, 1989) focalizava uma série de debates
(sobre taxas e resultados) surgidos entre evolucionistas profissionais que conferiram uma vigor e
uma amplitude renovada a “essa visão da vida”. Bens Teto and. Hores Toes nasceu à sombra de um
brutalismo ressurgente — a chamada “ciência da criação”, tal como pregada por Falwell e
companhia — e exigiu uma leve defesa da veracidade e da humanidade da evolução.
O sorriso do flamingo tem um tipo de gatilho diferente — uma descoberta específica com
implicações sucessivas. Agora, para usar um jargão da área, parece “altamente provável” que um
asteroide errante ou uma chuva de cometas tenha provocado a grande extinção do cretáceo (o dobre
de finados dos dinossauros e, na razão inversa, o intróito da nossa evolução). Além disso, tais
reestruturações quintessencialmente fortuitas e episódicas da vida ocorreram várias vezes, talvez até
mesmo num ciclo regular de cerca de 25-30 milhões de anos. As particularidades são notáveis
(trocadilho intencional, acho), mas as implicações gerais são ainda mais arrebatadoras, e coincidem
belamente com os temas persistentes que infestam todas as minhas colunas — o significado do
padrão na história da vida (em parte aleatório e, de qualquer modo, não destinado ou voltado para
nós); as implicações sociais dos ataques científicos contra preconceitos profundos do pensamento
ocidental (os meus quatro cavaleiros favoritos, progresso, determinismo, gradualismo e
adaptacionismo — todos severamente questionados pela teoria do impacto nas extinções em massa).
No centro, coloca-se o único tema que transcende a própria evolução em generalidade — a natureza
da história. O sorriso do flamingo é sobre a história e sobre o que significa dizer que a vida é o
produto de um passado contingente, não o resultado inevitável e previsível de leis simples,
atemporais, da natureza. O capricho e o significado são dois dos meus temas não tão contraditórios.
Tudo isso soa terrivelmente tendencioso e pode levar os leitores a temer que o prazer potencial
tenha sido sacrificado num altar inchado de importância imaginária (meus volumes tornaram-se cada
vez maiores sem que mudasse o número de ensaios — uma tendência mais regular que o declínio, por
mim mapeado, das médias de rebatidas do ensaio 14, e um sinal de advertência contra problemas
iminentes caso haja continuidade além de um limite alcançado, suponho, por esta coleção). Minha
salvação potencial em face do egoísmo, confesso, deve continuar sendo um compromisso inflexível
de tratar da generalidade apenas quando ela surge das pequenas coisas que nos arrebatam e abrem os
nossos olhos com um “ah” — enquanto os ataques diretos, abstratos, eruditos, contra as
generalidades geralmente as tornam nebulosas. Mesmo o meu ensaio mais grandiloquente (não o
melhor — o de número 29, sobre a própria continuidade) — surgiu como uma glosa a respeito de
uma pequena observação: a mescla de sagrado e profano na iconografia do Palácio de Pio IV no
Vaticano.
Coloquei os meus ensaios sobre inversões e fronteiras no começo porque eles ilustram melhor
esse estilo de deixar que a generalidade flua das particularidades — três ensaios sobre inversões de
expectativas generalizadas (flamingos que se alimentam de cabeça para baixo; fêmeas de insetos que
supostamente comem os parceiros após a cópula; flores e moluscos machos que viram fêmeas e, às
vezes, reinvertem o processo); e dois sobre continuidades e o problema das fronteiras na natureza (as
caravelas são indivíduos ou colônias, os irmãos siameses são uma ou duas pessoas). Cada ensaio é
ao mesmo tempo uma única argumentação longa e uma união de particularidades.
Na maior parte da Europa, a comunicação da ciência a um público geral foi considerada como
parte do humanismo, como uma tradição intelectual honrosa vinda de Galileu, que escreveu em
italiano para levar a ciência além dos limites do latim da Igreja e das universidades, até Thomas
Henry Huxley, um estilista literário tão bom quanto muitos grandes romancistas vitorianos, até J. B.
S. Haldane e Peter Medawar, na nossa época. Nos Estados Unidos, essa digna atividade foi
seriamente confundida com os piores aspectos do jornalismo, e “popularização” tornou-se, em certos
círculos, sinônimo de ruim, simplista, trivial, barato e adulterado. Eu sigo uma regra fundamental na
composição destes ensaios — nada de concessões. Tornarei a linguagem acessível definindo ou
eliminando o jargão; não simplificarei conceitos.
Posso apresentar todos os tipos de justificações morais pretensiosas para essa abordagem (e
realmente acredito em todas), mas o motivo básico é simples e pessoal. Escrevo estes ensaios
sobretudo para auxiliar meu propósito de aprender e compreender o mais possível sobre a natureza
no pouco tempo que me cabe. Se eu fizer o jogo do livro didático ou da TV, de destilar o que já se
sabe, ou eliminar a sutileza até tornar tudo acessível no sentido vulgar (nenhum retorno exigido dos
consumidores), então de que me serve isso tudo?
Todos estes ensaios estão fundamentados nas fontes originais, nas suas linguagens originais:
nenhum deles é repetição direta de textos e outros sumários conhecidos. (A propagação do erro
através da infindável transferência de livro didático para livro didático é uma história perturbadora e
divertida por direito próprio — uma fonte de defeitos herdados quase mais persistente que os
defeitos inatos da genética.) Os meus erros são os meus erros.
Sob essa perspectiva, se classificam estes ensaios em três categorias. A maioria deles compõe-se
de exercícios de erudição pessoal. Alguns atingem novas interpretações (pelo menos para mim):
acho que a minha leitura de Tyson como um adepto conservador da cadeia do ser e não como um
pioneiro inovador da evolução esclarece as disparidades entre o seu texto e as análises costumeiras
(ensaio 17); descobri que o primeiro enunciado de Wells da seleção natural não se harmoniza tanto
com a versão posterior de Darwin como afirmou a maior parte dos comentadores (ensaio 22);
embora a vida anterior de Kinsey como taxonomista de vespas não tenha sido ocultada, não acho que
sua ligação intelectual íntima com as suas pesquisas de sexualidade tenha sido adequadamente
investigada (ensaio 10 — suspeito de que esse tratamento exigia um taxonomista profissional
trabalhando a partir das vespas, não um psicólogo partindo do sentido contrário). Outros ensaios
representam descobertas de diversos tipos baseadas em dados novos. Pode não ficar claro em vista
do tom jocoso do ensaio, mas há mais trabalho (do tipo tabulatório mudo — um tipo de prazer
perverso e entorpecedor em si mesmo) escondido na minha tabela de médias baixas de rebatidas ao
longo do tempo (ensaio 14) do que nas análises requintadas exibidas nas minhas dissertações
técnicas sobre caracóis terrestres. (Cada um dos meus volumes contém um ensaio em relevo mais
baixo — a alometria de catedrais em Darwin e os grandes enigmas da vida, a neotenia de Mickey
Mouse em O polegar do panda, as barras de Hershey em Hen’s Teeth and Horse’s Toes, a extinção
das médias de .400 do beisebol neste livro. Muitas vezes insisto na seriedade desses trabalhos, e
falo sério — embora eu vá ficar absolutamente arrasado se o leitor não rir. Quase me arrependo da
ilustração escolhida, a história das médias de rebatidas, no ensaio 14, porque o seu tema geral — um
apelo para que se leve em consideração sistemas em vez de partes abstratas — devia ser parte do
divertimento, e não perder-se nele.)
Numa segunda categoria, relato as descobertas ou interpretações de amigos e colegas, mas
encaixo-as num tema pessoal. Uso a teoria de Iltis sobre a origem do milho (ensaio 24) para ilustrar
o conceito evolutivo muitíssimo difícil e importante da homologia; a descoberta do animal conodonte
(ensaio 16) torna-se um pretexto para discutir o que pode ser o padrão fundamental (mas mal
avaliado) da história da vida — a redução na diversidade de modelos morfológicos, com expansão
nítida entre os sobreviventes.
A terceira categoria coloca temas gerais que precisam ser arejados, mas busca particularidades
caprichosas e incomuns para a sua ilustração. Os ensaios 4 e 5 são um experimento — o mesmo, com
ilustrações radicalmente diferentes. Discuto o reducionismo através da vida trágica de E. E. Just
(ensaio 25) e a numerologia de taxonomias pré-darwinianas antiquadas (ensaio 13). Tempero a
natureza da ciência com algumas ideias engraçadas sobre dinossauros (ensaio 28) e um apelo em
favor do sr. Gosse (ensaio 6), que afirmou que, assim como Deus criou animais com fezes nos
intestinos, também criou a Terra com coprólitos (excremento fóssil) nos seus estratos.
Também espero que o ordenamento dos ensaios em categorias auxilie o meu propósito maior
enfatizando, por meio da justaposição, os temas expressados nos ensaios tomados separadamente. Ao
fazer três declarações sobre a cadeia do ser (17-19), tento demonstrar como o inevitável
assentamento da ciência na cultura atua como uma restrição (ao defender o preconceito não
confirmado como conhecimento certificado, com trágicas consequências para vidas individuais —
ensaio 19 sobre a Vénus hotentote), e como um estímulo produtivo para uma nova descoberta que, em
troca, pode influenciar a cultura (a cadeia do ser levou Tyson a alguns dados notáveis sobre a
anatomia dos chimpanzés — ensaio 17).
A minha profissão incorpora um tema ainda mais inclusivo que a evolução — a natureza e o
significado da história. A história emprega a evolução para estruturar os eventos biológicos no
tempo. A história subverte o estereótipo da ciência como um empreendimento preciso, desalmado,
que priva a singularidade de qualquer complexidade e reduz tudo a experimentos de laboratório
atemporais, repetíveis e controlados. As ciências históricas são diferentes, não menores. Os seus
métodos são comparativos, nem sempre experimentais; elas explicam, mas geralmente não tentam
prever; elas reconhecem o capricho irredutível que a história acarreta, e aceitam o poder limitado
das presentes circunstâncias para impor ou inferir soluções ótimas; a rainha entre as suas disciplinas
é a taxonomia, a Gata Borralheira das ciências. Enquanto escrevia Hen’s Teeth and Horse’s Toes,
presenciei com um prazer quase distanciado como a história lentamente surgia na vanguarda das
minhas preocupações. Ela se espalhou por este volume como um transposon (Tipo de gene de um DNA que
tem a capacidade de “saltar” de um cromossomo para outro dentro da célula. -N.R.T.). O sorriso do flamingo (como o
polegar do panda) é a sua sinédoque — uma estrutura caprichosa, imposta por um passado distante, e
amalgamada a partir de partes disponíveis.
O ensaio 12, sobre fatos contingentes versus fatos necessários, pode ser o meu pronunciamento
direto sobre a história, mas esse assunto perpassa o volume inteiro. Ponderei por um bom tempo
sobre o meu centésimo ensaio, pois achava que ele deveria exprimir a essência dos meus esforços.
Escrevi sobre a importância da taxonomia, tal como aplicada aos caracóis terrestres das índias
Ocidentais que servem como foco da minha pesquisa técnica em biologia. A taxonomia, a mais
subestimada de todas as ciências, é a pedra fundamental das disciplinas históricas. A Parte 3 celebra
a taxonomia em várias roupagens. Outros ensaios também discutem os métodos da história — o
ensaio 24 sobre a homologia como guia para a determinação da ascendência; os ensaios 4 e 5 sobre o
significado das fronteiras num mundo de continuidades.
Várias seções tratam dos padrões que a história produz por meio do seu processo autorizado, a
evolução — a Parte 4 sobre tendências na história da vida (e de alguns sistemas menores); a Parte 8
sobre as extinções como sendo muito mais que uma força negativa; a Parte 7 sobre a vida aqui na
Terra, e as previsões que a história permite sobre a vida em outros lugares (mais uma vez, receio, os
limites da contingência em vez dos planos para o E.T.). Por fim, se a história tem importância e a
ciência não pode ser reduzida a experimentação automática, então a interação da ciência com a
cultura e a personalidade não é um mero estorvo, mas um incentivo à criatividade e uma chave para a
compreensão. A Parte 5 trata da interação em temas da evolução humana. A Parte 2 prega o respeito
por bons cientistas que foram mal compreendidos ou ridicularizados pela abordagem arrogante que
considerava a história apenas como um repositório de erros e, desse modo, uma fonte de instrução
moral. Confesso uma afeição particular pelo ensaio 5 e o seu tema picante.
Se o asteroide dos Alvarez foi o estímulo externo para a coesão, este livro tem também um tema
interno. Não é exatamente um segredo o fato de que passei esses últimos anos lutando contra o
câncer. Minha doença foi diagnosticada apenas uma semana após o último volume ter ido para a
impressão. Este livro se torna, portanto, uma espécie de roman à def (completo, espero) para uma
odisseia pessoal. O ensaio 19, “A Vénus hotentote”, foi o primeiro texto que escrevi na condição de
membro desse enorme clube involuntário — e considero a sua última linha o meu touché. Quando
organizados segundo sua ordem de publicação na Natural History, estes ensaios poderão traçar uma
viagem emocional (embora eu prefira não empreender a análise). Direi apenas que alguns ensaios
são secos no seu estilo exegético de comentário sobre textos históricos individuais (pois não pude
chegar às bibliotecas para as minhas costumeiras divagações, e, várias noites, um belo e velho livro
foi o que me deu alívio), ao passo que outros são completamente barrocos na sua miscelânea de
detalhes (a minha simples alegria de ser capaz outra vez).
Não me atrevo nem a tentar expressar minha gratidão aos que me apoiaram ao longo de tudo isso;
não há palavras para isso em língua alguma. Mas àqueles que me conhecem apenas através destes
ensaios, aos que tomaram o seu tempo para dizer que estavam preocupados, a minha gratidão
especial; isso teve real importância. Durante esse tempo, eu repisava várias coisas — que eu tinha de
ver os meus filhos crescerem, que seria perverso ter chegado tão perto do fim do milênio e perdê-lo.
Espero que não vá parecer piegas agradecer também à natureza — no contexto da penosa
regularidade destes ensaios. Ninguém tem melhor sorte do que a que eles me oferecem; todo mês é
uma nova aventura — em aprendizado e expressão. Eu só poderia dizer com a mais firme resolução:
“Ainda não, Senhor, ainda não.” Nem mesmo em cem vidas eu conseguiria dominar todo esse
tesouro, mas simplesmente tenho de dar uma olhada em mais alguns daqueles belos pedregulhos.
1. Zoonomia (e exceções)
1. O sorriso do flamingo

Buffalo Bill desempenhou o seu papel específico na redução da população de bisões americanos,
estimada em sessenta milhões de cabeças, para a quase extinção. Em 1867, sob os termos de um
contrato para fornecimento de comida aos trabalhadores das estradas de ferro, ele e seus homens
mataram 4.280 animais em apenas oito meses. O massacre pode ter sido indiscriminado, mas a carne
obtida não foi desperdiçada. Outros espoliadores de nossa herança natural mataram bisões com um
desenfreamento ainda maior, removendo apenas a língua (considerada uma esplêndida iguaria em
certos círculos), e deixando o resto da carcaça a apodrecer.
As línguas já haviam figurado antes nos tristes anais da rapacidade humana. Os primeiros
exemplos datam daqueles infames episódios de glutonaria gastronômica — as orgias dos
imperadores romanos. O sr. Stanley, o “general moderno” de Gilbert Sullivan, podia “citar cm versos
elegíacos todos os crimes de Heliogábalo” (isso antes de demonstrar suas habilidades para se
apropriar de uma rima através do domínio de “peculiaridades parabólicas” no estudo de seções
cônicas) (“The Major General’s Song”, da opereta The Pirates of Penzance, de W. S. Gilbert e A. S. Sullivan.- N.T.). Entre
outros crimes, o licencioso imperador adolescente cometia o de presidir banquetes onde figuravam
com destaque pratos cheios de línguas de flamingo. Suetônio relata que o imperador Vitélio servia
uma gigantesca mistura chamada “escudo de Minerva”, feita de fígados de peixe-papagaio, cérebros
de pavão e faisão, tripas de lampreia e línguas de flamingo, sendo todos os ingredientes “trazidos em
grandes navios de guerra, de lugares tão longínquos quanto o mar de Cárpato e os estreitos
espanhóis”.
Lampreias e peixes-papagaio (apesar de não desprovidos de beleza) raramente suscitaram grande
compaixão. Mas os flamingos, essas elegantes aves de cor vermelho brilhante (como proclama seu
nome - Proveniente talvez do latim Flamma [chama, fogo] com o sufixo germânico ingl., segundo Antenor Nascentes.- N.T),
inspiraram apoio ardoroso, dos poetas da Roma antiga aos modernos preservacionistas. Num de seus
mais pungentes dísticos, Marcial criticou duramente seus imperadores (por volta de 80 a.C.), ao
especular sobre a possibilidade de um destino diferente, houvesse a língua do flamingo sido dotada,
não simplesmente de sabor agradável, mas de melodia, como a do rouxinol:

Dat mihi penna rubens nomen; sed língua gulosis


Nostra sapit: quid, si garrula língua foret?
(Minha asa vermelha me dá o nome; mas os epicuristas consideram saborosa a minha língua.
Mas, e se minha língua pudesse cantar?)

A maioria dos pássaros tem línguas magras e pontudas, certamente indignas de um imperador,
mesmo em grandes quantidades. O flamingo, para seu posterior e imprevisto infortúnio, adquiriu ao
longo da evolução uma língua grande, macia e carnuda. Por quê?
Os flamingos desenvolveram um método extraordinariamente raro de alimentação, único entre as
aves e adotado por bem poucos dentre os outros vertebrados. Seus bicos são providos de numerosas
fileiras complexas de lamelas córneas — filtros que funcionam como as barbatanas das baleias
gigantes. Os flamingos são errônea e comumente retratados como residentes típicos de luxuriantes
ilhas tropicais — algo divertido de se ver enquanto se bebe rum e coca-cola na varanda do cassino.
Na verdade, eles vivem num dos habitats mais inóspitos do mundo — os lagos rasos e hipersalinos.
Poucas criaturas são capazes de tolerar as condições ambientais incomuns desses desertos salinos.
As que conseguem se desenvolver podem, na ausência de competidores, multiplicar em muito suas
populações. Os lagos hipersalinos, portanto, oferecem aos predadores condições ideais para a
evolução de uma estratégia de alimentação por filtragem — poucos tipos de presas potenciais,
disponíveis em grandes quantidades e de tamanho essencialmente uniforme. O Phoenicopterus ruber,
o maior flamingo (de espécie mais comum em nossos jardins zoológicos e nas áreas de preservação
das Bahamas e de Bonaire), filtra, predominantemente, presas de dimensões em torno de uma
polegada — pequenos moluscos, crustáceos e larvas de insetos, por exemplo. Mas o Phoeniconaias
minar, o flamingo menor, possui filtros tão densos e eficazes que são capazes até mesmo de reter
células de cianofíceas e diatomáceas de 0,02 a 0,1 mm de diâmetro.
Os flamingos fazem com que a água passe através de seus filtros de duas maneiras (tal como
documentado por Penelope M. Jenkin em seu artigo clássico de 1957): balançando a cabeça para a
frente e para trás, eles permitem que a água flua passivamente, ou então, pelo sistema mais comum e
eficaz, que inspirou os glutões romanos pelo bombeamento ativo sustentado por uma língua grande e
forte. A língua preenche um grande canal no bico inferior. Move-se rapidamente para a frente e para
trás, com uma frequência de até quatro vezes por segundo, trazendo a água através dos filtros com o
movimento para trás e expelindo-a com o movimento para a frente. A superfície da língua está
munida de numerosos dentículos que raspam o alimento recolhido nos filtros (exatamente como as
baleias recolhem o krill de suas barbatanas).
A vasta literatura sobre a alimentação dos flamingos sempre ressaltou esses singulares filtros —
e com frequência negligenciou outra característica, intimamente relacionada ao tema, igualmente
notável e longamente considerada pelos grandes naturalistas. Os flamingos alimentam-se de cabeça
para baixo. Eles se postam na água rasa, abaixam a cabeça até o nível dos pés, ajustando sutilmente a
posição da cabeça pelo alongamento ou acentuação da curva em “S” do pescoço. Esse movimento
naturalmente inverte a posição normal da cabeça, e, desse modo, os bicos têm seus papéis
convencionais trocados durante a alimentação. O bico anatomicamente superior do flamingo fica para
baixo e passa a servir, funcionalmente, como uma mandíbula inferior. O bico anatomicamente inferior
fica para cima, na posição assumida pelos bicos superiores de quase todas as outras aves.
Com esta curiosa inversão, afinal chegamos ao tema do presente ensaio: esse comportamento
incomum resultou em mudanças de forma? E, em caso afirmativo, quais foram elas e como se deram?
A teoria de Darwin, na condição de postulado sobre a adaptação a circunstâncias ambientais
imediatas (não um progresso geral ou uma direção global), prevê que a forma deve seguir a função a
fim de estabelecer uma boa adaptação a estilos peculiares de vida. Em resumo, poderíamos suspeitar
que o bico superior do flamingo, agindo funcionalmente como uma mandíbula inferior, evoluiria até
se aproximar, ou mesmo imitar, a forma usual da mandíbula inferior de uma ave (e vice- versa no
caso do bico anatomicamente inferior e funcionalmente superior). Tal modificação terá ocorrido?
A natureza abriga um enorme séquito de excentricidades, tão especiais que dificilmente sabemos
o que prever. Neste caso, porém, nos deparamos com uma inversão precisa de anatomia e função
usual — o que nos leva a uma expectativa definida: quando o comportamento presente entra em
conflito com a anatomia convencional, os animais com características invertidas deveriam reorientar
a forma de seus corpos para uma nova função.
Podemos começar dispensando as costumeiras pontificações (mas só por alguns instantes) e olhar
uma figura. Se essa figura lhe provoca uma vaga sensação de familiaridade e um leve estranhamento,
sua percepção é aguda. Ainda assim, acompanhe minha exposição.
A princípio julgamos ver um cisne com um longo pescoço e um largo sorriso. Mas, olhe com
mais cuidado, pois os detalhes traem esse animal impossível. A boca se abre acima dos olhos. As
plumas estão voltadas na direção errada. E, onde estão suas pernas? Vou mostrar-lhes, a seguir, o
famoso original em sua posição correta (e com as pernas de volta) — o flamingo de Birds of
America de J. J. Audubon, que certamente figurará em qualquer relação de ilustrações mais famosas
da história natural.
Esse radical deslocamento perceptual, de cisne feliz para altivo flamingo, traz à lembrança
qualquer um dos vários itens-padrão do arsenal de ilusões de óptica da psicologia —
particularmente o da jovem dama bem-vestida, com o rosto voltado, que se transforma na velha
megera de perfil. Na verdade, qualquer desenho bem-executado de um flamingo, quando visto de
cabeça para baixo, produz o mesmo efeito surpreendente (verifiquei todos os retratos historicamente
importantes) — e por um motivo óbvio. As mandíbulas evoluíram para se adaptarem à sua função
invertida. A mandíbula superior do flamingo de fato se parece com o bico inferior de uma ave típica,
e, portanto, vemos o flamingo de cabeça para baixo, não como um absurdo, mas apenas como uma
ave parecida com o cisne, ligeiramente estranha.
As alterações morfológicas vão muito além das modificações da forma exterior responsáveis por
essa mudança perceptual tão surpreendente, de flamingo ereto para “cisne” invertido. Note-se,
porém, primeiro a curva peculiar do próprio bico. O bico do flamingo projeta-se do seu rosto, mas
faz então um desvio angular abrupto, produzindo a acentuada corcova que se parece com um cocho (e
que funciona como tal) quando invertida durante a alimentação. Alguns povos do Oriente próximo
chamam os flamingos de “camelos do mar”, não porque o bico curvo lembre a corcova do camelo,
mas porque ele imita a curva de nariz que confere uma errônea (porém inabalável) impressão de
arrogância a ambos os animais (ver meu ensaio sobre a história de Mickey Mouse e as mensagens
transmitidas casualmente pelos traços faciais dos animais — ensaio 9 de O polegar do panda).
Virada de cabeça para baixo, a curvatura torna-se um sorriso, e um “cisne” sorridente substitui o
flamingo arrogante.

Os bicos estão minuciosamente adaptados a seus papéis invertidos, e não simplesmente curvados
no ponto médio com vistas a uma reorientação adequada. Em primeiro lugar, os tamanhos relativos
foram rearranjados para complementar os formatos. O bico superior é pequeno e raso, e o inferior,
profundo e maciço. (Na maioria das aves, o bico inferior, menor, move-se para cima e para baixo
contra o bico superior, maior.) Em segundo lugar, o bico inferior do flamingo (funcionalmente
superior durante a alimentação) evoluiu até adquirir uma rigidez incomum. Os ossos de cada metade
(ou ramus no jargão técnico) são firmemente fundidos, e os próprios rami são, por sua vez, soldados
um ao outro. O bico inferior é maciço e bem fixado. A língua é disposta longitudinalmente numa
cavidade profunda da mandíbula inferior. (Lembre-se de que a alimentação por filtragem serve como
tema coordenador de todas essas mudanças — a postura de cabeça para baixo para a alimentação, a
decorrente alteração do formato e do tamanho dos bicos e a língua gorda que quase selou o destino
do flamingo.) Em terceiro lugar, na maioria das espécies de flamingo, a mandíbula superior, de
tamanho menor, encaixa-se em um receptáculo inferior, de tamanho maior, numa inversão da
convenção usual — a mandíbula inferior, com movimento para cima, encaixando-se em um bico
superior de tamanho maior.
Essas mudanças complexas e coordenadas formam um quadro convincente, mas deixam de lado
uma peça, reconhecida como sendo a chave para as peculiaridades do flamingo desde que Menipo,
quase trezentos anos antes do apelo de Marcial, registrou a primeira especulação ainda preservada
sobre o assunto: os movimentos também são invertidos para combinar com a inversão da forma?
Na maioria das aves (e dos mamíferos, inclusive nós mesmos), a mandíbula superior se funde ao
crânio; os atos de mastigar, morder e gritar fazem com que a mandíbula inferior se mova contra esse
suporte fixo. Se a postura alimentar invertida converteu a mandíbula superior do flamingo numa
mandíbula inferior funcional em tamanho e forma, então devemos supor que, ao contrário de toda a
praxe anatômica, esse bico superior se move para cima e para baixo contra uma mandíbula inferior
rígida. O flamingo, em resumo, deveria alimentar- se erguendo e baixando sua mandíbula superior.
Fazendo justiça à clareza de pensamento dos nossos melhores naturalistas, notei com prazer em
minhas leituras que esta questão central vem sendo considerada fundamental há mais de dois mil anos
— por cientistas de diversas culturas e ao longo de todas as vicissitudes de teoria e prática que têm
marcado a história da biologia. Georges Buffon, o maior de todos os naturalistas sinópticos, iniciou
seu ensaio sobre flamingos, de meados do século XVIII, admitindo a fama de sua coloração
vermelha, mas, ao mesmo tempo, sustentando que o estranho formato de seu bico constituía um
problema de interesse ainda maior: “Essa cor flamejante não é o único traço notável exibido por essa
ave. Seu bico tem um formato extraordinário, a parte superior sendo achatada e fortemente curvada
em sua porção central, e a inferior densa e bem assentada, como uma grande colher.” Em resumo,
usando a sua adorável língua, “une figure d’un beau bizarre et d’une forme distinguée”. Então,
remontando a questão até Menipo, Buffon estabeleceu o primum desideratum dos estudos sobre
flamingos — “saber se, neste bico singular, é (como disseram muitos naturalistas) a parte superior
que se move, ao passo que a inferior mantém-se fixa e imóvel”.

O primeiro comentário amplo e explícito fora oferecido em 1681 por Nehemiah Grew, o grande
naturalista inglês (conhecido principalmente por seus pioneiros estudos microscópicos de plantas).
Ao catalogar as coleções da Royal Society — no seu Musaeum Regalis Societatis, or a catalogue
and description of the natural and artificial rarities belonging to the Royal Society and preserved
at Gresham College, whereunto is subjoyned the comparative anatomy ofstomachs and guts
[Musaeum Regalis Societatis, ou catálogo e descrição das raridades naturais e artificiais
pertencentes à Royal Society e preservadas no Gresham College, ao qual se acha apensa a anatomia
comparativa dos estômagos e intestinos] —, ele encontrou um único flamingo (ver figura) e declarou:
“Aquilo no qual ele se mostra mais notável é no bico.” Grew achava que as singularidades do bico
seriam explicadas caso a porção superior se movesse apoiada contra uma mandíbula inferior
estacionária. Ele afirmava que a “forma e o tamanho grande do bico superior (o qual, neste caso, ao
contrário do que ocorre com todas as aves que vi, é mais fino e bem menor que o inferior) indicam
que ele é mais apropriado para o movimento e para realizar o contato, e o inferior, para recebê-lo”.

A questão não foi inteiramente solucionada até que-Jenkin publicasse seu abrangente trabalho em
1957 — confirmando com dados sólidos as suspeitas e o bom julgamento de Menipo, Grew e Buffon.
Na verdade, os flamingos (assim como várias outras aves) desenvolveram uma articulação esférica
altamente móvel entre as mandíbulas superior e inferior. Os bicos, por conseguinte, têm maior
mobilidade, e cada um deles pode se mover de modo independente. No alisamento de plumas com o
bico, tanto a mandíbula' superior quanto a inferior, podem ser abertas e operadas uma contra a outra.
Mas na alimentação, a mandíbula superior em geral se abaixa e se ergue apoiada contra uma
mandíbula inferior estacionária — exatamente como os grandes naturalistas sempre haviam suposto.
A reviravolta do flamingo é completa e abrangente — quanto à forma e ao movimento. As formas
são subvertidas pela inclinação, os tamanhos trocados, o encaixe invertido e a sustentação deslocada.
A ação também é invertida. Uma inversão particular de comportamento engendrou uma complexa
inversão na forma. A evolução como adaptação a modos particulares de vida — na visão de Darwin
— ganha força a partir de um teste extremo imposto por uma forma de vida de cabeça para baixo.
Mas os flamingos são apenas um exemplo divertido ou simbolizam uma generalidade? O que
dizer de outras criaturas que vivem de cabeça para baixo? Consideremos outro animal de águas rasas
das índias Ocidentais, a medusa invertida, Cassiopea xamachana (a heterodoxa denominação da
espécie é uma menção ao nome dado pelos nativos americanos à ilha da Jamaica).
A Cassiopea é uma água-viva não convencional em vários aspectos. Ela não desenvolve
tentáculos marginais nem boca central. Em vez disso, oito “braços orais” (assim chamados porque
cada um deles contém uma boca) carnudos e complexamente ramificados emergem de um talo central
curto e robusto, ligado ao costumeiro guarda-chuva das águas-vivas, só que com uma diferença (ver a
figura — uma reprodução da clássica litografia da monografia de Mayer, de 1910, Medusae of the
World). Os braços orais estão repletos de células algáceas simbióticas, um possível impulso
adaptativo para a elaborada ramificação (com o fim de fornecer superfícies captadoras de luz aos
sim- biontes fotossintetizantes). Cada braço oral abriga cerca de quarenta vesículas orais — sacos
ocos conectados com os canais alimentares e contendo nas pontas bolsas de nematocistos, ou células
urticantes. As vesículas disparam seus nematocistos contra as presas (em geral pequenos crustáceos)
em filamentos de muco; os filamentos com as vítimas grudadas e paralisadas são depois puxados
para as bocas orais. (Sim, também achei engraçada, assim como alguns de vocês, a redundante
expressão “boca oral” — o equivalente zoológico de torta de pizza ou corrente AC. Esta expressão
desajeitada é o resultado infeliz de uma decisão anterior de designar os apêndices como “braços
orais” — um equivalente reduzido de “bocas dos braços orais”).
A anatomia incomum da Cassiopea combina com sua orientação e seu estilo de vida não
convencionais. As águas-vivas comuns, providas de autorrespeito, nadam ativamente com seus
guarda-chuvas para cima e os braços e tentáculos para baixo. A Cassiopea permanece estacionada no
fundo de poços rasos e regiões costeiras — de cabeça para baixo. O topo de seu guarda-chuva se
abraça ao sedimento, e os braços orais ondulam por cima, esperando que pequenos crustáceos
adentrem sua órbita. Os navegadores de Fort Jefferson, nas Tortugas, onde a Cassiopea guarnecia as
docas, chamavam-nas de “bolos de musgo”. (Como a Cassiopea é capaz de dar uma ferroada bem
dolorida, e, já que os marinheiros em geral “apimentam” sua linguagem de mo do a que ela se adapte
à qualidade do estímulo, fico imaginando como eles realmente as chamavam. Contudo, o sr. H. F.
Perkins, ao escrever em 1908 sobre a anatomia da Cassiopea, preferiu não nos contar.)

O guarda-chuva da Cassiopea lembra a mandíbula do flamingo em sua adaptação à vida


invertida. A superfície superior do guarda-chuva mostra-se suavemente convexa nas águas-vivas
comuns, como exige a eficiência hidrodinâmica. Mas a superfície superior do guarda-chuva da
Cassiopea (a superfície funcionalmente inferior na vida de cabeça para baixo) é acentuadamente
côncava — bem apropriada para servir como um dispositivo de ventosa para pegar e segurar o
substrato.
A Cassiopea realizou uma segunda e intrigante modificação para a sua insólita vida invertida. A
maioria das águas-vivas move-se na água contraindo anéis de músculos concêntricos que circundam
a porção exterior do guarda-chuva. Na Cassiopea, um desses anéis musculares foi erguido e
acentuado, formando uma faixa circular contínua que rodeia a concavidade interna. Este aro erguido
opera juntamente com a superfície côncava para formar uma eficaz ventosa que mantém a “cabeça”
da água-viva em sua posição apropriada no fundo. (A Cassiopea ainda consegue nadar de maneira
convencional, embora o faça de modo débil e ineficaz. Se for desalojada do fundo, ela se vira e nada
por meio de pulsações durante alguns instantes antes de voltar a fixar a “cabeça” no fundo.) Alguns
cientistas também sugeriram que as contrações pulsatórias dos músculos concêntricos, em geral
usados para nadar, servem para outras importantes funções na posição fixa e invertida da Cassiopea
— manter a ligação com o substrato pressionando o animal para baixo e mover correntes de água
com presas potenciais na direção dos braços orais. Mas estas proposições razoáveis não foram
testadas de forma adequada.
Assim, os flamingos e a Cassiopea — dois animais que dificilmente poderiam ser mais
diferentes em modelo anatômico e história evolucionária — compartilham a característica comum da
alimentação de cabeça para baixo. Como mensagem geral dentre as particularidades, ambos
remodelaram a anatomia convencional para fazer frente ao estilo de vida invertido. O bico superior
do flamingo mudou radicalmente — em tamanho, formato e movimento — para parecer e funcionar
como o bico inferior da maioria das aves. O ápice estrutural do guarda- chuva da Cassiopea inverteu
o seu formato para funcionar adequadamente como um “pé ecológico”.
A adaptação tem um poder maravilhoso de alterar um projeto anatômico, amplamente difundido e
estável entre milhares de espécies, para responder às exigências invertidas de um estilo de vida
ímpar adotado por uma ou algumas poucas formas aberrantes. No entanto, não devemos concluir que
a adaptação darwiniana ao meio ambiente local possui poder irrestrito para modelar formatos
teoricamente ótimos para todas as situações. A seleção natural, como processo histórico, só pode
trabalhar com o material disponível — nestes casos, os modelos anatômicos convencionais
desenvolvidos para a vida comum. As imperfeições e soluções excêntricas resultantes, construídas a
partir de partes disponíveis, registram um processo que se desdobra no tempo a partir de
antecedentes inadequados, não a obra de um arquiteto perfeito trabalhando ab nihilo. A Cassiopea
elege uma faixa de músculos co- mumente usada para nadar e forma um aro saliente que agarra o
substrato. Os flamingos curvam o bico numa curiosa corcova como a única solução topológica para
uma nova orientação.
Estas adaptações à vida de cabeça para baixo não são apenas fatos divertidos. Elas nos ajudam a
compreender a solução para um dilema maior, e clássico, na teoria da evolução (daí minha decisão
de uni-los neste ensaio). Podemos compreender facilmente como os flamingos e a Cassiopea
funcionam; suas características incomuns de fato os tornam adaptados para as suas vidas não
convencionais. Mas como surgem estas estruturas bizarras se a evolução tem de avançar através de
etapas intermediárias (ninguém irá sugerir com seriedade que o primeiro protoflamingo virou a
cabeça para baixo e depois gerou descendentes com um conjunto completo de adaptações complexas
à vida invertida).
Nos anos pré-darwinianos do começo do século XIX, quando a teoria da evolução era novidade,
e quando os primeiros expoentes de uma ideia tão radical estavam tentando formular as suas
implicações, surgiram duas escolas que conduziram a um debate interessante (e em boa parte
esquecido) que durou até que Darwin resolvesse a polêmica. Ambos os lados admitiam o bom ajuste
que em geral existe entre forma e função — adaptação no sentido estático, não-histórico. Os
estruturalistas, como Etienne Geoffroy Saint-Hilaire argumentavam que a forma deve mudar primeiro
e depois encontrar uma função. Os fun- cionalistas, como Jean Baptiste Lamarck, sustentavam que os
organismos devem primeiro adotar um modo de vida diferente para acionar algum tipo de pressão
para uma forma subsequentemente alterada.
A natureza desta “pressão” inspirou outro debate famoso (e mais lembrado, se bem que não mais
importante). Lamarck afirmava que os organismos reagiam criativamente às necessidades impostas
pelo meio ambiente e depois transmitiam as mudanças resultantes diretamente para a prole — a
“herança de caracteres adquiridos” no jargão costumeiro. Darwin argumentava que o meio ambiente
não impunha as exigências adaptativas de imediato. Em vez disso, os organismos que, por sorte,
variavam em direções melhor ajustadas ao meio ambiente local, através de um processo de seleção
natural, deixavam uma descendência sobrevivente maior.
Como Darwin venceu esta discussão sobre a natureza das informações que o meio ambiente
passa para o organismo, Lamarck foi eclipsado e, ainda hoje, apesar dos vários esforços dos
historiadores para corrigir o equívoco, sofre de uma reputação imposta de perdedor, que não deve ter
nenhuma de suas ideias levadas a sério.
Mas Lamarck tinha a resposta certa (a mesma que Darwin) para a disputa maior entre
estruturalistas e funcionalistas. (Ele apenas propôs o mecanismo errado para explicar como o meio
ambiente transmite suas mensagens aos organismos.) A solução estruturalista de Geoffroy propõe um
óbvio dilema. Se a estrutura muda primeiro, de acordo com desconhecidas “leis de forma”, e depois
encontra o meio ambiente mais adequado para o seu estado alterado, como pode surgir a adaptação
precisa? Poderíamos admitir que algumas mudanças básicas e gerais tendem a preceder algum
significado ou vantagem funcional — um animal poderia, por exemplo, tornar-se maior e depois
explorar as vantagens inerentes a um tamanho maior. Mas como acreditar seriamente que algo tão
complexo, tão variado e tão profundamente adaptado a uma ecologia incomum como o bico do
flamingo poderia surgir antes do fato e sem relação com a sua serventia — permitindo que apenas
mais tarde o flamingo descobrisse como aquele bico funcionava tão bem de cabeça para baixo?
A solução funcionalista de Lamarck reveste-se de uma simplicidade refinada atualmente aceita
por quase todos os evolucionistas (mas que costuma ser atribuída a Darwin, que também a defendia.
Por mais que eu admire Darwin, quero fazer um apelo para que este princípio básico seja
reconhecido como contribuição principal de Lamarck. Ele não surge como uma nota de rodapé
eventual na Philosophie zoologique de Lamarck, de 1809, mas como um tema central de seu livro.
Lamarck sabia muito bem sobre o que estava argumentando e por quê). Lamarck simplesmente
reconhecia que a mudança de comportamento deve preceder a alteração da forma. Um organismo
entra em um novo ambiente com a sua antiga forma, adaptada para outros estilos de vida. A inovação
comportamental estabelece uma discordância entre função nova e forma herdada — um ímpeto para a
mudança (por meio de reação criativa e herança direta para Lamarck, por meio de seleção natural
para Darwin). O protoflamingo primeiro inverte o seu bico normal — e ele não funciona muito bem.
A proto-Cassiopea fica de cabeça para baixo, mas o seu guarda-chuva convexo não agarra o
substrato. Lamarck escreveu:

Não é nem a forma do corpo, nem a das suas partes, que dá origem aos hábitos dos animais e ao
seu modo de vida; mas, pelo contrário, foram os hábitos, o modo de vida, e todas as outras
influências do meio ambiente que modelaram ao longo do tempo o formato do corpo e das partes
dos animais.

A evidência direta da solução de Lamarck não pode surgir de adaptações tão “completas” quanto
o bico do flamingo ou o guarda-chuva da Cassiopea — embora, mesmo neste caso, a inferência se
torne verdadeiramente irresistível (afinal, por que deveriam os flamingos, de modo exclusivo entre
as aves, desenvolver um bico tão peculiar, se não para explorar o ambiente incomum que
escolheram?). Devemos surpreender o processo em seus estágios iniciais — encontrando animais
invertidos que já alteraram o seu comportamento, mas não a sua forma.
Os silurídeos africanos da família Mochokidae incluem várias espécies que caracteristicamente
nadam de barriga para cima (ver G. Sterba, na bibliografia). O comportamento já se modificou
radicalmente, e em alguns casos dispomos até mesmo de bons palpites quanto aos gatilhos que
detonaram o processo. (O Synodontis nigriventris, por exemplo, come algas raspando o lado inferior
das folhas de plantas aquáticas.) Mas a forma mudou pouco, isso quando mudou. Algumas poucas
espécies inverteram o costumeiro padrão de coloração mimética própria de peixes que nadam perto
da superfície. As barrigas claras da maioria dos peixes, vistas contra o sol, os tornam invisíveis aos
predadores que olham de baixo. Mas o S. nigriventris, como dá a entender o seu nome (barriga
preta), é escuro no lado anatomicamente inferior, e claro no lado estruturalmente superior. Como este
peixe nada de barriga para cima, o lado claro fica para baixo, como de costume. No entanto, a não
ser por esta mudança de cor, a maioria dos Mochokidae invertidos tem a mesma aparência que os
seus parentes que nadam com a barriga para baixo. O tamanho, o formato e a posição das nadadeiras
não mudaram. O detonador do processo (supostamente recente) é comportamental. Teremos de
esperar para ver quais mudanças ainda podem ocorrer.
Como questão final, os leitores podem reconhecer a validade de minha argumentação, mas
rejeitar os exemplos como triviais ou periféricos. Todos amamos os flamingos, e a Cassiopea
estimula o nosso interesse (o nosso corpo também, se nos metermos com ela). Os Mochokidae são
divertidos nos aquários. Mas é possível ver a forma de vida invertida como algo mais que um
cantinho engraçado da história natural? Todos os meus exemplos são as adaptações acabadas de
umas poucas espécies; a vida invertida pode levar a algo fundamental e amplo?
Como importante ilustração tirada da história (embora a ideia seja, quase com certeza, incorreta),
o modo de vida invertido certa vez arrebatou a atenção como especulação fundamental sobre a
origem dos vertebrados — a teoria do “verme que se virou”, por assim dizer. Os anelídeos e os
artrópodes, os mais complexos dos invertebrados segmentados, desenvolvem cordões nervosos
ventrais (no lado de baixo); o esôfago penetra nos cordões nervosos e liga uma boca ainda mais
ventral a um canal alimentar central (intestino) localizado acima dos cordões nervosos. Nos
vertebrados o cordão nervoso principal está disposto longitudinalmente em posição dorsal (no lado
de cima), e o canal alimentar, inclusive boca e esôfago, localiza-se inteiramente no lado de baixo.
Estes dois modelos anatômicos parecem inteiramente incompatíveis e não relacionados. Não
obstante, e ironicamente no contexto do contraste que fiz entre a opinião estrutural e a funcional, o
maior de todos os estruturalistas, o próprio Geoffroy Saint-Hilaire, notou que um anelídeo virado de
barriga para cima fica um bocado parecido com um vertebrado — pois o cordão nervoso ventral
torna-se então dorsal e fica acima do canal alimentar. Resolvendo um problema, surgem outros: a
boca agora se abre no lado de cima do verme invertido. Geoffroy sugeriu, como uma solução ad hoc,
que exige demais da credulidade, que a antiga boca e o esôfago que penetra no nervo simplesmente
desapareceram, e que uma abertura de todo nova (a boca de vertebrado) desenvolveu-se abaixo do
cordão nervoso, ligando-se diretamente ao canal alimentar, e não mais penetrando no sistema
nervoso. (Tantas outras diferenças incomodam a comparação — por exemplo, a falta de qualquer
estrutura nos anelídeos que lembre a notocorda ou as fendas branquiais dos vertebrados,
disparidades fundamentais no desenvolvimento embriológico dos dois grupos — que a teoria do
verme nunca impôs assentimento geral, embora tenha se mantido por quase um século como uma
controvérsia fundamental).
Geoffroy nunca pretendeu que sua comparação de vertebrado com verme invertido fosse uma
especulação evolucionária, mas apenas uma comparação estrutural para escorar a sua notável teoria
de que todos os animais compartilham de um plano arquitetônico comum. (Ele também sustentava que
os segmentos do esqueleto externo de um inseto correspondiam às nossas vértebras internas — e que
os insetos viviam literalmente dentro das próprias vértebras. Esta comparação implicava a conclusão
adicional e assombrosa, francamente defendida por Geoffroy, de que as pernas dos insetos são
costelas de vertebrado.)
Geoffroy também expôs a sua comparação como uma hipótese funcional sobre a adaptação — ele
não sustentava (como Lamarck poderia ter feito) que o comportamento inovador de um verme (de
virar- se de barriga para cima) havia detonado uma pressão adaptativa para uma remodelação
anatômica. Muito pelo contrário. Como estrutura- lista, ele afirmava que ventre e dorso são termos
de invenção humana sem nenhum sentido, usados para descrever uma orientação superficial também
desprovida de sentido para aquilo que realmente importa — leis estruturais abstratas de forma e
caminhos de modificação permitidos.
Hoje, rejeitamos a especulação de Geoffroy junto com a sua abordagem de forma e função. O
modo de vida invertido confirma a asserção de Lamarck de que a mudança substancial na morfologia
surge em geral como consequência de gatilhos comportamentais. O famoso lema do século XIV,
daquela arrogante instituição — o New College — de Oxford, parece incorporar uma verdade
essencial tanto sobre a história quanto sobre a conduta: os modos fazem o homem.
2. Só restaram suas asas

A prosa convencional da ciência do século XX é curta e seca. Mas nossos antecessores


vitorianos, talvez em harmonia com os enfeites vistosos do exterior de suas casas e as prateleiras de
quinquilharias dentro delas, deleitavam-se com o detalhe e o vagar. Considere-se, por exemplo, esta
descrição longa (mas muito interessante) de amor e morte no louva-a-deus, publicada por L. O.
Howard em 1886:

Alguns dias depois, levei um macho de Mantis carolina a um amigo que vinha mantendo uma
fêmea solitária como mascote. Colocados os dois no mesmo frasco, o macho, alarmado, procurou
escapar. Em poucos minutos, a fêmea conseguiu agarrá-lo. Primeiro, ela lhe arrancou parte do
tarso dianteiro esquerdo e devorou-lhe a tíbia e o fêmur. Em seguida, roeu-lhe o olho esquerdo.
Feito isto, o macho pareceu dar-se conta da proximidade de um indivíduo do sexo oposto e pôs-
se a fazer vãs tentativas de acasalamento. Em seguida, a fêmea comeu-lhe a perna dianteira
direita e depois decapitou-o inteiramente, devorando-lhe a cabeça e pondo-se a morder-lhe o
tórax. Só parou para descansar depois de ter comido todo o tórax do macho, exceto 3 mm.
Durante todo esse tempo, o macho havia persistido em suas vãs tentativas de ganhar acesso às
válvulas da fêmea, o que conseguiu neste momento, quando ela voluntariamente posicionou as
válvulas por sobre o macho, tendo então lugar a união. Ela permaneceu imóvel durante quatro
horas, e os restos do macho apresentaram sinais ocasionais de vida, com o movimento de um ou
outro dos tarsos restantes, durante três horas. Na manhã seguinte, ela se livrara completamente do
cônjuge, e nada havia restado dele, além de suas asas.

Apresento esta passagem não apenas por causa do seu estilo, mas sobretudo por sua substância
— já que ela representa o primeiro relato que conheço de um favorito insuperado dentre os fatos
curiosos da natureza. Nós todos já ouvimos falar de alguns animais que conseguem sobreviver depois
de terem amputadas grandes porções de seus corpos, mas os imaginamos nesse estado tão limitado
apenas vivendo mal e mal, não com as suas habilidades melhoradas. Nosso chavão, “ficar de um
lado para o outro como um frango com a cabeça cortada” (Tradução literal da expressão idiomática. Estar como um
frango com a cabeça cortada significa estar confuso - N.T.), sublinha a sensata suposição de que uma redução na
anatomia acarreta necessariamente uma capacidade reduzida. No entanto, os machos do louva-a-deus
decapitados por uma parceira voraz não apenas continuam o ato de corte e cópula, mas efetivamente
atuam com mais persistência e êxito.
Quero, como de costume, discutir a mensagem maior por trás desta suprema esquisitice, mas o
tratamento adequado exige uma longa digressão, de volta ao próprio Darwin. Portanto, seja paciente
comigo e, por fim, voltaremos aos louva-a-deus e a muito mais daquilo que a literatura biológica
chama “canibalismo sexual’’.
A Descendência do homem é, sem dúvida, o livro mais mal compreendido de Darwin. Muitas
pessoas supõem que ele representa a tentativa de Darwin de encaixar os fatos da evolução humana na
sua perspectiva evolucionária. Mas não existiam quaisquer fatos inequívocos quando ele o publicou
em 1871, pois, além do homem de Neanderthal (uma raça de nossa própria espécie, não um ancestral
ou alguma forma de “elo perdido”), nenhum fóssil humano seria descoberto até a década de 1890.
Mais exatamente, a Descendência do homem é um amplo ensaio sobre a íntima relação biológica
entre os humanos, os grandes símios e os possíveis modos de nossa evolução física e mental a partir
desta ascendência comum. Darwin, entretanto, abominava a especulação; ele nunca escreveu um
tratado puramente teórico. Mesmo a Origem das espécies é um compêndio de fatos que apontam para
uma conclusão convincente. Ele nunca teria escrito um relato não corroborado de como isso poderia
ter ocorrido, não importa o quanto ansiasse por estender a sua perspectiva evolucionária àquilo que
ele certa vez chamou de “a própria cidadela” — a mente humana.
A chave para a Descendência do homem é a sua situação de prefácio relativamente breve para
um grande trabalho em dois volumes, A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo;
Darwin conseguia tecer admiráveis e amplas tapeçarias sobre temas centrais — tanto que muitas
vezes os seus leitores perdem o ponto central no meio de todo o entrelaçamento. Mas todos os seus
livros são soluções de enigmas específicos; o resto, apesar do brilhantismo, é superestrutura. O livro
a respeito dos recifes de coral é sobre a inferência histórica a partir de resultados contemporâneos; o
livro das orquídeas é sobre a adaptação imperfeita baseada em partes disponíveis; o livro das
minhocas é sobre grandes efeitos acumulados por meio de pequenas mudanças sucessivas (ver o
ensaio 9 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes). Mas porque adorava as minúcias, Darwin conta mais do
que você quer saber sobre como os insetos fertilizam as orquídeas e como as minhocas puxam
objetos para dentro de suas tocas — e você facilmente perde o âmago da questão, o paradoxo, o
germe de um problema que deu início à edificação inteira.
A Descendência do homem é um prefácio para um tal problema. Em 1871, doze anos após a
Origem das espécies, Darwin não precisava mais convencer as pessoas de boa vontade e
flexibilidade mental de que a evolução havia ocorrido; essa batalha fora vencida. Mas como a
evolução funciona, que tipo de mundo habitamos, e como podemos saber? A mensagem radical de
Darwin achava-se na sua asserção de que as belezas e a harmonia da natureza são todas subprodutos
de um processo primário chamado seleção natural: os organismos lutam para conseguir maior
sucesso reprodutivo pessoal — no jargão moderno, lutam para transmitir mais dos seus genes às
futuras gerações (já que não podem preservar os seus corpos) — e isso é tudo. Nada de leis
supremas sobre o bem das espécies ou dos ecossistemas, nenhum regulador sábio e vigilante nos
céus — apenas organismos lutando.
Mas como podemos saber que o mundo é regulado pela seleção natural e não por algum outro
princípio evolucionário? A resposta de Darwin é brilhante, paradoxal e geralmente mal
compreendida. Não fundamente o seu argumento, aconselha ele, no que poderia ser a expressão mais
refinada de seleção — as belas adaptações, projetadas do melhor modo possível, dos organismos
aos seus ambientes: a perfeição aerodinâmica da asa de um pássaro ou a beleza hidrodinâmica de um
marlim. Pois o modelo anatômico bom é a expectativa da maior parte das teorias evolucionárias
(aliás, também do criacionismo). Não há nada distintamente darwiniano na perfeição. Em vez disso,
procure pelas singularidades e imperfeições que só ocorrem se a seleção baseada no sucesso
reprodutivo dos indivíduos — e não em algum outro mecanismo evolucionário — traçar o caminho
da evolução.
A maior classe de tais singularidades inclui aquelas estruturas e hábitos que visivelmente
comprometem o bom modelo anatômico dos organismos (e o sucesso final das espécies) mas que, de
modo igualmente óbvio, aumentam a habilidade reprodutiva dos indivíduos que as têm como atributo.
(Meus exemplos favoritos são as plumas da cauda dos pavões e os enormes e embaraçosos chifres
dos alces gigantes (Megaloceros hibernicus, grande mamífero artiodáctilo extinto, cujos fósseis foram encontrados na Irlanda, na
Dinamarca, na Itália e na Sibéria. A galhada do animal chegava a medir três metros e meio de ponta a ponta - N.T.), ambas
adaptações na luta dos machos para conseguirem acesso às fêmeas ou serem aceitos por elas mas
que, sem dúvida, não contribuem para uma boa adaptação no sentido biomecânico). Nosso mundo
está repleto de formatos e comportamentos peculiares que seriam desprovidos de sentido, se não
funcionassem apenas para promover a vitória no grande jogo de acasalamento e reprodução. Nenhum
outro mundo, a não ser o de Darwin, encheria a natureza de tais curiosidades que estorvam a boa
adaptação, mas que trazem sucesso naquilo que realmente importa no universo de Darwin —
transmitir mais genes às gerações futuras.
Darwin percebeu que a seleção natural no seu sentido usual — adaptação progressiva a
ambientes em mudança — não explicaria esta grande classe de características desenvolvidas ao
longo da evolução para assegurar benefícios puramente reprodutivos para os indivíduos. Portanto,
ele batizou um processo paralelo, a seleção sexual, para explicar esta evidência crucial. Ele
argumentava que a seleção sexual poderia operar por meio de combate entre machos ou então
escolha da parte das fêmeas: no primeiro caso, para produzir armas e instrumentos de exibição de
porte exagerado; no segundo caso, para encorajar o desenvolvimento desses adornos e atitudes
elaboradas que chamam a atenção e induzem a aceitação (o rouxinol não canta para o nosso deleite).
Os humanos entram na história neste ponto. Por que Darwin escolheu o seu longo e detalhado
tratado sobre seleção sexual para abrigar o seu prefácio, bem menor, sobre a Descendência do
homem? Mais uma vez a resposta se acha no fascínio de Darwin por enigmas específicos e pela
contribuição dada pela resolução desses enigmas para a solução da questão maior. A Descendência
do homem tem sua base em um problema particular de variação racional humana; não é um tratado
pomposo e sem sentido sobre generalidades. Nós podemos, argumenta Darwin, compreender algumas
diferenças raciais, a cor da pele, por exemplo, como adaptações convencionais ao meio ambiente (a
pele de cor escura foi desenvolvida, por diversas vezes, de modo independente, e sempre em climas
tropicais). Mas com certeza não podemos afirmar que todas as pequenas e sutis diferenças entre as
pessoas — variações menores, mas estáveis em feitio e forma, de narizes e orelhas ou de textura do
cabelo — têm sua origem naquilo que o meio ambiente ordena. Argumentar, por meio de fabulações
engenhosas, que cada nuance insignificante de modelo anatômico é realmente uma configuração ótima
para circunstâncias locais seria fazer uma caricatura vulgar da seleção natural (embora alguns
devotos fanáticos continuem a promover este parecer. Certa vez, um proeminente evolucionista
sugeriu-me seriamente que as línguas eslavas são cheias de consoantes porque é melhor que as bocas
fiquem fechadas em climas frios, ao passo que o havaiano tem pouca coisa além de vogais porque o
ar saudável das ilhas oceânicas deve ser sorvido e saboreado). Como foi, então, se não pela seleção
natural comum, que se originaram estas pequenas e sutis, mas generalizadas diferenças raciais?
Darwin propôs — e acho que ele está, em boa parte, certo — que diferentes padrões de beleza
surgem por motivos caprichosos entre os vários e antigamente isolados grupos de humanos que
habitam os extremos do nosso mundo. Essas diferenças — uma inclinação de nariz aqui, pernas mais
magras ali, um encrespamento de cabelo acolá — são então acumuladas e intensificadas pela seleção
sexual, já que os indivíduos acidentalmente dotados com características favorecidas são mais
procurados e, portanto, melhor sucedidos na reprodução.
Olhe para a organização da Descendência do homem e você perceberá que é este argumento, não
as generalidades, que constitui o foco do livro. O livro começa com um panorama geral de umas 250
páginas, todas apontando para um capítulo final sobre as raças humanas e uma apresentação do
paradoxo central na última página.

Até agora tivemos frustradas todas as nossas tentativas de explicar as diferenças entre as raças
do homem; mas resta uma agência importante, a saber, a Seleção Sexual, que parece ter atuado
poderosamente sobre o homem, assim como sobre vários outros animais... Para expor este tema
de modo apropriado, julguei necessário passar em revista o reino animal inteiro.

Darwin tem agora o ponto de apoio para o verdadeiro cerne de seu livro, e ele gasta mais do
dobro do espaço, as quinhentas páginas seguintes, num relato minucioso da seleção sexual em grupo
após grupo de organismos. Finalmente, nos três capítulos finais, ele volta à variação racial humana e
completa a sua solução do paradoxo atribuindo nossas diferenças primariamente à seleção sexual.
A seleção sexual foi às vezes considerada como um contraste ou conflito com a seleção natural,
mas tal interpretação distorce o parecer de Darwin. A seleção sexual é a mais refinada confirmação
que temos de seu princípio central, o de que a luta dos indivíduos pelo sucesso reprodutivo dirige a
evolução — uma noção que a seleção natural não confirma adequadamente porque os seus produtos
também são os resultados de outras teorias evolucionárias (e também, no que diz respeito à
modelagem anatômica ótima, do próprio criacionismo). A prova de que o nosso mundo é darwiniano
encontra-se no grande conjunto de adaptações que surgem apenas porque aumentam o sucesso
reprodutivo mas que, quanto ao mais, estorvam os organismos e prejudicam as espécies. Se pode
suplantar com tanta frequência outros níveis e formas de vantagem, a seleção darwiniana para o
sucesso reprodutivo deve ser extraordinariamente poderosa.
Podemos agora retomar ao repasto de sangue do louva-a-deus durante o acasalamento. Certa vez,
W. H. Auden, demonstrando uma grande compreensão de nossas vidas, escreveu que o amor e a
morte são os únicos temas dignos da atenção da literatura. Eles são realmente os focos do mundo de
Darwin, um universo de luta pela sobrevivência e pela continuidade. Mas devem eles ser
associados? À primeira vista, nada parece mais absurdo, mais em desarmonia com qualquer noção
de ordem ou vantagem, que o sacrifício da vida por uma cópula. No mundo de Darwin, um macho
não deve sobreviver para se acasalar outra vez? Não necessariamente, caso esteja destinado a uma
vida curta e, de qualquer modo, com pouca probabilidade de se acasalar de novo, e caso os seus
“preciosos fluidos corpóreos” (para citar a linha imortal do Dr. Fantástico) venham a fazer uma
grande diferença na nutrição dos ovos fertilizados por seu esperma dentro da sua antiga parceira e
atual executora.
Afinal, o seu corpo é apenas bagagem darwiniana. Ele não pode ser transmitido à geração
seguinte; o seu patrimônio jaz, de modo absolutamente literal, no DNA do seu esperma. Assim, o
canibalismo sexual deveria ser um exemplo principal da razão pela qual vivemos num mundo
darwiniano — uma curiosidade clássica, um aparente absurdo, tornado sensato pela proposição de
que a evolução diz respeito fundamentalmente à luta entre organismos pela continuidade genética.
Mas os indícios são satisfatórios? (E agora devo preveni-los — já que este pode vir a ser o mais
intrincado ensaio que já escrevi — de que este argumento perfeitamente razoável a favor do
darwinismo tem atualmente, pela minha avaliação, bem pouco fundamento. No entanto, uma
interpretação alternativa, por um motivo diferente, afirma algo ainda mais fundamental sobre o
darwinismo e sobre a natureza da própria história. Francamente, enquanto estou no confessionário,
devo admitir que iniciei a pesquisa para este ensaio convencido de que um argumento tão adorável e
sensato a favor da seleção sexual provaria ser válido, e me vi bastante surpreso com a escassez de
indícios. Eu também me recuso terminantemente a evitar um tema porque ele é difícil. O mundo não é
simples, e uma restrição dos escritos de caráter geral a fatos nítidos e sem controvérsia transmite
uma falsa impressão de como a ciência opera e de como funciona o nosso mundo.)
Um número recente do American Naturalist, uma das três principais publicações de biologia
evolucionária dos Estados Unidos, publicou um artigo de R. E. Buskirk, C. Frohlich e K. G. Ross, “A
seleção natural do canibalismo sexual” (ver Bibliografia). Eles desenvolvem um modelo matemático
para demonstrar que o sacrifício voluntário da vida a uma parceira fecundada será darwinianamente
vantajoso para o macho caso ele tenha pouca expectativa de acasalamento subsequente e caso o valor
alimentar do seu corpo venha a fazer uma diferença substancial no desenvolvimento e na criação
bem-sucedidos da sua prole. O modelo faz sentido, mas a natureza irá corroborá-lo apenas se
pudermos demonstrar que tais machos promovem ativamente a sua própria destruição. Caso eles
tentem fugir como desesperados depois do acasalamento e ocasionalmente sejam apanhados e
comidos por uma fêmea voraz, então não poderemos afirmar que a seleção sexual promoveu
diretamente esta estratégia de sacrifício final em benefício da continuidade genética.
Buskirk, Frohlich e Ross são francos ao afirmar que o canibalismo sexual é não apenas raro em
geral, como também muito menos comum quanto outros estilos de consumo de parentes próximos
(como irmão por irmão ou mãe pela prole; ver ensaio 10 em Darwin e os grandes enigmas da vida
[Ever Since Darwin] e ensaio 6 em O polegar do panda [The Panda’s Thumb], Existem exemplos
documentados apenas para artrópodes (insetos e semelhantes), e apenas umas trinta espécies foram
implicadas (embora o fenômeno possa ser bastante comum entre aranhas). Eles citam três exemplos
como os melhores casos.
1. O louva-a-deus fêmea (Mantis religiosa e várias espécies aparentadas) ataca qualquer coisa
que se mova e seja menor que ela. Como os machos são menores que as fêmeas em quase todos os
insetos, e como o acasalamento exige proximidade, o louva-a-deus macho tornase um alvo principal.
Em sua dissertação clássica de 1935 (ver Bibliografia), K. Roeder escreve: “Todos os relatos
concordam quanto à ferocidade da fêmea e à sua tendência para capturar e devorar o macho em
qualquer tempo, seja durante a corte, seja após a cópula... A fêmea pode agarrar e comer o macho
como o faria com qualquer outro inseto.”
O macho, portanto, acerca-se do acasalamento exatamente como diz a resposta daquela velha e
terrível piada sobre como os porcos- espinhos fazem o negócio: com muito cuidado. Ele se aproxima
vagarosamente, tentando a todo custo manter-se fora da linha de visão da fêmea. Se a fêmea se volta
em sua direção, ele se imobiliza — pois os louva-a-deus ignoram qualquer coisa que não se mova.
Roeder escreve: “Tão extrema é essa imobilidade, que se o macho estiver erguendo uma perna
quando primeiro perceber a fêmea, ele a manterá suspensa no ar durante algum tempo, e muitas
posições curiosas podem ser observadas.” Assim, o macho continua a se aproximar como uma
criança participando daquele jogo de rua, a “batatinha frita” — avançando quando a sua adversária e
parceira potencial desvia os olhos, imobilizando-se imediatamente quando ela olha ao redor (embora
o castigo por algum movimento percebido seja a morte, e não um retorno à linha de partida). Se o
macho conseguir se esgueirar até uma distância de onde possa alcançá-la com um pulo, ele dá um
salto decisivo para cima da fêmea. Se errar vira comida de louva-a-deus; se acertar consegue o
summum bonum darwiniano de representação potencial na geração seguinte. Após o acasalamento,
ele se deixa cair para tão longe quanto possível e trata de se safar correndo.
Até aqui, a história não parece muito um conto de conspiração ativa do macho pela sua própria
morte — a exigência, lembrem-se, por favor, necessária ao argumento de que os machos são
diretamente selecionados para o canibalismo sexual. Talvez os machos estejam simplesmente fazendo
o diabo para escapar, mas nem sempre o consigam. O ponto forte do argumento é inerente àquela
grande curiosidade mencionada no início deste ensaio: os machos decapitados têm desempenho
sexual melhor que o de seus irmãos intactos. Roeder até mesmo descobriu o fundamento neurológico
para esta situação peculiar. Boa parte do comportamento dos insetos é “prefixado”, bem diferente da
flexibilidade de nossas ações (e um motivo básico pelo qual os modelos sociobiológicos para
formigas funcionam tão mal para os humanos). Os movimentos copulatórios são controlados por
nervos do último gânglio abdominal (perto da extremidade posterior). Uma vez que executar esses
movimentos copulatórios continuamente seria inconciliável com o funcionamento normal dos machos
(além de indecoroso), eles são suprimidos por centros inibidores localizados no gânglio
subesofagiano (perto da cabeça). Quando uma fêmea come a cabeça de seu parceiro, ela ingere o
gânglio subesofagiano, e, assim, nada resta que possa inibir os movimentos copulatórios. O que
sobra do macho atua agora como uma máquina de acasalamento de funcionamento ininterrupto. Ele
tenta cobrir qualquer coisa — um lápis, por exemplo — que apenas vagamente possua o tamanho e o
formato apropriados. Com alguma frequência, ele encontra a fêmea e consegue fazer de sua morte
vindoura a antítese darwiniana daquilo que Sócrates chamava “um estado de nada”.
2. Uma viúva-negra faminta também é uma formidável máquina de comer, e os machos têm de ser
muito prudentes durante a corte.
Ao entrar na teia de uma fêmea, o macho dá tapinhas e puxões nos fios de seda. Se a fêmea ataca,
o macho bate em retirada rapidamente ou sai voando suspenso no seu próprio fio. Se a fêmea não
reage, o macho se aproxima devagar e cautelosamente, e corta, afinal, a teia da fêmea em vários
pontos estratégicos, reduzindo desse modo as suas chances de fuga ou ataque. Muitas vezes, o macho
lança vários fios de seda ao redor da fêmea, formando o que é chamado, inevitavelmente, acho eu, de
o “véu de noiva”. Os fios não são fortes, e a fêmea, de tamanho maior, certamente poderia rompê-los,
mas ela em geral não o faz, e a cópula, como gostam de dizer na literatura técnica, “tem então lugar”.
O macho, favorecido com órgãos duplos para a transferência de espermatozoides, insere um palpo, e
depois, se não for atacado pela fêmea, insere o outro. Fêmeas famintas podem então devorar os seus
parceiros, concretizando a expressão de duplo sentido de uma consumação a ser fervorosamente
desejada.
O argumento a favor da seleção direta do canibalismo sexual reside em dois fenômenos
intrigantes da corte. Primeiro, a ponta do palpo do macho geralmente se parte durante a cópula e
permanece dentro da fêmea. Os machos, tornados assim incompletos, podem não ser capazes de se
acasalar de novo; se for este o caso, eles se tornam nulidades darwinianas, próprios para serem
eliminados. (Uma especulação interessante identifica esta ponta quebrada como uma “tampa de
acasalamento” selecionada para impedir a entrada subsequente do esperma de algum outro macho.
Tais cintos naturais de castidade post factum são comuns, e de construção variada no mundo dos
insetos, e dariam um tema interessante para um futuro ensaio sobre, o mesmo problema, o de por que
a seleção identifica o nosso mundo evolucionário como darwiniano). Segundo, os machos
demonstram bem menos sofreguidão e prudência para dar o fora depois do fato do que demonstraram
ao se aproximar. K. Ross e R. L. Smith escrevem (ver Bibliografia): “Os machos que conseguiram
executar a inseminação deixaram- se ficar nas proximidades de suas parceiras ou então se afastaram
calmamente. Este comportamento estava em nítido contraste com a cautela inicial de aproximação e
das estratégias de fuga, características dos machos antes da inseminação.”
3. As fêmeas do escorpião do deserto Paruroctonus mesaensis são extremamente vorazes e
comem qualquer coisa pequena o suficiente que possam detectar. “Qualquer objeto móvel, dentro da
amplitude de tamanho apropriada, é atacado sem discriminação.” (G. A. Polis e R. D. Farley, ver
Bibliografia.) Como os machos são menores que as fêmeas, eles se tornam alvos excelentes, sendo
consumidos com avidez. Essa voracidade indiscriminada representa um problema considerável para
o acasalamento, o qual, como de costume, requer uma certa intimidade espacial. Os machos
desenvolveram, portanto, um elaborado ritual de acasalamento, em parte para suprimir o apetite
normal da fêmea.
O macho inicia uma série de movimentos de agarrar e apalpar com as suas quelíceras (pinças
menores), e depois prende aquela (pinça maior) da fêmea com a sua e executa a celebrada
promenade à deux, uma “dança” recíproca e simétrica, bonitinha como qualquer coisa que você
possa ver no Arthur Murray. Esses escorpiões não inseminam as fêmeas diretamente, inserindo um
pênis, mas, mais exatamente, depositam um espermatóforo (um pacote de esperma) que a fêmea deve
colocar dentro do corpo. Assim, o macho conduz a fêmea na promenade até encontrar um local
adequado. Ele deposita o espermatóforo, em geral sobre um galhinho ou graveto, depois golpeia a
fêmea ou até mesmo lhe dá uma ferroada, desvencilha-se e corre para salvar a vida. Se a fortuna lhe
sorrir, a fêmea permitirá que ele fuja e dará devida atenção à tarefa de inserção do espermatóforo.
Mas, em dois casos, dentre mais de vinte, Polis e Farley observaram a fêmea empenhada em devorar
o parceiro, enquanto o espermatóforo permanecia sobre um graveto próximo, provavelmente para
ingestão posterior através de um orifício diferente.
Que evidências, então, estes casos fornecem a favor da seleção do canibalismo sexual entre
machos? Para sua continuidade genética, os machos oferecem ativamente os seus próprios corpos (ou
se submetem passivamente à destruição) em benefício do cuidado e da alimentação dos ovos
fertilizados? Nestes casos, encontro poucos indícios convincentes para tal fenômeno, e me pergunto
se ele existe mesmo — embora o argumento viesse a fornecer uma excelente explanação de uma
curiosidade que não faz muito sentido a menos que o mundo evolucionário trabalhe em prol do
sucesso reprodutivo dos indivíduos, como afirma o darwinismo.
A história do escorpião, apesar de sua menção entre os melhores casos, não fornece evidência
alguma. Ao ler Polis e Farley, percebo apenas que os machos fazem o possível para escapar após a
cópula e que o conseguem na grande maioria dos casos (apenas dois fracassaram). Na verdade, o seu
comportamento de acasalamento, tanto antes quanto depois, parece ter como intuito evitar a
destruição, não cortejá-la. Primeiro, eles desativam os instintos agressivos das fêmeas através de
marchas e toques. Depois, ele bate e foge. Que uns poucos fracassem e sejam devorados apenas
reflete as inevitáveis possibilidades de acidente de qualquer jogo perigoso.
As viúvas-negras e os louva-a-deus têm mais a oferecer à teoria de seleção direta, confirmando a
destruição entre machos. As aranhas parecem tão cautelosas quanto os escorpiões antes, mas bem
apáticas depois, fazendo poucas tentativas, quando o fazem, para escapar da teia da fêmea. Além
disso, se a tampa de acasalamento que eles deixam na fêmea lhes impede qualquer transmissão futura
de herança, então eles serviram plenamente ao seu propósito darwiniano. Quanto aos louva-a-deus, o
desempenho melhor de um macho sem cabeça poderia indicar que sexo e morte foram ativamente
relacionados pela seleção. No entanto, em ambos os casos, outras observações tornam mais que
ambígua qualquer evidência a favor da seleção ativa nos machos.
Na condição de problema maior tanto para os louva-a-deus quanto para as aranhas, não temos
nenhuma evidência satisfatória sobre a frequência do canibalismo sexual. Se ele ocorresse sempre ou
pelo menos com frequência, e se o macho nitidamente não resistisse e deixasse acontecer, então eu
me convenceria de que este fenômeno aceitável existe. Mas se ele ocorre raramente e representa um
simples fracasso de fuga, então ele é um subproduto de outros fenômenos, não um traço selecionado
em si. Não tenho como encontrar dados sobre a porcentagem de machos devorados após o
acasalamento na natureza ou mesmo nas condições insatisfatórias e artificiais de um laboratório.
Quanto aos louva-a-deus, não encontro nenhum indício de cumplicidade do macho para a sua
própria destruição. Os machos são cautelosos antes e ansiosos para fugir depois. Mas a fêmea é
grande e voraz; ela não faz qualquer distinção entre um louva-a-deus menor e qualquer outra presa
que se mova. Quanto ao fato curioso do melhor desempenho em machos decapitados, simplesmente
não sei o que dizer. Poderia ser uma adaptação direta para a combinação de sexo e morte, mas, na
ausência de indícios, outras interpretações fazem tanto sentido quanto esta. O comportamento
prefixado deve ser programado de alguma maneira. Talvez o sistema de inibição por meio de um
gânglio na cabeça e de ativação por um perto da cauda tenha se desenvolvido em uma linhagem
ancestral bem antes que o canibalismo sexual surgisse entre os louva-a-deus. Talvez ele já existisse
quando as fêmeas desenvolveram seu apetite indiscriminado. Ele seria então eleito, não ativamente
selecionado, para o seu papel útil no canibalismo sexual. Afinal, o mesmo sistema age também nas
fêmeas, embora o seu comportamento não sirva a nenhuma função evolucionária conhecida.
Decapitem um louva-a-deus fêmea, e o comportamento sexual, inclusive a postura de ovos, também
será desencadeado. Caso alguém queira argumentar dizendo que o sistema deve ter sido
desenvolvido ativamente porque a fêmea tende a comer primeiro a parte do macho que desencadeia a
sexualidade, ofereço como réplica um bocadinho de biologia em seu aspecto mais elementar: as
cabeças ficam na frente e são a primeira coisa que a fêmea vê quando o macho se aproxima.
A história da viúva-negra também é frágil. Os machos podem não tentar fugir após o
acasalamento, mas será que isso é uma adaptação ativa em prol de sua morte ou uma reação
automática à verdadeira adaptação — a quebra do órgão sexual e a deposição de uma tampa de
acasalamento na fêmea (pois tal ferimento poderia enfraquecer o macho e explicar a sua subsequente
prostração)? Além disso, os machos de viúva-negra são minúsculos em comparação com as suas
parceiras — apenas uns 2% do peso da fêmea. Uma refeição tão pequena vai fazer muita diferença?
Por fim, e mais importante, qual a frequência com que a fêmea come esta refeição disponível? Se ela
sempre comesse o macho exaurido após o acasalamento, eu ficaria mais convencido. Mas alguns
estudos indicam que o canibalismo sexual pode ser raro, ainda que nitidamente disponível como
opção para as fêmeas. Curiosamente, vários artigos relatam que os machos muitas vezes ficam na teia
da fêmea até morrer, com frequência por duas semanas ou mais, e que as fêmeas os deixam em paz.
Ross e Smith, por exemplo, observaram apenas um caso de canibalismo sexual e escreveram: “Dos
machos observados que conseguiram inseminar uma fêmea, apenas um foi comido pela parceira
imediatamente após o acasalamento. Contudo, vários foram posteriormente encontrados mortos nas
teias de suas parceiras.”
Por que, então, diante dessa perturbadora falta de evidências, a nossa literatura está repleta de
comentários sobre o óbvio bom senso evolucionário do canibalismo sexual? Por exemplo: “Sob
algumas condições, a seleção deveria favorecer o consumo dos machos pelas suas parceiras. A sua
probabilidade de ser vítima de canibalismo deveria ser diretamente proporcional à expectativa futura
de reprodução do macho.” Ou, “machos bem-sucedidos serviriam melhor os seus interesses
biológicos apresentando-se a suas parceiras como uma refeição pós-nupcial”.
Neste hiato entre esperança razoável e evidência concreta, vemo- nos face a face com um
preconceito típico do darwinismo moderno. A teoria darwiniana diz respeito fundamentalmente à
seleção natural. Não contesto esta ênfase, mas creio que, ao tentarmos atribuir todas as formas e
comportamentos significativos à sua ação direta, tornamo-nos excessivamente ardorosos quanto ao
poder e ao alcance da seleção. Neste jogo darwiniano, nenhum prêmio é mais doce do que uma
interpretação selecionista bem-sucedida para fenômenos que parecem desprovidos de sentido para
nossa intuição. Se a seleção rege o nosso mundo, como um macho poderia se tornar um repasto de
sangue após o acasalamento? Porque, desse modo, em certas circunstâncias, ele aumenta o seu
sucesso reprodutivo, respondem os nossos devotados se- lecionistas.
No entanto, outro princípio evolucionário fundamental, se bem que muitas vezes esquecido, em
geral intervém e impede qualquer adaptação ótima entre organismo e ambiente imediato — os
estranhos, tortuosos e irresistíveis caminhos da história. Os organismos não são pedaços de massa
diante de um ambiente que os modela ou então bolas diante do taco de bilhar da seleção natural. As
suas formas e comportamentos herdados impõem limitações e fazem recuar; eles não podem ser
transformados rapidamente num novo ótimo absoluto toda vez que o ambiente muda.
Toda mudança adaptativa traz consigo uma série de consequências, algumas, por sorte, eleitas
para uma vantagem posterior, outras não. Algumas fêmeas grandes desenvolvem uma voracidade
indiscriminada por motivos próprios, e alguns machos sofrem as consequências, apesar de sua
corrida para fugir. Modelos desenvolvidos por um motivo (ou por nenhum motivo) têm outras
consequências, algumas delas eventualmente úteis. Machos de louva-a-deus podem se tornar
maravilhas sem cabeça; machos de viúva-negra permanecem na teia da fêmea. Ambos os
comportamentos podem ser úteis, mas não temos nenhuma evidência de que algum deles tenha
surgido através de seleção ativa em prol do sacrifício do macho. O canibalismo sexual com
cumplicidade ativa do macho deveria ser favorecido em vários grupos (pois é comum encontrar
condições de oportunidade limitadas ao período após o acasalamento e de comida útil), mas ele
raramente chegou a ser desenvolvido, se é que o foi. Perguntem por que não o vemos onde ele
deveria ocorrer; não fiquem simplesmente maravilhados com a sabedoria da seleção em uns poucos
casos possíveis. A história muitas vezes impossibilita a oportunidade útil; o caminho da explicação
não é sempre esse. As fêmeas podem não ser suficientemente vorazes, ou podem ser menores que os
machos, ou tão limitadas em flexibilidade comportamental a ponto de não conseguirem desenvolver
um sistema capaz de suprimir uma inibição geral contra o canibalismo só após o acasalamento e só
para com o macho.
Nosso mundo não é um mundo absolutamente ótimo, minuciosamente regulado por forças de
seleção onipotentes. Ele é uma massa caprichosa de imperfeições, funcionando razoavelmente bem
(muitas vezes de modo admirável); um conjunto de adaptações de uso temporário, construído com
partes curiosas, tornadas disponíveis por histórias passadas, em diferentes contextos. Darwin, que
era um arguto estudioso da história e não apenas um devoto da seleção, compreendia este princípio
como a prova principal da própria evolução. Um mundo adaptado de modo absolutamente ótimo a
meios ambientes presentes é um mundo sem história, e um mundo sem história poderia ter sido criado
tal como o encontramos. A história faz diferença; ela frustra a perfeição e prova que a vida atual
transformou o seu próprio passado. Em sua famosa dissertação sobre as idades do homem — “O
mundo todo é um palco” — Jaques, em Asyou like it, discorre sobre “esta estranha história cheia de
acontecimentos”. Que se respeite o passado e se informe o presente.

Pós-escrito

À luz de minhas dúvidas sempre crescentes sobre a existência do canibalismo sexual (apesar da
sua plausibilidade na teoria) — como ficou patente na própria odisseia pessoal do presente ensaio
— fiquei deliciado com um relatório do encontro anual de 1984 da Sociedade de Neurociência. E.
Liske, da Alemanha Ocidental, e W. J. Davis, da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz,
filmaram e analisaram o comportamento de acasalamento de dúzias de louva-a-deus chineses.
Nenhuma fêmea decapitou ou comeu um macho. Em vez disso, a análise de quadro por quadro
revelou uma série complexa de comportamentos, aparentemente destinados (pelo menos em parte) à
supressão da voracidade natural das fêmeas. O comportamento masculino inclui fixação visual,
oscilação das antenas, aproximação vagarosa, a flexão repetida do abdômen, e finalmente um salto
sobre o dorso da fêmea. Liske e Davis sugerem que os relatos anteriores de decapitação podem
representar o comportamento aberrante de espécimes cativos (embora o canibalismo possa ainda ser
o comportamento normal em outras variedades ou espécies, que não as estudadas por Liske e Davis.
Dada a propensão da natureza pela diversidade, não existe algo que se possa chamar de o louva-a-
deus). De qualquer forma, estou ainda mais convencido de que o canibalismo sexual é um fenômeno
sem exemplos provados, e que os motivos para a sua raridade (ou inexistência) constituem um tema
bem mais interessante (e um deslocamento apropriado de ênfase) que aquele que primeiro inspirou a
minha pesquisa para o ensaio — motivos mesmo para a suposta (e agora dúbia) existência.
Eu afirmo com frequência que o melhor teste para as lendas é o grau com que elas se infiltram na
cultura popular. Em Sherlock Holmes and the Spider Woman (1944) — um dos inumeráveis, e no
entanto maravilhosos, anacronismos Rathbone-Bruce, que atiram Holmes contra Hitler e inimigos
sortidos —, Holmes desmascara um entomologista poseur (e assassino do verdadeiro cientista)
detectando várias falácias sutis de sua linguagem. O impostor chama terrários de ‘ ‘jaulas de vidro”,
mas ele realmente se trai é quando fala de viúvas-negras: “Disseram-me que elas comem os seus
parceiros.” Holmes responde: “Você disse que lhe contaram que as viúvas-negras comem os seus
parceiros. Qualquer cientista saberia disso. ” Vou ficar esperando pela próxima atualização (quem
anda interpretando Charlie Chan ultimamente?).
3. Sexo e tamanho

Quando eu tinha oito anos e colecionava conchas em Rockaway Beach, adotei uma abordagem
funcional mas não-lineana de taxonomia, classificando as minhas presas como “normais”,
“incomuns” e “extraordinárias”. Minha favorita era o crepidópode comum, embora ele se
enquadrasse na categoria dos normais devido à sua ubiquidade. Eu adorava a sua amplitude de
formatos e cores, e a bolsa inferior que servia de abrigo para o animal. Meu encanto transformou-se
em fascinação alguns anos depois, quando eu entrava na puberdade e começava, ao mesmo tempo, a
estudar um pouco de taxonomia lineana. Aprendi o seu nome correto, Crepidula fornicata — um
estímulo garantido para a curiosidade. Como fora o próprio Lineu quem batizara essa espécie
particular, fiquei assombrado diante da libido desenfreada do pai da taxonomia.
Ao tomar conhecimento dos hábitos da C. fornicata, fiquei convencido de que encontrara a chave
para o seu curioso nome. Pois o crepidópode forma amontoados, os menores empilhados sobre os
maiores, que muitas vezes reúnem uma dúzia de conchas ou mais. Os animais menores do topo são
invariavelmente machos, e os maiores que servem de suporte em baixo são sempre fêmeas. E caso
você suspeite que os machos do ápice poderiam estar restritos a uma vida de homossexualidade
compulsória em virtude de sua separação da primeira fêmea grande, não tema. O pênis do macho é
bem maior que o seu corpo inteiro e pode se esgueirar facilmente por entre alguns machos para
alcançar as fêmeas. Crepidula fornicata mesmo; um amontoado erótico.
Então, para completar a desapontadora histórica, descobri que o nome nada tinha a ver com sexo.
Lineu descrevera a espécie a partir de exemplares isolados em gavetas de museus; ele nada sabia
sobre o seu hábito peculiar de se amontoarem umas sobre as outras. Fornix significa “arco” em
latim, e Lineu escolheu o nome levando em consideração o seu formato levemente abobadado (Descobri
depois que a história não é tão desapontadora e unidirecional [do significado ostensivo para a coincidência] quanto eu concluíra ao
escrever o ensaio. A história linguística oferece uma explicação de formação regressiva de palavra, de arcos morfológicos para sexo.
'Em A Browser’s Dictionary [Harper and Row, 1980]), John Ciardi relata: “... porque os romanos usavam... arcos de tijolos nas partes
subterrâneas de grandes construções, e porque os pobres e as prostitutas de Roma viviam em tais subterrâneos... os primeiros autores
cristãos produziram o verbo fornicari, frequentar prostíbulos. As prostitutas de Pompéia trabalhavam em cubículos de pedra similares).
Finalmente, alguns anos depois, o desapontamento cedeu lugar a um interesse renovado, quando
soube dos detalhes da sexualidade da Crepidula e julguei a história mais intrigante do que nunca,
mesmo depois do nome convidativo. A Crepidula é um animal que muda de sexo naturalmente, um
hermafrodita sequencial no nosso jargão. Os jovens pequenos atingem a maturidade primeiro como
machos e depois, à medida que vão crescendo, tornam-se fêmeas. Os animais intermediários no meio
do amontoado de Crepidula estão geralmente no processo de mudança de macho para fêmea.
O sistema funciona ordenamente para todos os elementos envolvidos. A C. fornicata tende a
habitar áreas relativamente lamacentas, mas tem de encontrar um substrato sólido para se fixar. O
membro fundador de um amontoado adere a uma rocha ou concha velha. Elaine Hoagland, num
exaustivo estudo das mudanças de sexo da Crepidula (ver Bibliografia), observou que estes
fundadores podem então atrair ativamente larvas planctônicas à medida que elas se metamorfoseiam
e começam a descer — presumivelmente por meio de algum chamariz químico, ou feromônio. Ela
colocou seis recipientes com substratos apropriados de rochas e conchas: três já ocupados por
Crepidulas adultas e três sem o molusco vivo. Os recipientes que continham adultos atraíram 722
jovens, enquanto apenas 232 desceram sobre território não-ocupado. O membro fundador cresce e
torna-se fêmea dentro de pouco tempo, enquanto o jovem de cima torna-se automaticamente um
macho. A união permanece estável durante algum tempo, mas por fim o macho cresce e se transforma
em fêmea. O par de fêmeas pode então atrair outras Crepidulas, que se tornam machos bem
abastecidos. O amontoado cresce, sempre mantendo um amplo número e coeficiente de machos e
fêmeas.
Este curioso sistema fornece um exemplo particularmente interessante de um fenômeno geral na
natureza. A mudança de sexo pode ocorrer em uma ou em outra direção (ou em ambas) durante o
crescimento, de macho para fêmea ou de fêmea para macho. Ambos os fenômenos ocorrem, mas o
padrão da Crepidula, de macho primeiro e fêmea depois, chamado protandria (ou macho primeiro) é
decididamente o mais comum. (As criaturas que são primeiro fêmeas e depois machos são
protogínicas, ou fêmea primeiro.) A protandria parece representar o caminho preponderante de
mudança de sexo, sendo a protoginia um fenômeno mais raro desenvolvido sob circunstâncias
especiais (mas não particularmente incomuns). Por que deve ser assim?
A resposta mexe com um de nossos velhos preconceitos e extrapolações falsas que estendemos a
toda a natureza a partir dos animais que conhecemos melhor, nós mesmos e outros mamíferos.
Pensamos nos machos como grandes e fortes, nas fêmeas como menores e mais fracas, quando o
padrão inverso prevalece em toda a natureza — os machos são geralmente menores que as fêmeas, e
por bons motivos, a despeito dos humanos e da maioria dos outros mamíferos. O espermatozoide é
pequeno e barato, facilmente produzido em grandes quantidades por criaturas pequenas. Um
espermatozoide é pouco mais que um núcleo de DNA nu com um sistema de distribuição. Por outro
lado, os óvulos têm de ser maiores, já que fornecem o citoplasma (todo o resto da célula) com
mitocôndrias (ou usinas de energia), cloroplastos (para fotossintetizadores), e todas as outras partes
de que um zigoto precisa para iniciar o processo de crescimento embrionário. Além disso, os óvulos
em geral fornecem a substância nutriente inicial, ou comida para o embrião em desenvolvimento. Por
fim, as fêmeas geralmente executam as tarefas de cuidado básico, retendo os ovos dentro do corpo
durante algum tempo ou guardando- os após a postura. Por todos esses motivos, na maioria das
espécies animais, as fêmeas são maiores que os machos.
Esse sistema pode ser suplantado quando os machos desenvolvem uma forma de competição com
outros machos em que o tamanho grande é favorecido na obtenção de contato sexual com as fêmeas.
Essas formas de competição são destrutivas em termos de conceitos teóricos tais como “o bem da
espécie”. Mas o darwinismo diz respeito à luta de organismos individuais para transmitirem mais de
seus genes às gerações futuras. A melhor indicação de que nosso mundo é darwiniano reside nos
casos de evolução destinada unicamente à vantagem individual — como quando os machos se tornam
maiores porque têm de competir como indivíduos, em batalha ou em exibição sexual, para ganhar
acesso às fêmeas.
Esta forma de competição geralmente exige um grau razoável de inteligência, já que tais ações
complexas implicam repertórios comportamentais flexíveis e amplos. Assim, existe a tendência para
encontrarmos o padrão incomum ou inverso, de machos maiores, nas chamadas criaturas superiores,
com cérebros consideráveis. Esta correlação de complexidade e poder mental provavelmente explica
por que, de todos os grupos com um grande número de hermafroditas sequenciais, apenas os
vertebrados desenvolveram a protoginia como padrão mais comum do que a protandria. Quando
olhamos a história natural da maioria dos peixes protogínicos, percebemos que os imperativos
comportamentais baseados na competição macho-macho condicionaram o padrão de fêmea primeiro,
com mudança posterior para machos maiores. Douglas Y. Shapiro, por exemplo, estudou a inversão
de sexo no Anthias squamipinnis, um peixe tropical marinho de águas rasas, que habita recifes de
coral em grupos sociais estáveis de mais ou menos oito fêmeas para um macho (ver Bibliografia). A
competição entre machos para guardar e manter os seus grupos pode ser intensa. A remoção de um
macho induz uma fêmea a mudar de sexo, e esta transição inclui uma série de características úteis à
manutenção da custódia de várias fêmeas: a mudança para coloração mais vistosa, espinhas das
nadadeiras maiores, flâmulas da nadadeira caudal mais elaboradas e tamanho maior.
A distribuição da protandria e da protoginia oferece uma ilustração ainda melhor da preferência
da natureza por fêmeas maiores que a simples documentação de machos permanentemente menores
em insetos e peixes. Machos e fêmeas permanentes representam sistemas estáticos que podem manter
a sua relação de tamanho por uma série de outros motivos. Mas quando descobrimos que a mudança
ativa de sexo em geral ocorre de macho para fêmea, devemos buscar algum motivo direto
fundamentado nas vantagens gerais do tamanho maior das fêmeas.
Poderíamos buscar uma ilustração ainda melhor, uma que os animais, infelizmente, devido ao seu
modo de crescimento, não têm como oferecer. Em termos ideais, gostaríamos de encontrar uma
criatura que muda de sexo em qualquer direção, mas que se torna fêmea quando fica maior e macho
quando fica menor. Podemos ter esperanças de encontrar tal caso ideal na natureza, a confirmação de
um princípio geral em uma única criatura? (Enquanto formos obrigados a defender o princípio
usando como exemplo várias criaturas, seremos perseguidos pela inquietante possibilidade de termos
entendido tudo errado — que a protoginia é dominante nos peixes não porque eles são avançados no
que diz respeito ao comportamento e ilustram o princípio de Darwin da competição individual, mas
em virtude de alguma propriedade desconhecida e peculiar da condição de peixe. Porém, se formos
capazes de encontrar ambos os fenômenos na mesma criatura, uma explanação unificada parece
garantida.) Mas, temos algum direito de esperar da natureza tal exemplo ideal? Afinal, os animais,
salvo exceções bastante raras, nunca diminuem de tamanho e, portanto, não servem. Um dos
primeiros artigos sobre a mudança de sexo na Crepidula, escrito em 1935, terminava com estas
palavras: “A transformação sexual na Crepidula, assim como a metamorfose em outros animais, pode
ser acelerada ou retardada experimentalmente, mas não pode ser revertida.”
A natureza conseguiu de novo — ela sempre consegue. O organismo ideal foi descoberto.
Infelizmente, o tópico geral de minha deplorável e profunda ignorância é uma planta. As plantas
podem sofrer substancial redução de tamanho, por diversos motivos e sem morrer. Nosso exemplo é
um habitante comum e atraente dos nossos bosques do leste, Arisaema triphyllum, o “joãozinho-no-
púlpito” (Na verdade, a tradução correta de jack-in-the-pulpit, Arisaema Tryphilum, seria nabo selvagem. A solução “joãozinho-
no-púlpito” é uma exigência do texto, como se pode ver a seguir - N.T.). Os resultados foram recentemente relatados
por meu amigo David Policansky no sóbrio Proceedings of the National Academy of Sciences (ver
Bibliografia). (Confesso que meu interesse anterior por esta planta restringia-se virtualmente a ficar
imaginando se a sua forma plural incluía um joãozinho e vários púlpitos, como na maioria das
palavras, ou vários joãozinhos e um púlpito, como aqueles velhos terrores da gramática do colegial,
os cavalos-vapor e os navios-escola. Reparei que este assunto deve confundir também outras
pessoas, porque as duas referências que descobri ao trabalho de Policansky evitam cuidadosamente a
questão e, desafiando as regras da gramática, usam o singular em todos os casos. Eu opto por vários
púlpitos, embora saiba que cada um deles carrega um joãozinho. Ou será que eles são como os
louva-a-deus, afinal? - Um leitor deu a óbvia e elegante sugestão para este dilema de eras — “joãozinhos-em-púlpitos”. Que
estupidez a minha não ter pensado nisso antes).
As flores da maioria das plantas (mas não de todas, absolutamente) contêm tanto estruturas
masculinas quanto femininas. Mas o joãozinho-no-púlpito é uma coisa ou outra. A parte sexual da
flor contém ou anteras, a estrutura sexual do macho, ou ovários coroados por estigmas. As plantas
menores, os machos, têm uma folha, enquanto as fêmeas, maiores, geralmente desenvolvem duas.
Durante um estudo de três anos nos bosques Eastbrook, em Concord, Massachusetts, Policansky
marcou e registrou 2.038 plantas; 1.224 eram machos com uma altura média de 336 mm, enquanto as
814 fêmeas tinham por volta de 411 mm.
O chamado modelo de mudança de sexo da “vantagem de tamanho’’ prevê, para o caso
costumeiro de machos maiores, que uma transição de macho para fêmea deveria ocorrer nos casos
em que qualquer aumento adicional de tamanho passasse a beneficiar mais a fêmea (em termos de
produção de sementes) do que o macho. (Lembre- se de que machos pequenos podem produzir uma
superabundância de espermatozoides, e que, portanto, um tamanho maior oferece relativamente pouca
vantagem, ao passo que o benefício para as fêmeas pode ser substancial.) Valendo-se de dados sobre
o aumento do número de espermatozoides e de sementes em relação ao tamanho, Policansky calculou
que, na teoria, esta transição deveria ocorrer aos 398 mm no joãozinho-no-púlpito. Ele então
descobriu que, na natureza (ou pelo menos em Concord), 380 mm é a linha divisória — um resultado
bem próximo da teoria. Abaixo desta altura, ele encontrou mais machos do que fêmeas; acima, mais
fêmeas do que machos.
Ele também pôde averiguar diretamente que as plantas macho tendiam a se transformar em fêmeas
à medida que cresciam durante o curso normal de vida. Além disso, e esta é a observação
fundamental, os indivíduos mudavam de fêmea para macho por ocasião das circunstâncias, mais
incomuns, que ocasionalmente levam uma planta a ficar menor. A diminuição de tamanho ocorreu por
três motivos: quando parte da planta foi comida (quando a mariazinha quebra o cocoruto, o joãozinho
vem depois); quando a planta passou a ficar na sombra e, consequentemente, teve o crescimento
atrofiado; e quando produzira um número excepcionalmente grande de sementes na estação anterior,
também inibindo desse modo o aumento de tamanho, devido ao desvio da maior parte da energia para
as próprias sementes.
Assim, com a mudança em ambas as direções se conformando ao modelo de vantagem de
tamanho e seguindo o padrão usual da natureza, de machos menores e fêmeas maiores, o joãozinho-
no-púlpito oferece, sozinho, uma adorável ilustração dos erros de nossas costumeiras, estreitas,
percepções e pressuposições a respeito do tamanho relativo dos sexos — e uma excelente
confirmação de um importante princípio da biologia darwiniana. Ele também nos ajuda a entender
por que, se o homem é a medida de toda as coisas, a mariazinha precisa de um púlpito mais
espaçoso.
4. Convivendo com ligações

La Grande Galerie do Muséum d’histoire naturelle, em Paris, está fechada há quinze anos. Esse
grande espaço, armado em ferro e coberto de vidro, não é mais completo estruturalmente. Assim
como as amplas estações ferroviárias que lhe serviram de modelo, La Grande Galerie entrou para a
história. Além disso, o seu acervo reflete as ideias e preocupações de outra era, a expansionista e
agressiva era vitoriana, que levava tão a sério, como guia para coleta e exibição, as palavras do
Gênesis (1:22): “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se multipliquem
na Terra.” Se os museus modernos dão ênfase à intimidade, à boa iluminação, à exposição de bom
gosto e às palavras bem escolhidas, seus predecessores vitorianos julgavam a qualidade pela
quantidade, e apinhavam seus vastos espaços abertos com tantos animais grandes quanto era
possível. No museu de Lord Rotschild em Tring, as zebras empalhadas estão deitadas, de modo que
várias prateleiras podem ser colocadas do chão ao teto.
La Grande Galerie é a vovó deste estilo ultrapassado. Construída em 1889, intocada desde então,
os seus esqueletos e animais empalhados ocupam cada centímetro disponível. A grande pirâmide
central quase chega ao alto teto de vidro. Um lado é todo de zebras, outro, todo de antílopes; seis
girafas coroam o topo. A poeira se acumulou, a sala está escura e vazia; o silêncio lúgubre confere-
lhe uma majestade sombria.
Sua companheira, La Galerie d’Anatomie Comparée, é menor, bem iluminada, e ainda está
aberta. O estilo é idêntico — filas e mais filas, intermináveis, prateleiras e mais prateleiras de
esqueletos branqueados. Vaguei pelos corredores, admirando-me diante de uma fila de morsas e
cinco prateleiras superpostas ocupadas por crânios de macacos. Passei então pela estante 106 e parei
de súbito. Ela contém uma exposição secundária que serve como contraste para a profusão de
lustrosos leões ao lado e para lembrar os complacentes vitorianos de que a natureza, além de
generosa, pode ser também caprichosa e cruel. A estante 106 comporta uma coleção de espécimes
teratológicos, esqueletos de nascimentos deformados e anormais. A maioria deles é de humanos e
representa aquele intrigante e assustador fenômeno do nascimento de indivíduos ligados, ou parto de
irmãos “siameses”. O esqueleto A8597 tem duas cabeças, três braços e duas pernas; o A8613 tem
quatro braços, duas pernas e duas cabeças que se projetam das pontas de uma coluna vertebral unida;
o A8572 é quase normal, mas um irmão minúsculo, acéfalo, com braços e pernas, projeta-se de seu
peito. Todos são pequenos e é óbvio que morreram por ocasião do parto ou pouco depois.
Um esqueleto se destaca por causa de seu tamanho consideravelmente maior. O A8599 é (ou são)
— e este é o tema que discutiremos em breve — o de duas gêmeas com duas cabeças bem formadas e
duas partes superiores do corpo com dois braços cada. Duas colunas vertebrais distintas quase se
fundem na base, e apenas duas pernas, bem formadas, se projetam em baixo. No rótulo está escrito
monstre humain dicéphale, ou “monstro humano de duas cabeças”. Mas A8599 nasceu com vida e
sobreviveu por vários meses. As gêmeas foram batizadas e receberam nomes. O letreiro registra esse
detalhe pungente e inclui, sob o número e a descrição, a simples identificação “Ritta-Christina”.
Meditei muito sobre Ritta-Christina, perguntando-me sobre como teriam sido sua vida e sua
morte. Ainda assim, eu não teria feito a transição, de pensamento intrigado para ensaio, se não
houvesse descoberto, dois dias depois, absolutamente por acaso, um velho tomo empoeirado numa
livraria — o volume 11 de 1833, das Memoirs of the Royal Academy of Sciences. Ele continha uma
longa monografia do grande anatomista francês Etienne Serres: Théorie des formations e
déformations organiques, appliquée à l’anatomie de Ritta-Christina, et de la duplicité
monstrueuse (“Teoria do desenvolvimento e da deformação orgânicas, aplicada à anatomia de Ritta-
Christina, e aos monstros duplos em geral”).
Quem não compreende a íntima justaposição do vulgar e do erudito tem uma visão de vida muito
refinada ou então muito comparti- mentalizada. A fascinação abstrata e a visceral são igualmente
válidas e não tão distantes quanto se pensa. Dois dias antes, eu vira alguns escolares diante de Ritta-
Christina, boquiabertos, tomados de espanto e horror, sentimentos logo disfarçados por
demonstrações de humor forçado. Agora eu descobria que o maior anatomista da França dissecara
Ritta-Christina e a usara para fundamentar uma teoria geral de embriologia orgânica (não apenas
humana). Ambos os temas me pareciam igualmente irresistíveis; na verdade, eu chafurdava neles
havia dois dias. As crianças podiam não ter feito generalizações, mas não tenho dúvidas de que M.
Serres, além de pensar, também engoliu em seco. Comprei o livro.
Ritta e Christina nasceram em 23 de março de 1829, filhas de pais pobres da Sardenha. Os
tempos eram difíceis e a mobilidade social praticamente impossível em circunstâncias normais.
Hoje, os pais seriam objeto de compaixão e experimentariam apenas a dor; em 1829, pessoas
realistas, quaisquer que fossem os seus sentimentos íntimos, eles devem ter reconhecido que uma tal
criança representava uma fonte de renda potencial e substanciosa que, em outras circunstâncias,
estaria inteiramente fora de seu alcance (Sinto-me tentado a rever esta sentença e postular uma universalidade que
transcende o tempo, à luz de duas histórias publicadas no The New York Times de 23 de novembro de 1984 — primeiro, que os herdeiros
de Barney Clark (o primeiro homem, agora morto, a receber uma coração artificial) moveram uma ação de U$ 2 milhões contra o
Reader’s Digest pelo rompimento do contrato de publicação de um livro sobre o caso, de autoria da viúva do sr. Clark; segundo, que os
pais de Baby Fae (aquela do transplante do coração de babuíno) venderam os direitos exclusivos de sua história para a People
Magazine).Assim, os pais de Ritta-Christina juntaram a duras penas algum dinheiro e levaram-na para
Paris, com esperanças de exibi-la a preços exorbitantes. A Vénus hotentote havia provocado
protestos suficientes quinze anos antes (ver ensaio 19), mas, por mais exótica que fosse, ela era
sadia. A sensibilidade pública tinha limites, e as autoridades proibiram qualquer exibição pública de
Ritta e Christina. Mas ela foi exibida em particular, muitas vezes com demasiada frequência — tanto
que morreu, em parte devido à exposição excessiva, após cinco meses de vida.
Ao descrever Ritta-Christina alternei conscientemente o singular e o plural. Quando o vulgar e o
erudito se encontram, muitas vezes existe uma questão comum à nossa fascinação conjunta. Uma
questão tem sempre predominado neste caso — a individualidade. Ritta-Christina era uma pessoa ou
duas? Essa questão inspirou os débeis gracejos dos meus horrorizados escolares. Também motivou a
investigação científica de Serres. A mesma questão estava por trás do fascínio público em 1829.
Quando Ritta-Christina morreu, um jornal parisiense escreveu: “Já é objeto de séria consideração
entre os espiritualistas saber se elas tinham uma alma ou duas.”
Um ou dois? Ao longo de todas as divagações eruditas e de todos os espetáculos de feira, esta
única questão tem sido o foco do nosso fascínio desde que o fenômeno dos irmãos siameses recebeu
o seu nome. Os originais, Eng e Chang, nasceram de pais chineses, em 1811, num pequeno povoado
perto de Bangkok (a Tailândia era então chamada Sião). Durante o fim da década de 1820 e a década
de 1830, eles se exibiram na Europa e nos Estados Unidos e ficaram bastante ricos. Decidiram morar
na Carolina do Norte, onde se casaram aos 44 anos com duas irmãs de origem inglesa e se
estabeleceram em dois domicílios vizinhos, levando uma vida confortável de bem-sucedidos
fazendeiros (sim, e foram até mesmo proprietários de escravos). Eles trocavam de casa em intervalos
de três dias, transpondo de carruagem a distância de uma milha e meia. Pelos costumes da época,
Chang era o chefe inquestionável de seu domicílio, enquanto Eng dava as ordens chez lui. As uniões
foram inegavelmente prolíficas, já que Chang teve dez filhos e Eng, doze.
Chang e Eng eram seres humanos fisicamente completos, ligados por uma tira de tecido com três
polegadas e um quarto em sua porção mais larga e apenas uma polegada e cinco oitavos em sua
porção mais densa. Cada um possuía uma série completa de órgãos, da cabeça aos pés. Eles
mantinham conversas independentes com suas visitas e tinham personalidades distintas. Chang era
soturno e melancólico e, por fim, passou a beber; Eng era calmo, contemplativo e mais alegre. No
entanto, mesmo eles, os irmãos siameses mais independentes da história, nutriam dúvidas íntimas
sobre a sua individualidade. Assinavam todos os documentos jurídicos como “Chang Eng” e falavam
frequentemente sobre seus ambíguos sentimentos de autonomia.
Mas, e Ritta e Christina, cuja independência corpórea não se estendia abaixo do umbigo? À
primeira vista, elas pareciam duas pessoas na parte de cima e apenas uma na parte de baixo. O velho
critério cultural de cabeça e cérebro poderia ter sugerido uma solução fácil — duas cabeças, duas
pessoas. Mas, como cientista, Serres repelia esta resposta simples, pois havia estudado irmãos
siameses com uma cabeça, dois braços e quatro pernas. Ele pensava que devia haver uma
uniformidade de processo subjacente a ambos os tipos de geminação e não podia aceitar a solução
simplista — uma pessoa se você fechar o zíper até a cintura partindo da cabeça; duas pessoas se
você fechar o zíper até a cintura partindo dos pés.
Serres lutou com essa grave questão ao longo de trezentas páginas e afinal concluiu que Ritta e
Christina eram duas pessoas. Seus argumentos e estilo básico pertencem a outra era da história da
biologia. Se não por outro motivo, eles merecem ser relembrados porque poucos exercícios
intelectuais podem ser mais gratificantes que o exame de como sistemas de pensamento radicalmente
diferentes tratam um objeto comum de interesse mútuo. Também acredito que Serres estava, pelo
menos, meio errado.
Serres representava a grande tradição, do início do século XIX, da biologia romântica, chamada
Naturphilosophie (“filosofia da natureza”) na Alemanha e morfologia transcendental na sua França
natal. Se os morfologistas modernos estudam a forma para determinar relações evolucionárias ou
para descobrir significações adaptativas, Serres e seus colegas perseguiam objetivos nitidamente
diferentes. Eles estavam obcecados pela ideia de que devia existir alguma lei funda- mental,
transcendental, subjacente, regulando toda a aparente diversidade da vida.
Na tradição platônica, essas leis devem existir antes que surjam quaisquer organismos para
obedecer às suas regulamentações. Os organismos são encarnações acidentais do momento; as leis,
simples, reguladoras refletem o princípio atemporal da ordem universal. A biologia tem como tarefa
principal procurar os padrões subjacentes em meio à diversidade confusa da vida. Em resumo, os
biólogos devem procurar as “leis da forma”.
Serres contribuiu para a tradição transcendental transpondo as suas considerações para a
embriologia. A maioria dos seus colegas havia enfatizado a forma estática dos adultos buscando
padrões subjacentes apenas em produtos finais. No entanto, os organismos desenvolvem a sua
complexidade a partir do ovo até o adulto. Se as leis da forma regulam a morfologia, então devemos
descobrir os princípios da construção dinâmica, e não simplesmente os das relações entre criaturas
acabadas.
A monografia de Serres sobre Ritta-Christina começa com uma obscura dissertação de duzentas
páginas sobre os princípios da morfologia e a sua aplicação à embriologia. A menos que se dê uma
olhadinha nas instigantes gravuras do final (que incluem as três figuras reproduzidas no presente
ensaio), não se ouve nada a respeito das famosas gêmeas da Sardenha antes que se fique com os
sentidos entorpecidos por generalidades. Essa organização, em si, reflete um estilo de ciência
radicalmente diferente do nosso. Defendemos uma perspectiva empírica e gostamos de afirmar que as
generalidades surgem do estudo e do confronto cuidadoso de particularidades. Qualquer
embriologista moderno primeiro discutiria Ritta-Christina e apenas no final arriscaria algumas
conclusões breves e cautelosas. Serres, entretanto, como transcendentalista, acreditava que as leis da
forma existiam antes dos animais que as obedeciam. Se a abstração precedia a efetividade da
natureza, por que não também na criatividade humana? Pensamento e teoria primeiro, aplicação
depois. (Nenhum dos extremos representa bem a intrincada relação de fato e teoria que regula a
nossa prática efetiva de ciência. Ainda assim, suspeito que a ordem “invertida” de Serres não é uma
distorção da realidade complexa pior que as nossas modernas preferências estilísticas).
Nas primeiras páginas de sua monografia, Serres tenta reduzir a embriologia de todos os animais
a três leis básicas de “organologia”. Primeiro, pela lei do desenvolvimento excêntrico, conhecida
também como lei da circunferência para o centro, os órgãos se formam inicialmente na borda do
embrião em desenvolvimento e então migram para o centro. Segundo, pela lei da simetria, os órgãos
que se tornam únicos e centrais nos adultos começam como rudimentos simétricos duplos em bordas
opostas do embrião em desenvolvimento. Terceiro, pela lei da afinidade, estes rudimentos simétricos
são atraídos um pelo outro até se fundirem no centro para formar um órgão adulto único. (Permitam-
me ser caridoso e dizer simplesmente que essas leis são extensões injustificadas de padrões que
atuam ocasionalmente no desenvolvimento. Serres estava escrevendo antes do estabelecimento da
teoria celular e apenas alguns anos após a descoberta do óvulo humano por Karl Ernst von Baer. Sua
abordagem formal da morfologia, tão estranha para um mundo que pode avaliar causas celulares e até
mesmo moleculares, ajustava-se ao conhecimento e aos costumes de sua própria época).

Duzentas páginas depois, quando Serres finalmente discute a dissecção de Ritta-Christina,


compreendemos por que ele dedicou tanto espaço precedente às três leis primárias de organologia —
pois elas fornecem a sua solução para o grande dilema da individualidade. Ritta e Christina são duas
pessoas, embora imperfeitas, e as leis da forma proclamam a condição delas.
Ninguém contestava o veredito da duplicidade de Ritta e Christina da cintura para cima; o dilema
sempre estivera centrado na bem formada, mas obviamente única, metade inferior — um ânus, uma
abertura genital, duas pernas. Se ela fosse duas pessoas de cabo a rabo, como a sua metade inferior
poderia se desenvolver tão bem com o formato de uma só? Como as partes incompletas de duas
criaturas separadas puderam se fundir e combinar numa forma indistinguível da metade inferior de
indivíduos tão inequivocamente únicos como eu e você?
Serres usou suas leis de organologia para apresentar a metade inferior de Ritta e Christina como
o produto conjugado de duas pessoas. Afinal, os órgãos únicos, harmoniosos, bem-formados, dos
indivíduos comuns surgem (pela lei da simetria) como partes separadas e duplas na borda do
embrião, e então se movem para dentro (pela lei da circunferência para o centro), finalmente
encontrando-se e fundindo-se (pela lei da afinidade) num único órgão central. Se o nosso coração,
estômago e fígado únicos têm início como dois rudimentos simétricos (na verdade, isso não acontece,
mas Serres achava que sim), por que então deveríamos ver a presença de um órgão único e bem-
formado na metade inferior de Ritta e Christina como um argumento contra a sua construção a partir
das partes misturadas e combinadas de dois indivíduos embrionários? Se as gêmeas têm apenas um
útero, então a metade direita veio de Ritta, a esquerda de Christina. Os dois rudimentos se formaram
nas bordas do embrião, em regiões inequivocamente atribuídas a Ritta ou a Christina (lei da
simetria). Eles se moveram para o meio (circunferência para o centro) e lá se juntaram (lei da
afinidade) para formar um único órgão.
Serres anunciou orgulhosamente que as suas leis da forma haviam resolvido o grande dilema em
favor da dualidade; “Como poderíamos ter concebido que cada criança forneceu metade de um órgão
comum a ambas, se a lei do desenvolvimento excêntrico não nos houvesse ensinado que os órgãos
únicos são, em seu estado normal, originalmente duplos.”
Serres não se esquivou às implicações lógicas decididamente peculiares de sua solução. Ele
percebeu que o útero grande possuía ligações adequadas com os ovários e o canal vaginal, e não via
nenhum motivo pelo qual Ritta e Christina não pudessem ter filhos caso houvessem alcançado a
maturidade. (Serres também encontrou um segundo útero, rudimentar, que não teria funcionado.) Ele
concluiu que o útero grande havia se formado a partir de uma metade de Ritta e outra de Christina e
admitiu que qualquer filho que se desenvolvesse dentro dele teria duas mães naturais:

Esta disposição dos órgãos genitais de Ritta e Christina demonstra claramente... que, enquanto
tomara medidas para assegurar a vida destas crianças, a natureza não esquecera a possibilidade
de sua reprodução. Ora, para esta reprodução, a natureza havia combinado tudo, de modo que
todos os prazeres e dores seriam compartilhados... Supondo que ocorresse a concepção no útero
grande, uma única criança teria tido duas mães distintas, um resultado singular desta vida
associada.

Serres então discutiu um par de machos geminados com quatro pernas e uma única cabeça e optou
pela coerência e pelo dualismo: o cérebro único, bem-formado, compartilhava os pensamentos
combinados dos dois.

Existe uma unidade perfeita produzida por duas individualidades distintas. Existem órgãos
sensoriais e hemisférios cerebrais para um único indivíduo, adaptados para o serviço de dois, já
que é evidente que existem dois eus nesta cabeça única [deux moi dans cette tête unique].

Assim Serres fez uma brava e coerente tentativa de resolver uma questão que parecia
irremediavelmente ambígua. Podemos reconhecer o esforço e apreciar a excursão pelo parecer
diferente de biologia defendido por Serres. Mas devemos rejeitar a sua conclusão.
Os ovos humanos fertilizados em geral se desenvolvem como indivíduos únicos. Raramente, as
células em divisão se separam em grupos distintos, e dois embriões se desenvolvem. Esses gêmeos
univitelinos (ou idênticos) são cópias-carbono genéticas. Em certo sentido último, biológico, eles
são o mesmo indivíduo repetido — e a literatura psicológica contém vários testemunhos dos
sentimentos de separação imperfeita compartilhados por gêmeos idênticos. No entanto, pelo menos
no que diz respeito à definição, não experimentamos dificuldade alguma em identificar gêmeos
univitelinos humanos como sendo inegavelmente personalidades separadas, por causa de dois
excelentes motivos: primeiro, a separação física é a essência da nossa definição vernácula de
individualidade (ver o ensaio seguinte); segundo, as personalidades humanas são modeladas por
ambientes de vida complexos, de modo tão sutil e penetrante (não importam as desconcertantes
similaridades entre gêmeos univitelinos criados em separado), que cada pessoa segue um caminho
absolutamente único.
Com uma raridade tremendamente maior, as células em divisão de um ovo fertilizado começam a
se separar em dois grupos, mas não terminam o processo — e irmãos ligados (ou siameses) se
desenvolvem. Os irmãos ligados abrangem toda a variedade concebível, que vai de um único
indivíduo portando alguns poucos órgãos rudimentares de um gêmeo imperfeito até indivíduos
completos, unidos superficialmente como Chang e Eng. Ritta e Christina encontram-se justamente no
meio dessa continuidade. Com nosso conhecimento moderno do desenvolvimento biológico, receio
que devemos rejeitar a solução de Serres e admitir ao contrário que o seu dilema não pode ser
respondido.
Nós habitamos um mundo complexo. Algumas fronteiras são nítidas e permitem distinções claras
e definidas. Mas a natureza também inclui algumas continuidades que não podem ser divididas em
duas pilhas inequívocas de sim e de não. Os biólogos têm rejeitado, como sendo inevitavelmente
falhas em princípio, todas as tentativas dos que são contrários ao aborto de definir um inequívoco
“início da vida”, porque sabemos muito bem que a sequência que vai da ovulação ou da
espermatogênese ao nascimento é uma continuidade inquebrável — e com certeza ninguém definiria a
masturbação como assassinato. Nossos congressistas podem criar uma ficção jurídica para efeito
estatutário, mas não podem procurar apoio na biologia. Ritta e Christina encontram-se no meio de
outra continuidade inquebrável. Elas são em parte duas e em parte uma. E esta, sinto dizer, é a não-
resposta biológica a essa questão de séculos.
Se, depois de tanta verborragia, este argumento lhe provoca uma sensação de vazio, só posso
retrucar com a expressão paradoxal que é, tantas vezes, a mais libertadora resposta para um velho
mistério: A pergunta não tem resposta porque você fez a pergunta errada. A velha questão da
individualidade dos irmãos siameses repousa na pressuposição de que os objetos podem ser
classificados em categorias distintas. Se reconhecermos que nosso mundo está repleto de
continuidades irredutíveis, não mais ficaremos perturbados pela condição intermediária de Ritta e
Christina.
Dante, para infligir-lhes uma punição física à altura de seu crime ideológico, puniu os cismáticos
desmembrando-os no inferno: “Vê quão estropiado ficou Maomé... E todos os mais que por aqui
percebes foram em vida semeadores de cismas e de escândalos; ora fendidos sofrem penar cruento”
(“Inferno”, Canto XXVIII. Tradução de Hernâni Donato - N.T.).
Tenhamos em apreço as ligações. Assim como Dante fez uma analogia entre a separação física e
a ideológica, talvez possamos aprender, a partir da união indissolúvel de Ritta e Christina, que nosso
mundo intelectual também se compraz com a continuidade.
5. Um paradoxo muito engenhoso

A abstinência tem seu lado virtuoso, mas tudo tem um limite. Sempre senti uma pena especial
pela pobre Mabel, noiva de Frederic, o pirata aprendiz. Justamente no limiar da felicidade do
casamento, ela descobre que tem de esperar mais sessenta e três anos para reclamar o seu amado,
que terá então oitenta e quatro anos — e como não podia deixar de acontecer em Gilbert e Sullivan,
ela efetivamente promete esperar.
O Rei Pirata e Ruth, antiga ama e amante repudiada de Frederic, apresentam o motivo deste
extraordinário adiamento. Frederic, tomado injustamente como aprendiz do bando de piratas, tem
vinte e um anos e anseia por liberdade, respeitabilidade e Mabel. Formalmente, porém, ele está
comprometido até seu vigésimo primeiro aniversário e nasceu em 29 de fevereiro. “Você é um
garotinho de cinco anos”, informa o Rei Pirata, cheio de prazer e expectativa pelo prolongamento do
serviço. Os três personagens principais de The Pirates of Penzance então analisam as
complexidades dessa situação desagradável na famosa canção do paradoxo:

Quão curiosos são os modos do paradoxo


Do bom senso ele alegremente zomba.

O paradoxo clássico apresenta-nos duas interpretações contraditórias, cada uma perfeitamente


correta em seu próprio contexto. Considere-se os nossos protótipos ocidentais, os chamados
paradoxos de Zeno: A flecha que nunca pode alcançar o seu alvo porque, a cada instante, ela deve
ocupar uma posição fixa; e Aquiles que nunca consegue alcançar a tartaruga porque tem primeiro de
transpor metade da distância restante, e qualquer espaço, por menor que seja, sempre pode ser
dividido pela metade. Deliciamo-nos com o paradoxo porque ele agrada tanto o aspecto sublime
quanto o estapafúrdio da nossa psique. Rimos com Frederic, mas sentimos também que nos enigmas
de Zeno jaz oculto algo de profundo sobre a natureza da lógica e da vida.
A biologia também tem o seu paradoxo clássico. Ele se sobressaiu como questão de interesse
maior no século XIX, provavelmente porque os cientistas então sentiam que era possível encontrar
uma solução. Todos os melhores naturalistas lutaram em vão: Huxley e Agassiz alinharam-se em
lados opostos; Haeckel tentou servir de mediador. O século XX passou ao largo da charada,
provavelmente porque agora percebemos que não existe nenhuma resposta simples. Ainda assim, se
nosso fascínio pelo paradoxo se justifica, a questão ainda pode nos iluminar o espírito em virtude de
sua teimosa intratabilidade.
Os sifonóforos pertencem ao filo Cnidaria (ou Coelenterata). Dois aspectos da biologia dos
cnidários estabelecem o contexto do nosso paradoxo. Primeiro, muitos cnidários vivem em colônias
de indivíduos ligados — nossos recifes maciços de coral são gigantescos amontoados compostos por
vários milhões de pólipos minúsculos e conjugados. Segundo, o ciclo vital dos cnidários apresenta
uma, assim chamada, alternância de gerações. O pólipo séssil, um cilindro fixo com uma orla de
tentáculos, reproduz-se assexuadamente e gera, por meio de brota- mento, medusas, ou “águas-
vivas”, que nadam livremente. A medusa produz células sexuais que se unem e formam um pólipo. E
por aí vai.
Diferentes tipos de cnidários podem enfatizar uma dessas gerações e suprimir a outra. Dos três
grupos cnidários principais, o grupo Scyphozoa (ou águas-vivas verdadeiras) abandonou os pólipos
e enfatizou as medusas, ao passo que o grupo Anthozoa (ou corais verdadeiros) dispensou as
medusas e construiu recifes de pólipos e de seus esqueletos. No terceiro grupo, o Hydrozoa, muitos
membros mantêm o ciclo completo, com pólipos e medusas distintos. Os sifonóforos são
hidrozoários. A literatura técnica, que geralmente não se destaca nem pelo seu encanto nem pela falta
de rodeios, transcendeu suas costumeiras limitações neste caso: em meio a uma profusão medonha de
termos técnicos aplicados às outras partes da anatomia cnidária, ela se refere ao estágio polipóide e
ao medusóide de um único ciclo vital como “indivíduos”.
A caravela, com flutuador em cima e tentáculos embaixo, à primeira vista parece uma água-viva
(isto é, uma única medusa). Quando estudada com maior minúcia, descobrimos que esta arma
flutuante é uma colônia de vários indivíduos, tanto polipóides quanto medusóides. O pneumatóforo,
ou flutuador, é provavelmente uma grande medusa modificada (embora alguns cientistas achem que
ele pode ser um pólipo ainda mais alterado). Os “tentáculos”, apesar de especializados para os
diferentes papéis de captura de comida, digestão e reprodução, não são simples partes de uma água-
viva, mas pólipos modificados — isto é, cada tentáculo surge como um indivíduo distinto. (Outro
sifonóforo comum, a Velella, literalmente a “pequena vela’’, mas que popularmente recebeu o
adorável nome de “by-the-wind-sailor” [Algo como “marinheiro ao sabor do vento” - N. T.], provoca ainda mais
confusão. Os seus indivíduos são bem poucos e tão bem coordenados que a colônia parece um
simples flutuador rodeado de tentáculos — em outras palavras, uma simples água-viva. No entanto, o
flutuador é um indivíduo medusóide e cada tentáculo, um indivíduo polipóide.) [Dei uma aula sobre
este ensaio pouco depois da sua publicação e repeti para meus ávidos alunos a frase fundamental:
“Vocês achavam que a caravela era uma água-viva, mas ela não é.” Mais tarde, durante o semestre,
fiquei horrorizado quando uma aluna me contou que havia perdido uma partida de Master por ter
dado a resposta correta à pergunta: “O que é uma caravela?” Vocês acreditam que os Sólons da
cultura pop proclamaram esta colônia como sendo uma água-viva? Está lá, no eartãozinho azul, e
portanto tem de ser isso. Mas, ainda assim, ela não é!] Se este grau de divisão de trabalho entre
indivíduos o impressiona, a natureza tem muito mais a oferecer. A Physalia e a Velella são
sifonóforos simples, com relativamente poucos tipos de indivíduos modificados. Os sifonóforos mais
complexos são, sem dúvida, as colônias mais integradas da natureza. As suas partes revelam-se tão
diferenciadas e especializadas, tão subordinadas à totalidade da colônia, que funcionam mais como
órgãos de um corpo do que como indivíduos de uma colônia.
A maioria dos sifonóforos são criaturas pequenas e transparentes do mar aberto. Eles flutuam
entre o plâncton da superfície ou nadam ativamente, em geral a baixas profundidades. Sendo
carnívoros, capturam pequenos animais planctônicos em sua rede de tentáculos. Sifonóforos maiores,
a Physalia entre eles, conseguem capturar e devorar peixes de porte considerável; como bem sabem
muitos de nós, para nossa infelicidade, eles podem infligir dolorosas “queimaduras” em banhistas
humanos.
Os sifonóforos complexos contêm uma série impressionante de estruturas bem diferenciadas.
Seus corpos podem ser divididos, grosso modo, em duas partes: um conjunto superior de bulbos e
bombas para locomoção e um conjunto inferior de tubos e filamentos para alimentação e reprodução.
Cada parte contém uma série de pólipos e medusas diferenciadas.
Considere-se primeiro a variedade de formas e atividades que os indivíduos polipóides
assumem. Encontramos três tipos básicos e uma miríade de modificações. Os órgãos alimentares, ou
sifões (daí o nome do grupo — sifonóforo significa “portador de sifão”), são estruturas tubulares,
cada uma com um estômago e uma boca em forma de trombeta, que na maioria das vezes pendem em
abundância abaixo dos flutuadores e indivíduos natatórios. Os sifões são indivíduos polipóides muito
pouco modificados, e é fácil compreender a sua origem como organismos completos. Todos os outros
tipos de pólipos (e a maioria das medusas) são mais altamente alterados e especializados, e,
portanto, mais difíceis de ser ligados à sua personalidade original. Uma segunda ordem de
indivíduos polipóides, os chamados datilozóides (“animais-dedo”, ou que tocam), capturam e
transportam a comida para os sifões. Os datilozóides compreendem os tentáculos finos e longos, às
vezes com mais de quinze metros de comprimento na Physalia, que carregam os dolorosos
nematocistos, ou células urticantes, e formam uma teia transparente para apanhar as presas. Eles não
conservaram nem a boca, nem o aparelho digestivo, e poderiam ser facilmente tomados por órgãos
em vez de indivíduos, caso não pudéssemos rastrear sua origem como brotos distintos em
crescimento.
Essas partes de captura muitas vezes exibem uma complexidade notável de forma e função. As
células urticantes podem estar concentradas em protuberâncias, ou “baterias”, às vezes protegidas
por uma tampa. Na Stephanophyes, cada bateria se prolonga num delicado filamento terminal e
contém cerca de 1.700 células urticantes de quatro tipos diferentes. O filamento terminal laça a presa
e dispara as suas poucas células urticantes. Caso essas células não consigam matar a vítima, o
filamento se contrai e carrega a presa para a extremidade mais distante da própria bateria, onde outra
descarga de células urticantes maiores paralisa a vítima. Se a presa continua a lutar, outra contração
a desloca bateria acima até a extremidade próxima, onde as células urticantes maiores e mais
poderosas finalmente põem fim ao tormento, antes de mandar a presa vencida para o sifão a fim de
ser ingerida.
Jennifer E. Purcell (ver Bibliografia) apresentou recentemente evidências adicionais de que os
indivíduos alimentadores e captores não constituem uma simples rede passiva, como a teia de uma
aranha, mas que desempenham um papel ativo na obtenção de comida. Ela descobriu que as baterias
de células urticantes de duas espécies funcionam como chamarizes, lembrando, tanto na forma quanto
no movimento, o zooplâncton pequeno que serve de presa para os animais ingeridos pelos
sifonóforos. As baterias da Agalma okeni parecem um copépo- de com duas longas antenas; cada
uma se contrai de modo independente em intervalos variáveis de cinco a trinta segundos, criando uma
série de movimentos que simula as arrancadas e o modo de nadar de um cardume de copépodes
(cardume ou seja lá qual for o nome que se dá a um agregado desses minúsculos artrópodes
planctônicos). Para finalizar a história, Purcell abriu os estômagos da Agalma e encontrou os restos
de três criaturas, todas predadoras de copépodes. As baterias de outra espécie, a Athorybia rosacea,
lembram as larvas planctônicas de peixes. Elas também se contraem rapidamente, imitando os
movimentos de natação e alimentação dos seus modelos.
Os gonozóides, a terceira categoria de indivíduos polipóides, são estruturas reprodutoras. Trata-
se em geral de tubos simples, pequenos, sem boca ou movimento. Mas deles brotam os indivíduos
medusóides, os quais produzem então células reprodutoras que darão origem à geração seguinte de
sifonóforos.
Os indivíduos medusóides de um sifonóforo complexo compreendem quatro tipos básicos:
natatórios, flutuadores, protetores e reprodutores. Os órgãos natatórios, ou nectóforos, são medusas
com modificações mínimas — basicamente as campânulas natatórias superiores sem os tentáculos
inferiores. Alguns sifonóforos carregam várias fileiras ordenadas de nectóforos; as suas contrações
musculares rítmicas impelem a criatura, muitas vezes em trajetórias elaboradas, arqueadas. Os
flutuadores passivos, ou pneumatóforos, são cheios de gás (de composição semelhante à do ar
comum) e mantêm o sifonóforo na superfície ou em alguma profundidade intermediária. Sua origem é
um objeto de controvérsia. Tidos durante um bom tempo como indivíduos medusóides modificados,
alguns biólogos agora consideram os pneumatóforos como pólipos ainda mais elaboradamente
transformados. Os dois sifonóforos mais conhecidos, a Velella e a Physalia, constroem grandes
flutuadores mas não possuem nenhum nectóforo. Movem-se passivamente, portanto, ao sabor dos
ventos e correntes, muitas vezes sendo carregados em grande número para baías e praias.
Os órgãos de cobertura, ou brácteas, são as estruturas mais curiosamente modificadas de todas.
Costumam ser chatas, com o formato de prisma ou folha, e tão diferentes em forma e função de um
indivíduo medusóide que dificilmente suspeitaríamos de sua origem se não pudéssemos acompanhar
seu crescimento e seu brotamento.
As medusas reprodutoras, ou gonóforos, brotam de indivíduos polipóides, os gonozóides
discutidos anteriormente. Em algumas poucas espécies, os gonóforos são libertados para flutuar no
oceano como objetos independentes. Mas eles não podem se alimentar e morrem pouco depois de
lançarem suas células sexuais. Na maioria dos sifonóforos, porém, os gonóforos nunca se separam da
colônia-mãe e permanecem grudados a ela como uma espécie de órgão sexual.
O paradoxo dos Siphonophora expressa uma questão que venho evitando, ou melhor, que venho
contornando, ao apresentar essa taxonomia de indivíduos ou partes. Descrevi as diversas estruturas
nata- tórias, flutuadoras, protetoras, alimentares, captoras e reprodutoras como indivíduos — isto é,
como organismos polipóides ou medusóides individuais. Usando a história evolucionária como
critério, esta designação é, quase com certeza, correta e aceita por praticamente todos os biólogos.
Pela história, os sifonóforos são colônias; eles evoluíram a partir de agregados mais simples de
organismos distintos, cada um deles razoavelmente completo e capaz de executar uma série de
funções (como nas modernas colônias de coral). Mas a colônia tornou-se tão integrada, e os
diferentes indivíduos tão especializados em forma e tão subordinados ao todo, que o agregado inteiro
agora funciona como um único indivíduo, ou superorganismo.
Os indivíduos de um sifonóforo não conservam mais a sua individualidade num sentido funcional.
Estão especializados para uma única tarefa e atuam como órgãos de uma entidade maior. Não
parecem organismos e não poderiam sobreviver como criaturas separadas. A colônia inteira funciona
como um único ser, e as suas partes (ou indivíduos) movem-se de maneira coordenada. Embora cada
nectóforo (ou campânula natatória) conserve seu próprio sistema nervoso, um aparelho nervoso
comum liga o conjunto inteiro. Os impulsos ao longo desse caminho regulam as fileiras de nectóforos
de uma maneira integrada que permite que toda a colônia (ou animal) se mova com graça e precisão.
Tocando-se o flutuador da Nanomia em uma ponta, os nectóforos da outra extremidade contraem-se
para remover o animal (ou colônia, se quiserem) do perigo. Os sifões bombeiam a comida digerida
ao longo do tubo comum ao resto da colônia, mas os sifões vazios também se juntam à peristalse
geral, e, como resultado, a comida chega à colônia (ou organismo) inteira de modo mais eficaz.
Os premeditados parênteses do último parágrafo sublinham o paradoxo fundamental. Saber se
devemos chamar o sifonóforo de colônia ou organismo — pois ele é uma colônia pela história
evolutiva mas, pelas funções atuais, parece mais um organismo. E o que dizer das partes ou
indivíduos? Pela história, trata-se de entidades individuais modificadas; pela função atual, trata-se
de órgãos de uma entidade maior. O que se deve fazer?
Esta questão alimentou o grande debate dos sifonóforos na história natural do século XIX. T. H.
Huxley estudou sifonóforos durante seu longo período de aprendizado no mar, a bordo do H. M. S.
Rattlesnake (menos famoso que a aventura de Darwin no Beagle, mas também exemplo do mesmo
estilo amplo, exemplar e, em boa parte, extinto, de treinamento em história natural). Ele interpretou
os sifonóforos como organismos convencionais, as suas partes como órgãos verdadeiros e não como
indivíduos modificados. Huxley usou os sifonóforos como exemplo principal num famoso ensaio
sobre a natureza da individualidade na biologia.
Louis Agassiz estudou a “caravela-portuguesa” nos litorais de seu país adotivo, os Estados
Unidos (incluí neste ensaio sua bela litografia de Physalia) e decidiu que os sifonóforos são uma
colônia, e a sua integração um sinal da obra divina.
Ernst Haeckel, artista e naturalista extraordinaire, descreveu os sifonóforos coletados durante
uma das mais famosas expedições científicas de oceanografia, a viagem do H. M. S. Challenger,
1873-1876. Com seu relato ele publicou uma série de gravuras (da qual fazem parte todas as outras
que ilustram este ensaio), desde então inigualáveis em beleza (embora um tanto deficientes em
precisão, já que Haeckel muitas vezes acrescentava um toque de simetria mais acentuada em
benefício do efeito artístico). Haeckel também inclui várias gravuras de sifonóforos no seu
Kunstformen der Natur (Formas artísticas na natureza) de 1904 — a grande série de cem litografias,
com plantas e animais dispostos de forma fantasticamente distorcida, com uma simetria ondulante, na
melhor tradição da então reinante art nouveau, tão bem personificada nos quiosques contemporâneos
do metrô de Paris.
A teoria dos sifonóforos de Haeckel exigiria um ensaio inteiro para ser explicada e explorada,
mas ele tentou uma mediação entre Huxley e Agassiz, considerando essas criaturas em parte como
colônias (a teoria poliindividual, em suas palavras) e em parte como organismos (a teoria
poliorgânica). Haeckel também usou os sifonóforos, como Huxley o fizera, para ilustrar, por meio de
uma dúbia analogia, as suas opiniões sobre a organização apropriada das sociedades humanas. No
seu Über Arbeitsheilung in Natur und Menschenleben (Sobre a divisão de trabalho na natureza e na
vida humana), ele comparou as colônias simples de outros cnidários com o estilo de vida dos
humanos “primitivos” e a sua divisão limitada de trabalho, aplicada a tarefas repetitivas, executadas
por todos: “Os povos selvagens da natureza, que permaneceram no nível mais baixo até nossos dias,
carecem tanto de cultura quanto de divisão de trabalho — ou limitam a divisão de trabalho, como a
maioria dos animais, às diferentes tarefas dos dois sexos.” Ele então comparou as colônias
complexas de sifonóforos com os “avanços” que a divisão de trabalho permite nas sociedades
humanas “superiores” — inclusive a guerra moderna, onde instrumentos de destruição “requerem
centenas de mãos humanas, trabalhando de modos e maneiras diferentes”.
Podemos sugerir agora alguma solução para este velho debate, alguma mediação possível entre
dois critérios legítimos que parecem oferecer resultados antagônicos — o critério da história
sustentando a teoria poliindividual (os sifonóforos são colônias, e as suas partes são indivíduos) e o
critério da função atual sustentando a teoria poliorgânica (os sifonóforos são organismos, e as suas
partes são órgãos)? Podemos inclinar a balança a favor de um ou de outro parecer invocando o
terceiro grande critério da história natural — crescimento e forma?
O crescimento e a forma nos fornecem um embarras de richesse ao nos apresentar evidências a
favor e contra ambas as teorias. Como forte ponto a favor da teoria poliorgânica, os sifonóforos se
desenvolvem a partir de um único óvulo fertilizado. Um sifonóforo começa a vida inequivocamente
como um indivíduo — não deveríamos considerar qualquer desenvolvimento posterior como uma
elaboração deste indivíduo fundador? Além disso, o sifonóforo adulto age como um objeto distinto.
Muitas espécies exibem uma simetria definida e complexa que governa todas as partes consideradas
em conjunto. Algumas caravelas, por exemplo, surgem em versões destras e canhotas.
Contudo, podemos também citar bons argumentos a favor da teoria poliindividual. Sabe-se que
cada colônia inicia a vida como um óvulo único, mas então desenvolve uma série de entidades —
indivíduos plenos, neste sentido — por meio de brotamento a partir de um talo comum. Este modo de
crescimento é familiar em muitos agregados convencionalmente considerados como colônias. Um pé
de bambu pode ter sua origem remontada a uma única semente, e, no entanto, em geral vemos cada
caule brotado como um indivíduo.
Além disso, estruturas altamente especializadas às vezes carregam partes vestigiais que servem
de testemunho da sua condição de indivíduos. Na teoria poliindividual, por exemplo, os nectóforos
são medusas que perderam todos os órgãos alimentares e digestivos, conservando apenas o guarda-
chuva das águas-vivas. Por outro lado, alguns nectóforos desenvolvem tentáculos rudimentares;
existe uma espécie em que os tentáculos conservam até mesmo os ocelos. As brácteas protetoras são
as partes mais modificadas e especializadas dos sifonóforos, mas as brácteas de duas espécies
conservam uma boca vestigial — uma indicação de que elas surgiram como indivíduos medusóides
plenos.
Mais uma vez a questão parece duvidosa. Poderíamos solucionar nosso paradoxo se o
crescimento ocorresse em um dos dois modos — mas a natureza não é obsequiosa. Se todas as
estruturas iniciassem o crescimento como indivíduos completos, com um conjunto completo de
órgãos, e então perdessem os pedaços desnecessários à medida que se especializassem para as
funções de nadar, proteger ou comer, a teoria poliindividual ganharia um bom impulso. Se os brotos
do talo principal começassem como indivíduos completos e então se desarticulassem — as partes em
forma de campânula tornando-se nectóforos e as partes tentaculares tornando-se sifões, por exemplo
— então a teoria poliorgânica se afirmaria. Mas a maioria das partes especializadas simplesmente
cresce como as encontramos. Os nectóforos diferenciam-se como nectóforos, as brácteas como
brácteas. Estamos imersos num conflito insolúvel entre critérios igualmente legítimos: brotos
distintos crescem como um indivíduo com partes especializadas como um órgão. O que dizer, por
exemplo, de um gonóforo, a medusa reprodutora degenerada que brota de um pólipo? Se ela se
separa da colônia, podemos achar melhor considerar o gonóforo como um organismo. Mas ela não
tem boca e não pode se alimentar: deve, portanto, morrer após liberar as células sexuais.
Deveríamos chamar de indivíduo uma máquina reprodutora tão limitada? E se o gonóforo permanece
ligado à colônia, como geralmente faz, deveríamos considerá-lo como algo mais que um órgão
sexual?
Quando uma investigação se torna tão intrincada, somos obrigados a suspeitar que estamos indo
pelo caminho errado. Temos de voltar, mudar as marchas, e reformular o problema, não perseguir
cada nova minúcia de informação ou nuance de argumento no velho estilo, o tempo todo com a
esperança de que a nossa arredia solução aguarda um item crucial ainda não descoberto.
Em alguns aspectos, a natureza se nos apresenta como continuidades, não como objetos distintos
com fronteiras nítidas. Uma das muitas continuidades da natureza parte das colônias, numa ponta, até
os organismos, na outra. Mesmo os termos básicos — organismo e colônia — não têm definições
precisas e inequívocas. Podemos, porém, usar os dois critérios do nosso vernáculo como guia.
Inclinamo-nos a chamar um objeto biológico de organismo se ele não mantiver nenhuma ligação
física permanente com outros, e se as suas partes forem tão bem integradas que operem apenas em
coordenação e para o funcionamento adequado do todo.
A maioria das criaturas encontra-se perto de uma ponta ou da outra dessa continuidade, e não
temos nenhum problema para defini-las como organismos ou colônias. As pessoas são organismos —
embora todas as criaturas multicelulares tenham provavelmente surgido como colônias há cerca de
um bilhão de anos. Essa origem é tão distante, e tanta coisa aconteceu desde então, que não
detectamos nenhum sinal dessa condição de colônia em nosso funcionamento atual. Assim, somos
organismos em qualquer acepção sensata do termo. Os corais construtores de recifes são colônias
porque cada pólipo é uma criatura completa, independente, plenamente funcional por si só, apesar de
ligada a seus semelhantes.
Mas como a natureza construiu uma continuidade que vai da colônia ao organismo, devemos
encontrar ambiguidade no centro. Será impossível dar nome a alguns casos — devendo-se isso a uma
propriedade da natureza e não a uma imperfeição do conhecimento. Considere- se uma progressão
que vai de um organismo inequívoco até o centro indefinível. As sociedades humanas são feitas de
organismos; cada pessoa é geneticamente distinta e espacialmente separada. E as formigas? Ainda
optamos pela denominação de organismos, embora as formigas possam submergir sua
individualidade em sociedades constituídas de modo tão rígido que alguns naturalistas se referem a
uma colônia de formigas como um superorganismo.
E os afídios? A nitidez começa a se desfazer. Todos os membros de um clone de afídios são
fêmeas; cada mãe fundadora desenvolve seus filhos dentro do próprio corpo sem fecundação. Toda a
sua prole é geneticamente idêntica. O clone é um agregado de indivíduos separados ou um corpo
evolucionário gigante com vários milhares de partes separadas, todas idênticas? (Um proeminente
biólogo evolucionário recentemente defendeu este segundo parecer).
E um pé de bambu? Mais difícil ainda. Todos os caules são membros de um clone; são idênticos
geneticamente e ligados a um rizoma subterrâneo comum. Cada planta acima do chão é um indivíduo
ou uma parte? Em geral, ainda optamos por indivíduos (embora alguns biólogos levantem objeções)
porque cada planta parece quase a mesma coisa e tem um conjunto completo de estruturas (Como os
botânicos enfrentam este dilema com mais frequência que os zoólogos, eles criaram uma terminologia para esses casos ambíguos —
“touceira” para o agregado inteiro e “ramos” para cada conjunto repetido de partes. Essa nova terminologia não é uma solução, mas
apenas um reconhecimento formal de que a questão não pode ser solucionada com nossos conceitos usuais de individualidade).
Por fim, o que dizer, então, dos sifonóforos? Estamos bem no meio de uma continuidade, e não
podemos oferecer uma resposta clara. Pela história, as partes de um sifonóforo são indivíduos; pela
função atual, órgãos, pelo crescimento, um pouco de cada coisa. Nossos critérios de separação e
operação independente falharam, mas não podemos rejeitar uma história que ainda está bem diante
dos nossos olhos.
Os sifonóforos não transmitem a mensagem — um tema favorito do romantismo irracional — de
que a natureza nada mais é que um todo gigantesco, com todas as suas partes intimamente ligadas e
interagindo numa harmonia superior, inefável. A natureza compraz-se com fronteiras e distinções;
habitamos um universo de estruturas. Mas como o nosso universo de estruturas evolui historicamente,
ele nos oferece fronteiras imprecisas, onde um tipo de coisa se converte gradualmente em outra. Os
objetos presentes nessas fronteiras continuarão a nos confundir e frustrar enquanto persistirmos em
seguir velhos hábitos de pensamento e insistirmos em que todas as partes da natureza sejam
rigidamente classificadas para satisfazer os nossos pobres e sobrecarregados intelectos.
O paradoxo do sifonóforo tem uma respostazinha, e até que profunda. A resposta é que fizemos a
pergunta errada — uma pergunta que não tem nenhum significado porque seus pressupostos violam os
processos da natureza. Os sifonóforos são organismos ou colônias? Os dois e nenhum; eles se
encontram no meio de uma continuidade, onde uma coisa se transforma gradualmente em outra.
O paradoxo do sifonóforo é esclarecedor, não desalentador. Não pode ser solucionado, mas
quando compreendemos por que, compreendemos uma grande verdade sobre a estrutura da natureza.
Os sifonóforos transmitem a mesma mensagem que aquele velho caso da senhora que vai ao açougue
certa manhã de sexta-feira, procurando um frango grande para a refeição do sábado. O açougueiro
olha no depósito e descobre com pesar que só tem um animal bem magro. Ele o retira com ostentação
e coloca-o na balança. Duas libras. “Muito pequeno”, diz a senhora. Ele leva embora o animal, finge
procurar outro em meio a uma pilha de alternativas inexistentes, tirando por fim o mesmo frango,
colocando-o na balança, desta vez, dando uma ajudazinha com o polegar. Três libras. “Ótimo”, diz a
senhora. “Vou levar os dois” (O dr. S. I. Joseph contou-me depois ter visto a mesma senhora mais tarde, naquele mesmo dia,
numa barraca de frutas. Ela estava perguntando pelo preço da toranja. “Duas por trinta e cinco cents”, disseram. “Quanto custa uma?”,
ela perguntou. “Vinte cents”, foi a resposta. “Ótimo”, ela disse: “Vou levar a outra”). Coisas que parecem separadas muitas
vezes são os lados diferentes de uma unidade.
2. Teoria e percepção
6. O umbigo de Adão

A ampla folha da figueira serviu muito bem aos nossos antepassados artísticos como um escudo
botânico contra a exibição indecente de Adão e Eva, nossos progenitores nus, na primitiva bem-
aventurança e na inocência do Éden. Contudo, em várias pinturas antigas, a folhagem esconde mais
do que os órgãos genitais de Adão; um ramo serpenteante cobre também o seu umbigo. Se o pudor
prescrevia a cobertura genital, um motivo bem diferente — o mistério — punha-lhe uma planta sobre
o ventre. Num debate teológico mais portentoso que a velha discussão sobre anjos em cabeças de
alfinetes, muitos fiéis sinceros perguntaram a si mesmos se Adão tinha ou não umbigo.
Afinal, ele não nascera de uma mulher e não precisava de nenhum resquício de seu cordão
umbilical inexistente. No entanto, ao criar um protótipo, Deus não faria o primeiro homem como
todos os outros que viriam a seguir? Deus não iria, em outras palavras, criá-lo com a aparência de
preexistência? Na falta de uma orientação definida para a solução desse embaraçoso problema, e não
querendo incorrer na ira de ninguém, muitos pintores literalmente cercaram e cobriram o ventre de
Adão.
Alguns séculos mais tarde, quando a então nascente ciência da geologia colhia provas da imensa
antiguidade da Terra, alguns defensores da interpretação literal da Bíblia ressuscitaram essa velha
discussão, aplicando-a ao planeta inteiro. Os estratos geológicos e os fósseis neles sepultados
certamente pareciam representar um registro sequencial de incontáveis anos, mas Deus não criaria a
Terra com a aparência de preexistência? Por que não deveríamos acreditar que ele criou as camadas
geológicas e os fósseis para dar à vida moderna uma ordem harmoniosa, conferindo-lhe um sensato
(ainda que ilusório) passado? Assim como Deus proporcionou um umbigo a Adão para enfatizar a
continuidade nos homens futuros, ele concedeu a um mundo intacto a aparência de uma história
ordenada. Desse modo, a Terra podia ter apenas alguns milhares de anos, como o Gênesis afirmava
literalmente, e ainda assim conservar o registro de uma história aparente de eras incontáveis.
Esse argumento, tantas vezes citado como exemplo principal da razão em sua faceta mais perfeita
e preciosamente ridícula, foi apresentado com a maior seriedade e amplitude pelo naturalista
britânico Philip Henry Gosse em 1857. Gosse homenageou adequadamente o contexto histórico ao
escolher o título de seu volume. Ele lhe deu o nome de Omphalos (umbigo, em grego), em
homenagem a Adão, e acrescentou como subtítulo: Uma tentativa de desatar o nó geológico.
Como Omphalos é um disparate tão espetacular, os leitores podem perguntar, justificadamente,
por que me proponho a discuti-lo. Faço-o, antes de mais nada, porque o seu autor era um homem
muito sério e fascinante, e não um excêntrico ou incorrigível insatisfeito. Qualquer paixão honesta
merece a nossa atenção, ainda que apenas pelo mais antigo dos motivos já declarado: o famoso
Homo sum: humani nihil a me alienum puto de Terêncio (sou humano e, portanto, não indiferente a
nada que tenha sido feito por humanos).
Philip Henry Gosse (1810-1888) foi o David Attenborough de sua época, o melhor popularizador
na Grã-Bretanha dos fascínios da natureza. Ele escreveu uma dúzia de livros sobre plantas e animais,
fez várias conferências para públicos populares e publicou várias dissertações técnicas sobre
invertebrados marinhos. Além disso, numa época que encontrava no forte sentimento religioso um
modo de expressar paixões humanas que não tinham outro escoadouro, ele era um radical e
empenhado fundamentalista da seita dos Irmãos de Plymouth. Embora a sua História das anémonas
marinhas britânicas e outras divagações sortidas de história natural não sejam mais lidas, Gosse
mantém certa notoriedade como a figura paterna daquela obra clássica de auto-análise e confissão
pessoal, típica do fim da era vitoriana, o maravilhoso relato, de autoria de seu filho Edmund, da luta
de um jovem contra o sufocante extremismo religioso imposto por um pai atencioso e amado —
Father and Son.
Meu segundo motivo para considerar Omphalos invoca o mesmo tema que envolve tantos desses
ensaios sobre as pequenas singularidades da natureza: exceções realmente provam regras (provam,
isto é, no sentido de submeter à prova ou testar, não de confirmar). Se você quer compreender o que
as pessoas comuns fazem, um dissidente sério irá ensiná-lo mais que dez mil sólidos cidadãos.
Quando entendermos por que Omphalos é tão inaceitável (e, a propósito, não é pelo motivo que
comumente se alega), compreenderemos melhor como a ciência e a lógica útil procedem. De
qualquer modo, como exercício na antropologia do conhecimento, Omphalos não tem paralelo —
pois a sua incomparável estranheza surgiu na mente de um imperturbável inglês, cujo caráter geral e
cenário cultural podem ser vistos como similares aos nossos, ao passo que os sistemas exóticos de
culturas estrangeiras são terra incógnita tanto pelo conteúdo quanto pelo contexto.
Para compreender Omphalos, devemos começar com um paradoxo. O argumento de que as
camadas geológicas e os fósseis foram todos criados simultaneamente com a Terra e que apresentam
apenas uma ilusão de tempo decorrido seria apreciado com mais facilidade se o seu autor fosse um
teólogo urbano, de gabinete, sem qualquer sentimento ou afeição pelas obras da natureza. Mas como
era possível que um naturalista entusiástico, que passara dias, ou melhor, meses, em excursões
geológicas, que estudara fósseis por horas e horas, aprendendo a distingui-los e memorizando seus
nomes, ficasse satisfeito com a perspectiva de que esses objetos de sua devotada atenção nunca
houvessem existido — que fossem, na verdade, uma espécie de piada grandiosa perpetrada contra
nós pelo Senhor de Tudo?
Philip Henry Gosse foi o melhor naturalista descritivo de seus dias. Seu filho escreveu: “Como
compilador de fatos e organizador de observações, ele não teve rival naquela época.” O problema
encontra-se na costumeira caricatura de Omphalos como sendo uma afirmação de que Deus, ao
modelar a Terra, havia mentido, de modo consciente e elaborado, para testar a nossa fé ou apenas
para satisfazer algum inescrutável acesso de humor arcano. Gosse, tão fervorosamente comprometido
com seus fósseis e com seu Deus, propôs uma interpretação conflitante, que nos mandava estudar
geologia com diligência e respeitar todos os seus fatos, muito embora eles não possuíssem existência
alguma no tempo real. Quando entendermos por que um empiricista dedicado pôde aceitar o
argumento de Omphalos (“criação com aparência de preexistência”), só então poderemos
compreender as suas falácias mais profundas.
Gosse inicia sua argumentação com uma premissa central dúbia. Todos os processos naturais,
declarou ele, movem-se infinitamente num círculo: de ovo para galinha para ovo, de semente para
carvalho para semente.

Esta, então, é a ordem de toda a natureza orgânica. Assim que nos achamos em alguma parte do
curso, vemo-nos correndo numa trilha circular, tão infinita quanto o curso de um cavalo cego num
moinho. ... [Nos moinhos pré-mecanizados, os cavalos usavam antolhos ou, triste dizer, eram
efetivamente cegados, para que continuassem a andar em círculos e não tentassem seguir em
frente, como tendem a fazer os cavalos que se valem de orientações visuais.] Esta não é a lei de
uma espécie particular, mas de todas: ela permeia todas as classes de animais, todas as classes
de plantas, desde a majestosa palmeira ao protocolo, desde a mônada ao homem: a vida de todo
ser orgânico está girando num círculo interminável, ao qual não se sabe como atribuir qualquer
início. ... A vaca é uma sequencia tão inevitável do embrião, quanto o embrião é da vaca.

Quando Deus cria, e Gosse não alimentava a menor dúvida de que todas as espécies haviam
surgido por mando divino, sem nenhuma evolução subsequente, ele deve surgir (ou “irromper”, como
escreveu Gosse) em algum lugar desse círculo ideal. Seja qual for o lugar em que Deus penetra no
círculo (ou “coloca a hóstia da criação”, como expressou metaforicamente Gosse), seu produto
inicial deve carregar traços de estágios anteriores do círculo, mesmo que esses estágios não tenham
qualquer existência no tempo real. Se Deus escolheu criar humanos como adultos, seus cabelos e
unhas (para não falar de seus umbigos) testemunham um crescimento anterior que nunca ocorreu.
Mesmo que ele decida nos criar como um simples óvulo fertilizado, essa forma inicial implica o
ventre de uma mãe fantasma e dois progenitores inexistentes para a transmissão do fruto da herança.

A criação nada mais pode ser que uma série de irrupções em círculos... Supondo que a irrupção
tenha ocorrido na parte do círculo que melhor nos aprouver, e variando indefinidamente esta
condição de acordo com nossa vontade, não podemos evitar a conclusão de que cada organismo
foi desde o início marcado com os antecedentes de um ser anterior. Mas como a criação e a
história anterior são incompatíveis entre si, como a própria ideia da criação de um organismo
exclui a ideia da preexistência desse organismo ou de qualquer parte dele, conclui-se que, na
medida em que testemunham o tempo, esses antecedentes são falsos.

Gosse então inventou uma terminologia para contrastar as duas partes de um círculo antes e
depois de um ato de criação. Ele denominou como “procrônico”, ou ocorrendo fora do tempo, as
aparências de preexistência efetivamente modeladas por Deus no momento da criação, mas que
parecem indicar estágios anteriores no círculo da vida. Os eventos subsequentes, que ocorrem após a
criação, e que se desenrolam no tempo convencional ele chamou de “diacrônicos”. O umbigo de
Adão era procrônico, os 930 anos de sua vida terrena, diacrônicos.
Gosse dedicou mais de trezentos páginas, mais ou menos 90% de seu texto, a uma simples lista
de exemplos para uma pequena parte de sua argumentação completa, a seguinte — se as espécies
surgem por meio de criação repentina em qualquer ponto de seu ciclo vital, a sua forma inicial deve
apresentar aparências ilusórias (procrônicas) de preexistência. Permitam-me escolher apenas uma
dentre as suas numerosas ilustrações, para caracterizar seu estilo de argumentação e apresentar sua
prosa gloriosamente floreada. Se Deus criou os vertebrados como adultos, afirmava Gosse, seus
dentes indicam um passado procrônico nos padrões de uso e substituição.
Gosse leva-nos numa excursão imaginária pela vida, apenas uma hora depois de sua criação no
meio selvagem. Ele se detém no litoral e perscruta as ondas distantes:

Vejo lá ao longe um... terrível tirano do mar. ... E o medonho tubarão. Quão furtivamente desliza
ele. ... Olhemos dentro de sua boca. ... Não é mesmo uma coleção aterradora de facas e lancetas?
Não é mesmo uma valise de instrumentos cirúrgicos suficiente para lhe dar arrepios? O que seria
a amputação de sua perna para esta fileira de escalpelos triangulares?

No entanto, os dentes crescem em espirais, um atrás do outro, cada um esperando por sua vez
enquanto os dentes em uso se desgastam e caem:

Segue-se, portanto, que os dentes que agora vemos, eretos e ameaçadores, são os sucessores de
dentes antigos que se foram, e que estiveram dormentes como os que agora vemos por trás deles.
... Daí, os fenômenos obrigam-nos a atribuir uma longa existência passada a esse animal, ao qual,
no entanto, a vida foi dada há uma hora.

Caso se tente argumentar que os dentes atualmente em uso são os primeiros membros da espiral,
não implicando predecessor algum, Gosse replica dizendo que o seu estado de desgaste indica um
passado procrônico. Caso se sugira que esses dentes iniciais poderiam estar incólumes num tubarão
recém-criado, Gosse segue rumo a outro exemplo.

Adiante, para um rio mais largo. Aqui chafurda e se diverte o enorme hipopótamo. O que
podemos dizer de sua dentição?

Todos os hipopótamos adultos modernos possuem caninos e incisivos profundamente desgastados


e lascados, um sinal claro de uso ativo no decorrer de uma longa vida. Não podemos, porém, assim
como dizemos com o nosso tubarão, argumentar que um hipopótamo recém-criado poderia ter dentes
frontais agudos e intactos? Gosse argumenta, corretamente, que nenhum hipopótamo conseguiria
funcionar de forma adequada com dentes em tal estado. Um hipopótamo criado adulto deve ter dentes
gastos como provas de um passado procrônico:

As superfícies polidas dos dentes, gastos pela ação mútua, fornecem uma evidência notável do
lapso de tempo. Alguém possivelmente pode objetar. ... “Que direito você tem de supor que esses
dentes estavam gastos no momento de sua criação, admitindo-se que o animal foi criado adulto.
Eles não podiam estar inteiros?” Eu retruco: Impossível: os dentes do hipopótamo ser-lhe-iam
perfeitamente inúteis, exceto em sua condição desgastada: mais ainda, os caninos intactos teriam
efetivamente impedido que suas mandíbulas se fechassem, sendo necessário então manter a boca
escancarada até que o atrito fosse feito; bem antes do que, é claro, ele morreria de fome. ... O
grau de atrito é meramente uma questão de tempo. ... Que evidência distinta de ação passada e, no
entanto, no caso de um indivíduo criado, quão ilusória!
Isso poderia se prolongar ao infinito (é o que quase acontece no livro), mas permitam-me apenas
mais um exemplo dentário. Gosse, subindo na trajetória topográfica de sua viagem imaginária,
alcança uma floresta interior e encontra a Babirussa, o famoso porco asiático com caninos
superiores salientes que se voltam para trás, quase perfurando-lhe o crânio:

Na folhagem cerrada deste bosque de noz-moscada há uma babirrussa;


vamos examiná-la. Aqui está ela, quase submersa em seu tépido lago.
Gentil suíno da presa circular, faça o obséquio de abrir sua boca formosa!

O porco, criado por Deus há apenas uma hora, aquiesce, exibindo desse modo seus molares
gastos e, em particular, os próprios caninos arqueados, produtos de um crescimento prolongado e
contínuo.
Acho esta parte da argumentação de Gosse inteiramente satisfatória como solução, dentro dos
limites de seus pressupostos, para aquele clássico dilema de raciocínio (comparável em importância
aos anjos em cabeças de alfinete e ao umbigo de Adão): “O que veio primeiro, o ovo ou a galinha?”
A resposta de Gosse: “Qualquer um, à vontade de Deus, com traços procrônicos do outro.” Mas os
argumentos são tão bons apenas quanto às suas premissas, e o inspirado disparate de Gosse fracassa
porque uma suposição alternativa, agora aceita como indubitavelmente correta, torna a questão
irrelevante — ou seja, a própria evolução. Os círculos de Gosse não giram eternamente; cada ciclo
vital remonta a uma linhagem proveniente de substâncias químicas inorgânicas de um oceano
primitivo. Se os organismos surgiram por meio de atos de criação ab nihilo, então o argumento de
Gosse sobre traços procrônicos deve ser respeitado. Por outro lado, se os organismos evoluíram até
o seu estado atual, Omphalos descamba para a irrelevância colossal. Gosse compreendeu muito bem
esta ameaça e preferiu enfrentá-la rejeitando-a abruptamente. A evolução, concordava ele,
desacreditava o seu sistema, mas apenas um tolo podia aceitar tão patente bobagem e idolatria.
(Gosse escreveu Omphalos dois anos antes que Darwin publicasse A origem das espécies).

Se alguém prefere sustentar, como muitos fazem, que as espécies foram gradualmente trazidas à
sua atual maturidade a partir de formas mais humildes... ele tem toda a liberdade de manter a sua
hipótese, mas eu nada tenho a ver com isso. Estas páginas não o tocarão.
No entanto, Gosse veio então a se defrontar com uma segunda e maior dificuldade: o argumento
procrônico pode funcionar para organismos e seus ciclos vitais, mas como pode ser aplicado à Terra
inteira e aos seus registros fósseis — porque Gosse pretendia que Omphalos fosse um tratado que
reconciliasse a Terra com a cronologia bíblica, “uma tentativa de desatar o nó geológico”. Suas
afirmações sobre partes procrônicas de organismos têm a finalidade apenas de apoio colateral para o
argumento geológico principal. E a asserção geológica de Gosse fracassa precisamente porque
repousa nessa analogia tão dúbia com aquilo que ele reconhece (já que lhe deu tão mais espaço)
como um argumento muito mais forte sobre os organismos modernos.
Gosse tentou bravamente estender à Terra inteira as mesmas duas premissas que faziam com que
sua argumentação funcionasse quando aplicada aos organismos. Mas um mundo relutante rebelou-se
contra tal raciocínio forçado e Omphalos desabou sob o peso de toda a sua ilogicidade. Gosse
primeiro tentou argumentar que todos os processos geológicos, assim como os ciclos vitais
orgânicos, se movem em círculos:

O problema a ser solucionado, então, antes que possamos determinar com certeza a questão da
analogia entre o globo e o organismo, é esta: A história vital do globo é um círculo? Se é (e
existem muitos motivos para que isso seja provável), então estou certo de que o procronismo
deve ter sido evidente na sua criação, já que não existe nenhum ponto em um círculo que não
implique pontos anteriores.

Gosse, porém, nunca poderia documentar qualquer ciclicidade geológica inevitável, e a sua
argumentação se perde num mar de retórica e alusões bíblicas tiradas do Eclesiastes: “Todos os rios
entram no mar, e o mar nem por isso transborda; os rios voltam ao mesmo lugar de onde saíram para
tornarem a correr.”
Em segundo lugar, para tornar os fósseis procrônicos, Gosse tinha de estabelecer uma analogia
tão cheia de falhas que faria o mais ardente verificador mental estremecer — o embrião está para o
adulto como o fóssil está para o organismo moderno. Pode-se admitir que galinhas requeiram ovos
anteriores, mas por que deveria um réptil moderno (especialmente para um antievolucionista como
Gosse) estar necessariamente ligado a um dinossauro anterior como parte de um ciclo cósmico? Um
pitão certamente não implica um sepultamento inelutável de um Triceratops ilusório em camadas
geológicas procrônicas.
Com este compêndio da argumentação de Gosse, temos condições de resolver o paradoxo
proposto no início. Gosse podia aceitar as camadas geológicas e os fósseis como ilusórios e ainda
assim defender o seu estudo porque ele não considerava a parte “procrônica” de um ciclo menos
“verdadeira” ou informativa do que o seu segmento dia- crônico convencional. Deus decretou dois
tipos de existência — uma construída simultaneamente com a aparência de tempo transcorrido, a
outra progredindo sequencialmente. Ambas combinam-se harmoni- camente para constituir círculos
ininterruptos que, em sua ordem e majestade, nos dão um discernimento dos pensamentos e planos de
Deus.
A parte procrônica não é nem uma piada, nem um teste de fé; ela representa a obediência de Deus
à sua própria lógica, dada a sua decisão de ordenar a criação em círculos. Como pensamentos na
mente de Deus, solidificados em pedra por meio de criação ab nihilo, as camadas geológicas e os
fósseis são tão verdadeiros como se registrassem os produtos do tempo convencional. Um geólogo
deveria estudá-los com o mesmo cuidado e zelo, pois aprendemos as leis de Deus tanto a partir de
seus objetos procrônicos quanto dos diacrônicos. A escala temporal geológica não é mais
significativa como padrão do que como um mapa dos pensamentos de Deus.

A aceitação dos princípios apresentados neste volume... não afetaria, no menor grau que fosse, o
estudo da geologia científica. O caráter e a ordem das camadas geológicas; ... as sucessivas
floras e faunas; e todos os outros fenômenos continuariam a ser fatos. Eles continuariam a ser,
como são agora, objetos legítimos de exame e investigação... Ainda poderíamos falar da duração
inconcebivelmente longa do processo em questão, contanto que o tempo fosse compreendido
como ideal, em vez de efetivo — que a duração foi projetada na mente de Deus, e não que tenha
existido realmente.

Assim, Gosse oferecia Omphalos aos cientistas praticantes como uma solução útil para conflitos
religiosos potenciais, não como um desafio aos seus processos ou à relevância de suas informações.
Seu filho, Edmund, escreveu sobre as grandes esperanças que Gosse nutria em relação a
Omphalos:

Nunca um livro foi lançado com maiores expectativas de sucesso como este curioso, este
obstinado, este fanático volume. Meu pai viveu numa febre de suspense, esperando pelo tremendo
lançamento. Este seu Omphalos, pensava ele, poria fim a toda a desordem da especulação
científica, arremessaria a geologia nos braços das Escrituras, faria com que o leão pastasse ao
lado do cordeiro.
No entanto, os leitores receberam Omphalos com descrença, escárnio ou, pior ainda, com um
silêncio de espanto. Edmund Gosse prosseguiu:

Ele o ofereceu, com um gesto apaixonado, a ateus e cristãos, igualmente. Esta tinha de ser a
panacéia universal, este, o sistema de terapêutica intelectual que não poderia deixar de curar
todas as doenças da época. Mas, ai! Ateus e cristãos, igualmente, olharam, riram e jogaram-no
fora.

Embora Gosse se reconciliasse com um Deus capaz de criar um passado ilusório tão
minuciosamente detalhado, tal noção era um anátema para a maioria de seus compatriotas. Os
britânicos são um povo prático, empírico, “uma nação de lojistas”, na famosa expressão de Adam
Smith; eles tendem a respeitar os fatos da natureza de acordo com o seu significado manifesto e
raramente veem com bons olhos os sistemas complexos, de interpretação não óbvia, tão populares
em boa parte do pensamento europeu. O procronismo era simplesmente demais para se engolir. O
reverendo Charles Kingsley, um líder intelectual de inquestionável devoção tanto a Deus quanto à
ciência, deu voz a um consenso ao declarar que não podia “renunciar à penosa e lenta conclusão de
vinte e cinco anos de estudo de geologia e crer que Deus escrevera nas rochas uma enorme e
supérflua mentira”.
E assim tem acontecido com o argumento de Omphalos desde então. Gosse não o inventou, e,
desde então, uns poucos criacionistas ressuscitaram-no de tempos em tempos. Mas a ideia nunca foi
bem- vinda ou popular porque viola nossa noção intuitiva da benevolência divina como sendo livre
de qualquer comportamento desonesto — pois, enquanto Gosse via o brilhantismo divino na ideia de
procronismo, a maioria das pessoas não consegue se livrar da teimosa sensação de que isso cheira a
trapaça, velha e deslavada. Nossos modernos criacionistas americanos rejeitam-no como imputando
a Deus um caráter moral dúbio e optam, ao contrário, pela noção ainda mais ridícula de que as
nossas milhas de camadas fossilíferas são todas produtos do Dilúvio e que podem, portanto, ser
encaixadas na escala de tempo literal do Gênesis.
Mas o que há de tão desesperadamente errado com Omphalos'? Apenas isto, realmente (e talvez
paradoxalmente): o fato de que não podemos inventar um modo de descobrir se ele está errado — ou,
a propósito, certo. Omphalos é o exemplo clássico de uma noção absolutamente inaveriguável, pois
o mundo será exatamente o mesmo, em todos os seus intrincados detalhes, quer os fósseis e as
camadas geológicas sejam procrônicas, quer sejam produtos de uma história extensa. Quando
percebermos que Omphalos deve ser rejeitado por causa deste absurdo metodológico, e não por
qualquer inexatidão concreta comprovada, então compreenderemos a ciência como um modo de
saber, e Omphalos servirá seu propósito de contraste ou estímulo intelectual.
A ciência é um processo para colocar à prova e rejeitar hipóteses, não um compêndio de certo
conhecimento. Afirmações cuja incorreção pode ser provada encontram-se dentro do seu domínio
(como enunciados falsos, é claro, mas como propostas que vão de encontro às exigências do critério
metodológico primário da averiguabilidade). No entanto, as teorias que não podem ser averiguadas
em princípio não são parte da ciência. A ciência é fazer, não cogitação engenhosa; rejeitamos
Omphalos como inútil, não como errado.
O erro profundo de Gosse estava na sua incapacidade de compreender plenamente este caráter
essencial do raciocínio científico. Ele cavou sua própria sepultura ao enfatizar continuamente que
Omphalos não fazia nenhum diferença prática — que o mundo seria exatamente o mesmo com um
passado procrônico ou diacrônico. (Gosse achava que esta concessão tornaria seu argumento
aceitável para os geólogos convencionais; ele nunca percebeu que podia apenas levá-los a rejeitar
seu esquema inteiro como irrelevante.) “Não sei”, escreveu ele, “de uma única conclusão, agora
aceita, a que se teria de renunciar, exceto a da cronologia real.”
Gosse enfatizava que não podemos saber onde Deus pôs sua hóstia da criação no círculo cósmico
porque os objetos procrônicos, criados ab nihilo, se parecem exatamente com produtos diacrônicos
do tempo real. Aos que argumentavam que os coprólitos (excremento fossilizado) provam a
existência de animais ativos, que se alimentavam num passado geológico real, Gosse retrucava
dizendo que assim como Deus criaria adultos com fezes nos intestinos, assim também ele colocaria
pedaços de merda petrificada nas camadas geológicas por ele criadas. (Não estou inventando este
exemplo para conseguir efeito cômico; você o encontrará na pág. 353 de Omphalos.) Assim, com
estas palavras, Gosse selou o seu destino e colocou-se fora do domínio da ciência:

Agora, repito novamente, não há diferença imaginável a ser percebida entre o desenvolvimento
procrônico e o diacrônico. Todo argumento pelo qual o fisiologista pode provar a demonstração
de que aquela vaca foi um feto no útero de sua mãe poderá ser aplicado com a mesma força para
demonstrar que a vaca recém-criada foi um embrião alguns anos antes de sua criação. ... Não há
nada nos fenômenos, e não pode haver, que indique um início ali, não mais do que acolá, ou, na
verdade, em qualquer lugar que seja. O início, como fato, devo saber por meio de testemunho;
não tenho meio algum de inferi-lo a partir dos fenômenos.

Gosse ficou emocionalmente aniquilado pelo fracasso de Omphalos. Durante as longas noites do
inverno de seu desgosto, no frio de janeiro de 1858, ele sentava-se perto do fogo com o filho de oito
anos, tentando evitar os pensamentos amargos com a discussão dos horríveis detalhes de assassinatos
do passado e do presente. O jovem Edmund ouviu falar de Mrs. Manning, que enterrou sua vítima em
cal viva e foi enforcada em cetim negro; de Burke e Hare, os vampiros escoceses, e do “mistério da
mala”, uma porção de órgãos humanos cuidadosamente esquartejados pendurada num pilar da Ponte
Waterloo. Este talvez não tenha sido o tema mais adequado para um rapaz impressionável (Edmund,
de acordo com suas próprias lembranças, ficava “quase petrificado de horror”), mas, ainda assim,
dá-me certo conforto pensar que Philip Henry Gosse, golpeado pela dor de ter recusada a sua teoria
inaveriguável, pôde encontrar refúgio em algo tão inequivocamente real, tão absolutamente concreto.

Pós-escrito

Soube depois que um de meus escritores favoritos, Jorge Luis Borges, escreveu um breve e
fascinante comentário sobre Omphalos (A criação e P. H. Gosse” em Other Inquisitions, 1937-1952,
publicado em 1964 pela University of Texas Press, tradução de Ruth L. C. Simms). Borges começa
citando várias referências literárias à ausência de umbigo em nossos progenitores primordiais. Sir
Thomas Browne, como metáfora do pecado original, escreve em Religio Medici (1642), “o homem
sem umbigo ainda vive em mim”; e James Joyce, no primeiro capítulo de Ulisses (o que não se pode
encontrar nesse livro incrível!) diz: “Heva, nua Eva. Ela não tinha umbigo.” Apreciei em particular o
adorável compêndio e o discernimento da conclusão de Borges (embora discorde de seu segundo
ponto essencial): “Gostaria de enfatizar duas virtudes da tese esquecida de Gosse. Primeiro, a sua
elegância algo monstruosa. Segundo: a sua redução involuntária de uma criação ab nihilo ao
absurdo, a sua demonstração de que o universo é eterno, como pensavam o Vedanta, Heráclito,
Espinoza e os atomistas.”
7. O congelamento de Noé

Petiscos de um passado distante muitas vezes reaparecem em nossos dias com uma relevância
surpreendente. Afinal, o pensamento e a emoção humana possuem uma universalidade que transcende
o tempo e converte os diversos estágios da história em teatros que fornecem lições aos atores
modernos.
Quero fazer um relato de vinte anos da história da geologia britânica — mais ou menos de 1820 a
1840. O relato mostra a ciência funcionando do melhor modo possível. Um dos principais geólogos
da Grã-Bretanha propôs uma teoria. Essa proposição, claramente formulada, tinha raízes (como todas
as teorias) na posição social e na constituição psicológica do seu fundador. Mas também era
fundamentada empiricamente e obviamente podia ser posta à prova. A teoria foi posta à prova e
falhou. Seus dois principais defensores retrataram-se francamente e mais tarde conduziram um
esforço para formular explicações diferentes e mais adequadas para os fenômenos que haviam
inspirado a teoria original.
Em 1823, o reverendo William Buckland (1784-1856), primeiro geólogo “oficial” da
Universidade de Oxford, publicou um tratado científico com um título notável, que refletia a tentativa
do autor de amalgamar seus dois mundos profissionais — a religião e a geologia. Ele lhe deu o nome
de Religuiae diluvianae, ou Relíquias do dilúvio. Seu subtítulo indicava o tipo de evidência que
Buckland citaria para fundamentar sua teoria sobre a expressão geológica da catástrofe de Noé:
Observações sobre os restos orgânicos contidos em cavernas, fissuras e cascalho aluvial, e outros
fenômenos geológicos que atestam a ação de um dilúvio universal. A teoria de Buckland foi testada
e rejeitada por geólogos que eram criacionistas e cientistas genuínos. O dilúvio não tem sido uma
questão entre os geólogos durante o último século e meio.
Os fundamentalistas modernos que se autodenominam “criacionistas científicos” ressuscitaram
Noé e fizeram do dilúvio a peça fundamental do seu sistema. Na verdade, eles atribuem todas as
camadas geológicas que contêm fósseis à ação desse único evento, ao passo que Buckland, de modo
muito mais sensato, buscava identificar apenas a delgada cobertura não consolidada de terras pretas
e cascalhos como produtos do dilúvio universal. O reconhecimento do dilúvio como agente
geológico primário foi ordenado pela lei da “ciência da criação” do Arkansas, declarada
inconstitucional em janeiro de 1982. Não conheço melhor ilustração da diferença entre ciência e
pseudociência do que a comparação entre a abordagem racional de Buckland — proposição
concreta, teste e rejeição — e o dogmatismo dos fundamentalistas.
Buckland não foi o primeiro geólogo a propor uma ‘ ‘teoria dilu- viana” ligando o dilúvio de
Noé aos indícios da geologia, mas a sua nova versão possuía as virtudes irmãs da sensatez e da
averiguabilida- de. A vovó das teorias diluvianas (a que agora é tão anacronicamente defendida
pelos criacionistas) vinha sendo discutida há vários séculos — a ideia de que um único dilúvio havia
produzido todos, ou quase todos, os estratos geológicos. Essa versão já não tinha mais credibilidade
no tempo de Buckland, e ele a rejeitou num único parágrafo, escrito em 1836, e que ainda é suficiente
para refutar o que a nossa maioria moralista tentou impingir às crianças do Arkansas:
Alguns tentaram atribuir a formação de todas as rochas estratificadas aos efeitos do Dilúvio
Mosaico; uma opinião que é irreconciliável com a enorme densidade e as subdivisões quase
infinitas dessas camadas, e com as numerosas e regulares sucessões que elas contêm dos restos
de animais e vegetais, os quais diferem mais e mais amplamente das espécies existentes à medida
que os estratos em que os encontramos são mais velhos ou estão dispostos a profundidades
maiores.

Outros geólogos haviam considerado o Dilúvio como um período de sublevamento da superfície


terrestre. Antigas terras afundaram, enquanto novos continentes emergiram das profundezas oceânicas
— explicando desse modo a presença de conchas fossilizadas no topo de montanhas. Mas Buckland
reconhecia que a Terra tinha uma história antiga, pontuada esporadicamente (mas com frequência)
por episódios de soerguimento. Ele não precisava de um dilúvio recente para explicar a topografia
terrestre e o conteúdo geológico de suas montanhas.
O dilúvio de Buckland era um episódio menos acidentado, menos catastrófico, e muito mais fácil
de se acreditar. Ele propunha que as águas diluvianas haviam se erguido acima dos continentes, já
então colocados nas suas posições atuais, haviam-nos mantido submersos apenas por um breve
período — “um dilúvio universal e passageiro”, nas suas palavras — e deixado como memorial
apenas uma camada superficial de terra preta e cascalho e uma série de características topográficas
talhadas pelas águas ao subirem e descerem.
Reliquiae diluvianae não é um tratado teórico bombástico, pomposo e sem sentido sobre todos
os efeitos e causas do Dilúvio, mas um estudo empírico específico de cavernas e da fauna a elas
associadas. Buckland havia examinado anteriormente uma caverna em Kirk- dale, Yorkshire, e
recebera pelos seus esforços a Medalha Copley da Royal Society. Agora ele estendia seu trabalho a
outras cavernas da Grã-Bretanha e a uma série de cavernas e fissuras na Alemanha.
Como argumento geral sustentando a importância das cavernas para a comprovação de um
dilúvio recente e passageiro, Buckland afirmava que as águas em elevação haviam perturbado de tal
modo todos os ambientes a céu aberto que apenas cavernas isoladas preservavam indícios
satisfatórios a respeito da integridade das comunidades ante- diluvianas.

A violência daquela tremenda convulsão destruiu e remodelou tão completamente a forma da


superfície antediluviana, que é apenas nas cavernas, que foram protegidas de seus estragos, que
podemos ter esperanças de encontrar indícios intactos dos eventos do período imediatamente
anterior.

As cavernas estavam cheias de ossos, aprisionados dentro delas pelas águas em ascensão. Os
ossos pertenciam a espécies então residentes nas áreas locais (assim, o Dilúvio não fora violento o
bastante para misturar faunas numa mixórdia aleatória pelo mundo todo). Os ossos eram frescos
(indicando um sepultamento recente), cobertos apenas com a lama trazida pelas águas da inundação
ou então com uma leve cobertura proveniente do gotejamento das cavernas (também indicações de
um dilúvio não muito remoto), e pertenciam a espécies agora extintas mas intimamente relacionadas a
formas modernas (as criaturas menos afortunadas que não haviam encontrado abrigo na arca).
A discussão feita por Buckland da caverna de Kirkdale fornece uma boa ilustração dos seus
métodos e modos de argumentação. Ele encontrou um grande depósito de ossos fossilizados, partidos
em fragmentos angulares, às vezes enfiados na lama, às vezes incrustados em gotejamentos de
calcário da caverna. Invocando uma símile gastronômica de sua própria época, Buckland descreveu
seu tesouro:

Onde a lama era rasa, e as pilhas de dentes e ossos, consideráveis, partes destas projetavam-se
algumas polegadas acima da superfície da lama e da sua crosta estalagmítica; e as extremidades
superiores dos ossos, projetando-se no espaço vazio acima, como as pernas de um pombo
atravessando a crosta de uma torta, tinham uma cobertura delgada de gotejamentos estalagmíticos,
ao passo que suas extremidades inferiores não possuíam tal incrustação, mas simplesmente a
lama aderida na qual haviam sido enterradas.

Buckland usa a maior parte da monografia para provar que Kirkdale era um covil de hienas, e
que os ossos lá presentes haviam sido colhidos e triturados pelos seus residentes. Ele trabalhou,
como todos os bons geólogos, procurando analogias modernas para efeitos antigos. Aprendeu tudo o
que podia sobre hienas, desde os textos latinos de autores clássicos até observações pessoais de
hienas no jardim zoológico de Exeter. Ele provou que os ossos de Kirkdale foram triturados e
partidos em fragmentos angulares iguais aos produzidos pelas hienas modernas e descobriu que as
curiosas esferas de fragmentos de ossos dentro das cavernas eram idênticas aos excrementos de seus
amigos enjaulados de Exeter. Ele também descobriu ossos de hienas em abundância dentro da
caverna — todos eles também triturados e partidos — indicando que as hienas tratam seus mortos do
mesmo modo que as presas e a carniça das outras espécies que constituem sua dieta habitual.
Como Buckland não encontrou ossos incólumes de hienas na caverna (embora tenha recuperado
alguns em depósitos externos), ele formulou a hipótese de que, quando as águas subiram, as hienas
abandonaram a caverna e se safaram para as colinas:

Caso se pergunte por que não encontramos pelo menos o esqueleto inteiro de uma ou mais hienas
que morreram por último, não deixando atrás de si nenhum sobrevivente que as devorasse;
encontramos uma resposta satisfatória na circunstância da provável destruição dos últimos
indivíduos pelas águas diluvianas; com a ascensão destas, caso houvesse hienas no covil, elas
teriam debandado e fugido para a segurança das colinas; e, caso ausentes, elas não poderiam ter
retornado de altitudes superiores: que elas foram extirpadas por esta catástrofe é óbvio, a partir
da descoberta de seus ossos no cascalho aluvial da Inglaterra e da Alemanha.
Os ossos mais comuns de Kirkdale pertenciam a elefantes, rinocerontes e hienas. Como todos
esses animais agora habitam climas tropicais, Buckland presumiu que o dilúvio havia marcado uma
transição rápida para temperaturas mais frias. (Ele estava inteiramente errado, pois agora sabemos
que todas essas espécies tinham pelos compridos, sendo variantes glaciais de seus parentes tropicais
modernos.) Reliquiae diluvianae distingue-se de modo especial por evitar qualquer discussão de
causas e teorias gerais. Buckland repudiou as velhas tradições de construção de sistema e
especulação, e escreveu, em vez disso, uma monografia empírica sobre indícios específicos de um
dilúvio. Essa tática tornou seu trabalho averiguável e preparou o terreno para a sua refutação — a
atividade mais saudável que a ciência pode exercer. Ao discutir a suposta queda de temperatura,
Buckland fez a sua única conjectura e então retratou-se imediatamente, em conformidade com seu
objetivo maior:

Qual foi a causa, se foi uma mudança na inclinação do eixo terrestre, ou a aproximação de um
cometa, ou qualquer outra causa ou combinação de causas puramente astronômicas, é uma
questão cuja discussão é estranha ao presente estudo.

Após discutir Kirkdale e outras cavernas da Inglaterra e da Alemanha, Buckland prossegue com
indícios subsidiários de um dilúvio universal. A última parte de Reliquiae diluvianae discute duas
fontes de corroboração. Em primeiro lugar, Buckland estudou as terras pretas e cascalhos que
cobrem os estratos sólidos em toda a Europa setentrional e descobriu neles ossos dos mesmos
animais que frequentavam as suas cavernas. Como ele considerava as terras pretas e cascalhos
depósitos diretos do Dilúvio, fósseis similares estabeleciam os restos das cavernas como relíquias
dos últimos dias antes de Noé. Em segundo lugar, ele sustentou o argumento de que a modelagem das
colinas e vales registra a ação das águas encapeladas.
Ao resumir sua discussão de Kirkdale, Buckland extraiu uma inferência essencial que plantou as
sementes de sua posterior derrota. A teoria diluviana de Buckland exigia absolutamente duas
conclusões para estabelecer o Dilúvio de Noé como sendo o agente que selara as cavernas e
depositara as terras pretas e cascalhos exteriores. Primeiro, todos os depósitos das cavernas e
cascalhos devem representar material da mesma época. Segundo, cada uma dessas acumulações deve
ser o registro de um único evento, não de uma série de dilúvios ou outras catástrofes.

Não existe nenhuma alternância entre essa lama e os depósitos de ossos e estalagmites, como
teria ocorrido caso ela houvesse sido produzida por dilúvios repetidos com frequência; uma vez,
e apenas uma, ela parece ter sido introduzida; e podemos considerar como tendo sido o seu
veículo as águas barrentas da mesma inundação que produziu universalmente o cascalho e a terra
preta aluviais na superfície exterior.

Ao extrair a inferência, Buckland abandonara seu autoproclama- do e estritamente empírico


caminho (um ideal mal colocado que, de qualquer modo, poucos cientistas imaginativos conseguem
de fato executar). Nenhum dado real sustentava a sua afirmação da contempora- neidade dos
depósitos das cavernas e das terras pretas e cascalhos. Além disso, como suas cavernas estavam
largamente separadas, ele não conseguiu apresentar nenhuma evidência direta de que os fósseis
dentro delas eram todos da mesma época. Na verdade, Buckland argumentava em ordem inversa —
partindo de uma crença anterior para a conclusão empírica. Ele presumiu que esses depósitos
diversos e descontínuos eram contemporâneos porque acreditava fervorosamente na realidade
histórica do dilúvio de Noé. Contudo, ele também afirmava que podia provar o dilúvio de Noé a
partir somente de evidências empíricas. Ou uma coisa ou outra.
Não obstante, numa conclusão audaciosa e surpreendente, escrita quatro anos antes, no seu
discurso de posse em Oxford, no ano de 1819, Buckland proclamou:

O grandioso fato de um dilúvio universal num período não muito remoto está provado com base
em fundamentos tão decisivos e incontroversos que, mesmo que nunca tivéssemos ouvido falar de
tal evento nas Escrituras ou em qualquer outra autoridade, a própria Geologia teria pedido a
assistência de alguma catástrofe do tipo.

Esta famosa citação tem sido frequentemente alvo de zombaria, zombaria esta baseada na
suposição de que Buckland sofria de uma auto-ilusão adiantada, nascida de suas convicções bíblicas.
Não era isso. A declaração, apesar de vigorosa, não é irracional e reflete uma das supremas ironias
de toda a história da ciência.
Sabemos, em retrospecto, que a Inglaterra e a maior parte da Europa setentrional foram cobertas
diversas vezes, há não muito tempo, por mantos continentais compactos de gelo. Os indícios que as
geleiras deixam — enormes pedras carregadas para longe de sua origem, cascalhos mal ordenados,
aparentemente atirados em sua presente localização por agentes catastróficos — são similares aos
que poderiam ser produzidos por inundações gigantescas. Na verdade boa parte da topografia glacial
é formada pelas águas do degelo. Buckland estava, de fato, estudando indícios de glaciação, mas, de
modo absolutamente natural, interpretou seus dados como resultados de inundação. Se Buckland
vivesse na Europa meridional, ou se a ciência da Geologia houvesse surgido nos trópicos, esta
versão sensata da “teoria diluviana” nunca teria entrado em nossa história. Não podemos culpar
Buckland por não contemplar uma hipótese de uma capa de gelo com uma milha de espessura
cobrindo a sua terra natal. Na década de 1820, com certeza, a ideia de um manto continental de gelo
era absurda e impensável, ao passo que um dilúvio não ia nem contra a razão, nem contra a
experiência. Contudo e mais uma vez em retrospecto, podemos facilmente perceber por que a teoria
de Buckland fracassou no teste com tanta facilidade. Ele atribuiu os depósitos das cavernas e os
cascalhos externos a um único dilúvio, na verdade, eles foram produzidos por diversos episódios de
glaciação.
Ao longo de toda a década de 1820, a teoria de Buckland foi objeto de intenso debate na
Sociedade Geológica de Londres. Os maiores geólogos da Grã-Bretanha alinharam-se em lados
opostos. Como aliado principal, Buckland podia contar com sua contraparte de Cambridge e colega
teólogo, o reverendo Adam Sedgwick. Liderando a oposição estavam Charles Lyell, o grande
apóstolo do gradualismo, e o aristocrático Roderick Impey Murchison. O debate foi agitado, com um
vigor igual ao das águas do dilúvio de Buckland, mas, dentro de dez anos, tanto Buckland quanto
Sedgwick haviam se dado por vencidos.
Duas descobertas primárias forçaram o recuo de Buckland. Primeiro, ele teve finalmente de
admitir que os seus depósitos de terra preta e cascalho não se encontravam distribuídos pelo mundo
todo (como exigiria um “dilúvio universal”) mas apenas em terras situadas em latitudes setentrionais
(refletindo — embora Buckland ainda não conhecesse o motivo — o alcance limitado das geleiras
que se expandiram a partir das regiões polares).
Segundo, e mais importante, a labuta cotidiana da geologia provou que as cavernas e os
cascalhos de Buckland não se correlacionavam todos, ou não “combinavam”, como produtos de um
único evento no tempo, e que também vários depósitos eram registros de mais de um episódio de
inundação (ou glaciação, como diríamos hoje). A “correlação” é a atividade básica dos geólogos que
fazem trabalho de campo. Andamos de afloramento para afloramento; tentamos rastrear os depósitos
de uma locação até os estratos geológicos de outra; averiguamos quais depósitos da nossa primeira
locação combinam (ou se correlacionam no tempo) com conjuntos de estratos geológicos de outros
lugares.
À medida que este trabalho básico prosseguia, os geólogos reconheceram que os depósitos de
cavernas e os cascalhos de Buckland representavam muitos eventos, não um único dilúvio universal.
Esta descoberta não exigia o abandono das inundações como agentes causais, mas sem dúvida
roubava de Noé qualquer status especial. Se várias inundações haviam ocorrido, então os notáveis
indícios de Buckland não podiam ser atribuídos a nenhum evento bíblico particular. Além disso,
como Buckland não encontrou nenhum osso humano em seus depósitos (considerando-se que o
dilúvio de Noé ocorreu para que fosse extirpada a gananciosa humanidade), ele por fim concluiu que
todos os vários dilúvios que ele agora reconhecia haviam antecedido o dilúvio de Noé.
Em 1829, após um vigoroso debate na Sociedade Geológica sobre a dissertação de Conybeare
sobre o vale do Tâmisa (William Conybeare era um membro proeminente do grupo de Buckland),
Lyell, triunfante, escreveu para seu partidário Gideon Mantell:

Murchison e eu lutamos bravamente, e Buckland foi bastante piano. A dissertação de Conybeare


não tem força alguma. Ele admite três dilúvios antes do dilúvio de Noé! E Buckland acrescenta
sabe Deus quantas catástrofes além dessas, de modo que os fizemos abandonar a crônica de
Moisés completamente.

(Para os leitores que não entendem de música, ressalto que piano quer dizer “suave” em italiano.
O instrumento tem seu nome devido a uma redução do termo pianoforte que serve para designar um
dispositivo capaz de tocar tanto suavemente, ou piano, quanto fortemente, ou forte.)
O próprio Buckland, baseado nos mesmos fundamentos, admitiu a derrota no seu importante livro
seguinte, de 1836, embora ainda não houvesse reconhecido a alternativa glacial:

As descobertas feitas desde a publicação desse trabalho [Reliquiae diluvianae] demonstram que
muitos dos animais nele descritos existiram durante mais de um período geológico anterior à
catástrofe pela qual foram extirpados. Portanto, parece mais provável que o evento em questão
tenha sido o último de várias revoluções geológicas produzidas por violentas irrupções de água
em vez da inundação comparativamente tranquila descrita na Inspirada Narrativa.

Quando os indícios fracassam, bons cientistas como Buckland não se limitam simplesmente a
admitir a derrota, rastejar para dentro de um buraco e vestir um cilício. Eles preservam o interesse e
lutam para descobrir novas explicações. Buckland não apenas abandonou sua teoria diluviana quando
o trabalho empírico demonstrou sua falsidade, como acabou por liderar na Grã-Bretanha o
movimento para substituir a água pelo gelo.
Embora o estudo em retrospecto seja injusto para com as figuras históricas, devo dizer que
experimentei uma sensação quase que sinistra enquanto ha Reliquiae diluvianae à luz do
conhecimento posterior sobre a teoria glacial. Muitos dos enunciados empíricos específicos de
Buckland quase gritam para serem interpretados por mantos de gelo em vez de água. Ele relata
continuamente, por exemplo, que a inundação, tanto na Grã-Bretanha quanto na América do Norte,
deve ter vindo do norte, uma direção óbvia para o avanço do gelo, mas não para um dilúvio
universal de um oceano em ascensão. Ele também argumenta que blocos de granito trazidos do topo
do Monte Branco para altitudes menores provam que o Dilúvio foi alto o bastante para cobrir todas
as montanhas — enquanto diríamos simplesmente que as geleiras trouxeram as rochas para baixo.
Louis Agassiz, o geólogo suíço que crescera quase que literalmente entre geleiras de montanhas,
desenvolveu a teoria das eras glaciais durante a década de 1830. Ele e Buckland tornaram-se grandes
amigos e companheiros de exploração. Buckland foi também um dos primeiros na Inglaterra a se
converter à teoria glacial. Ele leu três dissertações defendendo essa nova interpretação de seus
indícios perante a Sociedade Geológica em 1840 e 1841, e, por fim, até mesmo persuadiu seu velho
adversário Charles Lyell sobre a realidade e a força dos mantos continentais de gelo. Assim,
Buckland não se limitou a abandonar prontamente a sua teoria diluviana quando ela fracassou no
teste; ele também liderou a busca por novas explicações e alegrou-se com sua descoberta.
Os criacionistas modernos, por outro lado, têm pregado dogmaticamente uma versão ainda mais
ultrapassada e desacreditada da teoria diluviana desde que G. M. Price a ressuscitou há cinquenta
anos. Eles não fazem trabalho de campo para testar suas asserções (argumentando, ao contrário, por
meio da distorção da obra de geólogos de verdade para obter efeito retórico), e não mudam um
pontinho que seja de sua absurda teoria.
Não posso apresentar maior contraste entre esta moderna pseudociência e o espírito
verdadeiramente científico da retratação de Adam Sedgwick em seu discurso presidencial perante a
Sociedade Geológica de Londres, em 1831. Na condição de principal partidário de Buckland, ele
liderava a luta pela teoria diluviana; mas, por ocasião do discurso, ele sabia que estivera errado.
Reconheceu também que havia argumentado de modo deficiente num ponto crítico: ele correlacionara
as cavernas e os cascalhos não através de indícios empíricos, mas através de uma crença bíblica
anterior na realidade do Dilúvio. Como os indícios empíricos provaram ser falsa a sua teoria, ele
percebeu essa deficiência lógicâ e se submeteu a uma autocrítica rigorosa. Em todos os anais da
ciência, não conheço melhor declaração que a retratação franca de Sedgwick, e quero encerrar este
ensaio com suas palavras. Como testemunha no julgamento criacionista em Arkansas, em dezembro
de 1981, também li esta passagem para os autos da corte, porque senti que ela ilustrava muito bem a
diferença entre o dogmatismo, que não pode mudar, e a verdadeira ciência, praticada, neste episódio,
por pessoas que, por acaso, eram criacionistas. A ironia final, a mensagem profunda, é simplesmente
esta: a teoria diluviana, a peça central do criacionismo moderno, foi refutada há 150 anos, em boa
parte por clérigos profissionais que também eram geólogos, cientistas exemplares e criacionistas. O
inimigo do saber e da ciência é o irracionalismo, não a religião:

Tendo eu sido um crente, e, naquilo que de melhor podia fazer, um propagador daquilo que agora
considero uma heresia filosófica, e tendo sido, por mais de uma vez, citado para apoiar opiniões
que não mais sustento, julgo correto, como um de meus últimos atos antes de deixar esta cadeira,
ler publicamente deste modo a minha retratação...
Existe, penso eu, uma grande conclusão negativa, agora incontestavelmente estabelecida, de que
as vastas massas de cascalho aluvial, espalhadas por quase toda a superfície da Terra, não
pertencem a um único período violento e transitório...
Deveríamos, na verdade, ter-nos detido antes de adotar a teoria di- luviana e atribuir todo o
nosso velho cascalho superficial à ação do Dilúvio Mosaico. ... Ao classificar em conjunto
formações desconhecidas distantes sob um único nome; ao dar-lhes uma origem simultânea, e ao
determinar a sua data, não através dos restos orgânicos que havíamos nelas descoberto, mas
através do que esperávamos hipoteticamente descobrir depois; demos mais um exemplo da
paixão com a qual a mente se apega a conclusões gerais e da presteza com a qual ela abandona a
consideração de verdades não relacionadas.
8. Falsa premissa, boa ciência

Meu voto para o mais arrogante de todos os títulos científicos vai, sem hesitação, para uma
famosa dissertação de 1866 escrita por Lord Kelvin, “A ‘Doutrina da Uniformidade’ em Geologia
brevemente refutada”. Nela, o maior físico da Grã-Bretanha afirmava ter destruído o fundamento de
uma profissão inteira que não era a sua. Kelvin escreveu:

A “Doutrina da Uniformidade” em Geologia, tal como sustentada por vários dos mais eminentes
geólogos britânicos, tem por certo que a superfície e a crosta superior da Terra têm sido quase
iguais ao que são hoje no que diz respeito à temperatura e a outras qualidades físicas durante
milhões e milhões de anos. No entanto, o calor que, por observação, sabemos que é conduzido
para fora da Terra anualmente é tão grande, que se esta ação viesse acontecendo, com qualquer
aproximação de uniformidade, durante 20.000 milhões de anos, a quantidade de calor perdida
pela Terra teria sido mais ou menos a que aqueceria, a 100°C, uma quantidade de rocha
superficial cem vezes maior que a Terra. (Ver cálculo anexo.) Isso seria mais do que suficiente
para derreter uma massa de rocha superficial de grandeza igual à da Terra inteira. Nenhuma
hipótese de ação química, fluidez interna, efeitos da pressão em grande profundidade, ou do
possível caráter das substâncias no interior da Terra, com o mínimo vestígio de probabilidade,
pode justificar a suposição de que a crosta terrestre tenha permanecido quase que como é hoje,
enquanto se perde, do todo, ou de qualquer parte da Terra, uma quantidade tão grande de calor.

Peço desculpas por infligir uma citação tão longa bem no início do ensaio, mas isso não é um
extrato da dissertação de Kelvin. É a dissertação inteira (menos o cálculo anexo). Num mero
parágrafo, Kelvin sentiu que havia minado inteiramente a própria base da disciplina irmã.
A arrogância de Kelvin foi tão extrema, e o castigo posterior tão espetacular, que a história de
sua dissertação de 1866 e de toda a sua implacável campanha de quarenta anos a favor da tese de
uma Terra jovem, tornou-se a homilia moral clássica dos nossos livros didáticos de geologia. Mas,
cuidado com as homilias morais convencionais. A probabilidade de serem exatas é quase igual à de
George Washington ter feito com que aquele dólar de prata ricocheteasse na superfície da água até a
outra margem do Rappanhannock.
A história, tal como geralmente contada, é mais ou menos a seguinte. Há diversos séculos, a
geologia definhava sob o jugo do arcebispo Ussher e da sua cronologia bíblica, que davam apenas
alguns milhares de anos à Terra. Essa restrição temporal deu origem à doutrina não-científica do
catastrofismo — a ideia de que, se toda a história geológica da Terra deve ser comprimida dentro da
cronologia de Moisés, sublevações e paroxismos miraculosos devem caracterizar essa história.
Depois de muita luta, Hutton e Lyell obtiveram uma vitória para a ciência com a sua ideia alternativa
da uniformidade — a afirmação de que os atuais ritmos de mudança, extrapolados ao longo de tempo
ilimitado, podem explicar toda a nossa história a partir de um ponto de vista científico, por meio da
observação direta dos processos atuais e de seus resultados. A uniformidade, assim diz a história,
repousa em duas proposições; tempo essencialmente ilimitado (de modo que processos lentos
possam alcançar seu efeito cumulativo), e uma Terra que não altera sua forma e seu estilo de
mudança básicos ao longo de todo esse enorme espaço de tempo. A uniformidade na geologia deu
origem à evolução na biologia, e a revolução científica alastrou-se. Se negamos a uniformidade,
minamos a própria ciência e arremessamos a geologia de volta à sua era das trevas.
Apesar disso, e talvez de modo inconsciente, Kelvin tentou invalidar esse triunfo da geologia
científica. Argumentando que a Terra teve início como um corpo liquefeito, e baseando seus cálculos
na perda de calor do interior da Terra (tal como medida, por exemplo, em minas), Kelvin reconheceu
que a superfície sólida da Terra não podia ser muito velha — provavelmente cem milhões de anos, e,
no máximo, quatrocentos milhões de anos (embora mais tarde ele tenha revisto a estimativa,
diminuindo a idade para, possivelmente, apenas vinte milhões de anos). Com tão pouco tempo para
alojar toda a evolução — isso sem falar na história física das rochas sólidas —, que recurso restava
à geologia além da desacreditada ideia de catástrofes? Kelvin mergulhara a geologia num dilema
inextricável, revestindo-o com todo o prestígio da física quantitativa, rainha das ciências. Um
popular livro didático de geologia (C. W. Barnes, na Bibliografia), diz, por exemplo:

O tempo geológico, livre das limitações da interpretação literal da Bíblia, tornara-se ilimitado;
os conceitos de mudança uniforme sugeridos primeiramente por Hutton abrangiam agora o
conceito da origem e da evolução da vida. Kelvin destruiu sozinho, durante certo período, o
pensamento da doutrina da uniformidade e da evolução. O tempo geológico continuava limitado
porque as leis da física o restringiam com tanta força quanto o literalismo bíblico o fizera.

Por sorte, para uma geologia científica, a argumentação de Kelvin baseava-se numa premissa
falsa — a suposição de que o atual calor da Terra é um resíduo de seu estado original liquefeito e
não uma quantidade constantemente renovada. Pois, se a Terra continua a gerar calor, então o ritmo
atual de perda não pode ser usado para se inferir uma condição antiga. A verdade, ignorada por
Kelvin, é que a maior parte do calor interno da Terra é constantemente gerada pelo processo de
desintegração radioativa. Por mais refinados que tenham sido os seus cálculos, eles foram baseados
numa premissa falsa, e o argumento de Kelvin desabou com a descoberta da radioatividade no início
do nosso século. Os geólogos deviam ter confiado nas próprias intuições e não se inclinado diante do
falso atrativo da física. De qualquer modo, a uniformidade finalmente venceu, e a geologia científica
foi restaurada. Este breve episódio nos ensina que devemos confiar nos dados empíricos cuidadosos
de uma profissão e não confiar excessivamente em intervenções teóricas externas, por melhores que
sejam as suas credenciais.
Chega de mitologia heroica. A história verdadeira não é, em absoluto, tão simples, nem se presta
com tanta facilidade a uma interpretação moral evidente. Antes de mais nada, os argumentos de
Kelvin, embora fatalmente defeituosos, tal como se delineou acima, não eram toscos, nem tão
inaceitáveis para os geólogos como diz a costumeira história. A maioria dos geólogos estava
inclinada a tratá-los como uma reforma genuína de sua profissão, isso até que Kelvin se deixasse
levar por restrições posteriores da sua estimativa original de cem milhões de anos. A forte oposição
de Darwin foi uma campanha pessoal fundamentada no seu gradualismo extremado, não um consenso.
Tanto Wallace quanto Huxley aceitaram a idade proposta por Kelvin e pronunciaram-na como sendo
compatível com a evolução. Em segundo lugar, a reforma de Kelvin não mergulhou a geologia num
passado não-científico, mas apresentou, mais exatamente, um relato científico diferente baseado em
outro conceito de história que pode ser mais válido do que a doutrina de uniformidade estrita
pregada por Lyell. A doutrina da uniformidade, tal como advogada por Lyell, era uma teoria
específica de história, e não (como muitas vezes erroneamente se compreende) um relato geral de
como a ciência deve operar. Kelvin atacara um alvo legítimo.

Os argumentos de Kelvin e a reação dos geólogos

Na condição de codescobridor da segunda lei da termodinâmica, Lord Kelvin baseou seus


argumentos a respeito da idade mínima da Terra na dissipação em forma de calor da energia original
do sistema solar. Ele apresentou três asserções distintas e tentou formar uma estimativa quantitativa
única da idade da Terra buscando concordância entre elas (ver Lord Kelvin and the Age of the
Earth, de Joe Burchfield, fonte da maior parte das informações técnicas aqui relatadas).
Kelvin baseou seu primeiro argumento na idade do Sol. Ele imaginava que o Sol havia se
formado através do agrupamento de massas meteóricas menores. À medida que esses meteoros se
aproximavam devido à atração gravitacional mútua, a sua energia potencial era transformada em
energia cinética, a qual, quando ocorreu a colisão, foi convertida em calor fazendo com que o Sol
brilhasse. Kelvin achou que podia calcular a energia potencial total de uma massa de meteoros igual
à grandeza do Sol e, a partir disso, obter uma estimativa do calor original do Sol. Com base nessa
estimativa, seria possível calcular uma idade mínima para o Sol, supondo que ele tenha brilhado com
a intensidade atual desde o início. No entanto, esse cálculo dependia crucialmente de um conjunto de
fatos que Kelvin não podia de fato avaliar — inclusive o número original de meteoros e a distância
original entre estes —, e assim ele nunca se arriscou a fornecer um número preciso para a idade do
Sol. Kelvin decidiu-se por um número entre cem e quinhentos milhões de anos como estimativa
melhor, com uma aproximação mais provável em direção à cifra menor.
Kelvin baseou seu segundo argumento na idade provável da crosta sólida da Terra. Ele supunha
que a Terra havia se resfriado a partir de um estado originalmente liquefeito, e que o calor que agora
escapava de suas minas registrava o mesmo processo de resfriamento que fizera com que a crosta se
solidificasse. Se tivesse condições de medir a taxa de perda de calor do interior da Terra, ele
poderia estender seu raciocínio até um tempo em que a Terra deve ter contido calor suficiente para
manter o globo inteiramente liquefeito — supondo que esse ritmo de dissipação não tenha mudado
através do tempo. (Este é o argumento para a sua “breve” refutação da uniformidade, citada no início
do presente ensaio.) Este argumento parece mais “sólido” do que a primeira asserção baseada numa
hipótese sobre como o Sol se formou. Pelo menos, pode-se ter esperança de medir diretamente o seu
ingrediente principal — a atual perda de calor da Terra. No entanto, o segundo argumento ainda
depende de várias suposições cruciais e que não podem ser provadas a respeito da composição da
Terra. Para fazer seu cálculo funcionar, Kelvin tinha de tratar a Terra como um corpo de composição
virtualmente uniforme que se solidificara do centro para fora e que havia sido, no tempo em que sua
crosta se formara, uma esfera sólida de temperatura similar em todas as suas partes. Tais restrições
também impediram a Kelvin atribuir uma idade definida para a solidificação da crosta terrestre. Ele
aventou algo entre cem e quatrocentos milhões de anos, mais uma vez com uma declarada preferência
pela cifra menor.
Kelvin baseou seu terceiro argumento na forma da Terra, de esfe- róide achatado nos polos. Ele
sentia que podia relacionar este grau de diminuição polar à velocidade da rotação da Terra quando
ela se formou num estado liquefeito favorável ao achatamento. Agora sabemos — e Kelvin também
— que a rotação da Terra tem decrescido continuamente como resultado da fricção das marés. A
Terra girava com mais rapidez quando se formou. Sua forma atual, portanto, deveria indicar sua
idade. Se a Terra se formou há muito tempo, quando a rotação era bastante rápida, ela hoje deveria
ser bem achatada. Se a Terra não é tão antiga, então ela se formou num ritmo de rotação não muito
diferente do ritmo atual, e o achatamento deveria ser menor. Kelvin sentiu que o pequeno grau de
achatamento efetivo indicava uma idade relativamente jovem para o planeta. Uma vez mais, e pela
terceira vez, Kelvin baseou seu argumento sobre tantas suposições que não podiam ser provadas (a
composição uniforme da Terra, por exemplo) que ele não pôde calcular uma cifra precisa para a
idade da Terra.
Assim, embora todos os três argumentos possuíssem uma pátina quantitativa, nenhum era preciso.
Todos dependiam de suposições simplificadoras que Kelvin não podia justificar. Todos, portanto,
forneciam apenas vagas estimativas com amplas margens de erro. Durante a maior parte da campanha
de quarenta anos de Kelvin, ele geralmente citou uma cifra de cem milhões de anos para a idade da
Terra — tempo que, por sinal, revelou-se suficiente para satisfazer quase todos os geólogos e
biólogos.
A enérgica oposição de Darwin a Kelvin está bem documentada, e comentaristas posteriores
concluíram que ele dava voz a um perturbado consenso. Na verdade, a antipatia de Darwin por
Kelvin era idiossincrática e se baseava no seu forte compromisso pessoal com o gra- dualismo, tão
característico de sua visão de mundo. Darwin era tão apegado à necessidade virtual de tempo
ilimitado como pré-requisito da evolução por seleção natural que convidava os leitores a abandonar
A origem das espécies caso não pudessem aceitar esta premissa:
“Aquele que puder ler o grande trabalho de Sir Charles Lyell sobre os Princípios de geologia, e,
ainda assim, não admitir quão incompreensivelmente vastos foram os períodos passados do tempo,
pode fechar agora mesmo o presente volume.” Darwin comete aqui uma falácia de raciocínio — a
confusão de gradualismo com seleção natural — que caracterizou todo o seu trabalho e que inspirou
a principal crítica de Huxley à Origem: “Você se sobrecarrega com uma dificuldade desnecessária
ao adotar tão irrestritamente 1Satura non facit saltum [A natureza não prossegue por meio de
saltos].” Ainda assim, Darwin não pode ser de todo culpado, pois Kelvin cometeu o mesmo erro ao
afirmar explicitamente que a pouca idade que dava à Terra lançava graves dúvidas sobre a seleção
natural como mecanismo evolucionário (embora ele não argumentasse contra a evolução em si).
Kelvin escreveu:

As limitações dos períodos geológicos, impostas pela ciência física, não podem, claro, provar
que a hipótese da transmutação das espécies é falsa; ainda assim, parecem suficientes para
provar como sendo falsa a doutrina de que a transmutação tenha ocorrido através de
“descendência com modificação por meio de seleção natural”.

Assim, Darwin continuou a considerar o cálculo de Kelvin da idade da Terra como talvez a mais
grave objeção à sua teoria. Ele escreveu para Wallace em 1869 dizendo que “as opiniões de
Thomson [Lord Kelvin] sobre a idade recente do mundo foram durante algum tempo um dos meus
problemas mais penosos”. E, em 1871, numa metáfora notável: “Mas então chega Sir W. Thomson
como um espectro odioso.” Embora Darwin geralmente não arredasse pé de suas convicções e
sentisse, no fundo do coração, que devia haver algo de errado com os cálculos de Kelvin, ele
finalmente transigiu na última edição da Origem (em 1872), escrevendo que mudanças mais rápidas
na Terra primitiva teriam acelerado o ritmo da evolução, talvez permitindo todas as mudanças que
observamos dentro do tempo limitado de Kelvin:

É provável, contudo, como Sir William Thompson [síc] insiste, que o mundo, num período
bastante antigo, tenha sido sujeitado a mudanças mais rápidas e violentas nas suas condições
físicas do que as que ocorrem agora; e tais mudanças teriam tido a tendência de induzir mudanças
de ritmo correspondente nos organismos que então existiam.

A inquietação de Darwin não era compartilhada por seus dois partidários principais na
Inglaterra, Wallace e Eluxley. Wallace não vinculava a ação da seleção natural à escala glacialmente
lenta de Dar- win; ele afirmava simplesmente que se Kelvin limitava a idade da Terra a cem milhões
de anos, então a seleção natural deve operar em ritmos geralmente mais altos que aqueles que
havíamos imaginado anteriormente. “É dentro desse tempo [os cem milhões de anos de Kelvin],
portanto, que toda a série de mudanças geológicas, a origem e o desenvolvimento de todas as formas
de vida, devem ser comprimidas.” Em 1870, Wallace chegou mesmo a declarar sua satisfação com
uma escala temporal de apenas 24 milhões de anos desde o começo do nosso registro fóssil na
explosão do Cambriano.
Huxley ficou menos perturbado ainda, especialmente porque já havia afirmado por um bom tempo
que a evolução poderia ocorrer por meio de saltos, assim como pela seleção natural lenta. Huxley
sustentava que nossa convicção sobre a lerdeza da mudança evolucionária fora baseada, em primeiro
lugar, numa lógica falsa e circular. Não temos nenhum indício independente para considerar lenta a
evolução; essa impressão foi apenas uma inferência baseada na antiguidade supostamente vasta dos
estratos fósseis. Se Kelvin agora nos diz que esses estratos foram depositados num espaço de tempo
bem menor, então nossa estimativa do ritmo evolucionário deve ser revista de modo correspondente.

A biologia toma o seu tempo da geologia. O único motivo que temos para acreditar no ritmo lento
da mudança nas formas vivas é o fato de elas persistirem ao longo de uma série de depósitos que,
a geologia nos informa, levaram um bom tempo para serem feitos. Se o relógio geológico estiver
errado, tudo o que o naturalista terá de fazer será modificar de modo correspondente as suas
noções sobre a velocidade da mudança.

Os principais geólogos da Grã-Bretanha inclinavam-se a seguir Wallace e Huxley em vez de


Darwin. Eles afirmavam que Kelvin havia prestado um serviço à geologia ao desafiar a virtual
eternidade do mundo de Lyell e, na perspicaz metáfora de T. C. Chamberlin, ao “restringir os saques
imprudentes” que os geólogos faziam tão irrefletidamente no “banco do tempo”. Apenas num estágio
mais adiantado de sua campanha, quando Kelvin começou a restringir sua estimativa de uns vagos e
confortáveis cem milhões de anos (ou talvez um bocado mais) para um limite mais rigidamente
circunscrito de mais ou menos vinte milhões de anos, é que os geólogos finalmente se rebelaram. A.
Geikie, que fora um firme defensor de Kelvin, escreveu então:

Os geólogos não tardaram a reconhecer que estavam errados ao supor que possuíam uma
eternidade de tempo passado para a evolução da história terrestre. Eles reconheceram
francamente a validade dos argumentos da física, que colocam limites mais ou menos definidos à
antiguidade da Terra. Como um todo, eles estiveram dispostos a aceitar a concessão de cem
milhões de anos que Lord Kelvin lhes oferecia para a realização dos longos ciclos da história
geológica. Mas os físicos foram insaciáveis e inexoráveis. Tão sem remorsos quanto as filhas de
Lear, eles cortaram a concessão de anos em fatias sucessivas até que alguns deles trouxeram a
cifra para pouco menos de dez milhões. Em vão os geólogos protestaram que devia haver uma
falha em algum lugar numa linha de argumentação que tende a ter um resultado tão inteiramente
em desacordo com os fortes indícios a favor de uma maior antiguidade.

O desafio científico de Kelvin e os significados múltiplos da uniformidade

Como mestre da retórica, Charles Lyell de fato declarou que qualquer um que desafiasse a sua
uniformidade podia ser o arauto de uma reação que mandaria a geologia de volta à sua era pré-
científica de catástrofes. Um significado da uniformidade realmente defendia a ciência nesse sentido
— a afirmação de que as leis da natureza são constantes no espaço e no tempo, e que a intervenção
miraculosa para suspender essas leis não pode ser aceita como um agente de mudança geológica.
Mas a uniformidade, neste significado metodológico, já não era mais uma questão no tempo de
Kelvin, ou mesmo (pelo menos em círculos científicos) quando Lyell publicou os seus Princípios de
geologia em 1830. Os catastrofistas científicos (ver ensaio 7) não eram milagreiros, mas homens que
aceitavam plenamente a uniformidade da lei natural e que procuravam apresentar a história terrestre
como um relato de calamidades naturais ocorrendo de modo infrequente numa Terra antiga.
Mas a uniformidade tinha também um sentido mais restrito, substantivo, para Lyell. Ele também
usava o termo para uma teoria particular da história terrestre baseada em dois postulados
questionáveis: primeiro, que os ritmos de mudança não variavam muito ao longo do tempo, e que os
processos lentos e presentes podiam, portanto, dar conta de todos os fenômenos geológicos em seu
impacto acumulado; segundo, que a Terra sempre fora mais ou menos igual, e que a sua história não
tinha direção alguma, mas que representava um estado estável de condições dinamicamente
constantes.
Lyell, provavelmente sem consciência, executou um truque de argumentação engenhoso e
inválido. A uniformidade possuía dois significados distintos — um postulado metodológico sobre
leis uniformes, que todos os cientistas tinham de aceitar a fim de praticar a profissão, e uma asserção
substantiva de validade dúbia sobre a história efetiva da Terra. Ao chamar ambos de uniformidade, e
demonstrando que todos os cientistas eram adeptos da uniformidade no primeiro sentido, Lyell
também dava a entender, engenhosamente, que, para ser um cientista, era preciso também aceitar a
uniformidade no seu significado substantivo. Assim, desenvolveu-se o mito de que qualquer oposição
à uniformidade só podia ser uma ação retrógrada contra a própria ciência — e surgiu a impressão de
que, se Kelvin estava atacando a “doutrina da uniformidade” na geologia, ele devia representar as
forças da reação.
Na verdade, Kelvin aceitava plenamente a uniformidade de leis e até mesmo baseou nela os seus
cálculos sobre perda de calor. Seu ataque contra a uniformidade foi dirigido apenas ao aspecto
substantivo (e dúbio) da visão de Lyell. Kelvin apresentou duas queixas contra esse significado
substantivo da uniformidade. Primeiro, sobre a questão dos ritmos. Se a Terra fosse
consideravelmente mais jovem do que Lyell e os adeptos estritos da uniformidade acreditavam, então
os ritmos de mudança modernos, lentos, não seriam suficientes para a representação de sua história.
No começo de sua história, quando a Terra era mais quente, as causas devem ter sido mais ativas e
intensas. (Esta é a posição de “compromisso” que Darwin finalmente adotou para explicar os ritmos
de mudança mais rápidos no início da história da vida.) Segundo, sobre a questão da direção. Se a
Terra teve início como uma esfera liquefeita e perdeu calor continuamente através do tempo, então a
sua história possuía um padrão e um caminho de mudança definidos. A Terra não fora perenemente a
mesma, mudando apenas a posição de suas terras e mares numa dança interminável que não levava a
lugar algum. A sua história seguia um caminho definido, de uma esfera quente, cheia de energia, para
um mundo frio, lânguido, que, por fim, não mais sustentaria vida. Kelvin lutou, dentro de um contexto
científico, por uma história de curta duração, direcional, oposta à visão de Lyell de um estado
estável essencialmente eterno. Nossa visão atual não representa o triunfo nem de um, nem de outro
parecer, mas uma síntese criativa de ambos. Kelvin estava tão certo e tão errado quanto Lyell.

A radioatividade e a queda de Kelvin

Kelvin estava sem dúvida certo ao rotular como extrema a visão de Lyell de uma Terra em estado
estável, caminhando para lugar algum ao longo de eras incontáveis. Contudo, nossa escala temporal
moderna aproxima-se mais do conceito de Lyell, sem nenhum limite apreciável, do que dos cem
milhões de anos de Kelvin, com a sua consequente restrição dos ritmos de mudança. A Terra tem 4,5
bilhões de anos.
Lyell venceu essa rodada de uma batalha complicada porque o argumento de Kelvin continha uma
falha fatal. Neste aspecto, a história, tal como convencionalmente relatada, tem validade. A
argumentação de Kelvin não era um conjunto inevitável e matematicamente necessário de asserções.
Ela repousava sobre um pressuposto crucial não averiguado, subjacente a todos os cálculos de
Kelvin. Os números de Kelvin sobre perda de calor poderiam medir a idade da Terra apenas se esse
calor representasse uma quantidade original dissipada gradualmente ao longo do tempo — um
relógio batendo num ritmo estável, de seu reservatório inicial até a exaustão final. Mas suponha-se
que seja constantemente criado calor novo e que a sua radiação atual a partir da Terra não reflita uma
quantidade original, mas um processo moderno de geração. Então o calor deixa de ser um indicador
de idade.
Kelvin reconhecia a natureza contingente de seus cálculos, mas a física de seu tempo não incluía
nenhuma força capaz de gerar calor novo, e ele, portanto, sentia-se seguro em seu pressuposto. No
começo de sua campanha, ao calcular a idade do Sol, ele admitia sua dependência crucial da
inexistência de qualquer fonte nova de energia, pois declarara seus resultados válidos “a menos que
novas fontes, agora desconhecidas por nós, sejam preparadas no grande depósito da criação”.
Então, em 1903, Pierre Curie anunciou que os sais de rádio liberavam constantemente calor novo.
A fonte desconhecida fora descoberta. Os primeiros estudiosos da radioatividade reconheceram
prontamente que a maior parte do calor terrestre deve ser continuamente gerada por desintegração
radioativa, não se tratando simplesmente de uma dissipação de um estado originalmente liquefeito —
e perceberam que a argumentação de Kelvin havia caído por terra. Em 1904, Ernest Rutherford fez
este relato de uma conferência pronunciada na presença de Lord Kelvin, pronunciando a derrota da
campanha de quarenta anos de Kelvin a favor da ideia de uma Terra jovem:

Eu entrei na sala, que estava na penumbra, localizei imediatamente Lord Kelvin na platéia e
percebi que teria problemas com a última parte do discurso, que lidava com a idade da Terra,
ponto em que minhas opiniões conflitavam com as dele. Para meu alívio, Kelvin ferrou no sono,
mas, assim que cheguei ao ponto importante, percebi que o velhote se ergueu, abriu o olho e
lançou um olhar maligno sobre mim! Então, tive uma inspiração súbita e disse que Tord Kelvin
limitara a idade da Terra sob a condição de que não fosse descoberta nenhuma nova fonte de
calor. Aquela declaração profética referia-se ao que estávamos considerando naquela noite: o
rádio!

Assim, Kelvin sobreviveu à nova era da radioatividade. Ele nunca admitiu o erro ou publicou
qualquer retratação, mas, na intimidade, admitiu que a descoberta do rádio invalidava alguns de seus
pressupostos.
A descoberta do rádio ressalta uma deliciosa ironia dupla. A radioatividade não forneceu
simplesmente uma nova fonte de calor que destruía a argumentação de Kelvin; ela forneceu também o
relógio que podia medir a idade da Terra e, afinal, declará-la antiga! Porque os átomos radioativos
desintegram-se num ritmo constante, e a sua dissipação realmente mede a duração do tempo. Menos
de dez anos após a descoberta do calor continuamente gerado no rádio, os primeiros cálculos de
desintegração radioativa já indicavam a idade de algumas das rochas mais velhas da Terra em
bilhões de anos.
Às vezes supomos que a história da ciência é uma simples história de progresso, avançando
inexoravelmente através do acúmulo objetivo de dados cada vez melhores. Tal parecer encontra-se
subjacente às homilias morais que constroem o nosso relato costumeiro do avanço da ciência — pois
Kelvin, neste contexto, claramente impediu o progresso com um pressuposto falso. Não devemos nos
deixar iludir por histórias tão confortadoras e inadequadas. Kelvin procedeu fazendo uso da melhor
ciência de sua época, e os colegas aceitaram seus cálculos. Não podemos culpá-lo por não saber que
uma nova fonte de calor seria descoberta. Assim como Maupertuis não dispunha de nenhuma
metáfora para reconhecer que os embriões podiam conter instruções codificadas em vez de partes
pré-formadas (ver ensaio seguinte), a física de Kelvin não continha contexto algum para uma nova
fonte de calor.
O progresso da ciência exige mais do que novos dados; ele necessita de novas estruturas e
contextos. E de onde surgem essas visões de mundo fundamentalmente novas? Elas não são
descobertas simplesmente pela observação; elas exigem novos modos de pensar. E onde podemos
encontrá-las se os modos antigos nem ao menos incluem as metáforas certas? A natureza do
verdadeiro gênio deve estar na capacidade indefinível de construir esses novos modos a partir da
escuridão aparente. A incerteza e a imprevisibilidade básicas da ciência devem também residir na
dificuldade inerente a tal tarefa.
9. Na falta de uma metáfora

Em 1745, o savant francês Pierre-Louis Moreau de Maupertuis publicou um livro pequeno, com
um tema grande e um título curioso. (As medidas originais são de apenas 5 1/2 por 3 1/4 polegadas e
contém menos de duzentas páginas de texto, impresso, graças às amplas margens de uma era mais
generosa, no espaço ainda menor de 3 1/4 por 1 3/4 polegadas.) Ele o chamou de Vénus physique —
a “Vénus física”, ou “terrena”, ou, numa tradução mais livre, “amor físico” (em oposição às
dimensões interpretativas, espirituais ou psicológicas desse tema de séculos). Como o título dá a
entender, a obra apresenta um relato abrangente da história natural da procriação — uma cartilha
sobre como os vários animais fazem a coisa. Ficamos sabendo, por exemplo, a partir do contraste
justaposto, que

o impetuoso touro, orgulhoso de sua força, não se compraz com carícias; ele se atira
imediatamente sobre a novilha; penetra profundamente em suas ancas e lá esguicha, em grandes
jorros, o líquido que a fecundará. A rola, com ternos chamados, anuncia o seu amor; mil carícias,
mil prazeres, precedem o último prazer.

Descendo ao longo da escala do ser (tal como seu século a concebia), Maupertuis alcança os
caracóis terrestres hermafroditas e discute suas setas. (Muitos caracóis terrestres desenvolvem uma
“flecha” calcária com uma ponta belamente formada. Nos elaborados rituais que precedem a cópula,
o caracol que atua como macho enfia sua seta repetidamente no musculoso pé do parceiro. A seta não
é parte do pênis, e, além da observação óbvia de que ele desempenha nenhum papel no estímulo
sexual, ainda não sabemos qual é a sua função precisa). Maupertuis também não tinha uma resposta,
mas fez uma analogia interessante, se bem que despropositada:

Qual é a função deste órgão? Talvez este animal, tão frio e tão lento em todas as suas operações,
tenha a necessidade de ser excitado por essas ferroadas. Homens arrefecidos pela idade, ou cujos
sentidos se enfraqueceram, às vezes recorrem a meios igualmente violentos a fim de despertarem
em si as paixões do amor. Oh, homem infeliz, que tenta excitar por meio da dor as sensações que
deveriam surgir apenas da voluptuosidade! ... Oh, caracol inocente, talvez sejas a única criatura
para quem esses meios hão são criminosos — pois, para ti, eles são um efeito da ordem da
Natureza. Recebe, então, e dá, mil vezes, as ferroadas dessas setas que te guarnecem.

Na base da escala, Maupertuis encontrou um problema especial nas hidras, os parentes de corpo
macio, de água doce, dos corais. Maupertuis e seus colegas consideravam as hidras como formas de
transição entre as plantas e os animais porque elas se reproduzem pelo bro- tamento de novos
indivíduos a partir de um talo progenitor ou então pela regeneração de corpos inteiros a partir de
fragmentos desarticulados do mesmo talo. Maupertuis, em termos nada ambíguos, identificara o
prazer como o fim da natureza no processo de reprodução:
A natureza tem o mesmo interesse na perpetuação de todas as espécies: ela inspirou em cada uma
o mesmo tema, e esse tema é o prazer. É o prazer que, na espécie humana, leva a efeito tudo que
se lhe antepõe — que, a despeito de mil obstáculos que se opõem à união de dois corações, de
mil tormentos que devem se seguir, conduz os amantes rumo ao propósito ordenado pela natureza.

Mas, se o prazer é a ordem da natureza, então como a humilde hidra pode apreciar a reprodução
tendo o talo cortado em pedaços?

O que se deve pensar desse estranho estilo de reprodução, desse princípio vital estendido a cada
pedaço do animal. ... Em outros animais, a natureza vinculou o prazer ao ato que os multiplica;
será possível que a natureza tenha dotado esta criatura com algum tipo de sensação voluptuosa ao
ser cortada em pedaços?

Talvez estas passagens tenham inspirado a decisão de Maupertuis de publicar anonimamente,


apesar de viver num século tão refrescantemente menos pudico do que aquele que o seguiu (ao
mesmo tempo, suas palavras diretas e encantadoras também saem favorecidas num contraste com a
análise autoconsciente e perpétua do nosso tempo). Contudo, Vénus physique não é primariamente
um trabalho sobre a história natural do amor, não obstante o valor dessas seções para a obtenção de
publicidade e renome imediato. Ele é, em sua maior parte, um sofisticado tratado sobre a ciência da
embriologia — sobre os efeitos físicos mais diretos e duradouros do amor. O título, talvez, tenha
sido um chamariz, mas o livro é uma obra-prima.
Maupertuis nasceu na França em 1698. Embora tenha vagado à larga pelas fronteiras
disciplinares impostas por uma era posterior, ele conseguiu reputação com seu trabalho nas ciências
físicas — por sua coragem de introduzir e expor a obra de Newton numa nação tão fortemente
apegada às alternativas de Descartes e por dirigir uma árdua expedição à Lapônia que confirmou a
previsão de Newton de uma Terra não perfeitamente esférica, mas achatada nos polos. Esta
combinação de zelo e atrevimento valeu-lhe o apoio de Voltaire, e sua estrela brilhou. Em 1738,
Voltaire recomendou a Frederico, o Grande, que Mau- pertuis poderia ser o homem certo para dirigir
a sua reabilitada Academia de Ciências de Berlim. Maupertuis aceitou o trabalho e prosperou nele
por vários anos. No entanto, uma série de complicadas intrigas derrubou-o e provocou a ira
imorredoura de Voltaire e a sátira mortífera de sua ácida pena. Maupertuis acabou por ser perdoado,
mas nunca recuperou a saúde e a reputação, morrendo, arruinado, em 1759.
Como muitos tratados gerais, Vénusphysique teve origem em um problema específico. Numa
cultura com profundas tradições racistas, a cor da pele humana sempre exerceu uma fascinação
perpétua, e nenhum aspecto do tema inspirou mais interesse do que a descoberta ocasional de
indivíduos peculiares que pareciam romper as fronteiras. O Deus de Jeremias, pessimista a respeito
da redenção entre os que haviam caído à margem da estrada, proclamou: “Pode o etíope mudar a sua
pele, ou o leopardo as suas manchas?” Mas alguns humanos realmente transgrediam os limites de
categorias aparentemente estáveis, levando algumas pessoas a temer que seus parentes futuros
viessem a se extraviar ou então que o status convencional de valor relativo das próprias categorias
pudesse deixar de ser tão confortavelmente fixo. O ensaio 22 discute uma mulher caucasiana com
grandes trechos de pele melânica que fascinou um médico londrino em 1813. O caso dela, porém, era
raro e irrelevante. Um fenômeno mais geral, porém, era razoavelmente comum e, assim, ameaçador e
fascinante ao mesmo tempo — ou seja, o albinismo entre negros. O albinismo é bem conhecido entre
a maioria das espécies, ou todas, de vertebrados de pele escura; os negros albinos, mais pálidos do
que qualquer caucasiano, não são raros, e o traço é herdado em linhagens de família.
Uma criança albina, filha de pais negros, estivera em exposição em Paris, e os pensamentos e
observações de Maupertuis serviram de inspiração para a sua Vénus physique. O trabalho tem o
subtítulo: Dissertation physique à Voccasion du nègre blanc (“Uma dissertação física inspirada
pelo negro branco”). Vénus physique contém duas partes: a primeira seção, bem mais longa, sobre
embriologia e a história natural do amor, e um trecho final, de 45 páginas sobre a origem das raças
humanas. (Esta segunda seção contém algumas especulações evo- lucionistas mal formadas e é, em
boa parte, responsável pela reputação de precursor de Darwin a ele atribuída — uma avaliação
injusta e anacrônica, baseada numas poucas passagens fugazes que subtraem Maupertuis das
preocupações de seu tempo. Vénus physique é um tratado sobre embriologia e os excitantes debates
de seu próprio século.)
Essa segunda seção apresenta uma discussão de biogeografia humana e tenta explicar um padrão
falso, reconstruído a partir de relatos não confiáveis de viajantes — uma crença de que os negros
habitavam os trópicos, enquanto as regiões árticas eram a reserva exclusiva de gigantes e anões. Em
resumo, Maupertuis afirma que as raças brancas, superiores, haviam simplesmente expulsado todos
os monstros e esquisitões das regiões temperadas, mais favoráveis. Podemos perceber com
facilidade como a criança albina inspirou os pensamentos de Maupertuis para essa segunda seção,
mas que influência ela pode ter exercido sobre o âmago da Vénus physique — a primeira e longa
seção sobre embriologia? A resposta a esta questão fornece uma chave para Vénus physique e uma
avaliação adequada da opinião criativa e incomum de Maupertuis no grande debate embriológico de
sua época.
Em uma das polêmicas mais acaloradas da ciência do século XVIII, estudiosos do
desenvolvimento alinharam-se em ambos os lados de uma antiga dicotomia que datava do tempo da
ciência grega. Aristóteles afirmara que o desenvolvimento embriológico é, ao mesmo tempo, o maior
de todos os mistérios biológicos e a chave para uma compreensão profunda do organismo —
proposições que continuam tão verdadeiras hoje (pois nossa ignorância ainda é profunda) como
quando o “mestre daqueles que sabem” proclamou-as há mais de dois mil anos. Os cientistas gregos
haviam conjecturado dois tipos gerais de solução, e seus sucessores do século XVIII continuavam a
respeitar as categorias. Um grupo, os pré-formacionistas, argumentava que a embriologia deve
representar a revelação de uma estrutura preexistente. Um homúnculo minúsculo deve estar enrolado
no ovo ou no esperma. Ele não tem de ser uma miniatura perfeita do adulto — pois a forma e a
posição relativas das partes podem mudar com o crescimento — mas as estruturas devem todas estar
presentes e ligadas desde o início. Um segundo grupo, que incluía Maupertuis, os epigeneticistas,
argumentava que o aspecto visual do desenvolvimento deve ser respeitado como verdade literal. O
embrião parece diferenciar partes complexas a partir de uma simplicidade original, e é assim que
deve ser na realidade (os pré-formacionistas, em resposta, afirmavam que os microscópios
contemporâneos eram fracos demais para que se pudesse ver partes pré-formadas no minúsculo e
gelatinoso embrião jovem). Embriologia é adição e diferenciação, não simplesmente revelação.
Devemos rejeitar o tolo roteiro de mocinho e bandido geralmente aplicado a essa história em
falso retrospecto: ou seja, que os pré- formacionistas, devido ao preconceito religioso, estavam
cegos a qualquer tipo de mudança e, portanto, impuseram ao ovo ou ao esperma o que não podiam
observar — ao passo que os epigeneticistas eram paladinos da ciência empírica e meramente
sustentavam o que viam em seus microscópios.
Na verdade, os pré-formacionistas sustentavam uma ideia de ciência bem mais próxima da nossa.
Eram mecanicistas que insistiam na ideia de uma causa material para todos os fenômenos. E estavam
encalhados no conhecimento limitado de seu século. Que alternativa tinham eles? A complexidade
assombrosa de um corpo humano não pode se desenvolver misteriosamente a partir de um nada
informe original; os órgãos, portanto, devem estar presentes desde o início. A maioria dos
epigeneticistas, por outro lado, conformava-se com uma visão de causalidade que hoje rejeitaríamos
como sendo “vitalista” — a ideia de que uma força externa, imaterial, podia impor uma modelação
complexa a um ovo fertilizado que tinha início apenas com potencial não formado.
Maupertuis era um excêntrico notável nesse grande debate, pois era ao mesmo tempo um
epigeneticista fervoroso e um mecanicista dedicado. Portanto, ao contrário dos seus colegas
epigeneticistas, ele esperava encontrar precursores materiais de todos os órgãos nos ovos ou no
esperma. Mas essas partes não podiam constituir um homúncu- lo pré-construído. Deviam estar
totalmente espalhadas e completamente desagregadas. Deviam também existir em uma quantidade
bem maior do que a necessitada pelo embrião (pois, se ovos e esperma contivessem todos os órgãos
certos, e apenas eles, então Maupertuis poderia ter sido rotulado como um pré-formacionista
excêntrico, que defendia a ideia de um homúnculo desarticulado). O desenvolvimento embriológico,
portanto, deve representar seleção, ordenamento, atração e união criativa desses órgãos separados,
não um simples aumento de estruturas já fixadas quanto a forma, lugar e número. Mas como as partes
desagregadas podiam se juntar, e como as partes certas podiam ser ordenadas e unidas (ou,
ocasionalmente, como as partes erradas eram incorporadas nos fetos anormais)? A ideia de um
homúnculo pré- formado parecia apresentar menos problemas.
Vários dos argumentos de Maupertuis contra o pré-formacionismo eram as réplicas
convencionais de seu tempo. Contra os o vistas (os que colocavam o homúnculo no ovo feminino)
Maupertuis levantava a costumeira, e sempre perturbadora, questão do capsulamento. Os ovos dos
homúnculos devem conter outros homúnculos, tremendamente menores, e assim por diante, por
incontáveis gerações de uma pequenez inconcebível. Na verdade, toda a história humana devia estar
pré- figurada nos ovários de Eva.

Ovos destinados a produzir homens contêm apenas um único homem. Mas um ovo com uma
mulher contém não apenas essa mulher, mas também seus ovários, nos quais outras mulheres, já
plenamente formadas, estão encerradas — a fonte de geração infinita. A matéria pode ser
infinitamente dividida; a forma de um feto que nascerá dentro de mil anos pode ser tão distinta
quanto a daquele que nascerá dentro de nove meses?

E por que, afinal, existem homens? O seu sêmen apenas liberta e inspira um homúnculo
anteriormente sem vida? Era esse, pergunta Maupertuis, o fogo que Prometeu roubou dos deuses?
Contra os espermaticistas (os que colocavam os homúnculos dentro do esperma), Maupertuis
levantava o problema adicional dos vários milhões de células expelidos em cada ejaculação. A
natureza podia ser tão pródiga e dotar milhões de células sem uso com homúnculos que nunca
viveriam?

Este vermezinho, nadando no fluido seminal, contém uma infinidade de gerações, de pai para pai.
E cada [homúnculo] tem seu fluido seminal, repleto de animais nadando, tão mais minúsculos
quanto ele... E que prodígio quando consideramos a quantidade e o tamanho ínfimo desses
animais. Um homem calculou que um único lúcio, em uma geração, podia produzir mais lúcios
que o número de homens na Terra, mesmo supondo que toda a Terra fosse tão densamente
povoada quanto a Holanda. ... Tão imensa riqueza, uma fertilidade tão ilimitada na natureza; não
temos aqui uma prodigalidade de recursos! Não podemos dizer que a perda e o gasto são
excessivos!

Maupertuis aventou uma função alternativa e interessantemente incorreta para os recentemente


descobertos “animálculos espermáticos” (spermatick animalcules), como eram chamados por seus
colegas ingleses. Ele imaginava que eles mexiam e misturavam os fluidos seminais do macho e da
fêmea, juntando desse modo as partes que devem formar o embrião.
Maupertuis, no entanto, acrescentou a esse grande contratempo embriológico alguns argumentos
novos e uma perspectiva surpreendentemente original. Durante séculos, o campo de debate fora o
embrião e os seus processos observáveis de desenvolvimento. A criatividade verdadeira muitas
vezes reside na reunião de campos anteriormente diversos, no reconhecimento de que fenômenos
aparentemente diversos de outras disciplinas podem oferecer soluções para velhos dilemas. E assim,
afinal, voltamos aos albinos e ao discernimento criativo de Maupertuis.
Maupertuis foi o primeiro entre os cientistas europeus a rastrear os pedigrees de traços incomuns
através de linhagens de família. Ele reconheceu que esses resultados, aparentemente sem relação com
a embriologia, poderiam solucionar o grande debate a favor da epigênese. Compilou um pedigree de
polidactilia (dedos a mais) ao longo de três gerações de uma família alemã e provou um fato
fundamental, por um bom tempo sugerido em anedotas e folclore, mas nunca estabelecido
conclusivamente: a herança é transmitida através de linhas masculinas e femininas; isto é, os dedos a
mais poderiam ser herdados tanto dos pais quanto das mães. Maupertuis reconheceu então que esta
característica da hereditariedade, mais do que qualquer outro aspecto direto da embriologia, poderia
resolver o problema do desenvolvimento; pois, de que maneira seria possível sustentar o pré-
formacionismo se ambos os progenitores podem contribuir para a forma de sua prole? Se os
homúnculos estivessem enrolados nos ovos ou no esperma, o progenitor não contribuinte não deveria
desempenhar um papel igual na forma de sua prole. E o que dizer dos híbridos que portam traços
característicos de dois progenitores pertencentes a diferentes espécies? Maupertuis concluiu:

Parece-me que um desses sistemas [a versão ovista ou a espermaticista do pré-formacionismo] é


completamente destruído pela semelhança da criança, às vezes com o pai, às vezes com a mãe, e
pelos animais intermediários nascidos de progenitores de duas espécies diferentes. ... Como a
criança se assemelha a ambos, creio que devemos concluir que ambos os progenitores
desempenham um papel igual no seu desenvolvimento.

Maupertuis não pôde computar o pedigree da criança albina de pais negros exibida em Paris.
Mas ele sabia que o albinismo fora rastreado ao longo de linhagens familiares entre negros do
Senegal e afirmou que o albinismo, assim como a polidactilia, ajudava a cavar a sepultura do pré-
formacionismo. De qualquer modo, o “negro branco” inspirou-o a organizar seus pensamentos sobre
o desenvolvimento e a escrever um dos clássicos da ciência do século XVIII.
Os pré-formacionistas tinham uma resposta-padrão para o fenômeno da herança adquirida dos
dois pais. Eles afirmavam que um progenitor carregava o homúnculo, enquanto o fluido seminal do
segundo progenitor o modificava. Maupertuis ridicularizou esse argumento especialmente tal como
aplicado ao desenvolvimento de mulas a partir de uma égua e um burro:

Se p feto estivesse no verme [espermático] que nada no fluido seminal de seu pai, por que ele às
vezes deveria se assemelhar à sua mãe? Se estivesse apenas no ovo de sua mãe, que forma ele
teria em comum com seu pai? Se o cavalinho estivesse já formado no ovo de sua mãe, ele
desenvolveria orelhas de burro porque [o fluido seminal de] um asno põe partes do ovo em
movimento?

Apesar da retórica de Maupertuis, a resposta pré-formacionista não era absurda quando aplicada
a traços comuns, continuamente variáveis. O homúnculo pequeno de um progenitor poderia ser
alongado pelo fluido espermático de um progenitor mais alto; mesmo as orelhas de um cavalo
podiam ser esticadas após o contato com os vigorosos movimentos do sêmen de um asno. Mas
Maupertuis dispunha de um argumento bastante forte para traços singulares e distintos — a
polidactilia e o albinismo, por exemplo. Estas características pareciam exatamente as mesmas na
prole, fossem elas herdadas de pais ou mães. Era de fato possível acreditar que a herança funcionaria
exatamente do mesmo modo nos traços rigidamente pré-formados num homúnculo e naqueles
causados apenas pelos movimentos no fluido seminal do progenitor não contribuinte?
Maupertuis também usou o negro branco para formular mais dois argumentos contra o pré-
formacionismo. Em primeiro lugar, ele considerava o albinismo como um tipo de deformidade e,
portanto, análogo a nascimentos monstruosos (dos irmãos siameses à polidactilia). Tais anomalias
fetais propunham um grande problema para os pré-formacionistas. Se aceitassem a monstruosidade
como plenamente pré- formada, teriam de enfrentar o dilema teológico de uma divindade
incompreensível e malévola capaz de arquitetar tais infelicidades e programá-las nos ovários de
Eva. Se argumentassem (como geralmente faziam) que as partes a mais indicavam a fusão acidental
de dois homúnculos, não seria forçar demais a imaginação afirmar que uma criança polidáctila
recebeu quase tudo o que tem de um germe e apenas um dedo de outro? De qualquer modo, tal
explicação não serviria para o albinismo. Seria preciso acreditar que uns poucos homúnculos
brancos haviam sido espalhados no progenitor de pessoas negras. Possível, mas improvável.
Em segundo lugar, Maupertuis argumentou que o pré-formacionismo não podia explicar
facilmente a origem de cores diferentes de pele humana a partir de um único progenitor:

A primeira mãe deve ter contido ovos de cores diferentes, os quais carregariam uma série
inumerável de ovos da mesma cor... mas que só seriam chocados no tempo determinado pela
Providência para a origem das pessoas neles contidas. Não seria então impossível que, um dia, a
série de ovos brancos destinados a povoar nossa região viesse a se esgotar e todas as nações
europeias mudassem de cor; assim como também não seria impossível que a fonte de ovos negros
viesse a se exaurir e a Etiópia passasse a ter só habitantes brancos.

Maupertuis usou com eficácia o negro branco para ordenar seus argumentos contra o pré-
formacionismo, mas o que ele podia oferecer para explicar a sua peculiar versão de epigênese? Uma
vez que se recusava a admitir quaisquer forças condutoras externas, vitalistas, ele tinha de descobrir
uma fonte de ordem dentro dos próprios fluidos seminais. Como se juntavam todas as partes
desagregadas e por que as partes certas geralmente se unem — tornando desse modo tão difícil a
intromissão de partes a mais e explicando a raridade de anomalias como a polidactilia? Aqui,
Maupertuis chegou a um impasse, apesar de trabalhar arduamente para resolvê-lo.
Sua melhor sugestão voltava à perspectiva newtoniana, tão importante para sua visão científica
geral. Se a gravidade regulava a atração de objetos físicos, então um tipo de gravidade devia juntar
as partes certas para formar um feto. As partes dos olhos teriam uma afinidade natural por partes do
nariz, partes do nariz por partes dos dentes, e assim por diante, até que um animal inteiro pudesse ser
construído, exatamente como os ossos secos ganharam vida no deserto de Ezequiel. Além disso, as
partes de olhos maternas e paternas teriam chances iguais de se juntar ao feto e um embrião completo
seria, portanto, um amálgama de traços de ambos os progenitores.

Por que, se esta força [a gravidade no sentido de atração] existe na natureza, ela não deveria
regular a formação de corpos animais? Se o fluido seminal de cada progenitor contém partes
destinadas a formar o coração, a cabeça, o intestino, os braços, as pernas, e se cada uma dessas
partes tem uma afinidade maior de união com as partes vizinhas do animal completo do que com
qualquer outra parte, então o feto se construirá sozinho.

Maupertuis sentia que os monstros com partes a mais ofereciam uma fundamentação especial para
a sua teoria gravitacional porque os órgãos excedentes sempre se formavam no lugar certo. Um dedo
extra nunca se projeta da barriga ou da nuca, mas sempre junto aos outros cinco, provando assim que
as partes do dedo têm uma afinidade maior entre si e pelas regiões vizinhas na mão.
Como adoro participar de batalhas intelectuais, mesmo que apenas indiretamente, fiquei muito
entusiasmado, ao ler Vénusphysique, com a oportunidade de ver um homem brilhante lutando para
explicar o maior mistério da biologia e tendo pleno conhecimento de que, apesar de todo o esforço
dispendido ao longo de duzentas páginas, não havia conseguido. Maupertuis sentia que sua teoria
gravitacional era fraca, que não estava fundamentada em nenhum indício concreto e tinha suas raízes
mais na analogia do que em qualquer observação concreta. No entanto, ele tinha de propor algo e não
conseguiu pensar em nada melhor. Afinal, Maupertuis estava firmemente comprometido com sua
perspectiva mecanicista geral e sua teoria específica da epigênese — e estas posições intelectuais o
forçavam a afirmar que devem existir partículas materiais para a formação do feto nos fluidos
seminais de ambos os progenitores, já que forças vitalistas não podiam conduzir à diferenciação de
estruturas complexas a partir do nada. Ele optou por partes desagregadas, misturadas no fluido
seminal, mas, de algum modo, capazes de se encontrarem e formarem o embrião. E ele percebeu
corretamente a natureza insatisfatória e improvável de sua teoria.
Hoje diríamos que o discernimento fundamental de Maupertuis estava correto: a complexidade
não pode surgir de um potencial informe; deve existir algo no ovo e no esperma. Mas agora temos um
conceito radicalmente diverso desse “algo”. Onde Maupertuis não conseguiu pensar em nada além de
partes concretas, descobrimos instruções programadas. Os óvulos e os espermatozoides não
carregam partes, mas apenas instruções codificadas, escritas em DNA, para dirigir a construção de
um embrião adequado.
Não havia, porém, como Maupertuis chegar a essa refinada solução, já que seu século não
dispunha de noções análogas no pensamento e na tecnologia para imaginar um processo de abstração
de órgãos concretos em regras programadas para a sua construção. Instruções programadas não
faziam parte do equipamento intelectual dos pensadores do século XVIII. As caixas de música
apontavam na direção certa, mas a primeira invenção revolucionária baseada em instruções
programadas, o tear Jacquard, não surgiu até o início do século XIX. Esse instrumento automático de
tecelagem, com instruções em cartões perfurados, inspirou diretamente a invenção posterior de
Hollerith de cartões de dados para máquinas de censo (mais tarde metamorfoseado no famoso cartão
de computador IBM — não dobre, não enrole, não mutile). Como Maupertuis poderia imaginar a
solução correta do seu dilema — instruções programadas — num século que nem tinha pianolas,
quanto mais programas de computador?
Muitas vezes, pensamos ingenuamente que os dados não descobertos são os principais
empecilhos do progresso intelectual — basta encontrar os fatos certos e todos os problemas se
dissipam. Mas as barreiras muitas vezes são mais profundas e abstratas no pensamento. Devemos ter
acesso à metáfora correta, não apenas à informação necessária. Os pensadores revolucionários não
são, primariamente, coletores de fatos, mas construtores de novas estruturas intelectuais. No fim,
Maupertuis fracassou porque sua era ainda não desenvolvera uma metáfora dominante de nossa
época — instruções codificadas como precursoras de complexidade material.
3. A importância da taxonomia
10. De vespas e WASPs

“Ele está proferindo o insulto do século contra nossas mães, esposas, filhas e irmãs, sob o
pretexto de estar oferecendo uma grande contribuição para a pesquisa científica.” Foi assim que
Louis B. Heller, congressista por Nova York, rotulou o relatório Kinsey sobre o Comportamento
sexual da mulher (1953) em uma carta ao diretor-geral dos Correios, exigindo que o livro fosse
banido das malas postais. O dr. Henry Van Dusen, presidente do Union Theological Seminary,
duvidou dos fatos apresentados por Kinsey, mas proclamou que se, não obstante, eles fossem
verdadeiros, “revelam uma degradação vigente na moralidade americana que se aproxima da pior
decadência do império romano”. “O mais perturbador”, prosseguiu Van Dusen na sua dura crítica ao
relatório Kinsey, “é a ausência de uma repulsa ética, espontânea, pelas premissas do estudo.”
No entanto, as premissas pareciam bastante simples. Kinsey havia procurado, através de extensas
entrevistas com mais de 5.000 mulheres, compilar um registro estatístico do que as pessoas
realmente fazem, em vez do que a lei e o costume dizem que elas deveriam fazer. Ele não emitiu
nenhum julgamento — apenas relatou suas descobertas; no entanto, ele, sem dúvida, descobriu uma
frequência de relações sexuais pré-matrimoniais e extraconjugais que, no mínimo, perturbava o
código cavalheiresco de muitas pessoas ingênuas, hipócritas ou presunçosamente satisfeitas consigo
mesmas — sobretudo os homens mais velhos no poder.
Alfred C. Kinsey sofreu o infortúnio de publicar seu relatório em 1953, quando os Estados
Unidos viviam o auge da histeria macartista (o relatório anterior, de 1948, sobre o Comportamento
sexual do homem causara sensação, mas não havia inspirado tamanha calúnia, talvez porque a
sociedade sempre tenha aceitado uma amplitude maior de comportamentos entre os homens, e porque
o clima político dos primeiros anos do pós-guerra tenha sido mais liberal). Muitos rotularam o
relatório Kinsey sobre a sexualidade feminina como um exercício de comunismo ou, se não
diretamente subversivo, enfraquecedor para a fibra moral americana num grau suficiente para
facilitar o acesso (a grafia de vespa [wasp] é igual à de WASP, abreviatura de White Anglo-Saxon Protestant [Protestante
anglo-saxão branco], usada para se designar a maioria dominante nos Estados Unidos - N.T.) comunista às nossas
perturbadas praias. Uma comissão especial do Congresso, estabelecida para investigar o uso de
fundos da parte de fundações isentas de impostos, repreendeu a Fundação Rockfeller. A fundação
capitulou diante dessas e de outras pressões, e a principal fonte de patrocínio de Kinsey cessou
abruptamente em 1954. A Comissão Reece emitiu seu relatório majoritário em dezembro de 1954,
acusando algumas fundações de usar verbas isentas de impostos em estudos que “apoiavam
diretamente a subversão”. Os relatórios Kinsey foram citados explicitamente como indignos da ajuda
recebida. Kinsey nunca encontrou uma fonte alternativa de patrocínio; morreu dois anos depois,
sobrecarregado de trabalho, irritado, e angustiado com a perspectiva de que dados adicionais,
resultantes de anos de pesquisas, talvez nunca viessem a ser publicados (o financiamento foi
renovado mais tarde, mas não a tempo de fazer justiça a Kinsey pessoalmente).
Kinsey não batalhou a vida inteira pelo esclarecimento sexual. Ele se deixou levar para o campo
da pesquisa sobre a sexualidade quase que por acidente (embora não sem um interesse anterior).
Fora treinado como entomologista e era, na época da mudança de carreira, um dos mais importantes
taxonomistas de vespas (de seis pernas, não de duas) dos Estados Unidos. Pouco depois da mudança,
ele iniciou uma palestra Phi Beta Kappa na Universidade de Indiana com estas palavras:

Ocupei-me com a variação individual como fenômeno biológico durante uns vinte anos de
exploração de campo e pesquisa de laboratório. Na avaliação intensa e extensa de dezenas de
milhares de pequenos insetos que vocês provavelmente nunca viram e nos quais provavelmente
não estão interessados, tentei obter os dados específicos e a quantidade de dados sobre os quais
deve se fundamentar o trabalho científico. Durante os dois últimos anos, como resultado de uma
convergência de interesses, vi-me confrontado com material sobre variação em certos tipos de
comportamento humano.

A maioria das pessoas, ao tomar conhecimento da carreira anterior de Kinsey, tende a considerar
a descoberta com uma surpresa divertida. Que coisa mais estranha, um homem que mais tarde
sacudiria os Estados Unidos ter gasto a maior parte de sua carreira profissional com a taxonomia de
insetos minúsculos. Certamente não pode haver relação alguma entre duas carreiras tão diversas.
Como escreveu um gaiato na página de rosto da única cópia de Harvard da maior monografia de
Kinsey sobre vespas: “Por que você não escreve sobre algo mais interessante, Al?”
Quero afirmar, porém, que as vespas e os WASPs de Kinsey estavam intimamente relacionados
pela abordagem intelectual que ele usou para ambos. E como as vespas precederam os WASPs, a
carreira de taxonomista de Kinsey teve um impacto direto e profundo sobre as suas pesquisas a
respeito da sexualidade. Na verdade, Kinsey empreendeu as suas pesquisas sobre sexualidade
seguindo um “modo de pensamento taxonômico” particular, um estilo válido de ciência que não se
assemelha à maioria dos estereótipos do empreendimento. O caráter especial da obra de Kinsey —
os aspectos que lhe trouxeram tanta fama e tantos problemas — fluiu diretamente da abordagem
taxonô- mica que ele aprendera e aperfeiçoara como entomologista.
Além das conclusões específicas que tanto chocaram os Estados Unidos — basicamente, a grande
frequência de coisas que pessoas decentes não fazem, como homossexualismo, relações sexuais pré-
conjugais e extramatrimoniais entre mulheres, a grande frequência de contato sexual com animais
entre homens criados em fazendas —, Kinsey sacudiu o mundo com seu processo de abordagem da
pesquisa sobre sexualidade. Ele trabalhou com três premissas básicas, todas diretamente
provenientes de sua perspectiva taxonômica. A primeira, que fundamentaria suas conclusões em
amostragens bem maiores do que as colhidas pbr qualquer pesquisador anterior. Bastava de
extrapolações para toda a humanidade a partir de uma população pequena e homogênea de
universitários. A segunda, sua amostragem seria heterogênea — velhos e jovens, campo e cidade,
pobres e ricos, analfabetos e indivíduos com formação superior. Assim como as vespas variavam de
árvore para árvore, as classes, os sexos e as gerações podiam diferir amplamente no comportamento
sexual. A terceira, ele não emitiria quaisquer julgamentos, limitando-se apenas a descrever o que as
pessoas faziam.
Kinsey fez o doutorado em entomologia em Harvard, e então aceitou um posto de professor
assistente de zoologia na Universidade de Indiana, onde permaneceu toda a sua vida. Gastou os
primeiros vinte anos de sua carreira num estudo, conduzido com uma minúcia sem precedentes, sobre
a taxonomia, a evolução e a biogeografia das vespas formadoras de galhas do gênero Cynips. Essas
pequenas vespas põem seus ovos nos tecidos de plantas (geralmente folhas ou caules de carvalho).
Quando as larvas nascem, elas induzem a planta a formar uma galha ao redor delas, assegurando
desse modo proteção e uma fonte de alimento. As larvas amadurecem dentro das galhas, emergindo
por fim como insetos alados, para reiniciar o processo. Kinsey apresentou seu trabalho sobre o
gênero Cynips numa quantidade de dissertações menores e em duas grandes monografias, The Gall
Wasp Geri us Cynips; A Study in the Origin of Species (1930) [A vespa das galhas do gênero
Cynips: um estudo sobre a origem das espécies] e The Origin of Higher Categories in Cynips
(1936) [A origem de categorias superiores no gênero Cynips] — ver Bibliografia.
Em 1938, em resposta a pedidos de estudantes, a universidade instituiu um curso, sem atribuição
de créditos, sobre casamento (um eufemismo, acho eu, para educação sexual). Pediram a Kinsey, que
planejara passar o resto da vida estudando vespas, que servisse como presidente da comissão para
regular o curso e que desse três aulas sobre a biologia do sexo. Kinsey era escrupuloso e empírico
ao extremo. Foi à biblioteca procurar as informações necessárias sobre a resposta sexual humana —
e não conseguiu. Então decidiu que ele mesmo teria de compilá-las. Começou entrevistanto
estudantes, mas logo percebeu que não estava conseguindo informações representativas da
heterogeneidade americana. Passou a viajar nos finais de semana, colhendo informações em cidades
próximas às suas próprias custas. Desenvolveu um amplo roteiro para as entrevistas e escreveu as
respostas em código a fim de assegurar o anonimato (a habihdade intuitiva de Kinsey como
entrevistador tornou-se lendária). Registrou uma variação enorme de comportamento sexual entre
pessoas de diferentes condições econômicas, estendendo suas pesquisas a Gary, Chicago, Saint Louis
e a prisões de Indiana. À medida que seu trabalho se tornava mais pú- bbco, as críticas aumentaram,
mas a universidade manteve-se firme em seu apoio ao direito de saber de Kinsey.
Por fim, com o respaldo da universidade, ele estabeleceu o Instituto de pesquisa sexual e obteve
dinheiro da Fundação Rockfeller para as crescentes entrevistas e a sua publicação. O trabalho
culminou em dois grandes volumes, Comportamento sexual do homem e Comportamento sexual da
mulher, cada um deles fundamentado em mais de 5.000 entrevistas com americanos brancos dos mais
diversificados antecedentes. (Fiel às suas convicções sobre o caráter fundamental da variabilidade,
Kinsey sabia que não dispunha de dados suficientes para obter conclusões sobre americanos negros
ou para fazer extrapolações para outras nações e culturas.) Bem antes que surgissem esses volumes,
com muita relutância e tristeza, mas com uma inevitabilidade progressiva, Kinsey abandonara os
estudos sobre vespas que tanto prazer tinham lhe dado e que haviam estabelecido seus padrões de
trabalho científico.
Embora Kinsey tenha limitado seus trabalhos principais sobre vespas a uma única família, a
Cynipidae, seus objetivos eram amplos como a própria história natural. Ele pensou profundamente
sobre a prática e o significado da classificação e tinha esperanças de reformular os princípios da
taxonomia. Em 1927, escreveu:

A partir do nosso trabalho com Cynipidae, em conexão com um estudo da obra publicada em
outros campos da taxonomia, proponho uma tentativa de formulação da filosofia da taxonomia, da
sua utilidade como meio de retratar e explicar as espécies tal como existem na natureza, e da sua
importância na coordenação e elucidação de dados biológicos.

Kinsey sentiu que poderia alcançar esses objetivos maiores executando um estudo específico sem
precedentes, com uma riqueza tal de detalhes concretos que os princípios maiores surgiriam do
próprio volume de informações. Kinsey revelou-se um viciado em trabalho antes mesmo que se
falasse nisso. Durante uma viagem de estudos que lhe foi financiada, em 1919-1920, ele percorreu
18.000 milhas (2.500 a pé) em regiões do sul e do oeste dos Estados Unidos, e coletou por volta de
300.000 espécimes de vespas das galhas. Suas duas viagens a zonas rurais do México e da América
Central foram monumentos ao seu esforço insaciável. Na monografia de 1936, ele lamentava que,
para cada uma das suas 165 espécies, havia coletado, em média, “apenas” 214 insetos e 755 galhas.
Para 51 dessas espécies (grupos variáveis em regiões de topografia uniforme), ele declarava que não
se daria por satisfeito antes de colher um total geral de 1.530.000 insetos e de 3 a 4 milhões de
galhas!
Havia mais do que simples mania de coleta nos desejos expressados por Kinsey e em seus
esforços concretos. Um estatístico moderno poderia muito bem argumentar que Kinsey tinha uma
avaliação inadequada da teoria de amostragem; na verdade, não é preciso colher tudo. Ainda assim,
Kinsey prosseguiu com sua copiosa coleta porque operava e centrava suas crenças biológicas sobre
um princípio cardeal: a primazia e a irredutibilidade da variação.
Ironicamente, boa parte da prática taxonômica não havia de todo assimilado essa mudança
fundamental introduzida na biologia pela teoria da evolução. Muitos taxonomistas ainda viam o
mundo como uma série de escaninhos, cada um abrigando uma espécie. As espécies, neste parecer,
deviam ser definidas pelas suas “essências” — características fundamentais separando-as de todas
as outras. A variação era considerada, na melhor da hipóteses, como um “ruído” — um tipo de
espalhamento acidental ao redor da forma essencial, servindo apenas para criar confusão na hora de
distribuir os escaninhos. A maioria dos taxonomistas clássicos tratava a variação como um mal
necessário e muitas vezes estabeleciam espécies depois de estudar apenas alguns poucos espécimes.
Os taxonomistas como Kinsey, que compreendiam as implicações plenas da teoria da evolução,
desenvolveram uma atitude radicalmente diversa para com a variação. Existem ilhas de forma, é
claro: os felinos não fluem juntos num mar de continuidade, mas apresentam- se a nós, mais
exatamente, como leões, tigres, linces, gatos e assim por diante. Ainda assim, embora as espécies
possam ser distintas, elas não possuem nenhuma essência imutável. A variação é a matéria-prima da
mudança evolutiva. Ela representa a realidade fundamental da natureza, não um acidente sobre uma
norma criada. A variação é primária; as essências são ilusórias. As espécies devem ser definidas
como amplitudes de variação irredutível.
Este modo antiessencialista de pensar tem profundas consequências na nossa visão básica da
realidade. Desde que Platão lançou sombras na parede da caverna, o essencialismo domina o
pensamento ocidental, encorajando-nos a negligenciar as continuidades e a dividir a realidade num
conjunto de categorias corretas e imutáveis. O essencialismo estabelece critérios de julgamento e
valor: objetos individuais próximos de sua essência são bons; os que se afastam dela são ruins,
quando não irreais.
O pensamento antiessencialista força-nos a ver o mundo de modo diferente. Devemos aceitar
nuanças e continuidades como fundamentais. Perdemos os critérios de julgamento baseados na
comparação com algum ideal: pessoas baixas, pessoas retardadas, pessoas de outras crenças, cores e
religiões são pessoas em sentido pleno. O taxonomista essencialista cava um punhado de caramujos
fósseis de uma única espécie, tenta abstrair uma essência e classifica os caramujos por meio de sua
correspondência com a média obtida. O antiessencialista vê algo inteiramente diverso em suas mãos
— uma amplitude de variação irredutível que define a espécie, algumas variantes mais frequentes do
que outras, mas todos caramujos perfeitamente bons. Ernst Mayr, nosso principal teórico de
taxonomia, escreveu larga e aprimoradamente sobre a diferença entre o essencialismo e a variação
como realidade última (“pensamento em termos de população” [population thinking] na sua
terminologia — ver seu recente livro, The Growth of Biological Thought).
Kinsey, que compreendia tão bem as implicações da teoria da evolução, era um antiessencialista
radical em taxonomia. Sua crença na primazia da variação incitou um esforço quase frenético para
coletar sempre mais espécimes. Sua crença em continuidades forçou-o a explorar virtualmente cada
centímetro quadrado de território apropriado para as Cynips na América do Norte — pois sempre
que encontrava grandes lacunas, ele tinha fortes suspeitas (em geral corretas) de que formas
intermediárias seriam encontradas em alguma área geograficamente contígua.
No fim, o antiessencialismo de Kinsey tornou-se quase que excessivamente radical. Ele estava
tão convencido de que as espécies se convertiam gradualmente em outras, que passou a nomear
variantes geográficas intermediárias legítimas dentro de uma única espécie como entidades
separadas, estabelecendo uma taxonomia intumescida, com nomes completos para variantes locais
transitórias e menores. (Kinsey decidiu que as espécies surgiam por meio da disseminação nas
populações locais de mutações distintas com efeitos pequenos. Assim, sempre que encontrava uma
população local diferindo de outras por mutações do tipo produzido em animais de laboratório, ele
estabelecia uma nova espécie. Mas as populações locais dentro de uma espécie muitas vezes
estabelecem pequenas mutações sem perder seu vínculo central com o resto da espécie — a
capacidade de se cruzarem entre si.)
Mais importante para a história social americana, Kinsey transportou integralmente para as suas
pesquisas sexuais o antiessencialismo radical de seus estudos entomológicos. Os vinte anos de
Kinsey com as Cynips não podem ser julgados como uma distração inútil quando comparados com a
fonte posterior de sua fama. Mais exatamente, o trabalho com vespas de Kinsey estabeleceu a
metodologia e os princípios de raciocínio que fizeram dele um pioneiro na pesquisa da sexualidade.
Não estou simplesmente fazendo inferências eruditas sobre continuidades que o mestre do
antiessencialismo não reconhecia. Kinsey sabia muito bem o que estava fazendo. Ele não se
arrependeu por nenhum momento gasto com vespas, não só porque ele as adorava, mas também
porque o estudo a respeito delas havia estabelecido os seus conceitos intelectuais. No primeiro
capítulo de seu primeiro tratado sobre o Comportamento sexual do homem, Kinsey incluiu uma
notável seção sobre “a abordagem taxonômica”, com dois subtítulos, “na biologia”, seguido pela
transferência explícita, “nas ciências aplicadas e sociais”. Kinsey escreveu:

As técnicas desta pesquisa foram taxonômicas, no sentido em que os biólogos modernos


empregam o termo. Ela nasceu da longa experiência do autor principal com um problema de
taxonomia de insetos. A transferência de material, de insetos para humanos, não é ilógica, pois
foi uma transferência de um método que pode ser aplicado ao estudo de qualquer população
variável.

A amostragem ampla foi a marca registrada da obra de Kinsey. A maioria dos primeiros estudos
sobre o comportamento sexual humano havia ou confinado o relatório a casos incomuns (a Psychopa-
thia Sexualis de Krafft-Ebings, por exemplo) ou feito generalizações a partir de amostragens
pequenas e homogêneas. Se Kinsey tivera esperanças de obter milhões de vespas e galhas, ele
entrevistaria, pelo menos, vários milhares de pessoas. Ele sabia que precisava de quantidades assim
grandes porque sua perspectiva antiessencialista proclamava duas verdades sobre a variação,
igualmente válidas para vespas e pessoas — populações aparentemente homogêneas em um lugar
(todos os universitários de Indiana, ou todos os assassinos de Alcatraz) exibiriam uma enorme
amplitude de variação irredutível, e populações locais distintas em lugares diferentes (mulheres mais
velhas da classe média em Illinois, ou rapazes pobres em Nova York) iriam diferir amplamente em
comportamentos sexuais médios. (Os biólogos referem- se a esses dois tipos de variação como
intrapopulacional [within- population] e interpopulacional [between-population].) Kinsey decidiu
que teria de colher amostras de vários grupos diferentes e em grandes quantidades dentro de cada
grupo. No primeiro parágrafo de seu tratado sobre os homens ele escreveu:

Trata-se de um levantamento em busca de fatos no qual se tenta descobrir o que as pessoas fazem
no que diz respeito à atividade sexual, e quais fatores explicam as diferenças de comportamento
sexual entre os indivíduos e entre os vários segmentos da população.

Na seção sobre “a abordagem taxonômica em biologia” ele explicou por que sua experiência com
vespas havia estabelecido seus métodos para humanos:

A taxonomia moderna é o produto de uma consciência crescente entre os biólogos da


singularidade de cada indivíduo, e da grande amplitude de variação que pode ocorrer em
qualquer população de indivíduos. O taxonomista, portanto, ocupa-se principalmente com a
medida da variação.

A crença de Kinsey na primazia da variação e da diversidade tornou-se uma cruzada. Sua


palestra Phi Beta Kappa, “Indivíduos”, tinha como foco a “não-identidade ilimitada” entre os
organismos de qualquer população e criticava duramente tanto os cientistas biológicos quanto os
sociais por tirarem conclusões gerais a partir de amostragens pequenas e relativamente homogêneas.
Por exemplo:

Um camundongo num labirinto, hoje, é tomado como uma amostra de todos os indivíduos, de
todas as espécies de camundongos sob todos os tipos de condições, ontem, hoje e amanhã. Meia
dúzia de cães, de pedigrees desconhecidos e raças sem nome, são descritos como “cães” —
significando todos os tipos de cães — se, na verdade, as conclusões não forem explícitas ou pelo
menos implicitamente aplicadas a você, seus primos e a todos os outros tipos e descrições de
humanos... Um famoso químico americano de colóides estarrece o país com o anúncio de uma
nova cura para viciados em drogas; e só depois que outros laboratórios relatam seu fracasso na
obtenção de resultados similares é que ficamos sabendo que os experimentos originais foram
baseados em meia dúzia de indivíduos.

Como segunda transferência importante do seu antiessencialismo baseado na entomologia, Kinsey


enfatizou repetidamente a impossibilidade de se classificar a resposta sexual humana colocando as
pessoas em categorias rigidamente definidas. Assim como as suas vespas formavam cadeias de
continuidade de uma espécie para outra, a resposta sexual humana podia ser fluida, mutável e
desprovida de fronteiras rígidas. Da homossexualidade masculina, ele escreveu:

Os homens não representam duas categorias distintas, heterossexuais e homossexuais. O mundo


não deve ser dividido em carneiros e bodes. Nem todas as coisas são negras, nem todas as coisas
são brancas. É um princípio fundamental da taxonomia o fato de que a natureza raramente lida
com categorias distintas. Apenas a mente humana inventa categorias e tenta forçar fatos em nichos
separados. O mundo vivo é uma continuidade em todo e cada um de seus aspectos. Quanto mais
cedo tomarmos conhecimento disso, no tocante ao comportamento sexual humano, mais cedo
alcançaremos uma compreensão sólida das realidades da sexualidade.
A terceira transferência — a que por fim trouxe tantos problemas a Kinsey — levantava a
polêmica questão do julgamento. Se a variação é primária, abundante, e irredutível, e se as espécies
não possuem essências, então que critério “natural” de julgamento podemos descobrir? Uma variante
singular é um membro de sua espécie tanto quanto um indivíduo médio. Mesmo que os indivíduos
médios sejam mais comuns que os organismos peculiares, quem pode identificar um ou outro como
“melhor” — pois as espécies não possuem nenhuma forma “certa” definida por uma essência
imutável? Kinsey escreveu em “Indivíduos”, mais uma vez tornando explícita sua referência a
vespas:

Prescrições são meramente confissões públicas de prescritores. ... O que é certo para um
indivíduo pode ser errado para outro; e o que é pecado e abominação para um indivíduo pode ser
uma parte valiosa da vida de outro. A amplitude de variação individual, em qualquer caso
particular, é habitualmente bem maior do que geralmente se compreende. Alguns dos caracteres
estruturais dos meus insetos variam em até mil e duzentos por cento. Isso significa que
populações de uma única localidade podem conter indivíduos com asas de 15 unidades de
comprimento, e outros indivíduos com asas de 175 unidades de comprimento. Em alguns dos
caracteres morfológicos e fisiológicos que são fundamentais no comportamento humano que estou
estudando, a variação é de uns bons doze mil por cento. No entanto, as fórmulas sociais e os
códigos morais são prescritos como se todos os indivíduos fossem idênticos; e emitimos
julgamentos, damos prêmios, e empilhamos castigos, sem levar em consideração as diversas
dificuldades envolvidas quando pessoas tão diferentes têm de enfrentar exigências uniformes.

Em seus dois extensos relatórios, Kinsey afirmou repetidamente que se limitara apenas a registrar
os fatos do comportamento sexual sem emitir ou mesmo insinuar julgamentos. No prefácio do seu
relatório sobre homens, ele escreveu:

Há algum tempo vem surgindo uma consciência crescente entre várias pessoas da necessidade de
se obter dados a respeito da sexualidade que representariam um acúmulo de fatos científicos
completamente divorciado de questões de valor moral e de costume social.

Seus críticos retrucaram argumentando que uma ausência de julgamento no contexto de um


registro tão extenso é, ela própria, uma forma de julgamento. Acho que eu teria de concordar. Não
vejo nenhuma possibilidade de uma ciência social completamente “livre de valores”. Kinsey pode
ter negado nos próprios relatórios, mas a declaração recém citada do seu ensaio de 1939 deixa bem
clara a sua convicção de que atitudes de não-julgamento são moralmente preferíveis — e a própria
crença na primazia da variação tem implicações evidentes. Pode-se desprezar o que a natureza
oferece como fundamental? (É claro que sim, mas poucas pessoas apoiarão uma ética que rejeita a
vida e o mundo tal como inevitavelmente os encontramos.)
De qualquer modo, qual é a alternativa? Não devemos compilar os dados concretos do
comportamento sexual humano? Ou as pessoas que levam a cabo tal estudo devem salpicar cada
descoberta com pitadas de avaliação irrelevante do seu valor moral a partir dos próprios pontos de
vista? Seria mesmo muita arrogância. Contudo, devo confessar por fim que minha aprovação de
Kinsey e minha forte atração por ele devem-se aos valores que compartilhamos. Eu também sou um
taxonomista.
No começo de The Grapes of Wrath (As vinhas da irá), quando Tom Joad vai para casa após
cumprir pena na prisão, ele encontra Casy, seu antigo pregador. Casy explica que não preside mais
cultos porque não podia reconciliar seu comportamento sexual (muitas vezes inspirado pelo fervor
do próprio culto) com o conteúdo de suas pregações:

Eu disse, “Vai ver que não é pecado. Vai ver que as pessoas são assim mesmo.”... Bem, eu tava
debaixo de uma árvore quando descobri isso, e eu dormi. E anoiteceu, e tava escuro quando eu
acordei. Tinha um coiote uivando por perto. Antes que eu percebesse, eu tava falando alto... “Não
tem pecado e não tem virtude. Só tem as coisas que as pessoas fazem. ... E algumas das coisas que as
pessoas fazem são boas, e outras não são boas, mas é só isso que um homem tem o direito de dizer.”
11. Opus 100
(Este é o quarto volume de ensaios compilado da minha coluna mensal na revista Natural History. Alcancei a marca de dez anos de trabalho, e como não deixei de
cumprir um único prazo de entrega [não vou falar nada sobre as várias entregas em cima da hora], com este ato de autoindulgência, concedo a mim mesmo este
pequeno prazer pelo meu centésimo esforço).

Durante toda uma longa década de ensaios, eu nunca escrevi, por motivos óbvios, sobre o tema
de biologia mais próximo de mim. No entanto, desta vez, no meu centésimo esforço, peço a sua
indulgência para lhe impingir o Cerion, um caracol terrestre das Bahamas, esteio da minha pesquisa
pessoal e do meu trabalho de campo. Eu amo o Cerion de todo coração e intelecto, mas tenho-o
evitado conscientemente neste foro porque a linha que separa o interesse geral da paixão pessoal não
pode ser traçada a partir de uma perspectiva de imersão total — a imagem de pais-coruja atordoando
de sono amigos e vizinhos com filmes de família vem facilmente à lembrança. Estes ensaios devem
seguir duas regras inflexíveis: eu nunca minto, e esforço-me bravamente para não entediá-los. Desta
vez, porém, dentre cem, colocarei em risco a segunda apenas pelo meu prazer pessoal.
O Cerion é o caracol terrestre mais conhecido nas ilhas das índias Ocidentais. É encontrado
desde as Ilhas Key, na Flórida, até as pequenas ilhas de Aruba, Bonaire e Curaçao, perto da costa
venezuelana, mas a vasta maioria das espécies habita dois centros principais — Cuba e Bahamas. A
vida do Cerion não é muito excitante, segundo os nossos padrões. A maioria das espécies habita as
rochas e a vegetação esparsa limítrofes ao litoral. Podem viver de cinco a dez anos, mas passam a
maior parte desse tempo no que equivale, em climas quentes, à hibernação (o entorpecimento de
estio), pendurados de ponta-cabeça na vegetação ou fixados em rochas. Após uma chuva ou às vezes
no frescor e umidade relativos da noite, eles descem de seus galhos e pedras, mordiscam os fungos
da vegetação que se decompõe, e às vezes até copulam. Nós marcamos e mapeamos o movimento de
caracóis individuais e muitos podem ser encontrados nos mesmos metros quadrados de campo, ano
após ano.
Por que escolher o Cerion? Realmente, por que gastar tanto tempo em cada detalhe particular
quando todas as estonteantes generalidades da teoria evolutiva clamam pelo estudo de uma vida
inteira, tempo suficiente para dar conta de apenas algumas delas? Iconoclasta que sou, nunca iria
abandonar a sabedoria central da história natural desde a sua fundação — que conceitos sem objetos
de percepção são vazios (como disse Kant), e que nenhum cientista pode desenvolver uma
“sensação” adequada da natureza (aquele pré-requisito indefinível da verdadeira compreensão) —
sem examinar em profundidade detalhes empíricos mínimos de algum grupo bem escolhido de
organismos. Assim. Aristóteles dissecou lulas e proclamou a eternidade do mundo, enquanto Darwin
escreveu quatro volumes sobre cracas e um sobre a origem das espécies. Os maiores evolucionistas
e estudiosos de história natural dos Estados Unidos, G. G. Simpson, T. Dobzhansky e E. Mayr
começaram suas carreiras, respectivamente, como especialistas proeminentes em mamíferos
mesozoicos, joaninhas e pássaros da Nova Guiné.
Os cientistas não mergulham em particularidades apenas pelo motivo grandioso (ou egoísta) de
que tais estudos podem levar a generalidades importantes. Fazemos isso por diversão. A alegria da
descoberta transcende o seu teor. E fazemos isso pela aventura e pela expansão. Em dramaticidade,
expedições de trabalho nas Bahamas podem parecer ridículas quando comparadas à viagem de
Darwin no Beagle, à de Bates no Amazonas, e à de Wallace no arquipélago ma- laio — embora eu
não faça questão de repetir o único esbarrão que tive com a morte, preso no meio de um tiroteio entre
traficantes de drogas em Andros do Norte. Valorizo muito mais as ocasiões calmas em mundos
diferentes: uma discussão noturna sobre medicina do sertão em Mayaguana, uma exploração de
entalhes ornamentais que adornam tetos na ilha Long e em Andros do Sul, e a melhor refeição que já
comi — uma panela de búzio fresco, cozido na fogueira do acampamento com batatas-doces do
jardim de Jimmy Nixon em Inagua, depois de um dia quente e de trabalho duro.
Se todos os naturalistas devem escolher um grupo de organismos para a imersão minuciosa, não
devemos selecioná-lo descuidadamente ou a esmo (ou mesmo, como sugeriram alguns céticos,
porque as Bahamas são melhores que o Yukon como área para trabalho de campo). Estou interessado
principalmente na evolução da forma e me concentrei na maneira pela qual as formas variáveis do
desenvolvimento de um indivíduo podem servir como fonte de modificação evolutiva (ver meu livro
técnico Ontogeny and Philogeny, na Bibliografia). Um paleontólogo de invertebrados com esses
interesses acabaria por se voltar para os caracóis, já que as suas conchas preservam um registro
completo do desenvolvimento do ovo ao adulto.

Um estudioso da forma com uma queda por gastrópodes não teria como evitar o Cerion, pois esse
gênero exibe, entre as suas várias centenas de espécies, uma amplitude de forma inigualada por
qualquer outro grupo de caracóis. Alguns Cerions são altos e finíssimos; outros têm o formato de
bolas de golfe. Numa conferência pública, quando um colega arriscou “caracóis quadrados” como
um exemplo de animais impossíveis, pude lhe mostrar o estranho Cerion quadrangular da fotografia
acima, fileira de baixo, segundo a partir da esquerda. Há cinco anos, descobri o maior Cerion, um
gigante fóssil, fino e de lados paralelos, de Mayaguana, com mais de 70 mm de altura. O menor é
virtualmente uma esfera que mal chega aos 5 mm de diâmetro, da Pequena Inagua (ver fotografia).
O mistério e o interesse especial do Cerion não residem apenas na sua exuberante diversidade;
muitos grupos de animais contêm alguns membros com uma propensão incomum para a formação de
novas espécies e a consequente variação de forma. As espécies são as unidades fundamentais da
diversidade biológica, populações distintas permanentemente isoladas uma da outra por meio de uma
ausência de hibridação na natureza. Não deve ser motivo de surpresa para nós que grupos que
produzem grandes números de espécies possam se tornar inteiramente diversos na forma, já que mais
unidades distintas oferecem mais oportunidades para a evolução de uma larga amplitude
morfológica.
Confrontados com uma sucessão de formatos tão profusa, naturalistas mais antigos nomearam
montes de espécies de Cerion, umas seiscentas mais ou menos. No entanto, poucas são
biologicamente válidas como populações distintas, que não se acasalam entre si. Em dez anos de
trabalho de campo em todas as principais ilhas das Bahamas, só uma vez encontramos duas
populações distintas de Cerion vivendo no mesmo lugar sem se acasalarem — espécies verdadeiras,
portanto. Essas incluíam um gigante e um anão — trazendo assim à lembrança várias piadas ruins
sobre chihuahuas e cães dinamarqueses. Em todos os outros casos, duas formas, não importa o quão
distintas em tamanho e forma, acasalam-se e produzem híbridos no ponto de contato geográfico. De
algum modo, o Cerion consegue gerar a sua inigualável diversidade de formas sem dividir as suas
populações em espécies verdadeiras. Como isso pode acontecer? Além do mais, se formas tão
diferentes produzem híbridos tão prontamente, então as diferenças genéticas entre eles não podem ser
tão grandes. Como pode surgir tamanha diversidade de tamanho e forma na ausência de uma ampla
mudança genética?
Num segundo mistério relacionado, muitas vezes formas distintas de Cerion habitam ilhas
largamente separadas. A explicação mais simples propõe que essas colônias afastadas representam a
mesma espécie e que os furacões podem soprar caracóis para grandes distâncias, produzindo
distribuições fortuitas, ou então que as colônias que habitavam ilhas intermediárias se extinguiram,
deixando grandes distâncias entre os sobreviventes. Contudo, todos os especialistas em Cerion
desenvolveram a sensação (que eu compartilho) de que essas colônias separadas, apesar da
similaridade detalhada de várias séries de traços, se desenvolveram de modo independente in situ.
Se tal interpretação não-convencional for correta, como séries tão complexas de traços associados
podem ser desenvolvidas repetidas vezes?
Assim, o Cerion apresenta duas peculiaridades notáveis em meio à sua inigualável diversidade:
as suas formas mais distintas acasalam-se entre si e não são espécies verdadeiras, enquanto essas
mesmas formas, apesar de toda a sua complexidade, podem ter se desenvolvido várias vezes de
modo independente. Qualquer cientista que possa explicar esses singulares fenômenos no caso do
Cerion dará uma importante contribuição para a compreensão da forma e da sua evolução em geral.
Tentarei descrever os poucos passos, preliminares e vacilantes, que fizemos rumo a uma tal solução.
O Cerion tem atraído a atenção de vários naturalistas destacados, desde Lineu, que nomeou a
primeira espécie em 1758, até Ernst Mayr, que foi o pioneiro no estudo de populações naturais
duzentos anos mais tarde. Ainda assim, apesar dos esforços de um pequeno grupo de entusiastas, o
Cerion não recebeu o renome que merece à luz de sua curiosa biologia e da promessa que encerra
como exemplar da evolução da forma. A sua relativa obscuridade pode ser atribuída diretamente à
prática biológica passada. Os naturalistas mais antigos enterraram a biologia incomum do Cerion
num matagal tão impenetrável de nomes (para espécies inválidas) que os colegas interessados na
teoria evolutiva foram incapazes de recuperar o padrão e o interesse do caos absoluto.
O pior infrator foi C. J. Maynard, um bom biólogo amador, que, no período compreendido entre
1880 e 1920, nomeou centenas de espécies de Cerion. Ele imaginou que estava prestando um grande
serviço, ao proclamar em 1889:

Os conquiliologistas (Conquiliologia: estudo das conchas - N.R.T.) podem fazer objeções a algumas das
minhas novas espécies, julgando, talvez, que usei caracteres muito triviais para separá-las.
Acreditando, porém, como acredito, que é dever imperativo dos naturalistas, hoje, registrar
minúcias das diferenças entre os animais... não hesitei em assim designá-las, se não por outro
motivo, pelo benefício das gerações vindouras.

Confio que não serei acusado de ceticismo indevido ao reconhecer outro motivo. Maynard
financiava suas viagens às Bahamas, vendendo conchas, e um número maior de espécies significava
mais artigos que ele podia empurrar. Caveat emptor.
Os colegas profissionais foram duros com a divisão esmiuçada de Maynard. H. A. Pilsbry, o
maior conquiliologista americano, declarou, numa prosa atipicamente vigorosa, que “deuses e
homens podem muito bem ficar estupefatos diante da designação de colônias individuais em todos os
campos de sisal e plantações de batatas das Bahamas”. W. H. Dali rotulou os esforços de Maynard
como “nocivos e estonteantes”. No entanto, quando postos à prova na prática, nem Pilsbry, nem Dali
mostraram-se à altura de suas bravas palavras. Cada um reconheceu pelo menos metade das espécies
que Maynard defendia, uma quantidade ainda excessiva, o suficiente para ocultar qualquer padrão na
floresta de nomes inválidos.
Tão rica era a diversidade do Cerion, e tão numerosas as suas espécies, que G. B. Sowerby, o
notável conquiliologista inglês, que se imaginava (com pouca justificativa) um poeta, escreveu esta
versalhada na introdução de sua monografia sobre o gênero:

Ao Teu comando, coisas que não estavam


em forma perfeita, perante Ti se postam;
E todos elevam ao seu Criador
Uma harmonia maravilhosa de louvor.

Sowerby prossegue então enunciando um refrão e tanto. E esse quarteto data de 1875, antes que
Maynard nomeasse sequer um Cerion! À luz do caos existente, e antes mesmo que possamos fazer as
perguntas gerais propostas acima a respeito da forma, devemos empreender uma tarefa bem mais
básica e humilde. Devemos descobrir se é possível encontrar algum padrão na distribuição ecológica
e geográfica da morfologia do Cerion. Se não detectarmos absolutamente correlação alguma com a
geografia ou o meio ambiente, então o que podemos explicar? Por sorte, em uma década de trabalho,
reduzimos o caos de nomes existentes a padrões previsíveis e estabelecemos por meio deles o pré-
requisito para uma explicação mais profunda. Da natureza dessa explicação mais profunda, temos
intuições e indícios, mas nenhuma informação definida ou mesmo as ferramentas necessárias para
obtê-la (pois estamos encalhados numa área da biologia — a genética do desenvolvimento — que se
encontra, ela própria, lamentavelmente subdesenvolvida). Ainda assim, acho que nós fizemos um
bom começo.
Digo “nós” porque percebi imediatamente que não podia fazer esse trabalho sozinho. Sinto-me
competente para analisar o desenvolvimento e a forma de conchas, mas não possuo nenhum
conhecimento especializado em duas áreas que têm de estar unidas à morfologia em qualquer estudo
abrangente: a genética e a ecologia. Portanto, uni- me a David Woodruff, um biólogo da Universidade
da Califórnia em San Diego. Durante uma década, compartilhamos tudo, desde bolhas na ilha Long
até tiros em Andros.
(Preciso parar neste ponto, pois percebo de repente que quase quebrei a minha primeira regra. Os
cientistas têm uma propensão terrível para apresentar o seu trabalho como um pacote lógico, como se
determinassem tudo antecipadamente, num planejamento cuidadoso e rigoroso, e então apenas
prosseguissem de acordo com seus bons desígnios. Nunca funciona desse jeito, se não por outro
motivo, porque qualquer pessoa que possa pensar e ver faz descobertas imprevistas e tem de alterar
fundamentalmente qualquer estratégia preconcebida. Além disso, as pessoas se metem em problemas
pelos motivos mais peculiares e acidentais que se pode imaginar. Projetos crescem como
organismos, com felizes acasos e ajustes flexíveis, não como os passos pré- ordenados de uma prova
de geometria plana do colegial. Deixe-me confessar. Fui atraído pelo Cerion pela primeira vez
porque queria comparar os seus fósseis com caracóis que havia estudado nas Bermudas. Evitei
cuidadosamente todos os Cerions modernos porque fiquei horrorizado diante do matagal de nomes
disponível e porque os considerei intratáveis. Woodruff foi a Inagua pela primeira vez porque queria
estudar o padrão de listras coloridas de outro gênero de caracóis. Só que ele viajou no auge da
temporada de mosquitos e ficou dois dias. Fizemos a nossa primeira viagem conjunta à ilha da
Grande Bahama: eu, para estudar fósseis, ele para tentar mais uma vez o outro gênero. No entanto,
logo descobri que a Grande Bahama não tem nenhuma (ou quase nenhuma) rocha de origem terrestre,
e, portanto, nenhum caracol terrestre fossilizado. O outro gênero também não era muito mais comum.
Ficamos plantados lá por uma semana. Assim, estudamos os Cerions vivos e descobrimos um padrão
por trás da pletora de nomes. Desde então, seguindo o conselho de Satchel Paige, nunca mais
olhamos para trás.)
Haviam sido propostos cerca de quinze nomes para os Cerions da Grande Bahama e de Abaco, a
ilha vizinha. Depois de uma semana, Woodruff e eu descobrimos que apenas duas populações
distintas habitavam essas ilhas, cada uma restrita a um meio ambiente definido e diferente.
As ilhas Abaco e Grande Bahama projetam-se acima de uma plataforma rasa chamada Pequena
Plataforma das Bahamas (ver o mapa anexo). Quando o nível do mar estava mais baixo, durante a
última era glacial, a plataforma inteira emergiu e as ilhas ficaram ligadas por terra. A Pequena
Plataforma das Bahamas está separada por oceano profundo da Grande Plataforma das Bahamas,
maior berço das ilhas mais conhecidas do arquipélago (New Providence, onde fica Nassau, a capital
das ilhas, Bímini, Andros, Eleuthera, Cat, o grupo Exuma e várias outras). Todas essas ilhas também
estiveram ligadas por terra durante as épocas glaciais, quando o nível do mar era baixo. À medida
que Woodruff e eu passávamos de ilha para ilha na Grande Plataforma das Bahamas, encontramos o
mesmo padrão de duas populações diferentes, sempre nos mesmos meios ambientes distintos. Na
Pequena Plataforma das Bahamas, uma dúzia de nomes inválidos haviam caído nesse padrão. Na
Grande Plataforma das Bahamas, eles desabaram, literalmente, para a centena. Cerca de um terço de
todas as “espécies” de Cerion (perto de duzentos ao todo) mostraram ser nomes inválidos, baseados
em variações menores dentro desse padrão único. Havíamos reduzido um caos de nomes impróprios
a uma ordem única, baseada na ecologia. (Essa redução aplica-se apenas às ilhas da Pequena e da
Grande Plataforma das Bahamas. As ilhas de outras plataformas no sudeste do arquipélago, inclusive
a ilha Long, a ilha mais ao sudeste da Grande Plataforma das Bahamas, contêm Cerions
verdadeiramente diversos. Esses Cerions também podem ser reduzidos a padrões coerentes,
baseados em poucas espécies genuínas. Mas não há espaço para tanto no presente ensaio, e restrinjo-
me aqui apenas às Bahamas setentrionais.)
As ilhas das Bahamas possuem dois tipos diferentes de Unhas costeiras. As ilhas principais
encontram-se nas bordas das plataformas. As plataformas em si são bem rasas nas suas partes
superiores, mas as bordas mergulham precipitadamente no oceano profundo. Assim, as costas
localizadas nas bordas das plataformas são limítrofes ao oceano aberto e tendem a ser ásperas e
tempestuosas. Ao longo das costas varridas pelo vento, formam-se dunas que acabam por se
solidificar em forma de rocha (muitas vezes chamadas erroneamente de “coral” pelos turistas).
Portanto, as costas nas bordas das plataformas tendem a ser também rochosas. Por contraste, as
linhas costeiras das regiões internas das plataformas — vou chamá-las de costas internas — são
rodeadas por águas calmas, rasas, que se estendem por milhas e não promovem a formação de dunas.
As costas internas, portanto, tendem a ser cobertas de vegetação, baixas e calmas.

Woodruff e eu descobrimos que as costas externas das Bahamas setentrionais são habitadas
invariavelmente por Cerions de casca grossa, cheia de nervuras, com coloração uniforme (do branco
ao castanho meio escuro), relativamente larga e de lados paralelos. Para não escrever a maior parte
do resto desta coluna em latim, vou deixar de lado os nomes formais e me referir a essas formas
como ‘ ‘populações com nervuras” (ver fotografia da p. 161). As costas internas são o lar de Cerions
de casca fina, sem nervuras ou com poucas nervuras, de coloração pintalgada (em geral com manchas
brancas e castanhas), estreitas e em forma de barril — as “populações malhadas”. (Os Cerions
malhados também vivem longe das costas, no centro das ilhas, enquanto os Cerions com nervuras
estão confinados exclusivamente às bordas das plataformas.)
Esse padrão é tão coerente e invariável que podemos “mapear” as zonas híbridas antes mesmo de
visitar uma ilha, simplesmente olhando uma carta de batimetria. As zonas híbridas ocorrem onde as
costas externas e internas se encontram.
Esse padrão poderia parecer merecedor de algo mais que um indulgente “hum, hum”. Talvez as
conchas malhadas e as conchas com nervuras não sejam tão diferentes. Talvez os dois meios
ambientes extraiam as suas formas diversas diretamente do mesmo material genético básico, como
uma comida boa e abundante pode tomar um homem gordo, e uma comida miserável transformar o
mesmo figurão num espantalho. A própria precisão e a previsibilidade da correlação entre forma e
meio ambiente poderiam sugerir esta solução biologicamente sem graça. Dois argumentos, porém,
parecem se opor de forma conclusiva a essa interpretação e indicar que os Cerions malhados e os
com nervuras são entidades biológicas diferentes.
Primeiro, os caracóis com nervuras não são meramente formas malhadas com conchas mais
grossas e com mais nervuras. Como minha contribuição técnica para nosso trabalho conjunto, eu
meço cada concha de vinte modos diferentes. Esse esforço me permite caracterizar o
desenvolvimento e a forma adulta final em termos matemáticos. Pude demonstrar que as diferenças
entre os caracóis cóm nervuras e os malhados envolvem diversos determinantes de forma com
variação independente.
Segundo, uma análise das zonas híbridas prova que elas caracterizam uma mistura de duas
entidades diferentes, não uma fusão homogênea de populações separadas apenas superficialmente.
Minha análise morfológica demonstra, em muitos casos, as anomalias de forma e a variação
aumentada que ocorrem com frequência quando dois programas de desenvolvimento diferentes são
misturados na prole. A análise genética de Woodruff também prova que os híbridos combinam dois
sistemas substancialmente diferentes, já que ele encontrou uma variabilidade genética em geral
aumentada nas amostragens híbridas e genes não encontrados em nenhuma das populações
progenitoras.
Podemos demonstrar que os caracóis com nervuras e os malhados representam populações com
diferenças biológicas substanciais, mas não podemos especificar a causa da separação, já que não
nos foi possível fazer a distinção entre duas hipóteses. Primeiro, a ecológica: as formas com
nervuras e as malhadas podem ser adaptações recentes e imediatas aos seus meios ambientes locais
diversos. Conchas brancas ou com cores claras dificilmente são vistas contra o fundo de rochas de
dunas das costas externas, enquanto as conchas grossas e com nervuras protegem os seus portadores
nessas costas rochosas e varridas pelo vento. As conchas malhadas são igualmente difíceis de ser
vistas (na verdade, camuflam-se de modo notável) sob a luz solar filtrada pela vegetação que abriga
o Cerion na maioria das costas internas, enquanto as conchas finas e leves também estão bem
adaptadas para que os seus portadores se pendurem em galhos finos e folhas de grama. Segundo, a
histórica: o padrão pode ser consideravelmente mais antigo (embora, ainda assim, seja
provavelmente adaptativo pelas razões citadas acima). Quando o nível do mar era bem mais baixo e
as plataformas estavam expostas, durante os períodos glaciais, talvez as populações com nervuras
habitassem todas as costas (já que todas elas estavam então nas bordas das plataformas) enquanto as
populações malhadas evoluíam no interior da ilha. Quando o nível do mar subiu, os caracóis com
nervuras e os malhados simplesmente conservaram as suas posições e preferências. As novas costas
no interior das plataformas eram o interior de ilhas maiores e continuam a ser o abrigo de caracóis
malhados.
A distinção de caracóis malhados e caracóis com nervuras resolveu quase todos os duzentos
nomes anteriormente dados aos Cerions das Bahamas setentrionais. Mas um problema (envolvendo
mais cerca de dez nomes) permaneceu. Um terceiro tipo de Cerion, com uma concha grossa, mais
lisa, de um branco puro, e com formato triangular, fora encontrado em Eleuthera e na ilha Cat. Os
relatos anteriores não indicavam nada a respeito da sua ecologia ou dos seus hábitos, mas
encontramos esses grossos caracóis brancos em duas áreas separadas do sul de Eleuthera e no
sudeste da ilha Cat. Eles preferem o interior das ilhas e encaixam-se no padrão geral do Cerion com
uma previsibilidade gratificante — isto é, eles produzem híbridos com as populações malhadas
quando nos aproximamos das costas internas, e com as populações com nervuras quando nos
aproximamos das costas externas. Mas o que são eles? Assim como a ecologia e a genética
resolveram o padrão básico de caracóis malhados e caracóis com nervuras, devemos recorrer à
paleontologia para explicar a nossa fonte restante de diversidade.
As dunas fósseis das Bahamas formaram-se em tempos em que o nível do mar era alto, durante os
períodos mais quentes entre os episódios de glaciação (eras glaciais). Três conjuntos principais de
dunas formaram New Providence, a única das ilhas Bahamas com um pedigree geológico
documentado (ver Garrett e Gould, na Bibliografia). Esses abrangem, do mais jovem para o mais
velho, umas poucas dunas pequenas com menos de 10.000 anos e depositadas desde que se
derreteram as últimas geleiras; um conjunto extenso (que forma a espinha dorsal da ilha)
representando os altos níveis do mar há 120.000 anos, antes que se formassem as últimas geleiras; e
um conjunto menor (situado perto do centro da ilha) construído há mais de 200.000 anos, antes de um
período glacial anterior. As dunas mais antigas contêm um Cerion fóssil agora desconhecido nas
Bahamas (ver fotografia na p. 164). O segundo e maior conjunto possui duas espécies de Cerion, uma
forma anã agora extinta e uma espécie grande, lisa, chamada Cerion agassizi (o nome foi dado em
homenagem a Alexander Agassiz, filho de Louis, e um pioneiro da oceanografia científica nas índias
Ocidentais). O conjunto mais recente, como é de esperar, contém tanto Cerions de nervuras quanto
malhados, como na fauna modema. Comparamos os grandes caracóis brancos de Eleuthera e da ilha
Cat com o C. agassizi e não descobrimos nenhuma diferença substancial. As populações pequenas
nessas ilhas são sobreviventes de uma espécie que já foi abundante em todas as ilhas da Grande
Plataforma das Bahamas.
As duzentas “espécies” de Cerion das Bahamas setentrionais reduzem-se, portanto, a três tipos
básicos com uma distribuição sensata e ordenada. O padrão geográfico identificou as populações
com nervuras e as malhadas, mas precisamos recorrer à história para compreender as conchas
brancas e lisas das ilhas Eleuthera e Cat. É tremendamente grande a distância que separa este
exercício taxonômico em história natural do nosso objetivo final — compreender como evolui a
inigualável diversidade de forma do Cerion — mas demos o primeiro passo no único caminho que
conheço.
Para exemplificar a maneira pela qual esse padrão esclarece a questão maior, usamos a nossa
distinção entre caracóis malhados e caracóis com nervuras para provar, pela primeira vez, que a
hipótese não- convencional expressada pela maioria dos especialistas em Cerion é realmente válida:
a série complexa de caracteres que definem tais formas básicas como caracóis malhados e caracóis
com nervuras pode ser desenvolvida de modo independente várias vezes. Encontramos a mesma
distinção de caracóis malhados e com nervuras tanto na Pequena quanto na Grande Plataforma das
Bahamas. A sabedoria convencional sustentaria que os caracóis malhados de ambas as plataformas
representam um único tronco, enquanto os caracóis com nervuras formam um único grupo
genealógico. Mas Daniel Chung, um aluno de Woodruff, e Simon Tillier, um proeminente anatomista
de caracóis terrestres do Museu de Paris, estudaram para nós a anatomia genital desses caracóis, e
fizeram a seguinte e surpreendente descoberta: ambos os caracóis, os malhados e os com nervuras,
da Pequena Plataforma das Bahamas, compartilham a mesma anatomia, ao passo que os caracóis
malhados e os com nervuras da Grande Plataforma das Bahamas têm um conjunto de estruturas
genitais distintamente diferentes. (A anatomia genital é o instrumento-padrão para o estabelecimento
de parentesco entre caracóis terrestres. As diferenças são profundas e complexas o suficiente para
indicar que a anatomia compartilhada reflete a ascendência comum, enquanto a morfologia
compartilhada da concha deve evoluir de modo independente.) Assim, o complexo de traços que
define os caracóis malhados e os com nervuras pode evoluir diversas vezes. Não teríamos sido
capazes de chegar a essa conclusão se não houvéssemos extraído o padrão de caracóis malhados e
caracóis com nervuras do caos de nomes antes existente.
Neste ponto, acho que começamos a vislumbrar vagamente o mistério mais profundo da forma.
Demonstramos que um conjunto complexo de traços independentes pode ser desenvolvido
virtualmente do mesmo modo mais de uma vez. Não vejo como isso pode acontecer, se cada traço
tiver de ser desenvolvido em separado, seguindo o seu próprio caminho genético, a cada vez. Os
traços devem estar, de algum modo, coordenados no programa genético do Ceriom, eles devem ser
acionados ou “suscitados” juntos. Algum gatilho genético deve coordenar o aparecimento conjunto
desses caracteres. O programa genético mestre de todos os Cerions codifica caminhos alternativos
que representam as formas básicas que se desenvolvem repetidas vezes? As mutações homeóticas de
insetos (ver ensaio 15 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes) indicam que algum sistema hierárquico de
tal tipo deve regular o desenvolvimento, pois a produção de órgãos bem formados nos lugares
errados (pernas no lugar de antenas, por exemplo) indica que alguma chave-mestra deve regular
todos os genes que produzem pernas, e que controles superiores devem acionar a chave-mestra no
lugar errado ou no momento errado. Do mesmo modo, alguma chave- mestra dentro do programa do
Cerion deve acionar algum dos seus caminhos básicos de desenvolvimento e promover repetidas
vezes a evolução do conjunto de traços que caracteriza as suas formas fundamentais.
Desse modo, o Cerion fornece um vislumbre do que pode ser o problema mais difícil e
importante da teoria evolutiva: Como podem surgir formas novas e complexas (não meramente
características isoladas com um benefício adaptativo óbvio) se cada uma requer milhares de
mudanças separadas, e se estágios intermediários fazem pouco sentido como organismos em
funcionamento? Se os programas genético e de desenvolvimento são organizados hierarquicamente,
como sugerem as mutações homeóticas e a evolução múltipla de formas básicas no Cerion, então
modelos anatômicos novos não têm de surgir em etapas (com todos os intratáveis problemas
vinculados a tal opinião), mas de maneira coordenada, por meio de chaves-mestras (ou
“reguladores”) de programas de desenvolvimento. Ainda assim, é tão profunda a nossa ignorância a
respeito da natureza do desenvolvimento e da embriologia que temos de olhar os produtos finais
(uma Drosophila adulta com uma perna no lugar da antena, ou Cerions malhados desenvolvidos
repetidas vezes) para fazer inferências incertas a respeito dos mecanismos subjacentes.
Escolhi o Cerion porque achei que ele poderia ilustrar estas grandes e confusas questões. Ainda
assim, embora sempre se esgueirem no fundo da minha mente, elas não são a fonte da minha alegria
diária. Pequenas previsões que são comprovadas ou pequenos palpites que se revelam incorretos e
são substituídos por ideias mais interessantes são o alimento da satisfação contínua. O Cerion, ou
qualquer outro projeto de campo bom, oferece estímulo interminável, contanto que pequenos enigmas
permaneçam tão intensamente absorventes, fascinantes e frustrantes como grandes questões. O
trabalho de campo não é como o centésimo milésimo ensaio sobre os sonetos de Shakespeare; ele
sempre apresenta algo verdadeiramente novo, não uma glosa de comentários anteriores.
Lembro-me de quando descobrimos a primeira população de Cerions agassizi vivos no centro de
Eleuthera. Nossa primeira hipótese do padrão geral do Cerion exigia que fossem confirmadas duas
previsões (ou, do contrário, estaríamos numa encrenca): essa população devia desaparecer por meio
de hibridação com conchas nialhadas na direção das costas internas e com caracóis com nervuras na
direção das costas externas. Caminhamos para o oeste na direção das costas internas e encontramos
híbridos facilmente, logo na beira da estrada do aeroporto. Deslocamo-nos então para o leste, em
direção à costa externa, por uma estrada em desuso, onde a vegetação chegava a cinco pés no espaço
central entre os pneus. Devíamos ter encontrado os nossos híbridos, mas não encontramos. O Cerion
agassizi simplesmente desaparecia cerca de duzentas jardas ao norte do nosso primeiro Cerion com
nervuras. Percebemos então que havia um pequeno lago bem do nosso lado leste, e que as formas
com nervuras, com suas preferências costeiras, talvez não gostassem do lado oeste do lago.
Vadeamos o lago e encontramos uma zona híbrida clássica entre o Cerion agassizi e os Cerions com
nervuras. (O Cerion com nervuras havia conseguido apenas contornar a extremidade sul do lago, mas
ainda não se deslocara o suficiente para o norte ao longo do lado oeste para estabelecer contato com
as populações de C. agassizi). Eu quis gritar de alegria. Então pensei: “Mas para quem eu posso
contar; quem se importa?” E respondi a mim mesmo: “Não tenho de contar para ninguém. Acabo de
ver e compreender algo que ninguém jamais viu e compreendeu antes. Do que mais precisa um
homem?”
Um colega eminente, um bom teórico que cumpriu suas obrigações de trabalho de campo, disse-
me certa vez, brincando apenas em parte, que o trabalho de campo é um modo dos diabos de se obter
informações. Tanto tempo, tanto esforço, tanto dinheiro, muitas vezes para se conseguir resultados
pequenos quando comparados com as horas investidas. É verdade, especialmente quando fico
contando as horas que gasto bebendo café cubano, o único prazer do meu lugar menos favorito, o
aeroporto de Miami. Mas todas as frustrações e todos os esforços monótonos, repetitivos, tornam-se
insignificantes diante da alegria pura de descobrir algo novo — e esse prazer pode ser saboreado
quase todos os dias quando também se ama as pequenas coisas. Dizer: “Nós descobrimos isso; nós
compreendemos isso; nós conseguimos extrair sentido e ordem da confusão da natureza.” Pode existir
recompensa maior?
12. A igualdade humana é um fato contingente da história

Pretória, 5 de agosto de 1984

O aeroplano mais famoso da história, o Spirit of St. Louis de Lindbergh, está suspenso no teto do
Washington’s Air and Space Museum, imperceptível na sua majestade a certos visitantes. Há vários
anos, uma delegação de mulheres e homens cegos encontrou-se com o diretor do museu para discutir
problemas de acesso limitado. Devemos construir, perguntou ele, um modelo do avião de Lindbergh,
em tamanho natural, livre para ser apalpado e examinado? Tal réplica resolveria o problema? A
delegação refletiu em conjunto e deu uma resposta que me comoveu profundamente, devido ao seu
reconhecimento de necessidades universais. Sim, disseram eles, tal modelo seria aceitável, mas
apenas sob uma condição — que fosse colocado diretamente abaixo do original invisível.
A autenticidade exerce uma estranha fascinação sobre nós; o nosso mundo realmente contém
objetos e lugares sagrados. O seu impacto não pode ser simplesmente estético, pois uma imitação
absolutamente indistinguível do objeto verdadeiro não evoca qualquer sentimento comparável de
admiração. O impacto é direto e emocional — uma sensação mais poderosa do que qualquer outra
coisa que conheço. No entanto, o ímpeto é puramente intelectual — uma refutação visceral da
baboseira romântica que afirma que o conhecimento abstrato não pode engendrar emoção profunda.
Na noite passada, vi o sol se pôr na savana sul-africana — locação e habitat originais dos nossos
ancestrais australopitecinos. O ar ficou frio; começaram os sons noturnos, a repetição incessante de
sapos e insetos, enfeitada com o rosnado ocasional e assustador de um mamífero; o Cruzeiro do Sul
apareceu no céu, junto com Júpiter, Marte e Saturno, dispostos numa fileira acima dos braços do
Escorpião. Eu senti o assombro, o medo e o mistério da noite. Sinto-me tentado a dizer (descrevendo
emoções, sem fazer quaisquer inferências sobre realidades, superiores ou inferiores) que me senti
próximo da religião como fenômeno histórico da psique humana. Naquele momento, tive também uma
sensação de companheirismo com o mais distante passado humano — pois um Australopithecus
africanus pode ter estado, há quase três milhões de anos, no mesmo lugar, em circunstâncias
similares (ao que me é dado supor), equilibrando a mesma mistura de admiração e medo.
Fui então rudemente arrancado daquele sentimento sublime, ainda que passageiro, de unidade
com todos os humanos do passado e do presente. Lembrei-me de minha localização imediata —
África do Sul, 1984 (no Kruger Park, durante um intervalo de uma excursão de conferências sobre a
história do racismo). Também compreendi, de um modo mais direto que qualquer outro anterior, a
tragédia particular da história dos pareceres biológicos sobre as raças humanas. Essa história é, em
boa parte, uma história de divisões — uma série de barreiras e categorias, erigidas para manter o
poder e a hegemonia dos que estão lá em cima. A maior ironia de todas pesa sobre mim: Sou um
visitante na nação mais comprometida com mitos de desigualdade — contudo, as savanas desta terra
foram o cenário de uma história evolutiva com um teor oposto.
Minha percepção visceral de fraternidade harmoniza-se com o nosso melhor conhecimento
biológico moderno. Tal união de sentimento e fato pode ser um tanto rara, já que um não oferece
nenhuma orientação ao outro (mais tolice romântica posta de lado). Muitas pessoas pensam (ou
temem) que a igualdade das raças humanas representa uma esperança de sentimentalismo liberal
provavelmente esmagada pelas duras realidades da história. Eles estão errados.
Este ensaio pode ser reduzido a uma única expressão, um lema, se quiserem: A igualdade
humana é um fato contingente da história. A igualdade não é verdadeira por definição; ela não é
nem um princípio ético (embora a igualdade de tratamento possa ser) nem uma afirmação sobre
normas de ação social. Simplesmente, funcionou desse jeito. Uma centena de roteiros diferentes e
plausíveis para a história humana teria produzido outros resultados (e dilemas morais de enorme
magnitude). Eles não aconteceram.
A história dos pareceres ocidentais sobre a raça é um relato de negações — uma série de recuos
progressivos, a partir das pretensões originais de separação e hierarquização estritas, com base em
valor intrínseco, até uma aceitação das diferenças triviais reveladas pela nossa história contingente.
Neste ensaio, discutirei apenas duas etapas principais de recuo para cada um dos dois temas
principais: a genealogia, ou a separação entre as raças em função da sua idade geológica; e a
geografia, ou o nosso local de origem. Resumirei então os três argumentos principais da biologia
moderna em favor da pequena amplitude das diferenças raciais humanas.

Genealogia, o primeiro argumento

Antes que a teoria evolutiva redefinisse irrevogavelmente a questão, a antropologia, do início até
meados do século XIX, conduziu um debate feroz entre as escolas da monogenia e da poligenia. Os
monogenistas defendiam a ideia de que todas as pessoas têm uma origem comum no casal primevo,
Adão e Eva (as raças inferiores, argumentavam eles então, haviam posteriormente degenerado da
perfeição inicial). Os poligenistas afirmavam que Adão e Eva foram ancestrais só do pessoal branco,
e que as outras raças — inferiores — haviam sido criadas separadamente. Cada um dos argumentos
podia alimentar uma doutrina social de desigualdade, mas a poligenia com certeza levava uma ligeira
vantagem como justificativa forçosa para a escravidão e a dominação em casa e para o colonialismo
no exterior. “O espírito benevolente”, escreveu Samuel George Morton (um importante poli- genista
americano) em 1839, “pode lamentar a inaptidão do índio para a civilização. ... A estrutura da sua
mente parece ser diferente da do homem branco. ... Eles não apenas são avessos aos freios da
educação, mas são, na maioria, incapazes de um processo contínuo de raciocínio sobre temas
abstratos.”

Genealogia, o segundo argumento

A teoria evolutiva requeria uma origem comum para as raças humanas, mas muitos antropólogos
pós-darwinianos encontraram um modo de preservar o espírito da poligenia. Num recuo mínimo da
perspectiva da separação permanente, eles afirmavam que a divisão da nossa linhagem nas raças
modernas havia ocorrido tanto tempo atrás que as diferenças, acumulando-se lentamente ao longo do
tempo, tinham construído abismos intransponíveis. Embora semelhantes certa vez, numa aurora
simiesca, as raças humanas são agora distintas e desiguais.
Não podemos compreender muito da história da antropologia de fins do século XIX e começo do
século XX, com a sua pletora de nomes taxonômicos propostos para quase todo pedaço de osso
fóssil, a menos que consideremos a sua obsessão com a identificação e a hierarquização das raças.
Pois muitos esquemas de classificação procuraram classificar os vários fósseis como ancestrais de
raças modernas e usar a sua idade e a sua qualidade simiesca relativas como critério de
superioridade racial. Piltdown, por exemplo, continuou enganando gerações de profissionais em
parte porque isso se ajustava confortávelmente às ideias de superioridade branca. Afinal, esse
homem “antigo” com um cérebro tão grande quanto o nosso (o produto, como sabemos agora, de um
embuste, construído com um crânio moderno) viveu na Inglaterra — um ancestral óbvio para os
brancos — ao passo que fósseis tão simiescos (e genuínos) como o Homo erectus habitavam Java e
China, origens reputadas dos orientais e outros povos de cor.

Essa teoria de separação antiga recebeu a sua última defesa proeminente em 1962, quando
Carleton Coon publicou o seu Origin of Races. Coon dividiu a humanidade em cinco raças principais
— caucasóides, mongoloides, australóides, e, entre os negros africanos, os congóides e os cabóides.
Ele afirmou que esses cinco grupos já haviam se tornado subespécies distintas durante o reinado do
nosso ancestral, o Homo erectus. O H. erectus então evoluiu em direção ao H. sapiens em cinco
correntes paralelas, cada uma percorrendo o mesmo caminho rumo a uma consciência aumentada.
Mas os brancos e os amarelos, que “ocupavam a mais favorável das regiões zoológicas da Terra”,
transpuseram o limiar do H. sapiens primeiro, enquanto os povos escuros ficaram para trás e, desde
então, vêm pagando por sua lerdeza. A inferioridade negra, argumenta Coon, não é culpa de ninguém,
é apenas um acidente da evolução em ambientes menos desafiadores:

Os caucasóides e mongoloides... não chegaram aos presentes níveis de população e posições de


dominação cultural por acidente. ... Qualquer outra subespécie que evoluísse nessas regiões
provavelmente teria sido tão bem-sucedida quanto eles.

Evolucionistas proeminentes de todo o mundo reagiram com incredulidade à tese de Coon. As


raças humanas podiam realmente ser distinguidas no nível do H. erectus? Serei sempre grato a W. E.
Le Gros Clark, o maior anatomista da Inglaterra naquela época. Eu estava passando um ano da
graduação na Inglaterra, um zé-ninguém absoluto numa terra estranha. Ainda assim, ele passou uma
tarde comigo, respondendo pacientemente às minhas perguntas sobre raça e evolução. Quando
interrogado sobre a tese de Coon, esse homem de uma modéstia esplêndida respondeu, com toda
simplicidade, que ele, pelo menos, não podia identificar uma raça moderna nos ossos de uma espécie
antiga.
De modo mais geral, só em termos de probabilidade matemática uma evolução paralela com tal
precisão em tantas linhagens já parece quase que impossível. Cinco subespécies diferentes poderiam
sofrer mudanças tão substanciais e ainda assim permanecer tão semelhantes no final a ponto de todas
poderem se cruzar livremente, como as raças modernas claramente o fazem? À luz dessas
deficiências empíricas e implausibilidades teóricas, devemos ver a tese de Coon mais como o último
suspiro de uma tradição moribunda do que como uma síntese verossímil de indícios disponíveis.

Genealogia, o parecer moderno

As raças humanas não são espécies separadas (o primeiro argumento) ou divisões antigas dentro
de uma rede em evolução (o segundo argumento). Elas são subpopulações recentes, mal
diferenciadas, da nossa espécie moderna, o Homo sapiens, separadas, no máximo, por dezenas ou
centenas de milhares de anos, e caracterizadas por diferenças genéticas notavelmente pequenas.

Geografia, o primeiro argumento

Quando Raymond Dart encontrou o primeiro australopitecino na África do Sul, há sessenta anos,
cientistas pelo mundo afora rejeitaram esse mais velho dos ancestrais, essa adorabilíssima forma
intermediária, porque ela procedia do lugar errado. Darwin, sem um fragmento sequer de indícios
fósseis, mas com um bom critério de inferência, deduziu que os homens evoluíram na África. Nossos
parentes vivos mais próximos, argumentava ele, são os chimpanzés e os gorilas — e ambas as
espécies vivem apenas na África, o lar provável, portanto, também do nosso ancestral comum.
No entanto, poucos cientistas aceitaram a inferência convincente de Darwin porque a esperança,
a tradição e o racismo conspiravam para localizar a nossa morada ancestral nas planícies da Ásia
central. Ideias de supremacia ariana levavam os antropólogos a presumir que as vastas e
“desafiadoras” extensões da Ásia, e não os trópicos soporíferos da África, haviam incitado nossos
ancestrais a abandonar um passado simiesco e a emergir rumo às raízes da cultura indo-europeia. A
diversidade das pessoas de cor nos trópicos do mundo podia testemunhar apenas as migrações
secundárias e as subsequentes degenerações desse tronco original. A grande expedição ao deserto de
Gobi, patrocinada pelo Museu Americano de História Natural apenas alguns anos antes da
descoberta de Dart, foi despachada principalmente para descobrir a ascendência do homem na Ásia.
Relembramos a expedição pelo seu sucesso na descoberta de dinossauros e de seus ovos;
esquecemos que a sua busca principal terminou em fracasso absoluto porque a simples inferência de
Darwin estava correta.

Geografia, o segundo argumento

Na década de 1950, estudos anatômicos adicionais e a simples magnitude das descobertas


contínuas forçaram o reconhecimento de que as nossas raízes se encontravam nos australopitecinos, e
de que a África fora o nosso lar original. Mas o poder sutil do preconceito inconfesso ainda
conspirava (com outras bases mais racionais de incerteza) para negar à África o seu papel contínuo
de berço daquilo que realmente tem importância para nós — a origem da consciência humana. Numa
atitude de recuo intermediário, a maioria dos cientistas agora afirmava que a África havia animado a
nossa origem, mas não o surgimento da nossa mente. Ancestrais humanos migraram, novamente para a
mãe Ásia, e lá transpuseram o limiar da consciência como Homo erectus (ou o chamado homem de
Java ou de Pequim). Surgimos dos macacos sem cauda na África; desenvolvemos a nossa inteligência
na Ásia. Carleton Coon escreveu no seu livro de 1962: “Se a África foi o berço do gênero humano,
ela foi apenas um insignificante jardim de infância. A Europa e a Ásia foram as nossas escolas
principais.”

Geografia, o parecer moderno

O andamento das descobertas africanas acelerou-se desde que Coon elaborou a sua metáfora de
hierarquia educacional. O Homo erectus aparentemente também evoluiu na África, onde foram
encontrados fósseis que datam de quase dois milhões de anos, ao passo que os sítios asiáticos podem
ser mais recentes do que se imaginava antes. Seria possível, é claro, dar ainda mais um passo para
trás e afirmar que o H. sapiens, pelo menos, desenvolveu-se posteriormente a partir de um tronco
asiático do H. erectus. Mas a migração do H. erectus para a Europa e a Ásia não garante (ou mesmo
sugere) qualquer ramificação posterior dessas linhagens móveis. Porque o H. erectus também
continuou a viver na África. Os indícios ainda não são conclusivos, mas os palpites mais recentes
podem estar apontando para uma origem também africana do H. sapiens. Ironicamente então (no
tocante às expectativas anteriores), toda a espécie humana pode ter evoluído primeiro na África e só
então — no caso das duas últimas espécies de Homo — se espalhado para outros lugares.
Apresentei, até aqui, apenas os indícios negativos a favor da minha tese de que a igualdade
humana é um fato contingente da história. Argumentei que as velhas bases a favor da desigualdade
evaporaram. Tenho agora de resumir os argumentos positivos (em princípio, três) e, igualmente
importante, explicar como seria fácil que a história acontecesse de outros modos.
O argumento positivo (e formal, ou taxonômico) da definição racial

Reconhecemos apenas uma categoria formal de divisão dentro das espécies — a subespécie. As
raças, portanto, caso definidas formalmente, são subespécies. As subespécies são populações que
habitam uma subseção geográfica definida do habitat de uma espécie e distintas o suficiente em
qualquer conjunto de traços para o reconhecimento taxonômico. As subespécies diferem de todos os
outros níveis da hierarquia taxonômica de dois modos cruciais. Primeiro, elas são apenas categorias
de conveniência e nunca precisam ser designadas. Cada organismo deve pertencer a uma espécie, um
gênero, uma família e a todos os níveis superiores da hierarquia, mas uma espécie não tem de ser
dividida formalmente. As subespécies representam uma decisão pessoal do taxonomista sobre a
melhor maneira de relatar a variação geográfica. Segundo, as subespécies de qualquer espécie não
podem ser distintas e separadas. Como todos pertencem a uma única espécie, os seus membros
podem, por definição, cruzar entre si. Os métodos quantitativos modernos permitiram aos
taxonomistas modernos descrever a variação geográfica mais precisamente em termos numéricos;
não precisamos mais inventar nomes para descrever diferenças que são, por definição, fugazes e
mutáveis. Por conseguinte, a prática de nomear subespécies tem caído em descrédito, e poucos
taxonomistas ainda usam a categoria. A variação humana existe; a designação formal de raças é
passé.
Algumas espécies são divididas em raças geográficas toleravelmente distintas. Considere-se, por
exemplo, uma espécie imóvel separada por blocos continentais em deslocamento. Como essas
subpopulações nunca se encontram, elas podem desenvolver diferenças substanciais. Poderíamos
ainda achar melhor nomear subespécies para tais variantes geográficas distintas. Mas os humanos se
deslocam e mantêm os mais notórios hábitos de intercruzamento. Não estamos suficientemente
divididos em grupos geográficos distintos, e a designação de subespécies humanas faz pouco sentido.
A nossa variação exibe todas as dificuldades que fazem com que o taxonomista estremeça (ou que
se delicie com a complexidade) e evite a designação de subespécies. Considere-se apenas três
pontos. Primeiro, a discordância de caracteres. Poderíamos fazer uma divisão razoável por cor de
pele, apenas para descobrir que grupos sanguíneos implicam uniões diferentes. Quando tantos
caracteres bons exibem padrões de variação tão discordantes, não pode ser estabelecido nenhum
critério válido para uma definição inequívoca de subespécie. Segundo, fluidez e gradação. Seja para
onde for que nos desloquemos, ocorrem cruzamentos que quebram barreiras e criam novos grupos. A
população de cor da Província do Cabo, um povo vigoroso, com a força de mais de dois milhões de
pessoas, descendentes de uniões entre africanos e colonizadores brancos (ironicamente, os ancestrais
dos autores do apartheid e das leis contra a miscigenação), devem ser designados como uma nova
subespécie ou simplesmente como a prova viva de que brancos e negros não são muito diferentes?
Terceiro, convergências. Caracteres similares desenvolveram-se de modo independente repetidas
vezes; eles frustram qualquer tentativa de fundamentar subespécies em traços definidos. A maioria
dos povos indígenas das áreas tropicais, por exemplo, desenvolveu pele escura.
Os argumentos contra a designação de raças humanas são fortes, mas a nossa variação ainda
existe e seria concebível que pudesse servir como base para comparações injustas. Portanto,
devemos acrescentar também o segundo e o terceiro argumento.

O argumento positivo do caráter recente da divisão

Como afirmei na primeira parte deste ensaio (e que tenho de enunciar agora apenas como
repetição), a divisão dos humanos em grupos “raciais” modernos ocorreu, em termos geológicos,
ontem. Essa diferenciação não é anterior à origem da nossa espécie, o Homo sapiens, e
provavelmente ocorreu durante as últimas dezenas (ou, no máximo, centenas) de milhares de anos.

O argumento positivo da separação genética

A obra de Mendel foi redescoberta em 1900, e a ciência da genética tem a duração do nosso
século inteiro. No entanto, até vinte anos atrás, uma questão fundamental da genética não podia ser
respondida por um motivo curioso. Não tínhamos como calcular a quantidade média da diferença
genética entre organismos porque não havíamos elaborado nenhum método para coletar uma
amostragem aleatória de genes. Por exemplo, se absolutamente cada Drosophila do mundo tivesse
olhos vermelhos, poderíamos suspeitar justificadamente que alguma informação genética codificava
esse traço universal, mas não seríamos capazes de identificar um gene para olhos vermelhos
analisando pedigrees, porque todas as moscas teriam a mesma aparência. No entanto, tão logo
encontramos algumas moscas de olhos brancos, podemos combinar branco e vermelho, rastrear
pedigrees através de geração de proles, e fazer inferências apropriadas sobre a base genética da cor
dos olhos.
Para medir a média de diferenças genéticas entre raças, temos de ser capazes de coletar amostras
de genes ao acaso — e essa seleção sem fins definidos não pode ser feita se somos capazes de
identificar apenas genes variáveis. Noventa por cento dos genes humanos poderiam ser
compartilhados por todas as pessoas, e uma análise restrita a genes variáveis superestimaria de
modo grosseiro a diferença total.
No fim da década de 1960, vários geneticistas aproveitaram uma técnica comum de laboratório, a
eletroforese, para solucionar esse velho dilema. Os genes são codificados por proteínas, e proteínas
variáveis podem se comportar de modo diferente quando sujeitas em solução a um campo elétrico.
Qualquer proteína podia ser colhida, independente de se saber de antemão se ela variava ou não. (A
eletroforese só pode nos dar uma estimativa mínima porque algumas proteínas variáveis podem
exibir a mesma mobilidade elétrica mas ser diferentes de outros modos.) Assim, com a eletroforese,
podíamos finalmente fazer a pergunta-chave: Quanta diferença genética existe entre as raças
humanas?
A resposta, surpreendente para muitas pessoas, logo surgiu sem ambiguidade: bem pouca.
Estudos intensos de mais de uma década não detectaram um único “gene racial” — isto é, um gene
presente em todos os membros de um grupo e ausente nos de outro. As frequências variam, muitas
vezes de modo considerável, entre grupos, mas todas as raças humanas são praticamente a mesma
coisa. Podemos medir tanta variação entre indivíduos dentro de qualquer raça, que encontramos bem
poucas variações novas quando acrescentamos outra raça à amostragem. Em outras palavras, a
maioria esmagadora da variação humana ocorre dentro de grupos, não nas diferenças entre eles. Meu
colega, Richard Lewontin (ver Bibliografia), que fez boa parte do trabalho original de eletroforese
sobre a variação humana, expressa isso de forma dramática: Se, que Deus não permita, o holocausto
ocorresse, “e apenas o povo Xhosa, da ponta meridional da África sobrevivesse, a espécie humana
ainda conservaria 80% da sua variação genética”.
Enquanto a maioria dos cientistas aceitava a divisão antiga das raças, eles esperavam encontrar
importantes diferenças genéticas. Mas a origem recente das raças (o segundo argumento positivo)
confirma as diferenças genéticas de pouca importância agora medidas. Os grupos humanos de fato
variam de modo notável em alguns poucos caracteres claramente visíveis (cor de pele, forma de
cabelo) — e essas diferenças externas podem nos ludibriar fazendo com que pensemos que a
divergência geral deve ser grande. Agora, porém, sabemos que a nossa metáfora usual de
superficialidade — skin deep (Skin deep, que tem a profundidade da pele, ou seja, superficial - N.T.) — é literalmente
exata.
Ao completar assim o meu sumário, confio que um ponto essencial não será interpretado de forma
errônea: Não estou, enfaticamente, falando sobre preceitos éticos, mas sobre informações da melhor
avaliação atual. Seria lógica ruim e estratégia pior vincular um argumento moral ou político a favor
da igualdade de tratamento ou de oportunidade a qualquer enunciado concreto sobre a biologia
humana. Porque se as nossas conclusões empíricas precisarem de revisão — e todos os fatos são
provisórios na ciência — então poderíamos vir a ser forçados a justificar o preconceito e o
apartheid (dirigidos, talvez, contra nós mesmos, já que ninguém sabe quem iria ficar por baixo). Não
sou filósofo ético, mas só posso ver a igualdade de oportunidade como inalienável, universal e não
relacionada à condição biológica dos indivíduos. As nossas raças podem variar pouco em caracteres
médios, mas os nossos indivíduos diferem bastante — e não consigo imaginar um mundo decente que
não trate a pessoa mais profundamente retardada como um ser humano pleno em todos os aspectos, a
despeito de todas as suas evidentes e profundas limitações.
Estou falando, ao contrário, a respeito de uma questão menor, mas que me agrada porque é
considerada surpreendente pela maioria das pessoas. A conclusão é evidente, uma vez articulada,
mas raramente colocamos a questão de um modo que permita o surgimento de tal declaração. Eu
disse que a igualdade das raças é um fato contingente. Até agora só argumentei a favor do fato; e a
contingência? Em outras palavras, como a história poderia ter sido diferente? A maioria de nós pode
compreender e aceitar a igualdade; poucos consideraram a fácil plausibilidade de alternativas que
não aconteceram.
Meus íncubos criacionistas, num de seus argumentos mais deliciosamente ridículos, muitas vezes
imaginam que podem eliminar a evolução com este dito incontestável: “Tá legal”, exclamam eles,
“você diz que os humanos evoluíram dos macacos, certo?” “Certo”, respondo eu. “Tá legal, se os
humanos evoluíram dos macacos, por que é que os macacos ainda estão por aí? Responde essa!” Se a
evolução ocorresse como nessa caricatura — como uma escada de progressos, onde cada degrau
desaparecesse à medida que se transformasse corporalmente no estágio seguinte — então acho que
esse argumento mereceria atenção. Mas a evolução é uma árvore, e os grupos ancestrais geralmente
sobrevivem depois que seus descendentes se ramificam. Os macacos surgem em várias formas e
tamanhos; apenas uma linhagem deu origem aos humanos modernos.
A maioria de nós conhece árvores, mas raramente consideramos as suas implicações. Sabemos
que os australopitecinos foram os nossos ancestrais e que a sua árvore continha várias espécies. Mas
nós os vemos como ancestrais e presumimos sutilmente que, como estamos aqui, eles se foram. De
fato, é assim, mas não é necessariamente assim. Uma população de uma linhagem de
australopitecinos transformou-se no Homo habilis; várias outras sobreviveram. Uma espécie, o
Australopithecus robustus, morreu há menos de um milhão de anos e viveu na África como
contemporânea do Homo erectus durante um milhão de anos. Não sabemos por que o A. robustus
desapareceu. Ele poderia muito bem ter sobrevivido e hoje nos apresentaria todos os dilemas éticos
de uma espécie humana verdadeira e marcadamente inferior em inteligência (com capacidade
craniana igual a um terço da nossa). Teríamos construído jardins zoológicos, estabelecido reservas,
promovido escravidão, cometido genocídio ou, talvez, até mesmo sido bondosos? A igualdade
humana é um fato contingente da história.
Outros roteiros plausíveis também poderiam ter produzido uma desigualdade pronunciada. O
Homo sapiens é uma espécie jovem, e a sua divisão em raças é ainda mais recente. Esse contexto
histórico não ofereceu ainda tempo suficiente para a evolução de diferenças consideráveis. Mas
muitas espécies têm milhões de anos, e as divisões geográficas podem ser marcantes e profundas. O
H. sapiens poderia ter evoluído ao longo de tal escala de tempo e produzido raças de grande idade e
grandes diferenças acumuladas — mas não fizemos isso. A igualdade humana é um fato contingente
da história.
Alguns poucos lemas poderiam servir como antídotos excelentes contra hábitos profundamente
arraigados no pensamento ocidental, que nos restringem tanto porque não reconhecemos a sua
influência — contanto que esses lemas se tornem epítomes de uma compreensão real, não as
distorções vulgares que promovem o “tudo é relativo” como um resumo de Einstein.
Tenho três lemas favoritos, pequenos como enunciados mas grandes nas suas implicações. O
primeiro, a epítome do equilíbrio pontuado, lembra-nos que a mudança gradual não é a única
realidade na evolução: há outras coisas que também contam; “a estase é um dado”. O segundo refuta
a ideia preconcebida de progresso e afirma que a evolução não é uma sequência inevitável de
avanços: “Os mamíferos desenvolveram-se ao mesmo tempo que os dinossauros.” O terceiro é o
tema deste ensaio, um enunciado fundamental sobre a variação humana. Repita-o amanhã cinco vezes
antes do desjejum; mais importante, compreenda-o como o centro de uma rede de implicações: “A
igualdade humana é um fato contingente da história.”
13. A regra de cinco

A mente humana delicia-se ao encontrar padrões — delicia-se tanto que muitas vezes tomamos
erroneamente a coincidência ou a analogia forçada como um significado profundo. Nenhum outro
hábito de pensamento está tão arraigado na mente de uma pequena criatura que tenta compreender um
mundo complexo que não foi feito para esse tipo de raciocínio.

Neste Universo, e por que não sabendo


Nem de onde, como água implacável correndo,

como diz o Rubáyát. Nenhum outro erro de raciocínio coloca-se tão teimosamente no caminho de
qualquer tentativa direta de compreensão de alguns dos aspectos mais essenciais do mundo — os
caminhos tortuosos da história, a imprevisibilidade de sistemas complexos e a ausência de conexão
causal entre eventos superficialmente similares.
A coincidência numérica é um caminho comum para a perdição intelectual em nossa busca de
significado. Deliciamo-nos com listas de itens disparatados unidos pelo mesmo número, e muitas
vezes sentimos que, no fundo, deve existir alguma unidade subjacente a tudo isso. Nossos ancestrais
consideraram a mística do sete — o número de planetas (o Sol, a Lua e os cinco planetas visíveis,
todos girando ao redor da Terra no sistema ptolomaico), os pecados mortais, os selos do Apocalipse.
O cinco também foi um dos favoritos, não apenas por causa dos dedos dos pés e das mãos, mas
também devido ao número de atos de uma peça adequada segundo Horácio, às pedras lisas que Davi
escolheu para matar Golias, aos pães que Cristo usou para alimentar a multidão, ao número de filhos
da sra. Bixby (que, aparentemente, não morreram todos de modo glorioso no campo de batalha, não
obstante o sr. Lincoln). A coruja e o gatinho foram para o mar com todos os seus bens terrenos
embrulhados numa nota de cinco libras (uma nota bem grande — em tamanho físico, assim como em
valor monetário — naqueles dias vitorianos). Aquilo que este país precisa, e que nunca mais terá
outra vez, é de um bom charuto de cinco centavos.
Neste ensaio, discutirei dois sistemas taxonômicos (teorias para a classificação de organismos)
populares nas décadas imediatamente anteriores à publicação da Origem das Espécies de Darwin.
Ambos adotaram outros fundamentos que não a evolução para o ordenamento de organismos; ambos
propuseram um esquema baseado no número , cinco para a colocação de organismos dentro de uma
hierarquia de grupos e subgrupos. Ambos afirmavam que tal regularidade numérica simples devia
testemunhar um padrão intrínseco à natureza, não uma falsa ordem imposta pela esperança humana a
uma realidade mais complexa. Descreverei esses sistemas e então discutirei como a teoria da
evolução minou os seus fundamentos lógicos e mudou em caráter permanente a ciência da taxonomia,
tornando esses sistemas numéricos simples incompatíveis com a nossa visão da natureza. Essa
importante modificação no pensamento científico corporifica uma mensagem geral sobre o caráter da
história e dos tipos de ordem que um mundo construído pela história, e não por um plano pré-
ordenado, pode (e não pode) expressar.
Louis Agassiz escreveu sobre o seu professor, o embriologista alemão, Lorenz Oken:
Um mestre na arte de ensinar, ele exercia uma influência quase que irresistível sobre os seus
alunos. Construindo o universo a partir de seu cérebro... classificando os animais como que por
mágica, de acordo com uma analogia baseada no corpo desmembrado do homem, era como se,
para nós que o escutávamos, o processo lento e laborioso de acumular conhecimento detalhado e
preciso só pudesse ser o trabalho de parasitas, ao passo que um espírito generoso, grandioso,
podia construir o mundo com a sua imaginação poderosa.

Oken foi um bom anatomista descritivo; os seus tratados sobre a embriologia do porco e do cão,
escritos em 1806, são clássicos de zelo meticuloso. Mas Oken também foi um líder na popular escola
da Naturphilosophie do início do século XIX — um movimento intelectual baseado na visão
romântica de que a natureza era governada por leis simples de movimento dinâmico, e que grandes
intelectos podiam apreender essas leis por meio de uma espécie de intuição criativa. A contribuição
principal de Oken para esse movimento, o seu Lehrbuch der Naturphilosophie (1809-1811), é uma
relação, com quase 4.000 itens, que traz todo o conhecimento para dentro do seu domínio, e cheio de
pronunciamentos oraculares sobre quase tudo, desde o porquê de a Terra ser um cristal (com
cordilheiras como arestas) até o porquê de a Kriegskunst (a arte da guerra) ser o mais nobre dos
empreendimentos humanos.
Apesar de amplamente respeitado no seu tempo (até mesmo por seus adversários intelectuais),
Oken sofreu o destino da citação moderna, provocando principalmente risadas, provenientes da
comparação entre o velho e mau passado com o brilhante presente. Claro, pelos padrões modernos, o
seu estilo oracular de pronunciamento é um convite à zombaria. O que mais se pode fazer com o peã
de Oken ao zero: “A matemática inteira emerge do zero, portanto, todas as coisas devem... ter surgido
do eterno ou nada da natureza. ... Não existe nenhuma outra ciência que não aquela que trata de
nada.” Ou a asserção de que todos os animais “inferiores” são simplesmente humanos incompletos:
“O reino animal é apenas um desmembramento do animal supremo, isto é, do Homem.”
Quando separados do contexto de Oken, esses enunciados perdem todo o sentido, e só podemos
rir do seu estilo desencarnado. Quando situados adequadamente, eles pelo menos fazem sentido
(embora possamos julgá-los incorretos hoje), e podemos atribuir o estilo peculiar de Oken a
diferenças de gosto e costume, não à estupidez ou irrelevância.
O contexto para a maioria dos seus pronunciamentos peculiares — a primazia do zero, os animais
como humanos abortados, a taxo nomia por meio do cinco — reside na doutrina principal da
Naturphilosophie'. a ideia de uma tendência de desenvolvimento única, progressiva, na natureza.
Todos os processos naturais são ascendentes, se movem numa única direção, a começar do nada
primordial (o zero de Oken) e avançando rumo à complexidade humana e além. (A visão de Oken não
é evolutiva, já que cada novo estado recomeça no zero primordial e se move um degrau acima do seu
predecessor. Uma forma superior não se desenvolve a partir da descendência genealógica de um
ancestral menos desenvolvido, como exigiria uma teoria evolutiva.) Como todos os animais podem
ser dispostos em uma única série de complexidade ascendente, com os humanos no ápice, as
criaturas inferiores são humanos incompletos. (Oken definia cada novo degrau de complexidade
como a adição de um órgão; desse modo, criaturas abaixo de nós na escala do progresso contêm
menos órgãos e são incompletas.)
O que há de instigante nas teorias novas é o seu poder de modificar contextos, de tornar
irrelevante o que antes parecia sensato. Se rirmos do passado porque o julgamos de modo anacrônico
à luz das teorias atuais, como poderemos compreender essas mudanças de contexto? E como
podemos conservar a humildade adequada para com as nossas teorias preferidas e a sua
probabilidade futura de serem reduzidas à insignificância? Paixões intelectuais honestas sempre
merecem respeito.
A teoria da evolução foi o maior modificador de contextos da história da biologia. Theodosius
Dobzhansky escreveu, em uma famosa declaração, que nada faz sentido na biologia, exceto à luz da
evolução. No entanto, o mundo de Oken fazia sentido sob um conjunto diverso de crenças a respeito
do funcionamento da natureza. Dobzhansky quis dizer, é claro, que assim que reconhecemos a
evolução como base da história orgânica, toda a biologia deve ser reformulada. Mas caso desejemos
compreender por que a evolução foi tal divisor de águas na história das ideias, devemos
compreender os contextos que ela substituiu, e não vê-los como arautos imperfeitos da evolução.
Eles eram diferentes, sutis, brilhantes (e errados), não estúpidos. Devemos estudar tais teorias, como
a classificação por meio de cinco de Oken, e devemos compreender por que a evolução destruiu a
sua fundamentação lógica, caso desejemos captar o alcance e o poder da evolução em si.
A taxonomia de cinco de Oken tenta reconciliar dois princípios, ambos caros à
Naturphilosophie, mas, superficialmente, contraditórios — primeiro, que os animais representam
uma única série de complexidade crescente definida pela adição sucessiva de órgãos; segundo, que
analogias significativas permeiam a natureza e que cada segmento da taxonomia imita ou reflete todos
os outros (a ordem dos mamíferos, por exemplo, deve repetir, em miniatura, o mesmo esquema que
ordena toda a natureza). Mas como a natureza pode conter, simultaneamente, uma única série
ascendente e um conjunto de ciclos que se repetem?
Examinemos as duas asserções em separado. Considere-se primeiro a epítome de Oken da sua
crença de que todos os animais formam uma única série caracterizada pela adição de órgãos,
aforismos 3067-3072 do seu Lehrbuch:

O reino animal é apenas um animal. ...


O reino animal é apenas um desmembramento do animal supremo, isto é, do homem.
Os animais tornam-se mais nobres na hierarquia quanto maior for o número de órgãos
coletivamente liberados ou tirados do Grande Animal, e que entrarem na combinação. Um animal
que, por exemplo, vivesse apenas como um intestino, seria, sem dúvida, inferior àquele em que o
intestino se combinasse a uma pele. ...
Os animais são gradualmente aperfeiçoados... pela adição de órgão sobre órgão. ...
Cada animal, portanto, ocupa uma posição superior à de outro; dois deles nunca se encontram em
igual plano ou nível.
Os animais são distinguidos... pela quantidade dos seus diferentes órgãos.

Mas uma ordem linear tão simples não podia satisfazer o espírito de um homem que acreditava
que cada nuance da natureza possuía um significado profundo na sua união com todas as outras
partes. Oken não podia deixar a ameba no lago ou o caranguejo na praia, pois todas as criaturas têm
de ser elementos de uma harmonia complexa e interligada, não simplesmente os degraus inferiores de
uma escada. Assim, Oken desenvolveu um esquema de vínculos transversais; ele classificaria a
natureza como um entrelaçamento de significados, não apenas como uma linha de progresso.
Oken sentia que havia decifrado o código da ordem numérica ao reconhecer ciclos onipresentes
de cinco baseados nos órgãos do sentido e na sua própria sequência ascendente: tato, paladar, olfato,
audição e visão. Impelido pela visão romântica da matéria viva, ansiando por perfeição ao longo de
caminhos simples, prenhes de significado, Oken encontrou círculos ascendentes de cinco em toda a
parte, da mais grandiosa escala, compreendendo todos os animais, até a menor, a das raças humanas.
Ele ordenou o reino animal inteiro num ciclo ascendente de cinco, refletindo a adição (ou
aperfeiçoamento) sucessiva de órgãos sen- soriais. “As classes animais”, escreveu ele, “nada mais
são, virtualmente, que uma representação dos órgãos dos sentidos.” Invertebrados, peixes, répteis,
aves e mamíferos, ou tato, paladar, olfato, audição e visão. Não sobrecarregarei este ensaio com os
argumentos capciosos e forçados de Oken a favor dessas correspondências fantasiosas. A natureza
recalcitrante, complexa, comporta-se muito mal sempre que tentamos lhe impor esquemas tão simples
(considere-se, por exemplo, a dificuldade de identificar os mamíferos com a visão, quando a classe
inferior das aves contém espécies com visão mais aguda do que a de qualquer mamífero). Limitar-
me-ei a citar a fundamentação lógica de Oken.

Estritamente, existem apenas cinco classes de animais: a Dermatozoa, ou invertebrados; a


Glossozoa, ou peixes, sendo esses os animais em que pela primeira vez surge uma verdadeira
língua; a Rhinozoa, ou répteis, em que o nariz se abre pela primeira vez na boca e inala ar; a
Otozoa, ou aves, na qual o ouvido se abre externamente pela primeira vez; a Ophtalmozoa, ou
Thricozoa [mamíferos], na qual todos os órgãos dos sentidos estão presentes e completos, os
olhos sendo móveis e cobertos com dois tampos ou pálpebras.

Assim como ocorre no maior, ocorre no menor. Oken conseguiu até mesmo retratar o
ordenamento racista convencional dos grupos humanos com a sua analogia sensorial, embora não
tenha nem ao menos tentado fundamentar a lógica das escolhas:

1. O homem-pele é o negro, o africano.


2. O homem-língua é o pardo, o malaio-australiano.
3. O homem-nariz é o vermelho, o americano.
4. O homem-ouvido é o amarelo, o asiático.
5. O homem-olho é o branco, o europeu.

Mas como a natureza pode se mover em ciclos regulados pelos órgãos dos sentidos e, ao mesmo
tempo, ao longo de um caminho único de progresso governado pelo acréscimo de órgãos?
Precisamos de uma imagem, uma analogia e um diagrama.
Imagem: O objeto que sobe pelo caminho de progresso não é uma criatura que caminha, mas um
círculo que gira com cinco raios caracterizados por tato, paladar, olfato, audição e visão. Cada vez
que um raio toca o chão, ele deposita uma criatura que representa o seu nível de avanço sensorial no
caminho do progresso. Quando o raio superior da visão afinal chega ao chão, uma roda nova e menor
começa a rolar novamente, depositando criaturas ao longo da mesma sequência sensorial.
Analogia: Várias teorias de história do pensamento ocidental conseguem unir ideias de progresso
contínuo a repetições cíclicas. No vitral do século XVI da capela do King’s College de Cambridge,
uma vigorosa figura de Jonas, expelido da barriga da baleia, se sobrepõe a uma imagem de Cristo
erguendo-se do sepulcro — pois ambos os homens voltaram à vida no terceiro dia in extremis. A
história cristã desloca-se inexoravelmente para diante, mas o Novo Testamento repete o Antigo, e o
significado de Deus revela-se na repetição.
Diagrama: O diagrama a seguir mostra quatro ciclos de rodas sen- soriais de cinco partes: todos
os animais, todos os mamíferos, o grupo superior dos mamíferos, e a espécie superior do grupo
superior. Para Oken, essas identificações com os órgãos dos sentidos e especificações de rodas de
cinco partes em todas as escalas da natureza não representavam um sistema artificial construído para
auxiliar a memória ou facilitar a lembrança, mas uma descoberta da realidade subjacente à natureza.
Ele esperava resultados práticos dessas correspondências. Ele também tentou, por exemplo, ordenar
o mundo mineral e o vegetal em rodas de cinco partes. Como os nossos remédios são feitos de
substâncias químicas e de plantas, as correspondências corretas especificariam os tratamentos
adequados. Poderíamos curar africanos com as plantas do tato, e caucasianos com as da visão.

Se alguma vez os gêneros de Minerais, Plantas e Animais vierem a ser colocados corretamente
um diante do outro, uma grande vantagem resultará disso para a ciçncia da Matéria Medica', pois
gêneros correspondentes atuarão especificamente um sobre o outro.

Admiro a abrangência e a coerência da visão de Oken, mas vou descer ao domínio do sensato e
quero ser o tio de um macaco se ela diz alguma coisa de significativo sobre a natureza.
Assim como Oken construiu as suas rodas ascendentes de cinco na Alemanha durante as décadas
anteriores a Darwin, outra teoria taxonômica, o sistema quinário, levou muitos naturalistas ingleses a
ordenar todos os organismos em círculos de cinco diferentes. O sistema quinário atrai a comparação
com o sistema de Oken porque ele também construiu círculos de cinco em escalas diferentes e
procurou correspondências entre organismos na mesma posição em diferentes círculos. Ele também
tentou resolver a aparente contradição entre o progresso linear e a repetição circular.

O sistema quinário baseia-se numa separação entre dois tipos de similaridade: afinidade e
analogia. Vínculos de afinidade unem formas no mesmo círculo; as analogias especificam a
correspondência entre círculos. Por exemplo, William Swainson, um proeminente representante
britânico da teoria quinária, justificou em 1835 o seguinte círculo de vertebrados. Reconhecemos os
peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos como cinco grupos de modelo anatômico comum. Mas
como eles podem representar ao mesmo tempo um caminho ascendente e um círculo fechado de
cinco? Swainson argumenta que devemos unir cada par por meio de uma forma intermediária que
mostra vínculos de afinidade — do peixe ao anfíbio através do girino, do anfíbio ao réptil através da
rã adulta, do réptil à ave através do pterodáctilo, da ave ao mamífero através do ornitorrinco, e do
mamífero de volta ao peixe através do maior agente de transporte natural, a baleia. Como as baleias
ligam os mamíferos superiores aos peixes inferiores, o caminho de progresso curva-se sobre si
mesmo e forma um círculo. “A própria natureza”, proclamou Swainson, ‘‘descreve o grandioso
círculo e declara-o completo.”
O círculo dos vertebrados pode então ser unido a outros círculos em escalas menores e maiores
por meio de vínculos de analogia que ligam grupos em posições similares. (Devo confessar que os
argumentos de Swainson parecem tão forçados quanto os de Oken. Os adeptos da teoria quinária
nunca apresentaram critérios rigorosos para os motivos pelos quais certas relações devem ser
chamadas de afinidade e outras de analogia. Fica-se com a desagradável sensação de que eles
elaboraram de antemão os seus círculos preferidos e então inventaram justificativas ad hoc para as
afinidades e analogias assim ordenadas — embora o método supostamente funcionasse em ordem
inversa, construindo-se círculos e correspondências a partir de dados brutos de afinidade e
analogia.) Por exemplo, Swainson ordenou todos os animais em círculos de Radiata (equinodermos e
parentes), Acrita (protozoários e outras criaturas “simples”), Testacea (moluscos), Annulosa (vermes
segmentados, insetos e crustáceos), e Verte- brata. Os supostos vínculos de analogia com o círculo
dos vertebrados parecem, no mínimo, um tanto artificiosos: os mamíferos com os vertebrados na
condição dos mais aperfeiçoados de cada círculo; os peixes com os radiários porque ambos são
exclusivamente aquáticos, “não tendo nenhuma espécie de nenhum dos grupos sido ainda descoberta
em terra”; Amphibia com Acrita porque ambos (aguente essa) “por mais dissimilares que sejam em
outros aspectos são notáveis por mudarem suas formas mais do que qualquer outro dos tipos
aberrantes em cada um dos círculos”; os répteis com os moluscos porque tanto as serpentes quanto os
caracóis não têm pés e rastejam sobre os seus ventres; e as aves com os Annulosa porque os insetos
também voam.
Fiquei desapontado ao descobrir que o artigo sobre Swainson na bíblia dos historiadores, o
Dictionary of Scientific Biography (chamado DSB por todos do ramo), segue a antiga tradição, já
criticada neste ensaio, de desprezar sistemas ultrapassados como pateticamente tolos à luz do
conhecimento moderno:

A sua infatigável atividade na história natural e o trabalho consciencioso em prol dela merecem
ser lembrados como uma compensação para o prejuízo que ele inadvertidamente causou por sua
adesão ao absurdo sistema quinário. ... Essa teoria extraordinária foi tenazmente mantida por
Swainson ao longo de toda a sua carreira zoológica e certamente prejudicou muito o seu trabalho.

Oken e Swainson foram legítima e severamente criticados em seus próprios termos. (Tentei
formular alguns desses argumentos expondo os critérios fantasiosos usados para estabelecer os
círculos de cinco e extrair analogias entre eles.) Mas eles não eram tolos ou loucos, e os seus
sistemas não eram absurdos. Oken e Swainson ocupavam uma posição destacada entre os melhores
historiadores naturais da Europa, e os seus sistemas numéricos de taxonomia foram populares e
competidores sérios entre os esquemas contemporâneos de ordenamento da natureza.
Sistemas numéricos rígidos só se tornaram absurdos posteriormente, à luz da evolução, pois a sua
respeitabilidade está assentada em teorias tidas como sendo as causas da ordem da natureza. Se
Deus colocou as espécies na Terra (como Swainson acreditava), então ele poderia ter agido com uma
precisão numérica que exibiria o rigor e a harmonia dos seus pensamentos. Se leis simples, em vez
de acidentes da história, estabelecem a sequência dos organismos (como Oken sustentava), então a
ordem numérica poderia surgir entre os animais, exatamente como a tabela periódica regula os
elementos químicos. A numerologia na taxonomia pode hoje ser rejeitada como misticismo absurdo,
mas, no tempo de Oken e Swainson, essa abordagem corporificava um resultado sensato de teorias
defensáveis sobre as causas da ordem da natureza. Swainson expôs isso com perfeição ao inferir a
existência de Deus e a sua preocupação especial para conosco da ordem quinária:

Quando descobrimos indicações evidentes de um plano definido, sobre o qual todas essas
modificações foram reguladas por algumas leis simples e universais, nosso assombro é
despertado não só pela sabedoria e pela bondade inconcebíveis do SUPREMO pelo qual essas
miríades de seres foram criadas e são agora preservadas, como também pela cegueira mental e
pelo entendimento deturpado daqueles filósofos, assim falsamente denominados, que gostariam
de nos persuadir de que mesmo o Homem, a última e a melhor das coisas criadas, é insignificante
demais para merecer o cuidado especial da Onipotência.

Darwin destruiu a regra de cinco para sempre porque eliminou a sua fundamentação lógica
reconstruindo a natureza. O seu agente de destruição não foi a evolução em si. Posso imaginar teorias
evolutivas (na verdade, algumas foram propostas) tão comprometidas com o pré-ordenamento por
meio de leis simples ou inteligências diretoras que a ordem numérica ainda poderia surgir de
processos rigidamente previsíveis. O anjo exterminador de Darwin foi, simplesmente, a história. A
evolução não ocorre segundo leis simples que especificam resultados necessários. Os seus caminhos
são torcidos e sacudidos por ambientes em mudança, de modificações de pouca monta na temperatura
e na precipitação ao soerguimento de cordilheiras, ao crescimento de geleiras, ao deslocamento de
continentes, e até (provavelmente) ao impacto de cometas e asteroides. A evolução não pode atingir a
perfeição de construção porque tem de trabalhar com partes herdadas de histórias anteriores, de
diferentes contextos: o “polegar” do panda é um osso destacado do pulso, desajeitado, posto em
serviço porque o primeiro dígito de verdade ficou incumbido de outras funções durante a sua vida
ancestral como carnívoro convencional; suportamos o incômodo de dores nas costas e a irritação das
hérnias porque criaturas grandes, de quatro patas, da nossa linhagem, não foram feitas para andar
apoiadas em dois pés — quatro patas, bom; duas patas, não tão bom.
Como os animais poderiam evoluir ao longo dos tortuosos caminhos da história e dispor-se
ordenadamente em círculos de cinco? A precisão numérica não pode regular a taxonomia porque a
vida se desdobra no tempo. A evolução registra uma história complexa, irrevogável; os seus
caminhos não foram pré-ordenados por regras simples ou inteligências diretoras.
Mas, ainda assim, a vida regulada pela história tem ordem — um padrão firme, inelutável,
definível, averiguável. A sua ordem é a topologia da sua metáfora adequada — a árvore da vida. A
sua ordem é a genealogia, a vinculação por meio de ramificação e descendência. Swainson
descreveu o mundo biológico corretamente antes de ir longe demais:

Houvesse a ordem da natureza sido tão irregular a ponto de descobrirmos que ela criara algumas
aves com quatro pés, outras com dois, e algumas sem nenhum; ou que, como o fabuloso grifo,
existissem criaturas que fossem metade quadrúpede, metade ave; ou se fossem encontrados
insetos com pés de quadrúpede e dedos de aves; em resumo, se existissem tais animais
compostos na natureza, as fundações da história natural como ciência nunca poderiam ter sido
estabelecidas.

Darwin então descobriu o motivo da ordem e mudou o mundo para sempre:

Algo mais está incluído na nossa classificação que a simples semelhança. Creio que esse algo
é... a afinidade de descendência — a única causa conhecida da similaridade de seres orgânicos.
4. Tendências e o seu significado
14. Perdendo a forma

Desejo propor um novo tipo de explicação para a história mais antiga da liga de beisebol — a
tendência mais amplamente discutida na história da estatística do beisebol: a extinção do rebatedor
de 400 (Trata-se de um rebatedor que deteve 40% de sucesso em suas rebatidas, rebatidas que se converteram em pontos - N.R.T.).
Os entusiastas do beisebol nadam em estatísticas, uma obsessão sensata que os não-iniciados
compreendem com dificuldade e ridicularizam com frequência. Os motivos não são difíceis de se
compreender. No beisebol, cada ação essencial é uma disputa entre dois indivíduos — rebatedor
contra arremessador, ou rebatedor contra defensor — criando desse modo uma arena de feitos
verdadeiramente individuais dentro de um esporte de equipe.
Comparativamente, a abstração de feitos pessoais em outros esportes de equipe faz pouco
sentido. Os pontos marcados no basquete ou as jardas ganhas no futebol americano dependem da
complexidade indissolúvel do jogo de equipe; uma corrida completa (home run) [Ocorre toda vez que um
rebatedor consegue percorrer as quatro bases do campo após uma rebatida e antes de a defesa chegar com a bola - N.R.T.], é você
contra o outro. Além disso, o beisebol tem sido jogado de acordo com um conjunto de regras e
condições suficientemente constantes durante o nosso século para tornar as comparações
significativas, e, no entanto, suficientemente diferentes em detalhe para proporcionar matéria
interminável para debate (a “bola morta” de 1900-1920 contra a “bola viva” de anos posteriores, a
introdução de jogos noturnos e da substituição de arremessadores, a invenção do slider [É um tipo de
jogada em que o rebatedor escorrega até uma base para ganhar tempo - N.R.T.] os tamanhos mutáveis e irregulares dos
campos, os da natureza contra os de Astroturf).
Nenhum tema inspirou mais discussão do que o declínio e o desaparecimento do batedor de .400
— ou, de modo mais geral, a queda nas médias principais de rebatidas de confederação (Média de todos
os rebatedores do campeonato - N.R.T.) durante o nosso século. Como chafurdamos em nostalgia e temos uma
tendência lúgubre para fazer comparações desfavoráveis entre o presente e uma “era de ouro”
passada, essa tendência adquire ainda mais fascínio porque carrega implicações morais ligadas
metaforicamente a comidas ruins, bombas nucleares e meios ambientes em erosão como sinais do
presente declínio e da queda iminente da civilização ocidental.
Entre 1901 e 1930, as médias principais de confederação de .400 ou melhores eram bastante
comuns (nove dentre trinta anos) e foram obtidas por vários jogadores (Lajoie, Cobb, Jackson,
Sisler, Heilman, Hornsby e Terry), e as médias acima de .380 praticamente não mereciam grandes
comentários. No entanto, a abundância cessou abruptamente daí em diante. Em 1930, Bill Terry
conseguiu .401, tornando- se o último rebatedor de .400 na Confederação Nacional; e os .406 de Ted
Williams marcaram o último pináculo da Confederação Americana. Desde que Williams, o maior
rebatedor que já vi, conseguiu o seu feito no ano do meu nascimento (e eu, ai de mim, não sou mais
um garotinho), apenas três homens conseguiram marcas acima de .380 em uma única temporada:
Williams novamente em 1957 (.388, com 38 anos e o meu voto de maior feito em rebatidas da nossa
era), Rod Carew (.388 em 1977), e George Brett (.390 em 1980). Para onde foram todos os grandes
rebatedores?
Dois tipos um tanto diferentes de explicação têm sido tradicionalmente oferecidos. O primeiro,
ingênuo e moralista, apenas reconhece com um suspiro que naqueles dias existiam gigantes na Terra.
Algo em nós sente a necessidade de criticar sem piedade o presente à luz de um passado irrealmente
róseo. Ao pesquisar a história da má conduta, por exemplo, descobri que cada geração (pelo menos
desde a metade do século XIX) tem se imaginado mergulhada numa onda de crime. Cada era também
tem testemunhado um declínio chocante de esportividade. De modo similar, cidadãos mais velhos da
liga de beisebol, assim como torcedores mais jovens (pois a nostalgia pode conseguir o seu maior
impacto junto aos que são jovens demais para ter conhecimento direto de uma realidade passada),
tendem a afirmar que os rebatedores de .400 de tempos passados simplesmente tinham mais interesse
e se esforçavam mais. Bem, Ty Cobb pode ter sido um exemplo acabado de intensidade, além de um
diabo, e Pete Rose, em comparação, pode ser um cavalheiro, mas o jogo de hoje é tudo, menos
apático. Digam o que quiserem, recompensas monetárias em milhões sem dúvida inspiram esforços
sinceros.
O segundo tipo de explicação encara as pessoas como basicamente iguais ao longo do tempo e
atribui a tendência de decréscimo nas médias principais de rebatidas de confederação a mudanças no
esporte e nos seus estilos de jogo. As mais citadas são os progressos no arremesso e na defesa e as
programações mais extenuantes que reduzem o nível de excelência. J. L. Reichler, por exemplo, um
dos principais colecionadores de fatos do beisebol, argumenta (ver Bibliografia):

As chances de surgir outro batedor de .400 são bastante desfavoráveis por causa do tremendo
progresso na substituição de arremessadores e na defesa. Os jogadores de hoje enfrentam as
desvantagens de uma programação maior, que desgasta até mesmo os atletas mais fortes, e de uma
quantidade maior de jogos noturnos, nos quais a bola é mais difícil de ser vista.

Não contesto os motivos de Reichler, mas creio que ele oferece uma explicação incompleta,
expressada a partir de uma perspectiva inadequada.
Outra proposta nessa segunda categoria de explicações invoca a numerologia do beisebol. Todos
os especialistas em estatísticas sabem que, após a introdução da bola viva no começo da década de
1920 (e o estrago que Babe Ruth fez em cima disso), as médias de rebatida dispararam de um modo
geral e permaneceram altas durante vinte anos. Como a tabela anexa demonstra, as médias de
confederação para todos os jogadores subiram para a casa dos .280 em ambas as confederações
durante a década de 1920 e permaneceram na dos .270 durante a década de 1930, mas nunca
passaram de .260 em nenhuma outra década do nosso século. Naturalmente, se as médias de
confederação subiram de modo tão considerável, não deve ser motivo de surpresa para nós que os
melhores rebatedores também tenham melhorado as suas marcas. A grande era das médias de .400 na
Confederação Nacional realmente ocorreu durante a década de 1920 (outro episódio importante de
medidas altas ocorreu na era pré-moderna, durante a década de 1890, quando a média por década
subiu para .280 — ela fora de .259 na de 1870 e de .254 na de 1880).
Mas esse fator simples também não consegue explicar a extinção do rebatedor de .400. Ninguém
conseguiu atingir .400 em nenhuma das confederações entre 1931 e 1940, embora as médias de
confederação tenham estado vinte pontos acima dos valores das duas primeiras décadas do século,
quando as batidas com efeito estavam em moda. Uma comparação dessas duas primeiras décadas
com tempos recentes sublinha tanto o problema quanto o fracasso das soluções comumente propostas
— pois as marcas altas (e as de .400 em particular) floresceram de 1900 a 1920, mas as médias de
confederação na época não foram diferentes das de décadas recentes, ao passo que as marcas altas
desapareceram sem deixar traços.
Considere-se, por exemplo, a Confederação Americana durante os períodos de 1911-1920
(média de confederação, .259) e de 1951-1960 (média de confederação, .257). Entre 1911 e 1920,
foram registradas médias acima de .400 durante três anos, e a média principal caiu abaixo de .380
apenas duas vezes (os .368 e os .369 de Cobb em 1914 e 1915). Esse padrão de médias altas não se
deu apenas por obra e graça de Ty Cobb. Em 1912, Cobb conseguiu .410, enquanto o malfadado
Shoeless Joe Jackson alcançou .395, Tris Speaker, .383, Nap Lajoie, com 37 anos, .368, e Eddie
Collins, .348. Em comparação, durante 1951-1960, apenas três médias principais excederam o quinto
lugar de Eddie Collins, com .348 (Mantle, com .353 em 1956, Kuenn, com .353 em 1959, e Williams,
com os seus já discutidos .388, em 1957). A década de 1950, diga-se de passagem, não foi uma
década de incompetentes, contando com gente como Mantle, Williams, Minoso e Kaline. Assim, um
declínio geral nas médias principais de confederação ao longo do século não pode ser explicado por
uma inflação de médias gerais durante duas décadas intermediárias. Ficamos às voltas com um
enigma. Como acontece com os enigmas mais persistentes, provavelmente precisamos de um novo
tipo de explicação, não de uma simples reciclagem e refinamento de argumentos antigos.
Sou paleontólogo por ofício. Nós, estudiosos da história da vida, gastamos a maior parte do
tempo preocupando-nos com tendências de longo prazo. A vida tornou-se mais complexa ao longo do
tempo? Existem mais espécies de animais agora do que há duzentos milhões de anos? Há vários anos,
ocorreu-me que sofremos de uma predisposição sutil, mas poderosa, na abordagem que adotamos
para explicar tendências. Os extremos nos fascinam (o maior, o menor, o mais velho), e tendemos a
nos concentrar apenas neles, divorciados dos sistemas em que estão incluídos na condição de valores
incomuns. Ao explicar extremos, nós os abstraímos de sistemas maiores e presumimos que as suas
tendências surgem por motivos autogerados: se os maiores se tornam ainda maiores ao longo do
tempo, uma vantagem poderosa deve acompanhar o aumento de tamanho.
Mas se considerarmos os extremos como valores-limite de sistemas maiores, muitas vezes um
tipo bem diferente de explicação se impõe. Se a quantidade de variação dentro de um sistema muda
(seja qual for o motivo), então os valores extremos podem aumentar (se a variação total crescer) ou
diminuir (se a variação total cair) sem qualquer motivo especial baseado no caráter ou no significado
intrínsecos dos valores extremos em si. Em outras palavras, tendências em extremos podem ser o
resultado de mudanças sistemáticas em quantidades de variação. Os motivos das mudanças de
variação são muitas vezes consideravelmente diferentes dos motivos propostos (com frequência
espúrios) para mudanças de extremos considerados como independentes dos seus sistemas.
Permitam-me ilustrar este conceito pouco conhecido com dois exemplos da minha profissão —
um para o aumento, outro para a diminuição de valores extremos. Primeiro, um exemplo de aumento
de valores extremos apropriadamente interpretado como uma expansão de variação: os maiores
tamanhos de cérebros dos mamíferos aumentaram constantemente ao longo do tempo (os campeões de
miolos conseguiram mais miolos). Muitas pessoas, a partir desse fato, inferem que tendências
inexoráveis para um aumento de tamanho do cérebro afetam a maioria ou todas as linhagens de
mamíferos. Não é assim. Dentro de vários grupos de mamíferos, o tamanho mais comum de cérebro
não mudou em nada desde que o grupo se tornou estabelecido. Contudo, a variação entre as espécies
aumentou — isto é, a amplitude de tamanhos de cérebro tem crescido à medida que as espécies se
tornam mais numerosas e mais diversificadas nas suas adaptações. Se nos concentrarmos somente em
valores extremos, veremos apenas um aumento geral ao longo do tempo e presumiremos algum valor
intrínseco e inelutável no tamanho crescente do cérebro. Se considerarmos a variação, veremos
apenas uma expansão de amplitude ao longo do tempo (levando, é claro, a valores extremos
maiores), e ofereceremos uma explicação diferente baseada nos motivos para a diversidade
aumentada.
Segundo, um exemplo de diminuição de extremos interpretado apropriadamente como um
declínio de variação: um padrão característico na história da maioria dos invertebrados marinhos foi
denominado “experimentação inicial e padronização posterior”. Quando surge um novo modelo de
corpo, a evolução parece explorar todos os tipos de torceduras, voltas e variações. Uns poucos
funcionam bem, mas a maioria não (ver ensaio 16). Por fim, apenas uns poucos sobrevivem. Os
equinodermos apresentam-se hoje em cinco variedades básicas (dois tipos de estrela-do-mar,
ouriços-do-mar, pepinos-do-mar e crinóides — um grupo pouco familiar, que lembra mais ou menos
uma estrela-do-mar com vários braços em cima de um talo). Mas quando os equinodermos se
desenvolveram pela primeira vez, eles irromperam numa série impressionante de mais de vinte
grupos básicos, incluindo alguns torcidos como uma espiral e outros com uma simetria bilateral tão
acentuada que alguns paleontólogos interpretaram-nos como ancestrais dos peixes. De modo similar,
os moluscos hoje existem na forma de caramujos, mariscos, cefalópodes (polvos e aparentados), e
mais dois ou três grupos raros e pouco familiares. Mas eles exibiram de dez a quinze variações
fundamentais no começo da sua história. Essa tendência para aparar e eliminar extremos é com
certeza a mais comum na natureza. Quando os sistemas surgem pela primeira vez, eles examinam
todos os limites de possibilidades. Muitas variações não funcionam; surgem as melhores soluções, e
a variação diminui. À medida que os sistemas se regularizam, a variação decresce.
A partir desta perspectiva, ocorreu-me que poderíamos estar encarando o problema do rebatedor
de .400 pelo lado errado. As médias principais de confederação são valores extremos dentro de
sistemas de variação. Talvez o seu decréscimo ao longo do tempo testemunhe simplesmente a
padronização que afeta tantos sistemas à medida que eles se estabilizam — inclusive a própria vida,
tal como foi declarado acima e desenvolvido no ensaio 16. Quando o beisebol era jovem, os estilos
de jogo ainda não haviam se tornado regulares o suficiente para frustrar os truques dos que eram bons
de verdade. Wee Willie Keeler podia “acabar com eles onde quer que estivessem” (e marcar uma
média de .432 em 1897) porque os defensores ainda não sabiam onde deviam estar. Aos poucos, os
jogadores foram se deslocando rumo a métodos ótimos de posicionamento, defesa, arremesso e
rebatida — e a variação caiu inevitavelmente. Os melhores encontravam agora uma oposição por
demais afinada à sua própria perfeição para admitir os extremos de realização de uma era mais
descuidada. Não podemos explicar o declínio das médias altas simplesmente argumentando que os
empresários inventaram a substituição de arremessadores, enquanto os arremessadores inventaram o
slider — explicações convencionais baseadas em tendências que afetam as médias altas
consideradas como um fenômeno independente. Mais exatamente, o jogo inteiro aprimorou os seus
padrões e diminuiu as suas amplitudes de tolerância.
Assim, apresento a minha hipótese: o desaparecimento do rebatedor de .400 (e o declínio geral
das médias principais de confederação ao longo do tempo) resulta em boa parte de um fenômeno
geral — um decréscimo de variação de médias de rebatida à medida que o esporte padronizava os
seus métodos de jogo — e não de uma tendência intrinsecamente impelida justificando uma
explicação especial em si mesma.
Para testar tal hipótese, precisamos examinar as mudanças ao longo do tempo na diferença entre
médias principais de confederação e a média geral de todos os rebatedores. Se eu estiver certo, essa
diferença deve decrescer. Mas como a minha hipótese envolve um sistema inteiro de variação, então,
algo paradoxalmente, devemos examinar também as diferenças entre as médias de rebatida mais
baixas e a média geral. A variação deve diminuir em ambas as pontas — isto é, dentro do sistema
inteiro. Tanto as médias de rebatida mais altas quanto as mais baixas devem convergir rumo à média
geral de confederação.
Assim, peguei a minha fiel Baseball Encyclopedia, aquele vade mecum de todos os torcedores
sérios (embora, com mais de 2.000 páginas, seja meio difícil andar com ela debaixo do braço). A
enciclopédia relata as médias de confederação de cada ano e relaciona as cinco maiores médias para
jogadores que tenham pego o bastão oficialmente um número suficiente de vezes. Como os extremos
altos nos fascinam, ao passo que os baixos são apenas embaraçosos, não há nenhuma lista das médias
mais baixas, e é preciso passar em revista laboriosamente a lista inteira de jogadores. Nas médias
mais baixas, encontrei (para cada confederação em cada ano) as cinco marcas mais baixas de
jogadores que tenham pego o bastão pelo menos trezentas vezes. Então, para cada ano, comparei a
média de confederação com a média das cinco marcas mais altas e as cinco mais baixas para
jogadores frequentes. Por fim, tirei a média desses valores anuais década por década.
No quadro anexo, apresento os resultados de ambas as confederações combinadas — uma
confirmação clara da minha hipótese, já que tanto as médias mais altas quanto as mais baixas
convergem para a média de confederação ao longo do tempo.

O declínio medido das médias altas para o meio parece ocorrer na forma de três patamares,
apenas com variação limitada dentro de cada patamar. Durante o século XIX (só a Confederação
Nacional; a Confederação Americana foi fundada em 1901), a diferença média entre as médias mais
altas e as mais baixas foi de 91 pontos (amplitude de 87 a 95, por década). De 1901 a 1930, ela caiu
para 81 (amplitude de apenas 80 a 83),. enquanto que para as cinco décadas desde 1931, a diferença
entre média e extremo teve como média 69 (com uma amplitude de apenas 67 a 70). Esses três
patamares correspondem a três eras marcadas por médias de rebatida altas. A primeira inclui as
médias desembestadas da década de 1890, quando Hugh Duffy alcançou .438 (em 1894) e todos os
cinco jogadores principais superaram .400, no mesmo ano (o que não é surpreendente, já que esse
ano apresentou a infame experiência, logo abandonada, de contar caminhadas[Esta regra dá ao rebatedor o
direito de caminhar para uma base após erros sucessivos do arremessador, direito que ele normalmente só teria quando conseguisse
rebater a bola - N.R.T.] como rebatida). O segundo patamar inclui todas as marcas inferiores de batedores
de .400 do nosso século, com exceção de Ted Williams (Homsby encabeçou as tabelas com .424 em
1924). O terceiro patamar registra a extinção das marcas de .400.As médias mais baixas exibem o
mesmo padrão de diferença decrescente em relação à média de confederação, com um declínio
precipitado por década, de 71 para 54 pontos durante o século XIX, e dois patamares desde então
(de mais ou menos 40 no começo do século para mais ou menos 30 depois), seguidos por uma
exceção ao meu padrão — um retorno para mais ou menos’40 durante a década de 1970.

Os valores do século XIX devem ser tomados com restrições, já que as regras do jogo eram um
tanto diferentes. Durante a década de 1870, por exemplo, as programações variavam de 65 a 85
jogos por temporada (comparados com os 154 da maior parte do nosso século e os 162 de tempos
mais recentes). Com temporadas curtas e menos jogadores no bastão, a variação deve aumentar,
exatamente como, em nossos dias, as médias de junho e julho abrangem uma amplitude maior do que
as médias de fim de temporada, depois que centenas de jogadores passaram pelo bastão. (Para
temporadas curtas, usei dois turnos no bastão por jogo como critério para inclusão nas tabulações de
médias baixas.) No entanto, na década de 1890, as programações haviam aumentado para 130-150
jogos por temporada, e as comparações com o nosso século tornam-se mais significativas.
Fiquei um tanto surpreso — e prometo aos leitores que não estou fazendo racionalizações após o
fato, mas atuando sobre uma previsão que fiz antes de começar a calcular — com o fato de que o
padrão de decréscimo não ofereceu mais exceções durante as duas últimas décadas, porque o
beisebol experimentou uma profunda deses- tabilização, do tipo que os meus cálculos deveriam
refletir. Após meio século de jogo estável com oito times geograficamente estacionários por
confederação, o sistema finalmente se rompeu em resposta à maior facilidade de transporte e ao
maior acesso aos poderosos dólares. As sedes das equipes começaram a mudar, e os meus adorados
Dodgers e Giants abandonaram Nova York em 1958. Então, no começo da década de 1960, ambas as
confederações aumentaram para dez times, e, em 1969, para doze times em duas divisões.
Essas ampliações deveriam ter causado uma inversão nos padrões de decréscimo entre médias
extremas de rebatidas e médias de confederação. Muitos jogadores menos que adequados tornaram-
se regulares e fizeram diminuir as médias baixas (Marvelous Marv Throneberry ainda está colhendo
os benefícios em anúncios de cerveja Lite). As médias de confederação também declinaram, em
parte como con- sequência do mesmo influxo, e chegaram no nível mais baixo em 1968 com .230, na
Confederação Americana. (Essa tendência foi revertida por decreto em 1969, quando a base do
arremessador tornou-se mais baixa e a zona de rebatida obrigatória diminuiu para dar uma chance
melhor aos rebatedores.) Essa diminuição de médias de confederação também deveria ter aumentado
a distância entre rebatedores com médias altas e a média de confederação (já que os jogadores muito
bons não estavam sofrendo um declínio geral de qualidade). Assim, surpreendeu-me que um aumento
na distância entre as médias de confederação e as médias mais baixas durante a década de 1970
tenha sido o único resultado dessa desestabilização importante que pude detectar.
Na condição de não profissional e não jogador, não posso precisar as mudanças que fizeram com
que o jogo se estabilizasse e a amplitude de médias de rebatida diminuísse ao longo do tempo. Mas
posso identificar o caráter geral de influências importantes. As explicações tradicionais que encaram
o declínio das médias altas como uma tendência intrínseca têm de enfatizar invenções e inovações
explícitas que desencorajam a marcação de pontos — a introdução da substituição de
arremessadores e a maior quantidade de jogos noturnos, por exemplo. Não nego que esses fatores
tenham efeitos importantes, mas se o declínio teve como causa principal, como proponho, um
decréscimo geral na variação das médias de rebatidas, então devemos recorrer a outros tipos de
influências.
Deveríamos nos concentrar na precisão, na regularidade e na padronização crescentes do jogo —
e devemos procurar os modos que os empresários e jogadores descobriram para remover a vantagem
de que desfrutavam no passado os jogadores verdadeiramente excelentes. O beisebol tornou-se uma
ciência (no sentido vernáculo de precisão repetitiva de execução). Os defensores de fundo de campo
praticam durante horas para fazer passes para o interceptador. O posicionamento dos defensores
muda por turno e por jogador. Os double plays (Jogada dupla onde a defesa elimina dois jogadores adversários que
correm simultaneamente para bases diferentes antes que eles realizem uma home run. Consegue-se isso fazendo a bola chegar às bases
correspondentes antes de cada um dos jogadores adversários - N.R.T.) são executados com a impressionante precisão
de uma máquina. Cada arremesso e cada modo de manejar o bastão é catalogado; mantêm-se livros
elaborados sobre os hábitos e as fraquezas pessoais de cada rebatedor. O “jogo” pelo jogo não existe
mais.
Quando os grandes navios do mundo abrilhantaram o nosso bicentenário em 1976, muitas pessoas
lamentaram a sua beleza perdida e citaram a mágoa de Masefield, de que nunca “veríamos navios
como esses outra vez”. Eu alimento sentimentos opostos em relação ao desaparecimento do rebatedor
de .400. Os gigantes não cederam lugar a meros mortais. Aposto qualquer coisa como Carew podia
ser páreo para Keeler. Mais precisamente, as fronteiras do beisebol foram restringidas e as suas
arestas aparadas. O jogo alcançou uma graça e uma precisão de execução que teve como
consequência a eliminação dos feitos extremos dos anos iniciais. Um jogo inigualado em estilo e
detalhe tornou-se mais equilibrado e bonito.

Pós-escrito

Alguns leitores extraíram do ensaio precedente a inferência (absolutamente não-intencional) de


que sustento uma atitude cética ou mesmo indigesta em relação aos grandes feitos do esporte — algo
por um passado distante, quando heróis de verdade podiam brilhar, antes que o jogo alcançasse a sua
perfeição quase mecânica. Mas o capricho dos grandes dias e momentos, situado no domínio do
imprevisível, nunca poderia desaparecer, mesmo que os patamares de realização constante rumassem
para uma média invariável. Como tributo meu à possibilidade eterna da transcendência, submeto este
comentário sobre o maior momento de todos, na página de artigos assinados do New York Times de
10 de novembro de 1984.

Três strikes para Babe


(Strike é o termo utilizado para quando um rebatedor erra a bola, apesar de ela vir numa posição considerada pelo juiz como
“rebatível”. Se o rebatedor cometer três strikes ele é eliminado do jogo - N.R.T.)

Lembretes minúsculos e superficiais muitas vezes provocam torrentes de recordações. Acabo de


ler uma pequena nota, espremida nas páginas de esportes: “Babe Pinelli, por longos anos importante
juiz de confederação, morreu segunda-feira, com 89 anos, numa instituição de convalescença perto de
São Francisco.”
O que poderia ser mais fugaz do que a perfeição? E o que você preferiria ser — o agente ou o
juiz? Babe Pinelli foi o árbitro no único episódio de perfeição no beisebol, numa ocasião em que
isso era da maior importância. 8 de outubro de 1956. Um jogo perfeito na World Series (Os americanos
adoram chamar o seu campeonato de beisebol como o “campeonato mundial” - N.R.T.) — e, por coincidência, o último
jogo oficial de Pinelli como árbitro. Que consumado canto do cisne! O jogo estava empatado em 27 a
27. E, como atos isolados de grandeza são estímulos intrínsecos à democracia, o agente foi um
arremessador Yankee competente, mas, de resto, inexpressivo, Don Larsen.
O dramático final foi todo de Pinelli, controverso desde então. Dale Mitchel, substituindo Sal
Maglie, foi o vigésimo sétimo rebatedor. Com uma contagem de 1 e 2 (A contagem 1 e 2 significa “1 rebatida e
2 strikes” - N.R.T.) Larsen serviu uma alta e fora (Bola alta e fora é uma bola lançada pelo arremessador e que está fora do
alcance do rebatedor, não sendo válida; o rebatedor pode deixar passar sem que se considere como strike - N.R.T.) — quase, mas
certamente não, pela definição técnica, um ponto. Mitchell deixou o arremesso passar, mas Pinelli
não hesitou. Ergueu o braço direito para indicar o terceiro strike. Yogi Berra saiu de trás da caixa do
rebatedor, quase derrubando Larsen num pulo frontal de alegria. “Fora por um pé”, resmungou
Mitchell mais tarde. Ele exagerou — já que foi fora apenas por umas poucas polegadas — mas
estava certo. Babe Pinelli, porém, estava mais certo. Um batedor não pode deixar passar um
arremesso próximo quando há tanta coisa em jogo. O contexto importa. A verdade é uma
circunstância, não um determinado local.
Eu cursava o penúltimo ano da Jamaica High School. Naquele dia, todos os professores, até
mesmo a sra. B, a nossa velha e azeda professora de geometria sólida (e, em retrospecto, uma fã
secreta de beisebol, acho eu), nos deixaram acompanhar o jogo pelo rádio. Já no final da partida,
fomos até a sra. G, a nossa professora de francês, ainda mais azeda, e eu fui o escolhido para
implorar. “A senhora tem que deixar a gente ouvir”, disse eu, “nunca aconteceu antes.” “Meu jovem”,
ela retrucou, “esta é uma aula de francês.” Por sorte, sentei no fundo da sala, bem na frente de Bob
Hacker (lembram-se da distribuição de carteiras por ordem alfabética?), um fã doente do Dodger,
com rádio portátil e fone de ouvido. No meio da aula, após o último ponto de Pinelli, senti um
tapinha sepulcral e olhei para trás. O rosto de Hacker estava sem cor. “Ele conseguiu — o maldito
conseguiu.” Eu gritei e atirei a minha jaqueta para o alto. “Meu jovem”, disse a sra. G da
escrivaninha, “tenho certeza de que o verbo écrire não é tão excitante assim.” Isso me custou 10
pontos na média final, e talvez também a admissão em Harvard. Nunca experimentei um instante de
arrependimento.
A verdade é inflexível. A verdade é inviolável. Pelo costume reconhecido e de longa data, por
qualquer conceito de justiça, Dale Mitchell tinha de tentar acertar qualquer coisa que passasse por
perto. Foi um ponto — um ponto alto e fora. Babe Pinelli, apitando o seu último jogo, encerrou-o
com o seu momento melhor, mais perceptivo e mais verdadeiro. Babe Pinelli, árbitro da história,
entrou no vestiário e chorou.

Pós-pós-escrito

Que negócio engraçado. Trabalhei durante três anos para escrever uma monografia sobre a
evolução de caracóis terrestres das Bermudas e, desde então, apenas nove pessoas citaram o tomo
resultante. Escrevi estas poucas centenas de palavras num ímpeto de inspiração de quinze minutos,
durante uma interminável rodada de discursos no banquete anual da Pequena Confederação do meu
filho (ocasião boa para algo mais além de peru fatiado, eu sempre achei) — e elas já receberam mais
comentários do que a maioria dos meus trabalhos técnicos combinados.
Algumas pessoas entenderam mal (recebi uma carta impiedosa do pastor de Babe Pinelli,
exigindo virtualmente uma retratação pública da minha acusação de que o grande juiz havia mentido
conscientemente, fosse por uma ducha antecipada, fosse por um lugar ao sol). Recebi muitas outras
cartas adoráveis, inclusive uma do neto de Pinelli, dizendo que “Babe nunca teve segundas intenções
com aquele ponto e que não ia engolir gracinhas”. Certíssimo. Um radialista particularmente gentil
desenterrou a sua velha gravação do incidente e tocou-a para mim pelo telefone — após observar
que a sra. G havia me privado de tal prazer, e que eu nunca escutara realmente o grande momento.
Fiquei feliz e surpreso ao saber que este comentário, que eu pretendia fosse apenas uma doce
lembrança de um único evento, foi lido e discutido em escolas e em aulas de ética de faculdades. Só
para que fique registrado, portanto, por favor, não leiam o texto como uma argumentação a favor de
um relativismo piegas na busca da verdade. A questão estritamente empírica tem uma solução clara e
inequivocamente concreta — uma verdade absolutamente inviolável, se quiserem. O arremesso foi
alto e fora. A flexibilidade baseada nas circunstâncias surge apenas no que diz respeito às definições,
que são inventadas por pessoas e não parte do mundo externo. O arremesso, naquele contexto
particular, foi um stríke, e Pinelli estava certo.
Devo também confessar um profundo constrangimento, sobretudo à luz do meu último parágrafo.
O meu texto original identificava o arremesso como baixo e fora (tal como relatado por Peter Golen-
bock em Dinasty, a sua história dos anos de glória dos Yankee — mas, sem desculpas, já que eu não
devia ter me limitado simplesmente a copiar). O Times até mesmo exacerbou o erro, usando como
título, não a linha que eu pretendia usar (agora restaurada), mas “o ponto que foi baixo e fora”. No
entanto, mesmo o erro pode ter a sua recompensa, provando assim que o mundo contém alguma
benevolência intrínseca. Red Barber, aquele bom homem e maior anunciante de todos, corrigiu-me
com bastante sutileza na sua preciosidade semanal de cinco minutos no serviço público de rádio. Ele
devia saber; afinal de contas, ele estava lá (e eu não, como prova o texto). Eu pesquisei
profundamente, só para confirmar. Ele estava certo, é claro. O arremesso foi alto, não baixo. Lembre-
se daquela série de desenhos — “a emoção que vem apenas uma vez na vida” (como a do garoto que
leva o carro até o posto de gasolina e diz “enche”). Foi assim que eu senti. Imagine só — ser
corrigido pelo próprio Old Redhead!
15. Morte e transfiguração

Para muitos forasteiros, Indianápolis nada mais é que um fim de semana por ano e quinhentas
milhas de corrida de automóvel. Na realidade contínua, trata-se de uma cidade atraente, cheia de
amenidades modernas e com uma generosa pitada daquelas estruturas mais antigas que unem o nosso
frenético e incerto presente a um passado mais confortador. Na semana passada, durante um intervalo
entre os deveres do dia-a-dia, vaguei pelo Templo Murat do Sepulcro e pela enorme catedral da
Maçonaria do Rito Escocês. Até há pouco tempo, essas lojas devem ter dominado a vida social de
Indianápolis; pelo que sei, pode ser que ainda sejam importantes. Mas as suas edificações
gigantescas parecem solitárias e abandonadas — cavernosas salas vitorianas, de madeira escura e
com vitrais, vagamente iluminadas pela luz disponível, cheias de cadeiras velhas, estufadas,
raramente ocupadas por uns poucos velhos usando chapéus de formatos bizarros. Sem dúvida, a
velha ordem muda.
Estive em Indianápolis para o encontro anual da Geological Society of America (Escrevi este ensaio
em novembro de 1983 — logo após o encontro aqui descrito). Lá, vi, ouvi e participei do debate, quando um grupo
de colegas paleontólogos começou a desmantelar uma velha ordem de pensamento a respeito de
velhos objetos — e a construir uma nova e surpreendente abordagem para uma característica de suma
importância da história da vida na Terra: das extinções em massa.
Os paleontólogos têm conhecimento das extinções em massa desde o início da nossa ciência
como disciplina moderna. Nós as usamos para demarcar as divisões principais da escala temporal
geológica — as fronteiras entre as eras. A extinção do período permiano, que marcou o fim da era
paleozoica, eliminou metade dos invertebrados marinhos; a extinção do cretáceo, que marca a
transição da era mesozoica para a cenozoica, varreu mais ou menos 15% das famílias marinhas,
juntamente com as mais populares de todas as criaturas terrestres, os dinossauros.
Contudo, embora sempre tenhamos reconhecido a existência dessas grandes mortandades,
tentamos, de uma maneira curiosa, mitigar os seus efeitos, provavelmente porque o nosso forte
preconceito a favor da mudança gradual e contínua nos force a encarar as extinções em massa como
anômalas e ameaçadoras. Tentamos, em resumo, caracterizar as extinções em massa como uma
extensão simples, quantitativa, do desaparecimento mais lento, espécie por espécie, que caracteriza
os tempos normais — maiores e mais abruptas, é claro, mas basicamente a mesma coisa. Seguimos
duas estratégias principais para temperar as extinções em massa e colocá-las em harmonia com os
eventos dos tempos normais. Primeiro, enfatizamos a continuidade entre as fronteiras tentando
encontrar ancestrais diretos das novas formas que surgem após uma extinção entre as espécies que
vicejavam pouco antes do evento. Segundo, manipulamos os padrões numéricos das extinções para
argumentar que os picos não foram nem altos, nem abruptos o suficiente para fundamentar uma visão
catastrófica — em outras palavras, argumentamos que as pulsações de extinção foram precedidas por
declínios graduais com a duração de milhões de anos, e que os picos em si não se destacam tão
nitidamente das taxas “de fundo” dos tempos normais.
No entanto, essas tradições foram vigorosamente desafiadas em Indianápolis, numa série de
dissertações separadas e ostensivamente não relacionadas que apontam para uma conclusão comum:
as extinções em massa, de acordo com quatro critérios, devem ser reinterpretadas como rupturas, não
como pontos culminantes de sequências contínuas. Elas são mais frequentes, mais rápidas, mais
profundas (em quantidades de espécies eliminadas), e mais diferentes (em efeito versus os padrões
de tempos normais) do que havíamos suspeitado. Qualquer teoria adequada da história da vida terá
de tratá-las como eventos controladores especiais por direito próprio. Elas não serão plenamente
explicadas pela teoria evolutiva que elaboramos para a interação entre organismos e populações de
tempos normais — isto é, por quase toda a teoria evolutiva convencional agora disponível.
Adolf Seilacher, professor de geologia em Tübingen, Alemanha, apresentou a peça central desse
assalto não planejado contra a tradição. Dolf é o maior observador que já tive o privilégio de
conhecer. Ele olha objetos comuns, examinados minuciosamente por gerações de pesquisadores, e,
invariavelmente, vê algo novo e inesperado. Dessa vez, ele voltou o seu olhar superior para o mais
antigo de todos os grupos metazoários (animais multicelulares) — a fauna ediacarana. A sua
dissertação resultou numa reinterpretação fundamental desses fósseis, com implicações de longo
alcance para toda a história da vida — e eu fiquei sentado, em transe, enquanto onda após onda de
significados expandidos despencavam sobre mim.
Até cerca de 570 milhões de anos, o nosso moderno registro fóssil teve início com a maior de
todas as explosões geológicas — a explosão do período cambriano. No espaço de uns poucos
milhões de anos, quase todos os grupos principais de invertebrados com partes duras fizeram o seu
primeiro aparecimento no registro fóssil. Durante todos os três bilhões de anos anteriores, a vida
incluíra pouco mais que uma longa sequência de bactérias e cianofíceas. Mas o registro fóssil da
vida primitiva sem dúvida contém uma exceção, ainda que de última hora — descoberta primeiro na
Austrália, mas agora conhecida em todo o mundo — a fauna ediacarana (batizada assim por causa da
importante localidade australiana). Nas rochas imediatamente anteriores à explosão cambriana,
encontramos um grupo moderadamente diversificado de invertebrados marinhos, de águas rasas, com
corpo mole, de tamanho médio a grande (até um metro de comprimento).
Na tradição continuísta que identifiquei acima como uma primeira estratégia para suavizar o
impacto das extinções em massa, os paleontólogos tentaram constantemente identificar os animais
ediacaranos com grupos modernos. Desse modo, os animais ediacaranos foram interpretados como
águas-vivas, corais e vermes — uma sequência contínua de relações evolutivas ao longo da maior de
todas as fronteiras geológicas. No entanto, como argumento no ensaio seguinte, o expediente
tradicional de forçar fósseis antigos e problemáticos em categorias taxonômicas modernas muitas
vezes fracassa de modo lamentável. Temos de reconhecer que a história primitiva da vida deve estar
juncada de experimentos fracassados — grupos pequenos que nunca alcançaram muita diversidade e
que mantêm apenas uma relação distante com qualquer animal moderno. Seria de esperar que a nossa
fauna antiga contivesse um grande número de tais curiosidades — no entanto, todos os animais
ediacaranos foram enfiados à força, muitas vezes com uma força considerável, em grupos modernos.
Dolf Seilacher afirma agora, virando completamente de pernas para o ar o antigo parecer, que a
fauna ediacarana não contém nenhum ancestral de organismos modernos, e que todos os animais
ediacaranos compartilham um modo básico de organização, de todo distinto da arquitetura dos
grupos agora vivos. Em outras palavras, a fauna ediacarana inteira representa um experimento único
e extinto no modelo básico de construção das formas vivas. A primeira fauna do nosso planeta foi
substituída após uma extinção em massa, e não simplesmente melhorada e expandida.
Dolf começou demonstrando que as tradicionais similaridades entre os animais ediacaranos e os
modernos são enganosas e superficiais, e que as formas ediacaranas não podiam funcionar como as
suas supostas contrapartes modernas. Quase todos os fósseis ediacaranos foram falsamente
encaixados em três grupos modernos: águas-vivas, corais e vermes segmentados. As águas-vivas
modernas movem-se contraindo um anel proeminente de músculos concêntricos localizados na borda
exterior do seu guarda-chuva; sulcos radiais para colher e transportar alimento encontram-se dentro
dos músculos concêntricos, voltados para o centro. Mas os chamados medusóides ediacaranos
invertem essa disposição, e não poderiam, portanto, funcionar do mesmo modo: estruturas
concêntricas rodeiam o centro, e sulcos radiais encontram-se no exterior.
Os corais alcionários modernos (corais “moles”, ou “penas do mar”) invariavelmente portam
ramos distintos que muitas vezes emergem de um talo comum. Os ramos têm de estar separados de
modo que a água, que traz oxigênio e nutrientes, possa alcançar os pólipos individuais (os membros
da colônia) que crescem sobre eles. À primeira vista, os “alcionários” ediacaranos assemelham-se
superficialmente às suas contrapartes modernas e no formato geral, mas eles formam uma estrutura
contínua, de segmentos fundidos, não um conjunto de ramos separados — e, portanto, não poderiam
operar como uma colônia moderna de corais moles. Os “vermes” ediacaranos são segmentados e
possuem simetria bilateral como os supostos descendentes modernos, mas várias outras criaturas
compartilham a mesma simetria e uma arquitetura tão básica e repetível não tem de implicar
necessariamente um parentesco próximo. Em outros aspectos, as criaturas ediacaranas não são nem
um pouco vermiformes. Elas chegam até a um metro de comprimento e permanecem chatas como uma
panqueca mais semelhantes a películas do que aos corpos substancialmente engrossados da maioria
dos vermes segmentados modernos.
Após expor as diferenças entre os animais ediacaranos e as suas supostas contrapartes modernas,
Seilacher examinou as similaridades que unem todas as formas ediacaranas. Elas compartilham uma
arquitetura usada apenas raramente pelos animais modernos — e não se trata de qualquer criatura
viva ligada a um fóssil ediacarano. Elas parecem fitas, panquecas e películas, às vezes levemente
“infladas” como colchões de ar, com uma estrutura foliforme ou de partes fundidas.
Os animais ediacaranos evoluíram antes que qualquer criatura houvesse inventado esqueletos
mineralizados ou partes externas duras. Talvez o seu Bauplan singular (para usar a palavra alemã
conveniente para um esquema básico de arquitetura orgânica) testemunhe um caminho para o tamanho
grande que animais sem órgãos de sustentação duros poderiam seguir — estruturas leves e finas,
combinadas para a obtenção de maior força. De qualquer modo, e seguindo um tema favorito destes
ensaios por mais de uma década, os fósseis ediacaranos parecem representar uma entre duas
soluções possíveis — a qúe não foi seguida pelos animais modernos — para o problema estrutural
básico do grande porte: o declínio imposto na área superficial relativa, já que as superfícies
(crescendo como comprimento elevado ao quadrado) devem aumentar mais vagarosamente que os
volumes (que crescem como comprimento elevado ao cubo) à medida que objetos de forma similar
se tornam maiores. Como tantas funções orgânicas dependem de superfícies (a respiração e a
alimentação, para citar apenas duas), e, no entanto, têm de servir o volume inteiro do corpo, tal
declínio em superfície relativa não pode ser tolerado por muito tempo.
Das duas soluções possíveis, quase todos os animais modernos grandes conservaram os seus
formatos arredondados e globulares, mas desenvolveram órgãos internos para aumentar as áreas
superficiais — a profusa ramificação de vias aéreas do nosso pulmão, e a superfície complexamente
dobrada do nosso intestino delgado, por exemplo. Outra solução potencial, raramente seguida hoje,
mas explorada por alguns parasitas grandes, inclusive as solitárias, permite o desenvolvimento de
porte grande sem complexidade interna mudando a estrutura básica do corpo para algo bem fino —
uma fita ou uma panqueca — de modo que nenhum espaço interno fique distante da superfície
externa, a única parte onde podem ocorrer a respiração e a absorção de alimento na ausência de
órgãos internos. Os animais ediacaranos, como grupo, seguiram esse segundo caminho para o
aumento de tamanho e, portanto, representam uma fauna coerente, notavelmente diversa em modelo
básico de qualquer criatura moderna.
Caso estivesse inclinado a procurar o progresso na história, eu poderia sentir-me satisfeito
porque a primeira “tentativa” da vida usou a mais simples das duas soluções — uma mudança no
formato do corpo em vez de uma invenção de órgãos internos complexos. Contudo, permanece o
ponto mais importante, o de que, se Seilacher estiver certo, a fauna ediacarana representa um
experimento diferente, único e coerente na arquitetura orgânica — e não um conjunto de precursores
dos animais modernos. Para enfatizar essa descontinuidade, a primeira fauna com partes duras da era
paleozoica, o chamado grupo tomo- tiano, está cheio de criaturas minúsculas, tubulares, espiraladas e
em forma de carapuça sem praticamente semelhança alguma com as formas ediacaranas. A
ascendência dessas criaturas posteriores pode estar preservada em indícios indiretos de outros
animais pré-cambrianos não incluídos entre os fósseis ediacaranos. Encontramos resquícios
abundantes, em “traços fósseis” de tubos para alimentação e abrigo mas ainda, ai de nós, nenhum
“corpo fóssil” de animais com formatos arredondados convencionais — uma boa fonte para os
descendentes tomotianos posteriores.
Seilacher terminou a sua dissertação com um argumento particularmente interessante. Como ele
assinalou, temos procurado sem sucesso, e com pouca esperança, criaturas extraterrestres complexas,
primeiro porque temos uma curiosidade enorme para descobrir o que uma experiência independente
no desenvolvimento da vida poderia produzir. Que similaridades outra “tentativa” teria com a vida
na Terra? Com que força a física e a química dos objetos impõem limitações? Qual seria a amplitude
da diferença da vida em outro lugar? As nossas respostas podem estar na evidência concreta do
nosso próprio registro fóssil, e não nas especulações abstratas da exobiologia. Talvez uma
experiência independente tenha ocorrido bem aqui na Terra, expressando-se na forma da fauna
ediacarana, o nosso primeiro grupo de animais multicelulares.
Voltando ao tema das extinções em massa, costumávamos afirmar que a primeira fronteira entre
eras, entre o período pré-cambriano e a era paleozoica, há cerca de 570 milhões de anos,
apresentava uma diferença enigmática em relação a todas as outras porque testemunhava uma
profunda irradiação (a explosão do cambriano) mas nenhuma extinção prévia. Mas, se a fauna
ediacarana, que se encontra logo abaixo da base da era paleozoica nos estratos de todo o mundo,
representar uma experiência coerente e diferente na arquitetura da vida, então uma grande extinção
também marca essa fronteira inicial. A primeira estratégia para mitigar a extinção em massa deixa de
funcionar, e encontramos pouca continuidade na travessia da primeira e mais profunda fronteira da
complexa história da vida.
Outras dissertações em Indianápolis desafiaram a segunda estratégia apresentando argumentos a
favor de uma separação maior em efeito e magnitude entre as extinções em massa e os eventos de
tempos comuns. Algumas conclusões de anos anteriores, já documentadas nestes ensaios, prepararam
o caminho: (1) Um impacto de asteroide como fonte, ou pelo menos como golpe de graça, da nossa
extinção terminal do período cretáceo (ensaio 25 de Hen’s Teeth and Horse’s Toes) — afinal, os organismos
dificilmente podem se “preparar” para tal gatilho. (2) A estimativa de David Raup (ensaio 26 em Hen’s
Teeth and Horse’s Toes), de que uma extirpação de 50% das famílias, a cifra contada para a extinção do
permiano, poderia ser traduzida como até 96% de todas as espécies (uma remoção de metade das
famílias implica uma extinção de muito mais espécies, já que a maioria das espécies morre sem
eliminar as suas famílias — uma categoria mais inclusiva — ao passo que a morte de uma família
tem de incluir todas as suas espécies). Para uma eliminação tão profunda, devemos considerar
seriamente a possibilidade de que grupos inteiros se perdem por motivos puramente aleatórios. (3) O
cálculo de Raup e Jack Sepkoski (ensaio 27 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes) de que as grandes extinções são
mais elevadas e distintas em relação ao nível normal do que havíamos reconhecido previamente.
Este tema, o da diferença maior entre as extinções em massa e os tempos “normais”, ganhou força
e refinamento em várias dissertações apresentadas em Indianápolis. Jack Sepkoski, um antigo aluno
meu, agora prosperando vigorosamente na Universidade de Chicago, passou anos compilando o
conjunto de dados mais coerente e completo jamais desenvolvido sobre extinções — uma lista em
nível de famílias que inclui tudo, de protozoários a mamíferos. Com esses dados, finalmente
alcançamos uma base para uma consideração minuciosa dos padrões quantitativos de extinção que
essa segunda estratégia exige. (A ciência de boa qualidade pode requerer genialidade e imaginação,
como estes ensaios enfatizam com tanta frequência, mas nunca esqueçam que novas conclusões
também são o fruto de trabalho empírico duro — do contrário, o raciocínio pretensioso não passa de
bobagem).
Usando os dados de Sepkoski, Raup e Sepkoski identificaram uma ciclicidade surpreendente nas
extinções em massa durante 225 milhões de anos, desde a grande mortandade do permiano. A cada
26 milhões de anos, com oito acertos e apenas duas falhas aparentes (um padrão por demais regular e
notável para ser rejeitado, em bases estatísticas, como acidental), encontramos um pico de extinção
em massa; todos os desastres previamente identificados encontram-se justamente nos pontos altos
desse ciclo de 26 milhões de anos. Que causa poderia ocasionar uma periodicidade tão regular e, no
entanto, ião amplamente espaçada? Se compreendemos direito a geologia, nenhum processo
puramente interno de clima, vulcanismo ou de tectônica cumpre ciclos tão regulares num período tão
grande. Portanto, Raup e Sepkoski especulam que algum ciclo astronômico deve estar implicado —
um fenômeno solar ou galáctico, embora, no momento, não tenhamos ideia do quê (Ver ensaio 30 para
detalhes adicionais e notáveis). Se os desastres são tão frequentes e causados por eventos tão absolutamente
além do controle ou da expectativa de um organismo (como as populações podem prever um ciclo de
26 milhões de anos?), e se essas mortandades coordenadas moldam o padrão da vida de modo tão
fundamental, então a extinção em massa não é a morte comum extrapolada.
David Jablonski, um paleobiólogo da Universidade do Arizona em Tucson, acrescentou então
dois argumentos convincentes para enfatizar o caráter abrupto e diferente das extinções em massa.
Quanto ao caráter abrupto, Jablonski notou que os dados brutos das extinções em massa com
frequência incluem um longo período de declínio aparentemente lento e estável entre grupos que
despencam mais profundamente no pico em si. Esses lentos declínios foram interpretados durante um
bom tempo como um sinal de continuidade entre a extinção normal e a extinção em massa. Mas eles
são reais ou um produto do nosso registro biológico imperfeito?
Durante mais de um século, os geólogos procuraram agentes terrestres para associar à extinção
em massa. A ladainha é longa, e, no entanto, todos, menos um, falharam — a construção de
montanhas, o vulcanismo, flutuações de temperatura, para citar apenas uns poucos favoritos, velhos e
mal sucedidos. A queda no nível do mar fornece a única correlação boa (e os teóricos do ciclo de 26
milhões de anos deveriam levá-la em consideração). A maioria das extinções em massa é precedida
por uma regressão pronunciada do nível do mar.
A queda do nível do mar pode participar como causa de extinção (o nosso registro fóssil tem uma
forte predisposição por invertebrados marinhos de água rasa), mas ela também impõe um óbvio
artefato aos nossos dados. À medida que o nível do mar cai, formam-se menos rochas sedimentares
para reter os fósseis de oceanos limitados. Talvez o lento declínio que precede a maioria das
extinções em massa apenas testemunhe o volume decrescente de rochas disponíveis para a
descoberta de fósseis, não um decréscimo gradual e verdadeiro pressagiando o pico posterior.
Jablonski inventou um método engenhoso para medir o artefato potencial. Algumas formas
desaparecem do registro à medida que cai o nível do mar, retornando, porém, quando os mares
voltam a depositar mais rochas após a extinção em massa propriamente dita. Essas perdas
temporárias devem testemunhar um efeito artificial da queda do nível dos mares e das quantidades
decrescentes de rocha fossilífera. Jablonski refere-se a esses grupos que reaparecem como “grupos
Lázaro” (Lazarus taxa).
Contando o número de grupos Lázaro que desaparecem antes de uma extinção em massa, mas que
reaparecem depois, Jablonski tem condições de avaliar quanto do declínio lento medido antes de
uma extinção em massa pode ser o resultado artificial de uma quantidade menor de rochas
disponíveis para a descoberta de fósseis, e quanto deve testemunhar um evento real e gradual ligando
picos de extinção em massa com os tempos normais anteriores.
Em alguns casos, a subtração dos grupos Lázaro ainda deixa um resíduo de desaparecimento
lento, e o padrão deve ser real (o declínio de amonitas antes da extinção do período cretáceo, por
exemplo). Mas, no que se refere a vários grupos do cretáceo, um declínio lento medido pode ser
inteiramente atribuído ao artefato da menor quantidade de rocha disponível. Desse modo, a extinção
do cretáceo, assim como outras também, pode ter sido mais abrupta do que havíamos
imaginadoantes. O argumento a favor de um agente extraterrestre ganha força. A extinção em massa é
algo rápido e especial.
Jablonski examinou então o comportamento dos grupos durante tempos normais e durante
episódios de extinção em massa, para ver se conseguiria detectar diferenças coerentes que pudessem
acentuar o caráter especial das extinções em massa. Encontrou algumas disparidades curiosas.
Alguns ramos da árvore evolutiva contêm mais espécies, ou porque as novas espécies se formam
com facilidade ou porque resistem à extinção assim que surgem. Jablonski chamou esses ramos de
“ramos ricos em espécies” (spedes-richclades), em oposição a “ramos pobres em espécies”
(species-poor clades), ou grupos que nunca contêm muitas espécies.
Em tempos normais, ramos ricos em espécies tendem a aumentar o número das suas espécies
continuamente — e a ganhar vantagem numérica sobre ramos pobres em espécies. Os meios
ambientes devem encorajar ou a diferenciação rápida de espécies ou a persistência posterior. Mas
então por que os ramos ricos em espécies não dominam inteiramente a biosfera? Jablonski julga que
esses mesmos ramos ricos em espécies saem-se pior do que os ramos pobres em espécies durante as
extinções em massa. As espécies individuais dos ramos pobres em espécies possuem uma
distribuição geográfica mais ampla e tolerâncias ecológicas maiores que os grupos de nichos
ecológicos mais especializados dos ramos ricos em espécies. Essa amplitude geográfica e ecológica
provavelmente protege tais espécies nos meios ambientes extremos que a extinção em massa deve
gerar. Essas mesmas características de amplitude podem diminuir o ritmo da diferenciação de
espécies em tempos normais (menos oportunidades de isolamento e de exploração de novos meios
ambientes), tornando assim tais grupos pobres em espécies.
Esse comportamento contrário dos ramos ricos em espécies em tempos normais e em tempos
catastróficos preserva um equibbrio que permite que tanto os ramos ricos quanto os pobres em
espécies floresçam ao longo de toda a história da vida. Mais importante no nosso contexto, essa
distinção enfatiza a diferença qualitativa entre tempos normais e tempos em circunstâncias
catastróficas. As extinções em massa não são simplesmente uma ampliação do que ocorre
normalmente. Elas afetam os vários elementos da biosfera de um modo distinto, bem diferente dos
padrões de tempos normais.
Quando examinamos a história da vida desde o início da complexidade multicelular nos tempos
ediacaranos (ver ensaio 16), uma característica se destaca como a mais enigmática — a ausência de
ordem e progresso nítidos ao longo do tempo entre as faunas invertebradas marinhas. Podemos
relatar histórias de progresso de alguns grupos, mas em momentos de honestidade temos de admitir
que a história da vida complexa é mais uma história de variação multifária ao redor de um conjunto
de modelos básicos do que uma saga de excelência cumulativa. Os olhos dos primeiros trilobitas,
por exemplo, nunca foram superados em complexidade ou acuidade pelos artrópodes posteriores.
Por que não encontramos essa ordem que era de esperar?
Talvez a própria expectativa seja censurável, um produto de uma predisposição progressista,
difundida no pensamento ocidental, e nunca uma previsão da teoria evolutiva. No entanto, se a
seleção natural rege o mundo da vida, deveríamos detectar algum acúmulo intermitente de modelos
anatômicos melhores e mais complexos ao longo do tempo — em meio a todas as flutuações, recuos
e avanços que devem caracterizar um processo devotado primordialmente à construção de uma
melhor adaptação dos organismos a meios locais em mudança. Darwin com certeza previu tal
progresso quando escreveu:

Os habitantes de cada período sucessivo na história do mundo venceram os seus predecessores


na corrida pela vida, e estão, em tal âmbito, em posição superior na escala da natureza; e isso
pode explicar aquele sentimento vago e ainda mal definido, experimentado por muitos
paleontólogos, de que a organização como um todo progrediu.

Considero esse fracasso em encontrar um “vetor de progresso” nítido na história da vida como o
fato mais enigmático do registro fóssil. Mas também creio que agora estamos prestes a encontrar uma
solução, graças a uma compreensão melhor da evolução em ambas as circunstâncias, as normais e as
catastróficas.
Devotei os últimos dez anos da minha vida profissional em paleontologia à construção de uma
teoria heterodoxa para explicar a ausência dos padrões esperados em circunstâncias normais — a
teoria do equilíbrio pontuado. Niles Eldredge e eu, os perpetradores desse nome particularmente
não-eufônico, argumentamos que o padrão de tempos normais não é uma história de progresso
adaptativo contínuo dentro de linhagens. Mais exatamente, as espécies formam-se com rapidez na
perspectiva geológica (milhões de anos) e tendem a permanecer altamente estáveis milhões de anos
depois. O sucesso evolutivo deve ser avaliado entre as próprias espécies, não no nível darwiniano
tradicional de organismos em luta dentro de populações. Os motivos do sucesso das espécies são
muitos e variados — ritmos altos de diferenciação de espécies e grande resistência à extinção, por
exemplo —, e muitas vezes não envolvem qualquer referência às expectativas tradicionais de
progresso em modelo morfológico. Se o equilíbrio pontuado domina o padrão em tempos normais,
então demos um grande passo rumo à compreensão das direções curiosamente flutuantes da história
da vida. Até recentemente, eu suspeitava que o equilíbrio pontuado poderia resolver o dilema do
progresso por si mesmo.
Agora percebo que o padrão flutuante deve ser construído por uma interação complexa e
fascinante de duas linhas de explicação — o equilíbrio pontuado para tempos normais e os diferentes
efeitos produzidos por processos separados de extinção em massa. Seja o que for que se acumule
pelo equilíbrio pontuado (ou por outro processo), em tempos normais, pode ser dissolvido,
desmantelado, reajustado e dispersado pela extinção em massa. Se o equilíbrio pontuado perturbou
as expectativas tradicionais (e como o fez!), a extinção em massa é bem pior. Os organismos não
podem rastrear ou prever os gatilhos ambientais da extinção em massa. Não importa o quão bem se
adaptem às amplitudes ambientais de tempos normais, eles têm de se submeter a riscos nos momentos
catastróficos. E se as extinções podem demolir mais de 90% de todas as espécies, então, dentre
alguns poucos sobreviventes teimosos destinados a um mundo novo, devemos estar perdendo grupos
para sempre, por pura falta de sorte.
Até agora, temos jogado as mãos para cima, frustrados diante da ausência do padrão esperado na
história da vida — ou temos procurado impor um padrão que esperávamos encontrar num mundo que,
na realidade, não aquiesce. Talvez agora possamos navegar entre a Cila da desesperança e a Caribde
da irrealidade confortadora. Se conseguirmos desenvolver uma teoria geral da extinção em massa,
poderemos afinal compreender por que a vida frustrou as nossas expectativas — e poderemos até
mesmo extrair um tipo inesperado de padrão do caos aparente. A trilha rápida de um extraordinário
encontro em Indianápolis pode estar apontando o caminho.

Pós-escrito

Como feliz ironia da ciência na sua melhor forma, qualquer ensaio sobre material novo e
instigante garante a rapidez do seu próprio esquecimento à medida que novas descobertas se fazem.
Quase eliminei este ensaio na condição de ultrapassado (como outros, não lamentados,
desapareceram), mas finalmente decidi conservá-lo sem modificações, como uma expressão honesta
da emoção imediata, escrita enquanto todas as novas ideias ainda ecoavam em meus ouvidos. Assim,
não tentei revê-lo (ou mudar o tom) com as versões publicadas desde as exposições verbais
originais. Os ensaios da seção 8 atualizam a segunda parte sobre as extinções em massa, enquanto a
referência bibliográfica de Seilacher pode ser consultada para mais informações sobre a primeira
parte.
Não posso, porém, resistir a uma atualização em forma pictórica. Em dezembro de 1984, Dolf
Seilacher enviou-me a cópia acima da sua primeira tentativa de desenhar toda a fauna ediacarana à
luz da sua nova teoria. Nenhum tema é mais fundamental a este livro e às suas convicções sobre o
caráter central da história do que a importância da taxonomia, encarada, não como um cabide neutro
para os fatos da natureza, mas como uma teoria que obriga e dirige o nosso pensamento. A figura de
Seilacher atordoou-me com a alegria específica de ver algo inteiramente novo em objetos familiares.
Durante toda a minha vida profissional, eu vira os organismos ediacaranos como ancestrais de filos
modernos, posteriores. Foi assim que os classifiquei na minha mente. A Sprigina (fila 1) ficou com
os vermes, a Charnia (fila 1), com os corais, a Cyclomedusa (fila 3), com as águas-vivas, e o
Tribrachidium (fila 3), com os equinodermos. Colocados nessas categorias distintas, simplesmente
nunca percebi as similaridades que agora me saltam aos olhos (embora, em certo sentido “objetivo”,
as similaridades tenham sempre estado “lá”). Agora consigo perceber com nitidez o argumento de
Seilacher — uma comunidade de estruturas de partes fundidas, poliformes, com eixos de crescimento
e simetria diferentes. A taxonomia é uma ciência dinâmica e criativa da história.
16. Reduzindo enigmas

Em 1? de outubro de 1939, um mês depois de Stálin e Hitler terem assinado o seu pacto de não-
agressão, Winston Churchill descreveu a política russa como “uma incógnita envolta em mistério
dentro de um enigma”. Todas as profissões têm os seus enigmas clássicos, embora raramente possam
se gabar de ter um Churchill para descrevê-los tão bem. O meu próprio campo de paleontologia de
invertebrados tem uma designação latina formal para os seus mistérios. Eles são reunidos numa
categoria de classificação semelhante a um cesto de lixo chamada Problemática — animais de
parentesco zoológico desconhecido, muito embora os seus fósseis possam ser abundantes e bem
preservados. A solução de um grupo problemático torna-se um motivo de alegria geral entre os
paleontólogos. No começo de 1983, o mais resoluto de todos os mistérios paleontológicos foi
vencido, pelo menos pela metade. Quero relatar essa história e explicar por que ela tem uma
importância geral que transcende em muito o simples prazer da descoberta.
Os conodontes eram o que havia de mais irritante em toda a problemática fóssil. Como fica
implícito no seu nome (“dentes em cone”), os conodontes são estruturas pequenas, semelhantes a
dentes, de composição fosfática. (A maioria das partes duras dos invertebrados marinhos é feita de
carbonato de cálcio, embora alguns, inclusive os conodontes, sejam de fosfato de cálcio. Os ossos
dos vertebrados também são fosfáticos, o que leva muitos paleontólogos a especular que os
conodontes poderiam ser os dentes de peixes extintos.) A amplitude de tamanho dos conodontes vai
de dimensões microscópicas até cerca de 3 mm de comprimento máximo, e a sua distribuição
cronológica vai do período cambriano ao triássico — de cerca de 580 até 200 milhões de anos atrás.
Muitos dos fósseis problemáticos são criaturas raras e insignificantes. Os conodontes, por outro
lado (e apesar do tamanho diminuto), estão entre os fósseis mais importantes. São encontrados em
abundância numa grande variedade de rochas e evoluíram com rapidez, aumentando assim o seu
valor na correlação de estratos (já que cada pequeno segmento de tempo apresenta conodontes
exclusivos). Os conodontes, portanto, encontram-se dentre a meia dúzia de grupos fósseis mais
importantes na ciência da bioestratigrafia — a datação e a correlação de rochas por meio dos seus
restos fósseis, sendo ainda (apesar do interesse crescente por problemas biológicos e evolutivos) a
fonte mais importante de emprego para paleontólogos. Um especialista declarou que os conodontes
são “ferramentas esplêndidas na bioestratigrafia de todo o mundo, e o seu valor nas rochas do
cambriano ao triássico não é excedido pelo de nenhum outro grupo de fósseis”. Imagine então a nossa
frustração: tamanha importância prática e nem sabemos que tipo de animal eles representam. Não se
encontra nenhum outro grupo de tamanha importância na Problemática.
Os conodontes são evidentemente as únicas partes duras (e, portanto, as únicas porções
geralmente preservadas como fósseis) de uma criatura que, de resto, tinha corpo mole. Mas que tipo
de animal, e como descobri-lo a partir de estruturas separadas semelhantes a dentes? Quando os
conodontes eram conhecidos apenas como elementos isolados, desarticulados — a situação desde a
sua descoberta em 1856 até 1934 —, não tínhamos fundamento algum para qualquer opinião sensata,
e a especulação corria solta. Os conodontes foram colocados em quase todos os grupos principais do
reino vegetal e do animal, sendo considerados desde estruturas de sustentação de algas até órgãos
copulatórios de nematóides. As opiniões mais comuns atribuíam-lhes o caráter de elementos
mandibulares de anelídeos ou de peixes.
Em 1934, foram descobertos os primeiros, assim chamados, agrupamentos de conodontes —
elementos articulados unidos em padrões definidos e invariáveis. Com a sua simetria bilateral e a
gradação de elementos semelhantes a dentes, do maior para o menor, esses agrupamentos sugeriam
com mais força ainda que os conodontes atuavam como estruturas coletoras de alimento (fosse
diretamente, como dentes, ou indiretamente, como suportes duros para coletores de alimentos
carnosos ou ciliares). Desapareceram as hipóteses mais fantasiosas de parentesco, e a ideia de que
os conodontes eram elementos mandibulares de alguma criatura semelhante a um verme ou a um
peixe ganhou força adicional. Mas ainda não possuíamos nenhum indício direto do animal conodonte.
Então, em 1969, paleontólogos de todo o Continente reuniram-se no Field Museum of Natural
History, em Chicago, para a Primeira Convenção Paleontológica Norte-Americana. (Lembro-me
muito bem de mim nessa ocasião, um professor assistente de primeiro ano, inexperiente, sentado em
meio a todos os grandes da minha profissão, pensando: ‘‘Se os russos — ou os chineses, ou quem
quer que seja — quisessem destruir esta profissão inteira...” E depois concluindo, confiante: (“Mas
por que eles iriam se importar?”) Na sessão plenária, foi feita uma revelação dramática — o animal
conodonte finalmente havia sido descoberto. Fora encontrada uma criatura de corpo mole em
Montana com conodontes dentro de si, numa posição interpretada como sendo a boca ou o intestino
anterior, onde a comida podia ser masca- da ou macerada. Esses animais possuíam outras
características que pareciam uni-los aos cordados, membros primitivos do nosso próprio filo (que
inclui todos os vertebrados) e receberam o nome de conodontocordados.
Infelizmente, não passou de um alarme falso. O estudo posterior revelou que os conodontes se
encontravam mais para trás no intestino — numa posição que sugere com maior probabilidade que
eles haviam sido engolidos pelo animal. Além disso, a sua distribuição não era compatível com o
que sabemos sobre agrupamentos de conodontes. Um conodontófago continha partes de agrupamentos
distintos, indicação clara de que dois indivíduos conodontes haviam, de algum modo, entrado no
animal. Outro continha conodontes que variavam muito em tamanho para que se inferisse
sensatamente que provinham do mesmo organismo. Um terceiro não tinha conodonte algum no lugar
em que era de esperar. Claramente, os chamados conodontófagos comiam animais conodontes e
muitas vezes retinham conodontes de mais de um indivíduo no intestino. Essa notícia pode ter
desapontado os paleontólogos, mas não rebaixou a significação da descoberta. O conodontófago é um
comedor de conodontes, não um animal conodonte, mas continua a ser um enigma notável por direito
próprio. Em vez de resolvermos um fóssil problemático, havíamos acrescentado outro à nossa
copiosa lista. Que seja. O acréscimo de um mistério interessante é quase tão bom (e muitas vezes
mais interessante) quanto a solução de outro.
Contrariando as imagens românticas da ciência e da exploração, muitas descobertas importantes
são feitas em gavetas de museus, e não sob as condições adversas do ressequido Gobi ou da
enregelante Antártida. E tem de ser assim, já que o século XIX foi a grande era de coleta — e
praticantes destacados cavaram material às toneladas, jogaram-no nas gavetas de museus e nunca
mais olharam para ele de novo. Uma das grandes descobertas zoológicas do nosso século, o molusco
segmentado primitivo Neopilina, foi tirado do fundo do mar, colocado num frasco e catalogado com
o nome de um caramujo semelhante ao crepidópode (pois a sua concha externa conserva tal formato).
Ali permaneceu por vários anos até que H. Lemche virasse o frasco para olhar as partes moles e
descobrisse as guelras segmentadas.
E um prazer para mim comunicar que o animal conodonte foi agora descoberto, e, desta vez,
aparentemente, de verdade — numa gaveta de museu na Escócia. Meu amigo Euan Clarckson estava
remexendo algum material do carbonífero (com cerca de 340 milhões de anos) coletado por D. Tait
durante a década de 1920, quando notou a impressão deixada por uma criatura vermiforme com
conodontes na extremidade frontal, exatamente onde deveria ser a boca. Como Clarck- son não é um
especialista em conodontes, ele chamou alguns colegas para verificar e ampliar a sua descoberta. Os
resultados acabam de ser publicados (Derek E. G. Briggs, Euan N. K. Clarckson, e Richard J.
Aldridge, na Bibliografia).
O nosso registro fóssil é quase que inteiramente a história de partes duras — ossos, dentes,
conchas e placas — porque as estruturas moles deterioram-se com rapidez e não se fossilizam. Sob
circunstâncias bastante especiais, partes moles podem ser preservadas, e essas raras janelas que dão
para a verdadeira diversidade da vida passada encontram-se entre as mais preciosas das nossas
locações fossilíferas. Para os seiscentos milhões de anos em que os animais multicelulares
dominaram a fauna terrestre, não temos mais de uma dúzia de depósitos extensos de criaturas de
corpo mole. Os mais famosos são as películas carbonizadas com criaturas bizarras e assombrosas na
argila xistosa de Burgess (Burgess Shale), cambriano de Alberta (com cerca de 550 milhões de anos,
a mais antiga das nossas grandes janelas); animais preservados dentro de concreções de minério de
ferro na formação de Mazon Creek de Illinois, período carbonífero (350-270 milhões de anos); e.os
calcários litográficos do período jurássico (180-130 milhões de anos) de Solnhofen, Alemanha, onde
foram descobertos os restos do Archaeopteryx, a primeira ave, com penas e tudo.
O animal conodonte vem de uma das nossas janelas menores, a chamada “faixa do camarão”
(shrimp band) dentro dos arenitos de Granton (Granton Sandstones), a leste de Edimburgo. Os
arenitos de Granton são uma sequência de sedimentos de lagos e lagoas depositados em água doce ou
levemente salina. Essa bacia foi ocasionalmente inundada pelo mar, e a “faixa do camarão”
representa uma dessas incursões marinhas. A sua fauna de corpo mole foi preservada porque duas
condições incomuns prevaleceram durante essa breve inundação. Primeiro, as águas do fundo
careciam aparentemente de oxigênio. Nenhum animal consumidor de carniça ou bactérias poderia
viver no leito do lago, e os animais mortos que afundavam não eram desmembrados ou decompostos.
(Fazemos essas inferências porque a “faixa do camarão” exibe sedimentação contínua, compacta,
uma indicação de que nenhuma criatura escavou ou abriu sulcos nos detritos do fundo.) Segundo, a
bacia era estagnada e virtualmente destituída de correntes. Assim, criaturas frágeis, de corpo mole,
não foram partidas, mas afundaram suavemente sendo enterradas intactas.
O animal conodonte tem aparência vermiforme, com cerca de 40,5 mm de comprimento, não
ultrapassando, porém, 2 mm de largura (ver fotografia na p. 231). A extremidade da cabeça parece
ser bipartida, com dois grandes lobos ao redor de uma depressão central (entrada para a boca,
talvez). Logo atrás da cabeça, os conodontes estão fixados ao longo de uma borda localizada numa
posição sensata para a boca. Eles ocorrem em três grupos e contêm elementos de um agrupamento
bem conhecido. Assim, Clarckson e os seus colegas não precisaram inventar um nome para sua
criatura; eles o incluíram dentro do gênero Clydagnathus, estabelecido em 1969 só para os
conodontes descarnados. Umas poucas débeis linhas percorrem o interior do animal, paralelas aos
seus lados. Não sabemos se representam um intestino, um tubo nervoso ou mesmo talvez a notocorda
de um cor- dado. A partir de cerca de dois terços do corpo e estendendo-se quase até a extremidade
posterior, encontramos uma curiosa sequência de segmentos repetidos, uns trinta e três ao todo,
inclinando-se em ângulo com a linha mediana do corpo. Por fim, uma borda da extremidade posterior
parece guarnecida com uma sequência de projeções, interpretadas como raios de nadadeiras. Nada
mais que seja digno de nota foi preservado. Pelo menos as estruturas do Clydagnathus confirmam
uma antiga suposição sobre os elementos conodontes — eles representam as únicas partes duras de
uma criatura que, em outros aspectos, tinha o corpo inteiramente mole. Não é de admirar que
tivéssemos tão pouco sucesso na determinação do seu parentesco.
Como eu disse no início, Clarckson e os seus colegas resolveram só metade do problema do
conodonte. Eles encontraram o animal fugidio, mas não sabem qual é o seu lugar. Dos filos animais
modernos, apenas dois parecem dignos de discussão como possíveis categorias taxonômicas para o
animal conodonte. Talvez ele seja um cordado — isto é, um membro pré-vertebrado do nosso
próprio filo. No entanto, cada similaridade potencial com os cordados não carrega quase que
convicção alguma. O corpo esguio e achatado, em forma de enguia, lembra-nos alguns cordados, mas
encontramos o mesmo formato geral também em vários outros filos. As débeis linhas paralelas aos
lados do animal poderiam representar estruturas de cordados, como a notocorda, mas podem ser
simplesmente os resquícios do intestino, um órgão compartilhado por virtualmente todos os animais
“superiores”. Os raios de nadadeira aparentes da extremidade posterior sugerem afinidades com os
cordados, mas estruturas similares também ocorrem em muitos outros filos. Os segmentos em forma
de V parecem dizer “cordado”, mas essas estruturas encontram-se tão mal preservadas que não
podemos realmente distinguir entre um estilo cordado de segmentação e os padrões de muitos outros
filos com elementos repetidos em série. Em resumo, encontramos algumas similaridades gerais e
superficiais com os cordados, mas nada específico, e certamente nada que garanta qualquer
colocação firme, ou mesmo experimental, dentro do nosso filo.
Os Chaetognatha, ou vermes em forma de flecha, um pequeno grupo marinho, localizado não
muito longe dos cordados na nossa árvore evolutiva, incluem os únicos outros candidatos viáveis
para uma ligação entre o animal conodonte e algum grupo moderno. Os quetognatos estão armados
com espinhas de preensão que guarnecem os flancos da boca em dois grupos laterais. Essas espinhas
têm uma semelhança superficial com os conodontes, mas são feitas de quitina, não de fosfato de
cálcio. Os quetognatos também possuem nadadeiras caudais semelhantes às do animal conodonte.
Além disso, possuem nadadeias laterais, e tais estruturas não estão presentes no animal conodonte
(numa área do corpo — a posterior — onde a preservação é detalhada e excelente). Em resumo, os
quetognatos parecem uma perspectiva ainda menos digna de consideração do que os cordados para
abrigar o animal conodonte.

Portanto, Briggs, Clarckson e Aldridge concluíram, com ampla justiça, em minha opinião, que o
animal conodonte é único e anteriormente desconhecido. Deve ser colocado num filo separado — o
Conodonta. Afinal, argumentam eles, se um século de esforços para enfiá-lo em algum grupo
moderno foi frustrado pelo enigma das suas peculiares partes duras, por que a descoberta de partes
moles igualmente ambíguas deveria encaixá-lo confortavelmente em alguma categoria bem
estabelecida da nossa taxonomia? Eles escrevem: “A falta de uma solução definitiva para este
problema em 125 anos de pesquisa enfatiza a singularidade dos conodontes.” E com esta conclusão
— a de que os conodontes devem ser colocados num filo próprio, novo e separado —, finalmente
chegamos à mensagem geral que me inspirou a escrever este ensaio.
Os paleontólogos são, em geral, um grupo conservador. Organismos problemáticos de afinidade
taxonômica incerta e poucas espécies são um embaraço e um estorvo desarranjado; nada deixa um
paleontólogo às antigas mais feliz do que a colocação bem-sucedida de organismos problemáticos
dentro de um grupo bem conhecido. O reconhecimento de que os organismos problemáticos devem
ser tratados com o estabelecimento de novos filos vai contra a esperança e a tradição, e representa
um último recurso. Em anos recentes, esse recurso tem sido usado com mais e mais frequência
porque — ora, diabos! — muitos organismos problemáticos são estranhos, fantásticos, singulares e
simplesmente não se encaixam em qualquer grupo conhecido. Esse reconhecimento relutante reflete
um fato importante e pouco conhecido sobre a história da vida.
Para compreender esse fato e as suas implicações, devemos estudar a distribuição no tempo dos
organismos problemáticos que não podem ser colocados em filos convencionais. A história da vida
vem apresentando animais multicelulares apenas durante os últimos seiscentos milhões de anos.
Dividimos esse tempo em três grandes eras — a paleozoica (ou vida antiga), a mesozoica (ou vida
média), e a cenozoica (ou vida recente). Virtualmente todos os organismos problemáticos aos quais
se vem concedendo com má vontade os seus próprios filos viveram durante a era mais antiga, a
paleozoica (apesar de os conodontes, depois de viverem durante toda a era paleozoica, terem se
insinuado no triássico, o primeiro período da era mesozoica). Este fato, o foco do meu ensaio, pode
não parecer estranho à primeira vista. Afinal, quanto mais para trás, mais diferente dos filos
modernos deve ser a vida. No entanto, dois aspectos dessa distribuição no tempo provocam surpresa
e apontam para um padrão importante. Primeiro, embora pudéssemos esperar um decréscimo geral no
número de grupos problemáticos através do tempo, não iríamos prever um desaparecimento abrupto
de esquisitices depois da era paleozóica. Não encontramos um declínio gradual de criaturas
estranhas. Em vez disso, elas são abundantes na era paleozóica inferior, tomam-se raras lá pelo fim
da era paleozóica e cessam daí em diante. Das três janelas que mencionei, a argila xistosa de
Burgess (era paleozóica inferior) está abarrotada de organismos problemáticos, a formação de
Mazon Creek (era paleozóica inferior) tem dois, e os calcários litográficos de Solnhofen (era
mesozoica), nenhum. Algo na história inicial da vida multicelular encorajou um florescimento de
organismos problemáticos. Algo na sua história posterior (e não muito posterior) secou
completamente o poço.
Segundo — embora os conodontes sejam uma exceção a essa generalidade —, os organismos
problemáticos, em sua grande maioria, são raros, restritos no tempo e representados por apenas umas
poucas espécies. Espera-se que os filos sejam grupos grandes — os artrópodes com as suas 750.000
espécies de insetos, ou os cordados com as suas 20.000 espécies de peixes. Espera-se também que
subsistam por um bom tempo. Os taxonomistas são avarentos; eles não gostam de estabelecer um
grupo imediatamente inferior à categoria de reino apenas para abrigar umas poucas espécies que só
viveram uns poucos milhões de anos. Se os organismos problemáticos estivessem restritos à era
paleozóica, mas fossem todos abundantes e se estendessem por um bom período de tempo, como os
conodontes, o padrão não seria tão perturbador ou estranho. No entanto, alguns dos organismos
problemáticos, agora colocados cada um no seu filo exclusivo, são conhecidos apenas como uma
única espécie, encontrada num único lugar. E alguns são incomparavelmente estranhos. Considere-se
o animal tão formidavelmente estranho que tem o nome latino de Hallucigenia, cunhado pelo seu
autor, Simon Conway Morris, devido “à aparência bizarra e onírica do animal”. (Simon disse-me
uma vez que o organismo se assemelhava a algo que ele vira durante uma viagem — e não me refiro
a uma viagem a Boston.) A Hallucigenia (da primeira e mais famosa janela, a da argila xistosa de
Burgess) tem um corpo alongado, com quase uma polegada de comprimento, sustentado por sete
pares de espinhas que não se parecem em nada com as pernas de qualquer criatura conhecida. Tem
uma cabeça bulbosa e, por trás dela, uma fila de tentáculos, cada um deles bifurcado na ponta,
dispostos ao longo do dorso. Atrás dos tentáculos encontra-se um agrupamento de projeções que
lembram os espinhos na cauda de um Stegossaurus. Um tubo anal projeta-se para cima na
extremidade posterior (ver figura na p. 235). Um diabo de coisa esquisita como eu nunca vi na minha
vida. Ou considere-se o peculiar organismo problemático da segunda janela, a nossa formação de
Mazon Creek, em Illinois. Ele também possui um nome formal excêntrico, uma latinização do seu
descobridor, um certo sr. Tully, e da sua aparência. Chama-se Tullimonstrum. O monstro de Tully é
uma criatura peculiar, com um formato que, grosso modo, lembra uma banana, de três a seis
polegadas de comprimento. Assim como a Hallucigenia, é tão diferente de qualquer coisa que
conhecemos que parece exigir um filo só para si.
Tendemos a considerar a evolução como uma mudança progressiva dentro de linhagens — peixes
tornam-se anfíbios, répteis, mamíferos e, finalmente, humanos — e, portanto, deixamos escapar temas
importantes relacionados a um aspecto diferente e mais generalizado da evolução: a diversidade
mutante, considerada como números absolutos de espécies e a sua abundância relativa ao longo do
tempo. A predominância dos organismos problemáticos da era paleozoica registra um tema
importante na história da diversidade. Esse tema confere uma direção ao tempo que é mais clara e
confiável do que qualquer enunciado que possamos fazer sobre a mudança dentro de linhagens. Ela
provavelmente também reflete uma lei mais geral e básica sobre a história da mudança nos sistemas
naturais.
Durante a década passada, os paleontólogos discutiram acaloradamente o padrão de mudança ao
longo do tempo na diversidade dos animais marinhos. Existem hoje mais espécies (como o parecer
“progressivo” da evolução poderia sugerir) ou o número de espécies permaneceu mais ou menos
constante, devido à obtenção rápida de algum valor de equilíbrio após a explosão do cambriano? O
problema não é tão fácil de ser resolvido como parece à primeira vista. Não se pode simplesmente
contar o número de espécies descritas para cada intervalo de tempo. O registro fóssil é notoriamente
imperfeito, e tende a piorar na medida em que retrocedemos no tempo. Assim, um acréscimo
empírico na abundância de fósseis conhecidos poderia refletir, na verdade, um decréscimo de
diversidade verdadeira.
Os argumentos, portanto, sucederam-se apaixonadamente, mas, em 1981, os quatro debatedores
principais estabeleceram a paz e publicaram uma dissertação conjunta com um acordo bem-vindo (J.
J. Sepkoski, R. K. Bambach, D. M. Raup, e J. W. Valentine, na Bibliografia). Várias fontes de dados
(todos corrigidos do melhor modo possível no que diz respeito à imperfeição do registro) apontam
agora para um padrão nítido de acréscimo real ao longo do tempo — não estável e progressivo, mas
indubitavelmente constituindo uma direção geral. Os oceanos modernos contêm pelo menos o dobro
do número de espécies que a média dos mares paleozoicos.
Portanto, poderíamos esperar — na verdade, isso parece inevitável — que os mares modernos
devessem conter, não apenas mais espécies, mas também mais tipos distintos de criaturas, mais
modelos corporais basicamente diferentes. Mas não é bem assim. Hoje, o dobro do número de
espécies está apinhado num número bem menor de grupos de hierarquia taxonômica superior. É
claro, ainda encontramos vários filos como modelo corporal distinto e poucos membros — todos os
grupos vermiformes com nomes engraçados que ninguém, a não ser os especialistas, conhece e ama:
os cinorrincos, gnatostomulídeos, priapulídeos, quetognatos, já mencionados como um grupo onde
seria possível a inclusão dos conodontes, e vários outros. Os nossos mares modernos, porém, são
dominados por apenas uns poucos grupos — principalmente mariscos, caramujos, caranguejos,
peixes e equinóides — cada um deles com muito mais espécies que qualquer filo paleozoico (com a
possível exceção dos trilobitas no ordoviciano e dos crinóides no carbonífero). Os mares
paleozoicos podem ter contido apenas metade das espécies que honram os nossos oceanos modernos,
mas essas espécies estavam distribuídas numa amplitude muito grande de modelos corporais básicos.
Esse decréscimo estável nos tipos de modelos anatômicos orgânicos — todos em face de um grande
acréscimo no número de espécies — pode representar a tendência mais importante do nosso registro
fóssil.
Tal decréscimo estável está bem testemunhado pelo padrão dos organismos problemáticos já
discutidos. A maioria das criaturas realmente bizarras e fantásticas viveu exclusivamente durante a
era paleozoica. (Não se impressione com a singularidade de alguns filos modernos menores, pois
muitos deles não surgiram recentemente, mas têm também registros que se estendem até a era
paleozoica.) Ele talvez seja ainda melhor testemunhado pelas mudanças no número de classes (o
nível taxonômico imediatamente inferior) dentro dos filos comuns. Considere-se apenas um exemplo,
baseado numa contagem de classes bastante conservadora feita por J. J. Sepkoski, da Universidade
de Chicago. Os equinodermos modernos surgem em quatro classes, todos com uma diversidade que
vai de respeitável a alta: ouriços-do-mar (os equinodermos já citados como um grupo dominante),
estrelas-do-mar, pepinos-do-mar e crinóides. No entanto, mais dezesseis classes viveram e morreram
durante a era paleozoica, e dezesseis, do total de vinte, coexistiram durante o período ordoviciano,
há cerca de quinhentos milhões de anos. Nenhuma dessas dezesseis classes (com duas possíveis
exceções) jamais alcançou a diversidade hoje exibida por qualquer um dos sobreviventes modernos.
O mundo paleozoico era bem diferente do nosso, com poucos representantes de um tipo
distribuídos numa variedade bem grande de formas corporais básicas. A Hallucigenia desapareceu,
o monstro de Tully não vive mais, e mesmo os abundantes conodontes estão extintos. Por que o
mundo da vida sofreu esse profundo deslocamento, de poucas espécies em vários grupos para muitas
espécies em menos grupos?
Das duas respostas gerais, a primeira é convencional e causal (a segunda basear-se-á em
processos aleatórios). Ela invoca o que pode ser uma propriedade comum de quase todos os sistemas
naturais e que pode, portanto, ter uma importância que transcende em muito este exemplo particular.
O princípio poderia ser chamado de “experimentação inicial e padronização posterior”. Há cerca de
seiscentos milhões de anos a explosão do cambriano encheu os oceanos com o seu primeiro cortejo
de animais multicelulares. A evolução sondou todos os limites da possibilidade. Cada plano corporal
básico experimentou uma enorme série de variantes potenciais. O padrão de muitos grupos, cada um
com poucos membros, foi estabelecido. Alguns desses experimentos funcionaram bem, mas,
inevitavelmente, a maioria não — e uma eliminação gradual teve lugar.
Muitos dos fracassos eram defeituosos desde o início e nunca alcançaram uma grande
diversidade. São os nossos estorvos taxonômicos — planos corporais altamente distintos com
poucas espécies. Nós os chamamos Problemática, concedemo-lhes os seus filos próprios apenas
com muita má vontade (embora, se compreendêssemos o princípio que representam, proporíamos e
aceitaríamos os seus nomes especiais com mais equanimidade). Outros, como as classes pequenas e
extintas de equinodermos paleozoicos, são experimentos fracassados com um modelo anatômico
fundamental que, sem dúvida, funciona bem em algumas poucas classes bem-sucedidas. Assim,
ouriços-do-mar e estrelas-do-mar usam o plano fundamental dos. equinodermos de modo bastante
vantajoso, ao passo que um grande número de experimentos iniciais, dotados de nomes tão estranhos
como ctenocistóides, helicoplacóides e edrioblastóides, logo fracassaram. As nossas faunas
modernas são os sobreviventes que passaram pelo crivo de uma grande limpeza baseada em
princípios de bom planejamento.
O mesmo princípio se aplica a qualquer sistema de experimentação livre mas que se baseia, em
última análise, na modelagem boa e funcional. Carros elétricos e a vapor, e uma variedade de outros
experimentos, cederam lugar ao motor de combustão interna (embora, algum dia, se faltar petróleo,
eles possam ressurgir como a fênix). Os carros surgem agora em centenas de marcas, cada uma delas
construída sobre o mesmo princípio. Em 1900, uma quantidade bem menor de marcas usava uma
variedade bem maior de modelos básicos. E considere-se os dirigíveis, planadores e a variedade de
aviões a motor antes que nos estabelecêssemos nos 747 e nos da sua espécie.
Esse princípio de experimentação inicial e padronização posterior dita uma redução geral de
variação — particularmente a eliminação de extremos. Muitas vezes compreendemos mal o motivo
para uma perda de extremos porque tentamos interpretar o desaparecimento de singularidade como
uma tendência por direito próprio e não como uma consequência inevitável da variação decrescente
dentro de um sistema natural. O ensaio 14 sobre o desaparecimento dos rebatedores de .400 no
beisebol considera outro exemplo do mesmo processo. As explicações convencionais para essa
tendência notável e amplamente discutida no beisebol invariavelmente procuram por alguma
modificação direcional — a introdução da substituição no arremesso ou as programações mais
extenuantes, compostas, na maior parte, de jogos noturnos — que diminuiria sozinha as médias altas.
Meu raciocínio é o de que o declínio das médias altas pode simplesmente refletir a estabilização e o
aperfeiçoamento geral de jogo que deve acompanhar um esporte à medida que sobem os seus padrões
(análogas à redução de planos corporais à medida que modelos anatômicos bem-sucedidos
predominam na história da vida). À medida que o arremesso, a defesa e a rebatida progridem, a
variação em cada categoria decresce. Pude demonstrar que as médias de confederação não mudaram
entre a grande era das rebatidas de .400 (1890-1920) e hoje, mas que tanto as médias mais altas (os
rebatedores de .400) como as médias mais baixas convergiram rumo à média de confederação. Em
outras palavras, os extremos foram eliminados em ambas as pontas — o mesmo princípio de
experimentação (ou tolerância) inicial e padronização posterior.
A segunda explicação não é convencional e baseia-se em processos aleatórios. Um padrão de
deslocamento, de poucas espécies em muitos grupos para muitas espécies em menos grupos,
ocorreria mesmo sob regimes de extinção aleatória, contanto que admitamos uma mudança média
maior por evento de criação de espécie no início da história da vida (como parece garantido num
mundo inicialmente “vazio”, aberto a quase que qualquer experimento em forma).
A extinção, como nos lembram os militantes ecologistas, é para sempre. Uma vez perdido um
experimento complexo de forma, ele não surgirá outra vez; as chances matemáticas são fortemente
contrárias à repetição de passos complexos numerosos (os biólogos referem-se a esse princípio
como “a irreversibilidade da evolução”). Assim, inevitavelmente, perdemos a maior parte dos
experimentos iniciais e começamos a encher os nossos oceanos com exemplos repetidos dos poucos
grupos sobreviventes principais. Interessado como sou por processos aleatórios, duvido que eles
venham a explicar o padrão de redução inteiro dos planos corporais, se não por outro motivo, pelo
fato de que a ideia de experimentação inicial e padronização posterior faz muito sentido. Mas eu
insistiria para que as consequências previsíveis dos processos aleatórios recebessem mais atenção
do que a que comumente recebem. Processos aleatórios de fato produzem altos graus de ordem — e a
existência de padrão não é um argumento contra a aleatoriedade.
Vivemos num mundo de história e mudança. Como criaturas de hábitos, que se sentem confortadas
pela descoberta de ordem, buscamos princípios que confiram uma direção ao tempo — que admitam
um pouquinho de ordem na pujante confusão da história. No entanto, as flechas do tempo são difíceis
de ser encontradas, e a ciência não nos deu muitas. A segunda lei da termodinâmica, com a entropia
crescente e a ordem decrescente em universos fechados, é o nosso agente de direção mais famoso. A
maioria das propostas da biologia evolutiva é espúria e baseia-se mais nas nossas esperanças e
expectativas do que nos mecanismos da seleção natural — a noção de progresso contínuo em
particular. Este princípio de diversidade — experimentação inicial e padronização posterior —,
porém, pode ser uma característica da história, produzindo tendências para uma variação menor em
modelos básicos de vida. Portanto, deveríamos nos interessar pelos conodontes, mesmo que nunca
tenhamos correlacionado uma rocha ou então que tenhamos a tendência de olhar de soslaio para
vermes de uma polegada com nadadeiras caudais esmaecidas e cabeças bilobadas. Pela sua idade,
pela sua singularidade taxonômica e pelo seu desaparecimento, eles podem registrar a natureza da
história.
5. Política e progresso
17. Apresentando um macaco

Hoje, classificamos todos os humanos numa única espécie, Homo sapiens. Mas Carolus
Linnaeus, no documento fundador da taxonomia animal, o Systema naturae (Sistema da natureza) de
1758, reconheceu uma segunda espécie, Homo troglodytes. Enquanto Lineu devotou várias páginas
ao Homo sapiens em toda a nossa diversidade, o Homo troglodytes mereceu apenas um parágrafo.
Essa segunda espécie, ativa apenas à noite e que falava em sibilos, oferecia poucas informações que
sustentassem a sua existência. O Homo troglodytes surgiu como um composto de relatos exagerados
de viajantes, baseados em observações imperfeitas de macacos antropoides humanizados ou de
povos nativos degradados. Lineu aventou mesmo a possibilidade de uma terceira espécie, o Homo
caudatus, ou homem com cauda, mas admitiu que essa criatura, incola orbis antarctici (habitante das
regiões antárticas), permanecia tão obscura (se é que existia) que ele não podia determinar “se ela
pertence ao gênero humano ou ao simiesco”.
Por que esse sóbrio naturalista incluiu uma ficção tão mal fundamentada na descrição do seu
primeiro e mais importante gênero? Como resposta básica, Lineu trabalhou com uma teoria que
previa tais criaturas; quando algo deve existir, indícios imperfeitos tornam-se mais aceitáveis.
Muitas vezes escrevo sobre a interação de teoria e fato nestes ensaios porque nenhum outro tema
exibe tão bem o lado humano da ciência — a intrusão da mente na natureza e a sua necessária
interpenetração em toda a atividade criativa. A ciência não segue um caminho de mão única, da
natureza obediente até a mente objetiva. Este tema também ilustra por que devemos abandonar como
falido o procedimento comum de julgar cientistas passados pela sua precisão segundo o
conhecimento atual. Algumas teorias incorretas, na condição de grandes e generosas sínteses de
conhecimento, propõem grandes e interessantes questões, e podem com isso produzir tantas
descobertas novas quanto noções que aceitamos hoje (ver o ensaio 6 de Hen ’s Teeth and Horse’s Toes sobre o uso
das causas finais por James Hutton).
Neste caso, uma teoria incorreta, a da cadeia do ser, levou Lineu a prever formas intermediárias
entre símios e humanos. Pois os objetos da natureza formavam uma única cadeia, que se estendia sem
interrupção da mais simples ameba até nós. Mas a cadeia do ser sempre se defrontara com um
problema empírico considerável — lacunas grandes e evidentes entre unidades principais, em
particular entre minerais e plantas, entre plantas e animais e entre símios e humanos (ver o ensaio 18
para uma discussão adicional desse problema). Na verdade, Sir Thomas Browne, na sua Religio
Medici (1642), declara que as lacunas aumentavam à medida que subíamos a escala:

Existe neste Universo uma Escada, ou Escala manifesta de criaturas, que não ascende
desordenadamente, mas com um método conveniente e proporcional. Entre criaturas com mera
existência e coisas com vida, existe uma grande desproporção de natureza; entre plantas e
animais, ou criaturas de sentidos, uma diferença ainda maior; entre eles e o Homem, uma bem
maior: se a proporção persistir, entre o Homem e os Anjos deve existir uma ainda maior.

Aos que se dedicavam a preencher as lacunas, a aparente distância entre símio e humano
propunha o maior dilema solúvel — e o Homo troglodytes cabia no intervalo.
Mas se o Homo troglodytes apenas testemunhava a imaginação vívida dos primeiros viajantes, os
grandes macacos antropoides — gibões, chimpanzés, orangotangos e gorilas — existiam de verdade.
Nenhum era adequadamente conhecido ou descrito na Europa ocidental antes do século XVII, o que
aumentava a distância aparente entre os humanos e os primatas mais avançados. Arthur Lovejoy, no
seu tratado clássico, The Great Chain of Being (A grande cadeia do ser) citou explicitamente o
ímpeto dado ao estudo dos macacos antropoides como sendo uma importante consequência empírica
dessa teoria falsa. Ele escreveu:

O princípio de continuidade não foi desprovido de consequências significativas. Ele pôs os


naturalistas à procura de formas que preenchessem os aparentes “elos perdidos” da cadeia. ... A
suposição metafísica forneceu um programa de pesquisa científica. Foi, portanto, altamente
estimulante para o trabalho do zoólogo. ... Tornou-se, assim, tarefa da ciência, pelo menos
aumentar o rapprochement de homem e macaco.

A primeira descrição adequada de um macaco antropoide não foi publicada até 1699, exatamente
cem anos antes da última grande defesa da cadeia estática — o tratado de Charles White, analisado
no ensaio seguinte. Naquele ano, Edward Tyson, o melhor anatomista comparativo da Inglaterra,
publicou o seu “Orang-Outang, sive Homo sylvestris: or, the anatomy of a pigmy compared with that
of a monkey, an ape, and a man” (“Orang-Outang, sive Homo sylvestris: ou, a anatomia de um pigmeu
comparada com a de um macaco, a de um grande símio e a de um homem”). (No tempo de Tyson,
orangotango, literalmente homem da floresta, servia como um termo geral para todos os grandes
símios, tanto os africanos quanto os asiáticos, e não apenas para a forma asiática como hoje. Tyson,
cauteloso demais neste caso, também duvidava dos relatos de pigmeus africanos na África e supôs
que o seu bebê chimpanzé, que ele considerou erroneamente como quase que inteiramente crescido,
constituía a fonte de tais rumores.)
Edward Tyson (1650-1708) estudou em Oxford e Cambridge, e depois trabalhou como médico
em Londres. Ensinou anatomia humana durante quinze anos no Surgeon’s Hall e tornou-se médico
principal do mais célebre hospital de doentes mentais da Inglaterra, o Bethlehem (de onde vem a
palavra bedlam [Bedlam, em inglês, confusão, balbúrdia, tumulto]). Lá, ele introduziu a prática de utilizar
mulheres como enfermeiras e fundou um departamento para acompanhar pacientes após a alta, um
exemplo inicial de tratamento de ambulatório. Foi, porém, mais conhecido como anatomista
comparativo e especialista em sistemas glandulares. Escreveu monografia sobre um boto e um
gambá, mas o seu tratado de 1699 sobre um jovem chimpanzé tornou-se a sua obra mais famosa e
duradoura. Foi um homem rico, calmo e conservador, que nunca se casou e que demonstrou uma
dedicação incomum aos seus estudos anatômicos e ao seu passatempo de erudição clássica. Um
poema fúnebre de 1708 celebrou a sua devoção exclusiva a Minerva, deusa da sabedoria dentre as
mulheres:

Nenhuma Fronte podia mais ricas Diademas cingir,


Pelo menos com Gemas da sagrada Mina do Saber.
Não admira que nunca, pela Beleza Cativo guiado,
Tenha com uma Noiva o seu leito compartilhado.
Não, ao Deus mais cego nenhum respeito rendeu,
À grande Minerva toda a sua corte ele fez.
A boa biografia de Tyson escrita por Ashley Montagu (ver Bibliografia) continuou a ser a obra-
padrão sobre essa importante, mas negligenciada, figura da história da ciência.
Hoje consideramos os macacos antropoides como os primatas mais semelhantes aos humanos e
os mais próximos de nós dentre as formas vivas no que diz respeito à ascendência. Contudo, os
macacos antropoides é os humanos diferem substancialmente, não apenas na anatomia, mas
particularmente na fala e no funcionamento mental. Os chimpanzés, nossos parentes vivos mais
próximos, são membros de um ramo evolutivo lateral, não ancestrais ou formas intermediárias. Mas
Tyson colocou o seu pigmeu, ou chimpanzé jovem, exatamente no meio do intervalo entre os outros
primatas e o homem. Quando obrigado a ser categórico, Tyson realmente colocou o seu pigmeu entre
os animais: “O nosso Pigmeu tem muitas vantagens sobre o resto da sua espécie; no entanto, ainda
acho que ele nada mais é do que um tipo de macaco e um simples bruto; e, como diz o provérbio, um
macaco é um macaco, não importa o que vista.” No entanto, em várias outras passagens, Tyson
reclama uma condição intermediária para o seu chimpanzé: “O nosso Pigmeu não é um homem, nem
tampouco o macaco comum; mas uma espécie de animal entre os dois.”
A disposição de Tyson para colocar os macacos antropoides ainda mais perto dos humanos do
que os padrões correntes de compreensão tornou-se a fonte de um importante equívoco histórico a
seu respeito — e o ímpeto inicial para este ensaio baseou-se na minha preocupação contínua com a
relação entre fato e teoria. Na escola “heroica”, que analisa figuras passadas em termos do seu
sucesso por padrões modernos, Tyson recebe grandes elogios pela sua coragem de reconhecer, tanto
tempo atrás, a afinidade de macacos e humanos. Ele foi capaz de discernir essa verdade fundamental,
prossegue o mito, devido a dois motivos principais: ele era um empiricista destacado, disposto a
rejeitar antigos preconceitos e a simplesmente registrar o que via; e ele usou o método moderno da
anatomia comparada — contrastes explícitos, órgão por órgão, do seu chimpanzé com outros
primatas e humanos.
Essa tradição de louvar Tyson pelo seu suposto modernismo permeia a história dos comentários
ao seu tratado de 1699. T. H. Eluxley, por exemplo, no seu ensaio seminal sobre O lugar do homem
na natureza (1863), destacou Tyson para elogiá-lo porque ele havia escrito “a primeira descrição de
um símio antropoide que tem pretensões de exatidão científica e totalidade”. Ashley Montagu declara
que se interessou primeiramente por Tyson quando, ainda estudante, leu num livro didático de
antropologia (1904) o comentário de que a obra de Tyson “constitui uma notável antecipação dos
métodos modernos de pesquisa”. George Sarton, o principal historiador de ciência do nosso século,
escreveu no seu prefácio para a biografia de Ashley Montagu que o tratado de Tyson “é um marco
notável na história da ciência... um marco na história da teoria da evolução” — muito embora Tyson
fale apenas da cadeia estática, e absolutamente não mencione a evolução (O maravilhoso livro de D. J.
Boorstin, The Discoverers [Nova York, Random House, 1983], foi publicado depois do aparecimento deste ensaio. Ele continua a infeliz
tradição de elogiar Tyson como um corajoso modernista e arauto da evolução, não percebendo que a sua descoberta do caráter
intermediário não fomentou uma revolução, mas antes resolveu um problema na teoria-padrão da “cadeia do ser” tal como compreendida
no tempo de Tyson. Boorstin escreveu [p. 461]: “Exatamente como Copérnico retirou a Terra do centro do universo, Tyson tirou o
homem do seu papel exclusivo, acima e separado do resto da Criação. ... Nunca antes houvera uma demonstração tão pormenorizada ou
tão pública da afinidade física do homem com os animais. ... A implicação de que ali estava o ‘elo perdido’ entre o homem e toda a
criação animal ‘inferior’ era óbvia. ... Assim como a perspectiva heliocêntrica, uma vez vista, não podia ser esquecida, assim também,
após ler Tyson, ninguém poderia acreditar que o homem estava isolado do resto da natureza”).
O mito do suposto e corajoso modernismo de Tyson é contestado por duas anomalias, também
relatadas com destaque. Em primeiro lugar, se ele foi tão iconoclasta na sua disposição de colocar
um animal tão perto dos nossos exaltados egos, por que ele é universalmente descrito como tendo um
caráter tão cauteloso e conservador? Em segundo lugar, se a concessão de uma condição
intermediária ao seu chimpanzé era tão polêmica, por que ela obteve tão poucos comentários
contemporâneos — embora as gerações posteriores tenham coberto Tyson de louvores? Ashley
Montagu diz: “O fato de haver tão poucas referências a Tyson na correspondência contemporânea não
deixa de ser enigmático.”
Creio que a solução para esse dilema encontra-se simplesmente no abandono da abordagem
falaciosa da história da ciência que o gerou. Tyson não foi um modernista. Foi um homem
conservador e trabalhou com as preconcepções comuns do seu tempo. Ele não colocou o seu
chimpanzé numa posição intermediária entre os símios e os humanos porque previu a evolução ou
simplesmente porque foi capaz de enxergar com mais nitidez por entre o véu do preconceito comum.
Mais exatamente, Tyson foi firme expoente da cadeia do ser — um ordenamento da natureza comum e
aceito no seu tempo. Lacunas entre os grupos principais perturbavam intensamente essa teoria — e o
espaço entre símio e homem parecia especialmente óbvio e embaraçoso. Os cientistas buscavam
formas intermediárias com avidez (e inquietude); a descoberta de Tyson produziu uma confirmação
bem-vinda de uma teoria estabelecida — a cadeia do ser —, não um desafio baseado numa ideia
radicalmente diferente — a evolução —, a qual não seria ampla e seriamente discutida por mais um
século. A obra de Tyson recebeu poucos comentários porque era confortadora e não polêmica.
Além disso, o uso de Tyson do método comparativo não o caracteriza como um modernista
esclarecido, mas surge também do seu compromisso com a cadeia do ser. Quando se deseja colocar
um animal entre um macaco e um humano, o que mais se pode fazer além de catalogar a sua
semelhança relativa com cada um?
Não tenho a mínima intenção de criticar Tyson ou de depreciar o seu lugar legítimo no panteão
dos heróis científicos. Ajustar um homem ao seu tempo deveria apenas aumentar a nossa
compreensão. Após ler o tratado de Tyson, certamente posso confirmar o cuidado minucioso e a
exatidão das suas descrições, atributos altamente valorizados em qualquer época. Ainda assim, como
tema principal deste ensaio, quero argumentar que a característica marcante do tratado de Tyson não
é uma exatidão que surge da renúncia a velhos preconceitos, mas antes o exagero de Tyson do caráter
humanoide do seu pigmeu — um resultado do seu comprometimento anterior com a cadeia do ser. A
teoria sempre influencia a percepção, e nem sempre para o pior.
Tyson afirma logo no início o seu compromisso com a cadeia do ser e a sua intenção de usá-la
como tema organizador do seu tratado.

Trata-se de uma observação verdadeira, a qual não se pode fazer sem admiração, de que a
transição dos minerais para as plantas, das plantas para os animais, e dos animais para o homem
é tão gradual, que parece haver uma similitude bastante grande entre as plantas mais humildes e
alguns minerais, assim como entre a categoria mais inferior dos homens e o tipo mais alto de
animais. O animal do qual forneci a anatomia, o qual é o que mais se aproxima do gênero
humano, parece ser o nexo entre o animal e o racional.

Ele então defende a técnica comparativa, não como algo controverso e moderno, mas como o
método apropriado para colocar uma criatura na escala do ser:

Para tomar este estudo mais proveitoso, fiz um exame comparativo deste animal com um macaco,
um grande símio e um homem. Vendo as mesmas partes de todos esses juntos, podemos observar
melhor a gradação da natureza na formação de corpos animais e as transições feitas de um para
outro; não há nenhuma outra prática que melhor possa conduzir à aquisição de conhecimento
verdadeiro tanto do tecido quanto do uso dos órgãos. Seguindo o novelo da natureza neste
labirinto maravilhoso da criação, podemos ser mais facilmente admitidos nos seus recantos
secretos, e se perdermos o seu fio, temos necessariamente de errar e ficar confusos.

Apesar de afirmar várias vezes que, como diriam os séculos posteriores, “no fundo”, o seu
pigmeu era um “bruto” e não uma criatura racional, Tyson enfatiza continuamente as qualidades
humanoides do seu chimpanzé. Bem no final, numa lista de características, ele cita quarenta e oito
pontos em que a semelhança entre chimpanzé e humano é maior do que entre o chimpanzé e um
grande símio, e apenas trinta e quatro pontos de afinidade maior entre chimpanzé e grande símio. O
texto inteiro enfatiza sem cessar a posição gradualmente intermediária do chimpanzé de Tyson:
“Nesta cadeia da criação, na condição de elo intermediário entre um grande símio e um homem, eu
colocaria o nosso pigmeu.”
Como os chimpanzés, no aspecto anatômico geral, provavelmente são mais similares a outros
primatas do que aos humanos, essa conclusão requer algum exagero das qualidades humanoides do
pigmeu de Tyson. De modo inteiramente inconsciente, eu suspeito, e por dois motivos diversos,
Tyson enfatiza exagerada e continuamente as similaridades humanas, e com uma frequência igual
subestima a relação com os macacos.
Pelo primeiro motivo, Tyson, simples e coerentemente, dá preferência ao lado humano nas
situações ambíguas. Note-se em particular as suas declarações sobre a postura. O chimpanzé de
Tyson foi levado de Angola para a Inglaterra e chegou doente e bastante fraco (morreu em poucos
meses e assim tornou-se disponível para a dissecção de Tyson). Ele observou que, às vezes, ainda
que raramente, o chimpanzé andava ereto: o chimpanzé de Tyson em geral caminhava, como os
grandes antropoides caracteristicamente o fazem, apoiando-se nos nós dos dedos — os pés firmes no
chão, mas com as mãos jogadas para a frente. Tyson atribuiu essa postura peculiar ao seu estado
enfraquecido e insistiu que o seu modo de locomoção devia ser ereto, apoiado apenas sobre as
pernas, como os humanos — embora os seus dados empíricos identificassem a locomoção com apoio
nos nós dos dedos como sendo bem mais comum:

Quando ia de quatro, como um quadrúpede, fazia-o desajeitadamente, não colocando a palma da


mão no chão, andando, ao contrário, apoiado nos nós dos dedos, conforme o vi fazer quando
fraco, sem força suficiente para sustentar o corpo. ... Andar sobre os nós dos dedos, como o
nosso pigmeu fazia, não parece ser uma postura natural, e ele estava suficientemente provido em
todos os aspectos para andar ereto.

Não podemos culpar Tyson por não saber que os grandes antropoides andam normalmente
apoiados nos nós dos dedos, pois essa postura tão pouco característica nos animais não estava bem
descrita na sua época. Ainda assim, a defesa de Tyson da postura ereta (ou humanoide) como modo
normal para os chimpanzés realmente parece um bocado forçada, condicionada mais por
preconcepções sobre a condição intermediária na cadeia do ser do que pela observação direta dos
dados brutos. Assim, ao escrever que “podemos concluir com segurança que a natureza projetou-o
como bípede”, Tyson discute a articulação do fêmur com a pélvis e o “tamanho grande do osso do
calcanhar no pé, o qual, sendo tão extenso, assegura que o corpo não cai para trás”. No entanto, na
mesma discussão, ele, convenientemente, omite outros traços anatômicos descritos antes que
poderiam nos levar a duvidar da postura ereta — em especial as importantes diferenças de estrutura
pélvica entre chimpanzés e humanos, e o pé semelhante a uma mão, com o seu dedão curto e fraco.
Como os primatas são animais que se valem sobretudo de estímulos visuais, nunca devemos
omitir (embora os historiadores o façam com frequência) o papel desempenhado por ilustrações
científicas na formação de conceitos e na fundamentação de argumentos. As magníficas gravuras de
Tyson são todas elaboradas para realçar a argumentação em favor da postura ereta, mesmo na
ausência de indícios diretos (incluo quatro reproduções com este ensaio). A primeira mostra o seu
pigmeu de frente, plenamente ereto, embora se deva notar que Tyson, engenhosamente, lhe forneça
uma bengala para indicar a dificuldade, que ele não teve como deixar de observar, no seu modo de
andar! Tyson escreve: “Estando fraco, para melhor apoiá-lo, coloquei-lhe uma bengala na mão.” A
segunda gravura retrata o chimpanzé de costas, mais uma vez ereto, mas desta vez apoiando-se numa
corda suspensa acima da sua cabeça! Por fim, as gravuras com o sistema muscular e o esqueleto
exibem uma postura humana plenamente ereta.
Em outras passagens, Tyson confere atributos e emoções quase humanas ao seu pigmeu. Ele
recorda com prazer, por exemplo, como o chimpanzé adorava usar roupas e vesti-las quando estava
na cama, embora note que ele nunca aprendeu a se abster de executar as funções da natureza nesse
mesmo lugar:

Após ser capturado e se acostumar um pouco com o uso de roupas, o nosso pigmeu gostou delas;
e o que não conseguia vestir sozinho, ele trazia nas mãos para que alguém da companhia o
ajudasse a vestir. Ele costumava deitar-se na cama, colocar ã cabeça no travesseiro e puxar as
roupas por sobre si, como um homem faria; mas era tão descuidado, e um bruto tão consumado,
que fazia todas as necessidades lá.

Muitas vezes, Tyson discutiu a conduta do chimpanzé em termos puramente humanos: “Pois eu
mesmo o ouvi chorar como uma criança; e ele foi visto várias vezes esperneando, como fazem as
crianças, quando estava contente ou irritado.’’ Em certa passagem, Tyson até mesmo confere
superioridade ao seu chimpanzé em questões de temperança:

Certa vez, ele foi embebedado com ponche (e eles gostam bastante de bebidas fortes), mas
observou-se que, depois dessa ocasião, ele nunca bebia mais de uma xícara, e recusava a oferta de
mais do que ele considerava apropriado para si. Assim, vemos que o instinto da natureza ensina
temperança aos brutos; e a intemperança é um crime não apenas contra as leis da moralidade, mas
também da natureza.
Como segundo motivo para o exagero de similaridades entre o chimpanzé e os humanos, Tyson
cometeu um erro crucial. Ele sabia que o seu pigmeu era um animal jovem, pois as extremidades dos
ossos longos ainda estavam formadas em cartilagem e não plenamente ossificadas, mas ele o
considerou quase que de todo crescido porque, erroneamente, tomou a série completa de dentes de
leite por uma dentição permanente (em alguns aspectos, os dentes de leite dos macacos antropoides
de fato lembram os dentes permanentes dos humanos). Desse modo, ele não percebeu como era
jovem — quase um bebê — o animal que estava dissecando. (Essa identificação errônea também
agravou o erro subsequente, num tratado filológico apenso à anatomia, de atribuir as lendas clássicas
e os relatos mais recentes sobre pigmeus africanos ao mesmo animal, que ele considerou como tendo
apenas dois pés de altura quando plenamente desenvolvido.)
Muitas vezes discuti nestes ensaios o papel da neotenia (literalmente, agarrar-se à juventude) na
evolução humana (ver Darwin e os grandes enigmas da vida e O polegar do panda). Nós evoluímos
diminuindo os ritmos de desenvolvimento geral dos primatas e outros mamíferos. Assim, os adultos
humanos lembram chimpanzés e gorilas jovens muito mais intimamente do que macacos antropoides
adultos. Em con- sequência disso, o esqueleto de um bebê chimpanzé conserva muitas características
humanoides que um adulto perderia — inclusive uma cabeça relativamente grande (os bebês
humanos, é claro, também têm cabeças relativamente maiores do que as dos adultos humanos), um
posicionamento mais ereto da cabeça sobre a espinha (já que o foramen magnum, ou orifício de
articulação entre crânio e coluna vertebral, se desloca para trás com o crescimento), um crânio mais
bulboso (já que o cérebro cresce muito mais devagar que o corpo após o nascimento), protuberâncias
do supercílio menos salientes, e mandíbulas menores. A gravura de Tyson do esqueleto do seu
pigmeu, uma figura notavelmente precisa (vi fotografias dos ossos originais), mostra todos esses
traços humanoides.
Tyson também notou todos esses traços com prazer no seu texto, mas deixou escapar o tema
coordenador — não o de que os chimpanzés são tão parecidos com os humanos, mas o de que ele
havia dissecado um animal bem jovem e que os primatas jovens lembram os adultos humanos de
vários modos, sem que isso demonstre descendência direta ou parentesco. Ele escreveu, por
exemplo:

Quanto ao rosto do nosso pigmeu, ele era mais parecido com o de um homem do que com os de
um grande símio ou de um macaco: pois a sua testa era maior, e mais arredondada, e a mandíbula
superior e a inferior não tão longas ou proeminentes, e mais espalhadas; e a sua cabeça,
novamente, era maior do que a de qualquer um dos dois outros animais.

De fato, o cérebro grande e semelhante ao humano do chimpanzé de Tyson propunha um problema


e tanto. Tyson já havia determinado que o aparelho vocal do seu pigmeu era suficientemente
semelhante ao nosso para a fala, mas então por que ele não falava? Talvez uma deficiência do
cérebro impedisse a expressão desse atributo humano por excelência. No entanto, Tyson encontrou
pouca diferença entre o cérebro do seu pigmeu e o nosso, quer na estrutura básica, quer no tamanho
relativo.

Poder-se-ia estar propenso a pensar que, como existe uma disparidade tão grande entre a alma de
um homem e um bruto, do mesmo modo, o órgão no qual ela está também deveria ser bastante
diferente. No entanto, comparando o cérebro do nosso pigmeu com o de um homem, e com o
maior rigor, examinando cada parte em ambos, surpreendeu- me muito encontrar uma semelhança
tão grande, que não poderia ser maior, entre um e outro.

Numa passagem fascinante, que exibe o contexto seiscentista da sua obra, Tyson simplesmente
negou que a estrutura física deva oferecer uma explicação para a função. Os cérebros são de fato
semelhantes, mas os humanos possuem algo, em princípio superior, que anima a mesma matéria de
um modo diferente:

Não há nenhum motivo para se pensar que os agentes realmente executem tais e tais ações porque
se descobre que são possuidores dos órgãos apropriados para tal; porque, então, o nosso pigmeu
poderia de fato ser um homem. Os órgãos nos corpos animais são apenas um conglomerado
harmonioso de tubos e vasos para a passagem de fluidos, e são passivos. O que os ativa são os
humores e os fluidos; e a vida animal consiste no movimento devido e regular desse corpo
orgânico. Mas aquelas faculdades mais nobres na mente do homem devem certamente possuir um
princípio superior, e a matéria organizada nunca poderia produzi-las; pois, qual outro motivo
poderia explicar que, sendo os órgãos iguais, as ações executadas também não o sejam?
Se a cadeia do ser possuísse valor permanente como estímulo heurístico para a exploração de
elos perdidos, e se as lacunas se tornassem maiores à medida que a cadeia avançasse, então o que
fazer com o abismo ainda maior do que aquele que Tyson julgou ter preenchido entre símio e homem
— a lacuna entre humanos e anjos e outros seres celestiais? Tyson deu ao problema um comentário
superficial, mais político do que científico, sugerindo na epístola dedicatória a John Sommers,
presidente da Câmara dos Pares da Inglaterra e presidente da Royal Society (editores do tratado),
que homens com tão ampla erudição podiam muito bem preencher os buracos eles mesmos!

O animal do qual forneci a anatomia, o qual é o que mais se aproxima do gênero humano, parece
ser o nexo entre o animal e o racional, assim como Vossa Excelência e os da Vossa Categoria e
Ordem, por conhecimento e sabedoria, sendo os mais próximos daquela espécie de seres que se
sobrepõem em seguida a nós, são os que ligam o mundo visível ao invisível.

No entanto, embora Tyson não tenha dado prosseguimento à questão, a lacuna entre homens e
anjos na cadeia tornou-se um importante estímulo para especulações iniciais sobre um tema
atualmente popular e talvez, pela primeira vez, abordável — a exobiologia (ver ensaios na Parte 7). Pois a
solução óbvia deve sustentar que as criaturas mais avançadas do que os humanos, e que preenchem a
lacuna entre homem e anjo, habitam outros planetas. O filósofo Immannuel Kant, por exemplo,
argumentou que um planeta grande e pesado como Júpiter devia suportar tais criaturas superiores. E
Alexander Pope mencionou-as explicitamente nos dísticos sobre a cadeia do ser do seu Essay on
Man (enquanto ao mesmo tempo elogiava Isaac Newton como um exemplo de sabedoria terrena):

Seres superiores, quando há pouco viram


Um mortal desvendar toda a lei da natureza,
Admiraram tamanha sabedoria numa forma terrena
E apresentaram Newton como apresentamos um macaco.

Pope apenas se dava ao luxo de devaneios emoldurados em dísticos heroicos. Tyson foi o homem
que primeiro apresentou um grande antropoide com exatidão e uma admirável meticulosidade.
18. Preso pela grande cadeia

Em A Child's Garden of Verses, Robert Louis Stevenson denominou o seguinte dístico como um
Pensamento Feliz:

O mundo está tão cheio de coisas,


Deveríamos todos ser felizes como reis.

No entanto, a maioria de nós não se alegra a contemplar a diversidade assombrosa da natureza;


ficamos atordoados com a complexidade e a confusão. Não conseguimos ficar satisfeitos antes de
estabelecer algum tipo de ordem; temos de compreender a desconcertante variedade classificando-a.
A evolução é um princípio ordenador satisfatório, e hoje nós a usamos sem hesitar, pois a
evolução tanto testemunha o caminho da natureza quanto nos permite classificar os organismos de um
modo coerente. Mas que sistemas os cientistas usavam antes que a evolução se tornasse tão popular
no século XIX? A “grande cadeia do ser’’, ou ainda gradação de todas as coisas vivas, com certeza
detinha o lugar de honra dentre todos os competidores. Arthur Lovejoy, o famoso historiador de
ideias que investigou a linhagem dessa noção na sua obra maior (ver Bibliografia), disse que a
cadeia do ser “está entre aquela meia dúzia de pressupostos mais vigorosos e persistentes do
pensamento ocidental. Até há pouco mais de um século, é bem provável que ela tenha sido a mais
amplamente difundida das concepções do esquema geral dos objetos, do padrão constitutivo do
universo”.
Na grande cadeia do ser, cada organismo forma um elo definido dentro de uma sequência única,
que vai da mais humide ameba numa gota d’água a seres cada vez mais complexos, culminando,
como você já deve ter adivinhado, nos nossos próprios e exaltados egos.

Atenta como ela sobe à raça imperial do homem,


A partir das verdes miríades da relva habitada.

Escreveu Alexander Pope nas suas expostulações em dísticos heroicos do Essay on Man.
Uma vez que nos inclinamos a confundir evolução com progresso, a cadeia do ser foi muitas
vezes interpretada erroneamente como uma versão primitiva da teoria da evolução. Embora alguns
pensadores do século XIX tenham, nas palavras de Lovejoy, “temporaliza- do” a cadeia
convertendo-a numa escada que os organismos podiam escalar no seu avanço evolutivo, a cadeia do
ser original era explícita e veementemente antievolutiva. A cadeia é um ordenamento estático de
entidades criadas, imutáveis — uma série de criaturas colocadas por Deus em posições fixas de uma
hierarquia ascendente que não representa nem o tempo nem a história, mas a ordem eterna das coisas.
A natureza estática da cadeia define a sua função ideológica: cada criatura deve estar satisfeita com o
lugar que lhe foi atribuído — tanto o servo na choupana, quanto o senhor no castelo — pois qualquer
tentativa de ascensão romperá a ordem estabelecida. Mais uma vez, Alexander Pope:
Da cadeia da Natureza qualquer que seja o elo tirado,
O décimo, ou o décimo milésimo, quebra-se igualmente a cadeia.

Neste ensaio, analisarei os argumentos apresentados na última defesa influente da cadeia como
ordem estática na Inglaterra — o tratado de 1799 do médico e biólogo Charles White, “An account of
the regular gradation in man, and in different animais and vegetables” (Descrição da gradação regular no
homem e em diversos animais e vegetais). Charles White (1728-1813), que viveu e exerceu a profissão em
Manchester, Inglaterra, foi um cirurgião famoso pelo seu trabalho em obstetrícia, particularmente
pela sua exigência de limpeza absoluta durante os partos. Em 1795, ele apresentou as suas ideias
sobre a cadeia do ser à Sociedade Literária e Filosófica de Manchester. Os resultados foram
publicados quatro anos mais tarde.
Para esse médico conservador, a cadeia funcionava do modo costumeiro, como fundamento
ideológico da estabilidade social e dos valores tradicionais. Da natureza estática da corrente em si,
White inferiu a existência necessária de Deus como agente criador — pois a única alternativa
converteria a cadeia num produto temporal da evolução, uma interpretação obviamente inaceitável.
Na última linha do seu tratado, White justifica os seus esforços escrevendo que “seja o que for que
tenha por fim exibir a sabedoria, a ordem e a harmonia da criação, e manifestar a necessidade de se
recorrer a uma Divindade como primeira causa, deve ser aprazível ao homem”. E embora White
expressasse a sua oposição à escravidão e insistisse em dizer que desejava apenas examinar uma
proposição de história natural, a sua hierarquização dos grupos humanos, com os brancos europeus
em cima e os negros africanos em baixo, certamente reforçava os preconceitos dos seus folgados
contemporâneos caucasianos. White insistiu, falando de si:

Nem deseja ele atribuir a qualquer um superioridade sobre outro, exceto aquela que surge
naturalmente da força física, dos poderes mentais e da diligência, ou das consequências
resultantes da vida num estado de sociedade. Ele deseja apenas investigar a verdade e descobrir
quais são as leis estabelecidas da natureza no que diz respeito a esse tema, 'entendendo que, seja
o que for que tenha por fim elucidar a história natural do gênero humano, deve ser interessante ao
homem.

A cadeia do ser sempre inquietara os biólogos porque, em certo sentido objetivo, ela não parece
descrever muito bem a natureza. Como podemos ordenar todos os organismos numa única cadeia,
minuciosamente graduada, quando enormes lacunas parecem estar presentes em todo o sistema da
natureza — o que vem entre as plantas e os animais, ou entre os invertebrados e os vertebrados, por
exemplo? E como podemos colocar numa hierarquia de perfeição as criaturas que parecem
representar variações equivalentes de um modelo básico, e não produtos inferiores ou superiores —
as raças de cães, por exemplo, ou o persistente dilema da diversidade racial humana?
De uma maneira relevante, a cadeia do ser sempre fora um argumento ruim, mesmo nos seus
próprios termos e no seu próprio tempo — isso caso se acredite, pelo menos, que uma teoria da
natureza deve registrar a sua aparência literal com precisão (um critério nem sempre em voga entre
os eruditos). De modo paradoxal, é exatamente essa característica de harmonia insatisfatória com a
natureza que faz da cadeia do ser um tema de análise particularmente interessante. Argumentos bons
não chegam nem perto de fornecer tamanho discernimento do pensamento humano, pois podemos
dizer simplesmente que vimos a natureza direito e empreendemos de forma adequada a humilde
tarefa de mapear os objetos de maneira precisa e objetiva. No entanto, os argumentos ruins têm de
ser defendidos diante da oposição da natureza, uma tarefa que exige certo trabalho. A análise desse
“trabalho” muitas vezes nos fornece o discernimento da ideologia ou dos processos de pensamento
de uma era, quando não dos modos do próprio raciocínio humano. A defesa de White da cadeia
estática é particularmente direta e pouco sutil, mas não diferente em substância de outras versões
mais sofisticadas. Assim, ela se torna uma excelente cartilha para a elaboração de argumentos
dúbios.
White considerava as diversas raças humanas como espécies criadas separadamente (coerente
com o seu parecer antievolutivo da gradação na cadeia do ser) e devotou o seu tratado ao
ordenamento dessas raças numa sequência única, da inferior para a superior. O livro persegue dois
argumentos difíceis (em sequência) para chegar à sua dúbia conclusão. Primeiro, White tem de
justificar a cadeia do ser em geral, e em meio às grandes lacunas que parecem separar as plantas dos
animais e os macacos dos homens. Segundo, ele deve ordenar as raças humanas numa única cadeia,
embora a sua variação seja tão diversificada que critérios diferentes parecem resultar em
ordenamentos diversos. Em resumo, como elaborar uma cadeia única quando a natureza parece
apresentar variação abundante, mas pouca hierarquia?
A primeira parte do tratado de White tenta justificar a cadeia como um princípio ordenador geral
para todas as formas de vida. Primeiro, ele ataca o problema das lacunas aparentes entre os grandes
reinos, plantas e animais em particular. Defensores prévios da cadeia haviam, de modo geral,
“resolvido” esse dilema propondo argumentos fantasiosos para as formas intermediárias. Assim,
Charles Bonnet defendeu o asbesto como forma de transição entre minerais e plantas porque a sua
natureza fibrosa lembrava os sistemas vasculares das plantas. E a hidra de água doce, um parente dos
corais, foi amplamente proclamada, após a sua descoberta em 1739, como forma intermediária entre
plantas e animais porque (como as plantas) ela parecia desprovida de órgãos internos complexos e
porque apresentava reprodução assexuada por brotamento.
White prestou a homenagem tradicional às hidras, mas a sua estratégia principal para preencher a
lacuna entre plantas e animais invoca um argumento de similaridade de modelo anatômico — pois, se
pudesse demonstrar que as plantas e os animais não diferiam no modelo básico, mas que procediam
do mesmo molde, com as plantas na condição de versões menos complexas do mesmo plano
fundamental, então uma ordem única podia ser elaborada. White propôs três argumentos deficientes
para tentar estabelecer uma unidade de estrutura entre as plantas e os animais. Em primeiro lugar, ele
invocou algumas analogias ruins, afirmando, por exemplo, que, como as plantas perdem as folhas e
os mamíferos os pelos, uma similaridade fundamental une arbustos e babuínos. Em segundo lugar, ele
se serviu de informações pura e simplesmente erradas ao afirmar que as plantas possuem pulmões
para respirar. Em terceiro lugar, ele citou similaridades agora julgadas irrelevantes, por serem
excessivamente gerais para fundamentar qualquer pretensão de similaridade estrutural — por
exemplo, que as plantas, assim como os animais, estão sujeitas a doenças.
Para preencher a maior lacuna conhecida na outra extremidade da escala — aquela entre macacos
e humanos (embora ela nos pareça menor hoje) — White empregou os mesmos argumentos
deficientes. Ele não se preocupou em estabelecer unidade de modelo (mesmo o maior difamador de
macacos não podia negar a sua similaridade anatômica com os humanos). Em vez disso, ele tentou
elevar a posição dos macacos, enquanto rebaixava o valor dos humanos supostamente inferiores.
Usando analogias deficientes (ou transferindo conceitos humanos para o comportamento animal), ele
dizia que os babuínos designavam sentinelas para velar à noite pelo bando adormecido. Numa
passagem divertida, na categoria das informações pura e simplesmente erradas, White promoveu os
orangotangos afirmando que eles se submetiam de bom grado à mais esclarecidas das práticas
médicas contemporâneas — a sangria: “Sabe-se que, quando doentes, esses animais consentem em
ser sangrados e até mesmo solicitam a operação, e que se submetem a outros tratamentos necessários
como criaturas racionais.” Então, num passe de mágica com o fim de elevar os macacos e rebaixar os
humanos negros, ele retratou os símios como escravocratas e tarados (qualidades bastante humanas,
se bem que não particularmente admiráveis):

Soube-se que eles já raptaram rapazes, garotas e até mesmo mulheres negras, com o intuito de
torná-los subservientes aos seus desejos, como escravos, ou como objetos de paixão brutal; e
alguns afirmam que mulheres já tiveram filhos de tais uniões.

Tendo assim estabelecido a cadeia como uma sequência minuciosamente graduada,


compreendendo todos os objetos vivos, White segue rumo ao tema principal do seu tratado: a
hierarquização das raças humanas numa única ordem, com o seu próprio grupo no topo. Em mais de
cem páginas, examinando estrutura após estrutura, órgão após órgão, White luta vigorosamente para
ordenar as raças como uma sequência única. O esforço foi uma luta intelectual envolvendo o
desconfortável ajustamento de dados recalcitrantes num esquema predeterminado; pois as diferenças
entre as raças não podem ser linearizadas facilmente, não importa a força do compromisso a priori
com tal ordenamento. Além disso, quando forçamos caracteres em sequências únicas, nem sempre
podemos estabelecer as mesmas direções para cada caráter — os negros podem exibir uma
quantidade menor de qualidades admiráveis do que os brancos, mas os brancos certamente serão
inferiores em outras características. Como White lidou com essas incoerências e ameaças ao seu
sistema?

Consigo compreender a maioria dos esforços de White dispondo as suas discussões de


características particulares em quatro categorias — e notando que apenas uma se encaixa
confortavelmente no seu esquema favorito, de uma cadeia única, erguendo-se dos animais
“inferiores” até as raças “inferiores” (os negros africanos em baixo e os orientais no meio) e,
finalmente, até o ápice dos brancos europeus. A primeira categoria inclui traços admiráveis
possuídos em quantidade maior por brancos, menor por negros, e menor ainda por animais. Por
exemplo, usando algumas medidas dúbias (já que as raças humanas não diferem substancialmente
quanto ao tamanho do cérebro, como se isso tivesse alguma importância), White afirmou que os
negros ocupavam uma posição intermediária numa sequência heterogênea de tamanho cerebral, que ia
de aves para cães, depois para macacos, e, por fim, através das raças humanas “inferiores”, chegava
aos europeus brancos (ver na figura acima a perpetração um tanto diversa de White da cadeia do
ser). No entanto, apenas essa categoria dentre as quatro confirmava os pressupostos de White. As
outras três impunham problemas de interpretação distintos e prementes. White, porém, estava à altura
da tarefa.
A segunda categoria inclui aquelas características admiráveis que, para o desconforto de White,
são distribuídas com maior abundância entre os negros. White lidou com esse dilema argumentando
que, embora os traços devam ser considerados valiosos, os animais se encontram ainda melhor
providos — de modo que a sequência vai de animal para negro, de negro para branco. Ele escreve:
“Nessas particularidades, a ordem é modificada, sendo a posição do europeu na escala a mais
inferior, a do africano superior, e a da criação bruta mais superior ainda.” Os negros, por exemplo,
suam menos que os brancos — um aparente avanço em refinamento (embora White nos assegure que
os negros têm um odor corporal mais forte do que o dos caucasianos). White comenta:

Nos seus relatos, capitães e cirurgiões de navios da Guiné, e fazendeiros das índias Ocidentais,
concordam unanimemente que os negros suam bem menos do que os europeus, sendo difícil ver
uma gota de suor sobre eles. Os símios suam menos ainda, e os cães não suam nada.

De modo semelhante, as mulheres negras têm uma menstruação menos copiosa — um óbvio
avanço de refinamento em relação às brancas. No entanto, a maioria dos símios sangra menos ainda
ou então não sangra absolutamente nada. Os negros superam os brancos em memória, mas os animais
inferiores são os campeões absolutos; os elefantes realmente nunca esquecem. Na verdade, White
consegue degradar qualquer coisa admirável que os negros tenham, atribuindo mais dessas
qualidades aos animais inferiores. Ele afirma, por exemplo, que os negros toleram a dor melhor do
que os brancos. E cita um colega que escreveu:

Eles suportam operações cirúrgicas bem melhor do que as pessoas brancas, e o que seria a causa
de dor insuportável para um homem branco, um negro quase que desprezaria. Cheguei mesmo a
amputar as pernas de muitos negros, os quais seguravam, eles próprios, a parte superior do
membro.

Mas, pense em quantos animais inferiores — insetos em particular — suportam o


desmembramento sem aparentemente um gemido sequer.
A terceira categoria inclui características animalescas que os brancos possuem em maior grau do
que os negros, mas que se verificam em grau ainda mais intenso nos animais inferiores — a exceção
mais direta e evidente para a ordem preferida por White. Os brancos, por exemplo, têm uma barba
mais cerrada e pelos corporais mais abundantes do que os negros, ao passo que a maioria dos
mamíferos está inteiramente coberta por uma densa pelagem. White desvencilha-se desse problema
com um artifício retórico e uma afirmação de que os mais nobres dos animais têm pelos em
abundância, como no caso das ondulantes madeixas dos brancos europeus!

O cabelo fino, longo, ondulante, parece ser concedido como ornamento. O Pai Universal
conferiu-o apenas a uns poucos animais, e estes são os do tipo mais nobre — ao homem, a
criatura superior da criação, ao majestoso leão, o rei da selva, e àquele que é o mais belo e útil
animal doméstico, o cavalo.

Na categoria final, os negros possuem mais características aparentemente animalescas do que os


brancos, e, portanto, tudo parece bem — até que nos damos conta de que os animais são os menos
dotados dentre todos. Os homens negros, por exemplo, têm pênis maiores que os brancos, ao passo
que as mulheres negras têm seios maiores — sinais evidentes de uma sexualidade indecente e
desenfreada. (White até mesmo relata que “as mulheres hotentotes têm seios longos e flácidos, e que
conseguem amamentar as crianças que carregam nas costas atirando os seios por cima dos ombros”.)
No entanto, os macacos têm pênis e seios menores do que os de qualquer grupo humano. White não
encontrou nenhuma solução adequada para esse problema e limitou-se a contorná-lo, dizendo que,
pelo menos, os negros e os símios desenvolvem os maiores mamilos!
Neste ponto, e depois de cem páginas de incansável enumeração, o argumento de White está em
frangalhos — a despeito dos esforços heroicos para remendá-lo, tal como documentado na discussão
precedente. Então, seguindo todos os velhos adágios sobre enfrentar a adversidade com bravura, ele
termina o floreio retórico com um apelo gritante ao subjetivismo supremo — critérios estéticos.
Afinal, todos sabemos que as pessoas brancas são mais atraentes e agradáveis a Deus e ao homem —
e, definitivamente, é isso mesmo. Assim, num trinado final e num famoso parágrafo, muitas vezes
citado devido ao seu efeito humorístico não-intencional, White encerra o seu argumento com a
seguinte peã à beleza europeia:

Ascendendo a linha de gradação, chegamos finalmente ao branco europeu, o qual, sendo o mais
distante da criação bruta, pode, por esse motivo, ser considerado como a mais bela das raças
humanas. Ninguém duvidará da superioridade dos seus poderes intelectuais, e creio que se
julgará que a sua capacidade é naturalmente superior também à de todos os outros homens. Onde
encontraremos, a não ser no europeu, aquela cabeça nobremente abobadada, contendo tamanha
quantidade de cérebro, e sustentada por uma coluna cônica oca, entrando no seu centro? Onde, a
face perpendicular, o nariz proeminente, e o queixo saliente e redondo? Onde, aquela variedade
de traços e plenitude de expressão; aquelas longas, ondulantes, graciosas madeixas, aquela barba
majestosa, aquelas maçãs róseas e lábios de coral? Onde, aquela postura ereta do corpo e aquele
nobre andar? Em que outro canto do globo encontraremos o rubor que sé espalha por sobre os
suaves traços das belas mulheres da Europa, aquele emblema de modéstia, de sentimentos
delicados e de juízo? Onde, aquela linda expressão das amáveis e mais suaves paixões no
semblante, e aquele refinamento geral de traços e tez? Onde, exceto nos seios da mulher europeia,
dois hemisférios rechonchudos e níveos, coroados de escarlate?

Não tenho a intenção de diminuir o humor póstumo desta passagem — “hemisférios níveos
coroados de escarlate” como a marca definitiva da perfeição humana, francamente! O estilo floreado
de White pode torná-lo mais sujeito ao ridículo do que a maioria dos seus contemporâneos, mas a
sua argumentação não é pior ou diferente daquela de vários deles. Ele estava apenas expressando
uma opinião comum do seu tempo, numa retórica confessamente intumescida. A cadeia estática do
ser, como argumenta Lovejoy, havia constituído uma pedra angular das interpretações ocidentais da
natureza durante séculos, apesar das suas evidentes dificuldades de aplicação a um mundo
recalcitrante, cheio de lacunas e de variação copiosa, difícil de ser ordenado em sequências únicas.
Portanto, dê uma boa risada nas partes apropriadas, mas pondere então por um momento a
questão séria e maior. A evolução levou a cadeia estática do ser à obsolescência — portanto,
podemos, em retrospecto, identificar as suas falhas evidentes e analisar a falsidade e a incoerência
da argumentação usada para defendê-la. Mas quantas das crenças que nos são caras, aquelas sobre as
quais nunca temos dúvidas porque pensamos que mapeiam a natureza de modo óbvio, parecerão,
daqui a alguns séculos, tolas e restritas pela ideologia como a cadeia estática do ser? Não
deveríamos examinar a lógica e a verossimilhança das nossas convicções mais profundas? Pelo
menos podemos evitar o ridículo das gerações futuras esquivando-nos da anatomia sexual e deixando
aos grandes poetas bíblicos do Cântico dos Cânticos qualquer descrição metafórica dos seios
humanos.
19. A Vénus hotentote

Eu tinha uma amiguinha no jardim de infância. Nem me lembro do nome dela. Mas, sem dúvida,
lembro-me de um conselho secreto que lhe dei um dia no playground. Eu disse a ela que as criaturas
enormes que nos rodeavam, conhecidas como adultos, sempre olhavam para cima quando andavam, e
que nós, o pessoal miúdo, podíamos encontrar todo o tipo de coisas valiosas se olhássemos para
baixo. Será que as minhas predisposições paleontológicas já estavam em evidência?
Cari Sagan e eu crescemos em Nova York, ambos interessados em biologia e astronomia. Como
Cari Sagan é alto e escolheu a astronomia, ao passo que eu sou baixo e escolhi a paleontologia,
sempre imaginei que ele continuaria olhando para cima (como ele fez com certa regularidade ao
apresentar a sua série de TV, Cosmos), e que eu continuaria aferrado ao meu conselho, velho, porém
bom, de ficar olhando para baixo. Mas, no mês passado, em Paris, eu o venci por uma cabeça
(literalmente).
Alguns anos atrás, Yves Coppens, professor do Musée de L’Homme em Paris, levou Cari Sagan
para uma excursão pelas entranhas do museu. Lá, armazenado numa estante, eles encontraram o
cérebro de Paul Broca, flutuando numa redoma de formalina. Cari escreveu um bom ensaio sobre
essa visita, a peça título do seu livro Broca’s Brain. Alguns meses atrás, Yves levou-me para uma
excursão semelhante. Eu segurei o crânio de Descartes e o do nosso ancestral mútuo, o antigo homem
de Cro-Magnon. Também encontrei o cérebro de Broca, repousando na sua prateleira e rodeado por
outras redomas contendo os cérebros dos seus ilustres contemporâneos científicos — todos brancos e
todos homens. No entanto, encontrei as peças mais interessantes na prateleira logo acima. Talvez
Cari nem tenha olhado para cima.
Essa área das “alas dos fundos” do museu contém a coleção de peças anatômicas de Broca,
inclusive a sua generosa e póstuma contribuição. Broca, um grande anatomista clínico e antropólogo,
corporificou a grande fé do século XIX na qualificação como chave para a ciência objetiva. Se ele
pudesse coletar órgãos humanos em quantidade suficiente de uma quantidade suficiente de raças
humanas, as medidas resultantes com certeza definiriam a grande escala do progresso humano, do
chimpanzé ao caucasiano. Broca não era mais virulentamente racista do que os seus contemporâneos
científicos (quase todos homens brancos bem-sucedidos, claro); ele apenas foi mais diligente no
acúmulo de dados irrelevantes, apresentados seletivamente para sustentar um ponto de vista
apriorístico.
Essas estantes contêm um potpourri horripilante: cabeças cortadas da Nova Caledónia; uma
ilustração do amarramento de pés praticado pelas mulheres chinesas — sim, um pé amarrado, junto
com a parte inferior das pernas, cortada entre o joelho e o tornozelo. E, numa prateleira logo acima
dos cérebros, vi uma pequena exposição que me forneceu um discernimento imediato e arrepiante da
mentalité do século XIX e da história do racismo: em três frascos menores, vi os órgãos genitais
dissecados de mulheres do terceiro mundo. Não encontrei o cérebro de nenhuma mulher, e tampouco
o pênis de Broca ou de algum outro homem honravam a coleção.
Os três frascos têm escrito nos rótulos une négresse, une péruvienne e la Vénus Hottentotíe, ou
a Vénus hotentote. O próprio Georges Cuvier, o maior anatomista da França, dissecara a Vénus
hotentote depois da morte dela em Paris no final de 1815. Cuvier atacou diretamente os órgãos
genitais por um motivo particular e interessante, ao qual retornarei após relatar a história dessa
infeliz mulher.
Numa época em que a televisão e o cinema ainda não haviam feito com que virtualmente tudo
deixasse de ser exótico, e quando a teoria antropológica avaliava como subumanos tanto os
caucasianos mal formados quanto os representantes normais de outras raças, a exposição de humanos
incomuns tornou-se um negócio lucrativo, não só nos salões da classe alta, como também nas
barracas de rua (ver The Shows of London, de Richard D. Altick, na Bibliografia, ou o tratamento
dado ao “Homem Elefante” no livro, no palco e no cinema). Supostos selvagens de terras longínquas
eram um dos esteios dessas exposições, e a Vénus hotentote superou a todos em fama. (Os hotentotes
e os boximanes são povos aparentados, de baixa estatura, do sul da África. Os boximanes
tradicionais, quando encontrados pela primeira vez pelos europeus, viviam da caça e do
extrativismo, enquanto os hotentotes criavam gado. Os antropólogos inclinam-se agora a abandonar
esses termos europeus, um tanto depreciativos, e a designar coletivamente os dois grupos como
povos Khoi-San, uma palavra composta, obtida a partir dos nomes que cada um dos grupos dá a si
mesmo). A Vénus hotentote era empregada de fazendeiros holandeses perto da Cidade do Cabo, e não
sabemos a qual grupo ela pertencia. Ela tinha nome, embora os que a exploravam nunca o tenham
usado. Foi batizada como Saartjie Baartman (Saartjie, ou “pequena Sara” em africâner, pronuncia-se
Sar-qui).
Hendrick Cezar, irmão do “empregador” de Saartjie, sugeriu uma viagem para que Saartjie fosse
exibida na Inglaterra e prometeu torná-la uma mulher rica. Lord Caledon, governador da província do
Cabo, concedeu a permissão para a viagem, mas arrependeu-se mais tarde, quando compreendeu
plenamente os seus objetivos. (A exibição de Saartjie provocou muitos debates, e ela sempre teve
simpatizantes, enojados com a exibição de humanos como animais; o espetáculo continuou, mas sem
aprovação universal.) Ela chegou a Londres em 1810, e foi imediatamente exposta em Piccadilly,
onde causou sensação, por motivos a serem discutidos em breve. Um membro da Associação
Africana, uma sociedade beneficente que requereu a sua “libertação”, descreveu o espetáculo. Ele
encontrou Saartjie pela primeira vez numa jaula, sobre uma plataforma erguida uns poucos pés acima
do chão:

Ao receber a ordem do carcereiro, ela saiu. ... A hotentote foi apresentada como um animal
selvagem, e foi-lhe ordenado que andasse para trás e para diante, e que saísse e entrasse na jaula,
mais como um urso treinado do que como um ser humano.

No entanto, Saartjie, interrogada em holandês perante um tribunal, reiterou que não estava sob
coação e que compreendia perfeitamente bem que lhe haviam garantido metade dos lucros. O
espetáculo continuou.
Após uma longa excursão pelas províncias inglesas, Saartjie acabou sendo levada para Paris,
onde foi exibida durante quinze meses por um treinador de animais, causando uma sensação tão
grande quanto na Inglaterra. Cuvier e todos os grandes naturalistas da França foram visitá-la, e ela
posou nua para pinturas científicas no Jardin du Roi. Saartjie, porém, morreu de um mal inflamatório
em 29 de dezembro e, em vez de rica na Cidade do Cabo, terminou na mesa de dissecção de Cuvier.
Por que, numa época em que exibições de humanos eram tão comuns, Saartjie foi tamanha
sensação? Podemos oferecer duas respostas, cada uma inquietante e cada uma associada a um dos
seus títulos oficiais — Vénus e hotentote.
Na escala racista do progresso humano, os boximanes e os hotentotes disputavam com os
aborígenes australianos o degrau mais baixo, logo acima dos chimpanzés e orangotangos. (Alguns
estudiosos dizem que a primeira designação aplicada pelos colonizadores holandeses do século XVII
— Bosmanneken ou boximane — era uma tradução literal de uma palavra malaia que eles conheciam
muito bem — Orang Outan, ou “homem da floresta”.) Nesse sistema, Saartjie exercia um fascínio
sinistro, não como um elo perdido num sentido posterior, evolutivo, mas como uma criatura que se
colocava numa posição intermediária naquela temida fronteira entre o humano e o animal e, ao fazê-
lo, ela nos ensinava algo sobre uma identidade ainda presente, embora submersa, nas criaturas
“superiores” (ver ensaios 17 e 18).
Os comentaristas contemporâneos enfatizaram a aparência simiesca e os hábitos brutais dos
boximanes e dos hotentotes. Em 1839, o eminente antropólogo americano, S. G. Morton rotulou os
hotentotes como “a aproximação mais extrema dos animais inferiores. ... A sua tez é de um pardo
amarelado, comparado por viajantes à nuance peculiar dos europeus no último estágio da icterícia. ...
As mulheres são representadas como sendo ainda mais repulsivas na aparência do que os homens”.
Mathias Guenther (ver Bibliografia) cita um relato jornalístico de 1847 com a descrição de uma
família boximane exibida no Egyptian Hall de Londres:

Na aparência, eles se encontram pouco acima da tribo dos macacos. O tempo todo eles ficam
agachados, aquecendo-se junto ao fogo, tagarelando ou resmungando. ... São carrancudos,
taciturnos e selvagens — meros animais na propensão e pior do que animais na aparência.

E o relato parcial de um missionário fracassado em 1804:

Os boximanes são capazes de matar os filhos sem remorso em várias ocasiões; por exemplo,
quando estes são mal formados, ou quando falta comida, ou quando são obrigados a fugir dos
fazendeiros ou de outros; nesses casos, eles os estrangulam, asfixiam-nos, abandonam-nos no
deserto ou enterram-nos vivos. Há casos de pais que atiram os seus jovens rebentos ao faminto
leão que se posta rugindo à frente da sua caverna, recusando-se a partir antes que lhe seja feita
uma oferenda de paz.

Guenther relata que esse igualamento de boximane e animal tornou-se tão arraigado que um grupo
de colonos holandeses matou e comeu um boximane durante uma expedição de caça, presumindo que
ele fosse o equivalente africano do orangotango malaio.
A monografia da dissecção de Saartjie, feita por Cuvier e publicada nas Mémoires du Muséum
d’Histoire Naturelle do ano de 1817, seguiu esse parecer tradicional. Após discutir e rejeitar várias
lendas infundadas, Cuvier prometeu apresentar apenas os “fatos positivos” — inclusive esta
descrição da vida de um boximane:

Como são incapazes de se dedicar à agricultura, ou mesmo ao pastoreio, eles subsistem


inteiramente da caça e do furto. Moram em cavernas e cobrem-se apenas com as peles dos
animais que mataram. Sua única indústria consiste no envenenamento das flechas e na manufatura
de redes de pesca.

A sua descrição da própria Saartjie enfatiza todos os pontos de semelhança superficial com
qualquer macaco ou grande antropoide. (Mal preciso mencionar que, como as pessoas variam tanto,
cada grupo tem de estar mais próximo do que outros de algum traço de um ou outro primata, sem que
isso implique qualquer coisa sobre genealogia ou capacidade.) Cuvier, por exemplo, discute o
achatamento dos ossos nasais de Saartjie: “Neste aspecto, nunca vi uma cabeça humana mais
semelhante à dos macacos.” Ele enfatiza várias proporções do fêmur (osso superior da perna) como
corporificando “caracteres de animalidade”. Cuvier fala do crânio pequeno de Saartjie (o que não
chega a ser surpresa numa mulher com quatro pés e meio de altura) e a relega à estupidez em
conformidade com “aquela lei cruel, que parece ter condenado a uma inferioridade eterna as raças
com crânios pequenos e comprimidos”. Ele até mesmo extrai uma série de reações supostamente
simiescas do comportamento dela: “Os seus movimentos tinham algo de brusco e caprichoso, que
lembrava o dos macacos. Ela tinha, acima de tudo, um modo de fazer beicinho da mesma maneira que
observamos os orangotangos fazerem.”
Contudo, uma leitura cuidadosa da monografia inteira desmente essas interpretações, já que
Cuvier afirma repetida vezes (embora não extraia explicitamente nem uma moral, nem uma
mensagem) que Saartjie era uma mulher inteligente, com proporções gerais que não desagradariam
connaisseurs. De um modo algo descuidado, ele menciona, que Saartjie possuía uma excelente
memória, que falava holandês razoavelmente bem, tinha certo domínio do inglês e estava aprendendo
um pouco de francês quando morreu. (Nada mau para um ser bruto enjaulado; eu gostaria muito que
mais americanos conseguissem um terço desse desempenho no seu domínio de línguas.) Cuvier
admitiu que os ombros de Saartjie, costas e peito “eram graciosos”, e, com a gentilesse da sua raça,
falou de sa main charmante (“sua mão encantadora”).
No entanto, o fascínio de Saartjie sobre europeus bem educados não se devia apenas à sua
condição racial. Ela não era apenas uma hotentote, ou a mulher hotentote, mas a Vénus hotentote. Sob
todas as palavras oficiais residia o grande e, muitas vezes, não mencionado motivo da sua
popularidade. As mulheres Khoi-San com certeza exageraram duas características da sua anatomia
sexual (ou, pelo menos, de partes do corpo que excitam desejo sexual na maioria dos homens). A
Vénus hotentote conquistou a fama como um objeto sexual, e a sua combinação de suposta
bestialidade e fascinação lasciva concentrou a atenção de homens que podiam obter desse modo
prazer indireto e uma presunçosa confirmação da sua superioridade.
Antes de mais nada — pois, como dizem, não há como não perceber — Saartjie era, nas palavras
de Altick, “esteatopigia ao extremo”. As mulheres Khoi-San acumulam grandes quantidades de
gordura nas nádegas, uma condição denominada esteatopigia. As nádegas projetam-se bem para trás,
muitas vezes formando um cume na extremidade superior, descendo então em direção aos órgãos
genitais. Saartjie era especialmente bem dotada, o motivo provável para a decisão de Cezar de
convertê-la de empregada em mulher fatal. Saartjie cobria os órgãos sexuais durante as exibições,
mas a sua extremidade posterior era o espetáculo, e ela se submeteu a um exame e a uma bisbilhotice
intermináveis durante cinco longos anos. Uma vez que as mulheres europeias não usavam anquinhas
na época, indicando pela roupa o que a natureza lhes dera, Saartjie parecia ainda mais incrível.
Cuvier demonstrou compreender muito bem a natureza mista, bestial e sexual, do fascínio de
Saartjie, ao escrever que “todos puderam vê-la durante a sua estada de dezoito meses na nossa
capital e verificar a enorme protrusão das suas nádegas e a aparência animalesca do seu rosto”. Na
sua dissecção, Cuvier concentrou-se sobre um mistério não resolvido que envolvia cada uma das
suas características incomuns. Por um bom tempo, os europeus haviam se perguntado se as nádegas
grandes eram gordurosas, musculosas ou talvez, até mesmo sustentadas por um osso anteriormente
desconhecido. O problema já fora resolvido — em favor da gordura — por meio da observação
externa, a razão principal do seu desnudamento perante cientistas no Jardin du Roi. Ainda assim,
Cuvier dissecou-lhe as nádegas e relatou:

Pudemos verificar que a protuberância das suas nádegas nada tinha de musculoso, mas era devida
a uma massa gordurosa de uma consistência trêmula e elástica, situada imediatamente sob a pele.
Ela vibrava com todos os movimentos feitos pela mulher.

No entanto, a segunda peculiaridade de Saartjie provocava curiosidade e especulação ainda


maiores entre os cientistas, e Saartjie alimentou ainda mais esse interesse ao manter esta
característica escrupulosamente oculta, recusando até mesmo uma exibição no Jardin. Apenas depois
da sua morte é que pôde ser saciada a curiosidade da ciência.
Durante dois séculos haviam circulado relatos sobre uma espantosa estrutura ligada diretamente
aos órgãos genitais das mulheres Khoi- San, que lhes cobriria os órgãos pudendos com um véu de
pele, o chamado sinuspudoris, ou “cortina do pudor”. (Caso me seja permitida uma breve excursão
pelo domínio das minúcias eruditas — as notas de rodapé da publicação acadêmica mais
convencional — gostaria de corrigir um erro padrão na tradução de Lineu, um erro que eu mesmo
cometi. Na sua descrição original do Homo sapiens, Lineu apresentou um relato nada lisonjeiro
sobre os negros africanos, o qual incluía a expressão feminae sinus pudoris. Essa expressão tem
sido traduzida como “as mulheres não têm vergonha” — uma calúnia inteiramente compatível com a
descrição geral de Lineu. Em latim, “sem vergonha” seria sine pudore, não sinus pudoris. Mas o
latim científico do século XVIII era escrito de modo tão sofrível que os erros de grafia e de casos
não constituem um obstáculo para a intenção real, e a interpretação de “sem vergonha” acabou por
ser mantida. Lineu, entretanto, estava apenas afirmando que as mulheres africanas possuem uma
saliência genital, ou sinus pudoris. Também estava errado, porque só as Khoi-San e as mulheres de
alguns povos aparentados desenvolvem essa característica).
A natureza do sinus pudoris havia gerado um debate intenso, com partidários de ambos os lados
afirmando ter o apoio de testemunhas oculares. Um partido afirmava que o sinus era simplesmente
uma parte aumentada dos órgãos genitais comuns; outros diziam tratar-se de uma estrutura nova, não
encontrada em nenhuma outra raça. Alguns chegaram mesmo a descrever o chamado “avental
hotentote” como uma grande dobra de pele pendendo da própria porção inferior do abdômen.
Cuvier estava determinado a solucionar essa antiga controvérsia; a condição do sinus pudoris de
Saartjie seria o objetivo principal da sua dissecção. Cuvier iniciou a sua monografia observando:
“Não há nada mais famoso na história natural que o tablier (a tradução francesa de sinus pudoris)
das hotentotes, e, ao mesmo tempo, nenhuma característica tem sido objeto de tantas controvérsias.”
Cuvier resolveu a polêmica com a sua costumeira elegância: os labia minora, ou lábios internos, dos
órgãos femininos comuns são extremamente desenvolvidos nas mulheres Khoi-San, e podem pender
até três ou quatro polegadas abaixo da vagina quando as mulheres estão de pé, causando assim a
impressão de que se trata de uma cortina de pele envoltória e separada. Cuvier preservou a sua
habilidosa dissecção dos órgãos de Saartjie e escreveu com um floreio: “Tenho a honra de apresentar
os órgãos genitais desta mulher, preparados de modo tal que não restem dúvidas quanto à natureza do
seu tablier.” E a dádiva de Cuvier ainda repousa no seu frasco, esquecida numa prateleira do Musée
de l’Homme — logo acima do cérebro de Broca.
No entanto, ao mesmo tempo em que identificava corretamente a natureza do tablier de Saartjie,
ele incorria num erro interessante, resultado da mesma falsa associação que inspirara o fascínio
público por Saartjie — sexualidade e animalidade. Como Cuvier considerava os hotentotes o mais
bestial dos povos, e como as suas mulheres tinham um tablier grande, ele presumiu que o tablier de
outras africanas devia tornar-se progressivamente menor à medida que a escuridão da África
meridional cedia lugar à claridade do Egito. (Na última parte da sua monografia, Cuvier afirma que
os egípcios antigos devem ter sido plenamente caucasianos; quem mais poderia ter construído as
pirâmides?).
Cuvier sabia que a circuncisão feminina era amplamente praticada na Etiópia. Presumiu que o
tablier devia ser, pelo menos, de tamanho médio entre essas pessoas de tonalidade e geografia
intermediárias, e conjecturou ainda que os etíopes amputavam o tablier para facilitar o ato sexual, e
não que a circuncisão representasse um costume sustentado pelo poder e imposto a garotas com
órgãos notavelmente diferentes dos das mulheres europeias. “As negras da Abissínia”, escreveu ele,
“são importunadas a ponto de serem obrigadas a destruir essas partes com faca e cauterização” (par
le fer et par le feu, como escreveu ele, em francês mais eufônico).
Cuvier também relatou uma história interessante que, repetida, não necessita de comentários:

Os jesuítas portugueses, que converteram o rei da Abissínia e parte do seu povo durante o século
XVI, sentiram-se obrigados a proscrever essa prática da circuncisão feminina por acharem que
ela era remanescente do antigo judaísmo daquela nação. Mas aconteceu que as garotas católicas
não mais conseguiam encontrar marido, porque os homens não eram capazes de se reconciliar
com uma deformidade tão repugnante. O Colégio da Propaganda enviou um cirurgião para
verificar o fato e, com base no seu relatório, o restabelecimento do antigo costume foi autorizado
pelo Papa.

Não tenho necessidade de sobrecarregá-lo com nenhuma refutação detalhada dos argumentos
gerais que fizeram de Vénus hotentote tamanha sensação. Mas, ita verdade, acho engraçado que ela e
o seu povo sejam, pelas convicções modernas, tão singular e especialmente inadequados para o
papel que ela foi forçada a desempenhar.
Se os povos Khoi-San eram tidos pelos velhos cientistas como aproximações dos primatas
inferiores, eles agora se distinguem como os heróis dos movimentos sociais modernos. As suas
linguagens, com cliques complexos, foram certa vez desprezadas como uma mixórdia gutural de sons
animalescos. São agora admiradas pela sua complexidade e sutileza de expressão. Cuvier
estigmatizara o estilo de vida de caça e extrativismo dos San (boximanes) tradicionais como a
degradação suprema de um povo estúpido e indolente demais para se dedicar à agricultura ou à
criação de gado. As mesmas pessoas hoje se tornaram modelos de retidão para os modernos
militantes ecologistas devido à sua abordagem compreensiva, não exploratória e equilibrada dos
recursos naturais. É claro, com Guenther argumenta no seu artigo sobre a imagem em mudança dos
boximanes, pode ser que os nossos louvores modernos também não sejam realistas. Ainda assim, se
as pessoas têm de ser exploradas em vez de compreendidas, imputações de bondade e heroísmo
certamente são melhores do que acusações de animalidade.
Além disso, enquanto os contemporâneos de Cuvier procuravam sinais físicos de bestialidade na
anatomia dos Khoi-San, os antropólogos agora identificam essas pessoas como, talvez, o mais
pedomórfico dos grupos humanos. Os humanos evoluíram através de uma desaceleração geral das
taxas de desenvolvimento, deixando os nossos corpos adultos bastante semelhantes em vários
aspectos à forma juvenil, mas não à adulta, dos nossos ancestrais primatas — um resultado evolutivo
chamado pedomorfose, ou “conformação infantil”. Por esse critério, quanto maior o grau da
pedomorfose, maior a distância de um passado simiesco (embora diferenças menores entre as raças
humanas não sejam equivalentes a variações de valor mental ou moral). Apesar de Cuvier ter
procurado com afinco sinais de animalidade nos movimentos dos lábios de Saartjie ou na forma do
osso da sua perna, o seu povo é, em geral, talvez o menos simiesco de todos os humanos.
Por fim, a fundamentação lógica principal para a popularidade de Saartjie repousava numa
premissa falsa. Ela fascinou os europeus porque tinha nádegas e órgãos sexuais grandes e porque
pertencia supostamente ao mais atrasado dos grupos humanos. Tudo se encaixava para os
contemporâneos de Cuvier. Os humanos avançados (leia-se europeus modernos) são refinados,
recatados e sexualmente contidos (além de hipócritas por terem a coragem de atribuir a si mesmos
tais qualidades). Os animais são aberta e ativamente lascivos, e assim traem o seu caráter primitivo.
Dessa maneira, os órgãos sexuais exagerados de Saartjie testemunhavam a sua animalidade. Mas o
argumento é, como dizem os nossos amigos ingleses “arse about face” (expressão idiomática que significa,
aproximadamente, confundir “alhos com bugalhos” - N.T.). Os humanos são os mais sexualmente ativos dos
primatas, e os humanos possuem os maiores órgãos sexuais da ordem. Caso tenhamos de seguir esta
linha dúbia de argumentação, uma pessoa com dotes acima da média é, se é que é alguma coisa, mais
humana.
Sob todos os aspectos — modo de vida, aparência física e anatomia sexual — Londres e Paris
deveriam ter sido colocadas numa jaula gigantesca para que Saartjie as olhasse. Ainda assim,
Saartjie conquistou o seu triunfo póstumo. Broca herdou não apenas o tablier de Saartjie preparado
por Cuvier, mas também o seu esqueleto. Em 1862, ele achou que havia encontrado um critério para
ordenar as raças humanas por mérito físico. Ele mediu a razão entre o rádio (osso inferior do braço)
e o úmero (osso superior do braço), raciocinando que razões mais altas indicam antebraços maiores
— uma característica tradicional dos macacos. Começou a imaginar que a mediação objetiva havia
confirmado esse pré-julgamento quando obteve a média de .794 para os negros e de .739 para os
brancos. Mas o esqueleto de Saartjie ofereceu .703 e Broca abandonou prontamente o seu critério.
Cuvier não havia elogiado o braço da Vénus hotentote?
Saartjie continua hoje mantendo a sua vitória sobre o sr. Broca. O cérebro dele se decompõe num
frasco mal vedado. O tablier dela está colocado acima, enquanto o seu bem preparado esqueleto
olha para cima. A morte, como diz o bom livro, é tragada pela vitória.

Pós-escrito

Como o determinismo biológico conquistou o seu prestígio com pretensões espúrias de


objetividade por meio da quantificação (ver meu livro, The Mismeasure of Man), e como Saartjie
Baartman deve a sua opressão a essa doutrina política fantasiada de ciência, foi divertido descobrir
que o próprio Francis Galton, o principal apóstolo da quantificação (e da hereditariedade), certa vez
usou uma técnica engenhosa para medir o grau de esteatopigia de uma mulher Khoi-San. Galton, o
primo brilhante e excêntrico de Darwin, acreditava que podia traduzir qualquer coisa em números.
Certa vez, ele tentou quantificar a distribuição geográfica da beleza feminina por meio do dúbio
método apresentado a seguir (tal como descrito na sua autobiografia, Memories of my Life, 1909, pp.
315-316):

Sempre que tenho oportunidade de classificar as pessoas que encontro em três classes, “boa,
média, ruim”, uso uma agulha montada como um perfurador, com o qual faço furos, sem ser visto,
num pedaço de papel, rasgado, grosso modo, na forma de uma cruz com um pé longo. Uso a
extremidade superior para “boa”, o braço da cruz para “média”, e a ponta inferior para “ruim”.
Os furos mantêm-se distintos e são decifrados facilmente nas horas de ócio. O objeto, o lugar e a
data são escritos no papel. Usei esse plano para os meus dados de beleza, classificando as
garotas por quem eu passava nas ruas ou outros lugares como atraentes, comuns ou repelentes.
Trata-se, claro, de uma estimativa puramente pessoal, mas coerente, a julgar pela conformidade
das diferentes tentativas realizadas com a mesma população. Descobri que Londres possuía a
maior quantidade de beleza, Aberdeen, a menor.

O seu judicioso método para a esteatopigia foi, na minha opinião, ainda mais engenhoso (e
provavelmente bem mais preciso, se todas aquelas provas de trigonometria do colegial funcionam
mesmo). Na sua Narration of an Explorer in Tropical South África, ele escreve (meus
agradecimentos a Raymond B. Hay da Universidade de Washington por me enviar esta passagem):

O subintérprete era casado com uma pessoa encantadora, não apenas uma hotentote na aparência,
mas, nesse aspecto, uma Vénus entre os hotentotes. Fiquei perfeitamente estupefato diante do seu
desenvolvimento, e fiz indagações a respeito desse delicado ponto tanto quanto me atrevi junto
aos meus amigos missionários. ... Professo ser um homem científico, e estava por demais ansioso
para obter medidas exatas da sua forma; mas havia uma dificuldade para fazê-lo. Eu não sabia
uma palavra de hotentote e, portanto, nunca poderia explicar à dama qual poderia ser o objeto da
minha bitola; e, realmente, eu não me atrevia a pedir ao meu digno missionário que atuasse como
meu intérprete. Portanto, estava num dilema, enquanto contemplava a sua forma, aquela dádiva da
generosa natureza a essa raça exuberante, que um fabricante de mantôs, com todas as suas
crinolinas e enchimentos, pode apenas humildemente imitar. O objeto da minha admiração estava
de pé sob uma árvore, voltando-se para todos os pontos cardeais, como geralmente fazem as
damas que desejam ser admiradas. Súbito, o meu olhar pousou sobre o sextante; ocorreu-me a
brilhante ideia, e eu extraí uma série de observações da sua figura, em todas as direções, de cima
para baixo, transversalmente, diagonalmente, e assim por diante, registrando-as com todo o
cuidado num esboço da sua imagem para que não houvesse nenhum erro; feito isso,
corajosamente saquei a minha fita métrica e medi a distância de onde eu estava até o lugar onde
ela sê encontrava, calculando os resultados por meio de trigonometria e logaritmos.
A própria Saartjie Baartman continua a nos fascinar através dos tempos; a exploração a seu
respeito, de fato, nunca terminou. Numa loja de antiguidades de Johannesburgo (ver ensaio 12), encontrei
e comprei a notável estampa apresentada a seguir. (Ainda não consigo vê-la sem um arrepio, apesar
do efeito humorístico pretendido, e reproduzo-a aqui na condição de um comentário sobre a história
e a realidade presente que não nos atrevemos a ignorar.) A gravura é um comentário satírico francês
(publicado em Paris no ano de 1812) sobre a fascinação dos ingleses pela exibição de Saartjie.
Intitula-se: Les curieux en extase, ou les cordons de souliers (Os curiosos em êxtase, ou os cordões
de sapato). Os espectadores concentram-se inteiramente sobre as características sexuais da Vénus
hotentote. Um cavalheiro fardado observa a esteatopigia de trás e comenta: “Oh! godem quel
rosbif”. O segundo homem de uniforme e a senhora elegantemente trajada estão tentando dar uma
espiada no tablier de Saartjie. (Este é o detalhe sutil que um observador não informado não
perceberia. Saartjie exibia as nádegas mas, seguindo os costumes do seu povo, nunca descobria o
tablier.) O homem exclama “como é estranha a natureza”, enquanto a mulher, com esperanças de
obter uma vista melhor de baixo, inclina-se a pretexto de amarrar os cordões dos sapatos (daí o
título). Enquanto isso, o cão nos lembra que, sob os nossos diversos trajes, somos todos o mesmo
objeto biológico.
Para atualizar a exploração, W. B. Deatrick enviou-me a capa da revista francesa Photo de maio
de 1982. Ela mostra uma mulher nua que se autodenomina “Carolina, la Vénus hottentote de Saint-
Domingue”. Ela segura à sua frente uma garrafa destampada de champanhe. A espuma passa voando
por cima da sua cabeça, atravessa a letra O do título da revista, cai por trás dela, diretamente no
copo, o qual se encontra sobre as nádegas espichadas da jovem, que se abaixa (para imitar os dotes
de Saartjie).
20. A filha de Carrie Buck

O Senhor foi sem dúvida bastante claro naquele protótipo de todas as prescrições, os Dez
Mandamentos:

... eu sou o Senhor teu Deus, forte e zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos até a
terceira e a quarta geração daqueles que me odeiam.
(Ex. 20:5)

O terror desta declaração reside na sua evidente injustiça — a sua promessa de punir a prole
inocente pelos pecados dos seus distantes ancestrais.
Uma forma diferente de culpa por associação genealógica tenta remover esse estigma de injustiça
negando uma premissa cara ao pensamento ocidental — o livre-arbítrio humano. Se a prole estiver
maculada, não apenas pelos atos dos seus pais, mas por alguma forma concreta de mal, transferida
diretamente por meio de herança biológica, então a “iniquidade dos pais” torna-se um sinal ou
advertência contra a provável má conduta dos seus filhos. Assim, Platão, ao mesmo tempo em que
negava que os filhos devessem sofrer diretamente pelos crimes dos pais, defendia, não obstante, o
exílio de um homem pessoalmente inocente, mas cujo pai, avô e bisavô houvessem todos sido
condenados à morte.
Talvez seja uma simples coincidência o fato de que tanto Jeová quanto Platão tenham escolhido
três gerações como critério para estabelecer diferentes formas de culpa por associação. No entanto,
nós conservamos uma forte tradição popular, ou vulgar, de encarar ocorrências triplas como provas
mínimas de regularidade. Coisas ruins, como nos dizem, vêm em três. Duas podem representar uma
associação acidental; três formam um padrão. Talvez, então, não devêssemos nos admirar de que o
mais famoso pronunciamento de culpa por parentesco do nosso século tenha empregado o mesmo
critério — a defesa de Oliver Wendell Holmes da esterilização compulsória no Estado de Virgínia
(decisão da Suprema Corte, de 1927, no caso Buck versus Bell): “três gerações de imbecis são
suficientes”.
Restrições à imigração, com quotas nacionais estabelecidas como discriminação contra os
considerados mentalmente inaptos de acordo com as primeiras versões dos testes de QI, marcaram o
maior triunfo do movimento americano de eugenia — a imperfeita doutrina de hereditariedade, tão
popular no início do nosso século e, absolutamente, não desaparecida hoje (ver ensaio seguinte), que
tentava “melhorar” o nosso plantei humano impelindo a propagação dos que eram considerados
biologicamente inadequados e encorajando a procriação entre os supostamente adequados. Mas o
movimento para decretar e fazer executar leis de esterilização “eugênica” compulsória tiveram um
impacto e um sucesso quase que igualmente pronunciados. Se podíamos fechar as nossas praias aos
ineptos e estúpidos, podíamos também impedir a propagação dos que eram afligidos de modo
semelhante, mas que já estavam aqui.
O movimento pela esterilização compulsória começou de verdade durante a década de 1890,
favorecido por dois fatores principais — a ascensão da eugenia como movimento político influente e
o aperfeiçoamento de operações seguras e simples (a vasectomia nos homens, e a salpingectomia, o
corte e amarramento das trompas de Falópio, nas mulheres) para substituir a castração e outras
formas socialmente inaceitáveis de mutilação. O Estado de Indiana aprovou a primeira lei de
esterilização baseada em princípios de eugenia em 1907 (alguns Estados haviam ordenado a
castração antes, como medida punitiva contra certos crimes sexuais, embora tais leis fossem
executadas raras vezes sendo em geral derrubadas pela revisão judicial). Como tantas outras que
viriam a seguir, ela previa a esterilização de pessoas afetadas que vivessem do “cuidado” do Estado,
fosse como internos de hospitais para dementes e asilos para débeis mentais, fosse como habitantes
de prisões. A esterilização podia ser imposta aos que fossem julgados loucos, idiotas, imbecis ou
mentecaptos, e a estupradores ou criminosos condenados, quando tal fosse recomendado por um
conselho de especialistas.
Na década de 1930, mais de trinta Estados haviam decretado leis semelhantes, muitas vezes com
uma lista aumentada de, como eram chamados, defeitos hereditários, que incluía o alcoolismo e o
vício em drogas em alguns Estados, e até mesmo a cegueira e a surdez em outros. Na maioria dos
Estados essas leis foram desafiadas continuamente e executadas raras vezes; apenas a Califórnia e a
Virgínia as aplicaram com zelo. Em janeiro de 1935, cerca de 20.000 esterilizações “eugênicas”
forçadas haviam sido feitas nos Estados Unidos, quase a metade delas na Califórnia.
Nenhuma organização lutou tão clamorosamente e com tanto sucesso por essas leis como o
Eugenics Record Office, o braço semioficial e repositório de dados do movimento americano pela
eugenia. Harry Laughlin, superintendente do Eugenics Record Office, dedicou a maiorparte da sua
carreira a uma campanha incansável de escritos e pressão política a favor da esterilização eugênica.
Com isso, ele tinha esperanças de eliminar em duas gerações os genes do que ele chamava o “décimo
submerso” — “a décima parte mais inútil da nossa atual população”. Ele propôs em 1922 uma “lei-
modelo de esterilização”, com o fim de

impedir a procriação de pessoas socialmente inadequadas devido a herança defeituosa,


autorizando e provendo a esterilização eugênica de certos pais potenciais com qualidades
hereditárias degeneradas.
Esse projeto de lei modelo tornou-se o protótipo da maioria das leis decretadas nos Estados
Unidos, embora poucos Estados as fizessem tão abrangentes quanto Laughlin aconselhara. (As
categorias de Laughlin incluíam “cegos, inclusive os indivíduos com visão seriamente debilitada;
surdos, inclusive os indivíduos com audição seriamente debilitada; e dependentes, inclusive órfãos,
inúteis, desabrigados, vagabundos e mendigos”.) As sugestões de Laughlin foram melhor observadas
na Alemanha nazista, onde a sua lei-modelo inspirou o infame e rigorosamente executado
Erbgesundheitsrecht, que, às vésperas da Segunda Guerra Mundial havia levado à esterilização
forçada cerca de 375.000 pessoas, a maioria por “debilidade mental congênita”, mas incluindo quase
4.000 por cegueira e surdez.
A campanha nos Estados Unidos pela esterilização eugênica compulsória alcançou o clímax e o
auge da respeitabilidade em 1927, quando a Suprema Corte, por uma votação de 8 a 1, sustentou a lei
de esterilização no Estado de Virgínia no caso Buck versus Bell. Oliver Wendell Holmes, então com
seus oitenta e poucos anos, o mais famoso juiz dos Estados Unidos, escreveu a opinião da maioria
com a costumeira verve e força de estilo. Ela incluía o notório parágrafo, com a sua arrepiante frase-
chave, desde então citada como a expressão consumada do princípio eugênico. Relembrando com
orgulho as suas experiências distantes como soldado de infantaria na Guerra Civil, Holmes escreveu:

Vimos em mais de uma ocasião que o bem-estar público pode pedir a vida dos seus melhores
cidadãos. Seria estranho se não pudesse pedir estes sacrifícios menores àqueles que já sugam a
força do Estado. ... Seria melhor para todo o mundo, se, em vez de esperarmos para executar por
causa de crime a prole degenerada, ou deixar que ela morra de fome por causa da imbecilidade, a
sociedade pudesse impedir de propagar a sua espécie, os que são manifestamente incapacitados.
O princípio que sustenta a vacinação compulsória é bastante abrangente para incluir o corte das
trompas de Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes.

Quem foram, então, as famosas “três gerações de imbecis”, e por que ainda deveriam arrebatar o
nosso interesse?
Quando o Estado de Virgínia decretou a sua lei de esterilização compulsória em 1924, Carrie
Buck, uma mulher branca, de dezoito anos, vivia como residente involuntária da Colônia Estadual
para Epilépticos e Deficientes Mentais. Na condição de primeira pessoa selecionada para a
esterilização pela nova lei, Carrie Buck tornou-se o foco de um desafio constitucional lançado, em
parte, pelos conservadores Cristãos da Virgínia, os quais sustentavam, segundo os modernistas
eugênicos, pareceres “antiquados” sobre preferências individuais e o poder estatal “benevolente”.
(Rótulos políticos simplistas não são adequados neste caso e, diga-se de passagem, raramente o são.
Costumamos considerar a eugenia como um movimento conservador e os seus críticos mais ruidosos
como membros da esquerda. Esse alinhamento tem sido geralmente válido na nossa década. Mas a
eugenia, aclamada na sua época como a última palavra em modernismo científico, atraiu muitos
liberais e, dentre os seus críticos mais ferozes, contava com grupos muitas vezes catalogados como
reacionários e anti- científicos. Se alguma lição política emerge dessas alianças oscilantes,
poderíamos considerá-la como sendo a inalienabilidade genuína de certos direitos humanos.)
Mas por que Carrie Buck estava na Colônia Estadual e por que ela foi selecionada? Oliver
Wendell Holmes defendeu a escolha como sensata nas linhas iniciais do seu parecer de 1927:

Carrie Buck é uma mulher branca, débil mental, que foi posta sob a custódia da Colônia Estadual.
... Ela é filha de uma mãe débil mental da mesma instituição, e mãe de uma filha débil mental
ilegítima.

Em resumo, a herança colocava-se como questão crucial (na verdade, como a força propulsora
por trás de toda a eugenia). Pois, se a deficiência mental medida surgisse da má nutrição, do corpo
ou do espírito, e não de genes maculados, como poderia ser justificada a esterilização? Se
alimentação, criação, cuidado médico e educação decentes pudessem fazer da filha de Carrie Buck
uma cidadã digna, como o Estado de Virgínia poderia justificar o corte das trompas de Falópio de
Carrie contra a sua vontade? (Algumas formas de deficiência mental são transmitidas por herança em
linhas familiares, mas a maior parte delas não — uma conclusão pouco surpreendente quando
consideramos os milhares de choques que nos perseguem a todos durante as nossas vidas, de
anomalias no desenvolvimento embriológico até
traumas de nascimento, má nutrição, rejeição e pobreza. De qualquer modo, nenhuma pessoa com
mentalidade justa daria crédito aos critérios sociais de Laughlin para a identificação de deficiências
hereditárias — inúteis, desabrigados, vagabundos e mendigos — embora, como em breve veremos,
Carrie Buck tenhá sido condenada com base nesses fundamentos).
Quando o caso de Carrie Buck surgiu na condição de prova crucial para a lei do Estado de
Virgínia, os chefões da eugenia compreenderam que havia chegado a hora de falar ou calar sobre a
questão crucial da herança. Assim, o Eugenics Record Office enviou Arthur H. Estabrook, o seu
“grande” pesquisador de campo, até a Virgínia, para um estudo “científico” do caso. O próprio Harry
Laughlin prestou um depoimento, e a sua súmula a favor da herança foi apresentada no julgamento
local que confirmou a lei da Virgínia e que posteriormente conseguiu chegar à Suprema Corte como o
caso Buck versus Bell.
Laughlin insistiu em dois temas importantes perante o tribunal. Primeiro, o de que Carrie Buck e
a sua mãe, Emma Buck, eram débeis mentais segundo o teste de QI de Stanford-Binet, o qual, na
época, encontrava-se na sua infância. Carrie conseguia a marca de uma idade mental de nove anos,
Emma, de sete anos e onze meses. (Esses números classificavam-nas tecnicamente como “imbecis”,
segundo as definições da época, daí a posterior escolha de palavras de Holmes — embora a sua
infame frase seja muitas vezes citada erroneamente como “três gerações de idiotas”. Para completar
a antiga nomenclatura da deficiência mental, os imbecis exibiam uma idade mental de seis a nove
anos; os idiotas saíam-se pior e os mentecaptos, melhor). O segundo, de que a maior parte dos tipos
de deficiência mental reside ineluta- velmente nos genes, e de que o caso de Carrie Buck situava-se
com certeza dentre dessa maioria. Laughlin relatou:

A deficiência mental geralmente é causada pela herança de qualidades degeneradas, mas às vezes
pode ser causada por fatores ambientais que não são hereditários. No caso dado, há indícios
muito fortes de que a deficiência mental e a delinquência moral de Carrie Buck devem-se, antes
de mais nada, à herança e não ao ambiente.

A filha de Carrie Buck era então, e tem sido sempre, a figura central desse doloroso caso.
Observei no início deste ensaio que nos inclinamos (muitas vezes em risco próprio) a considerar
duas ocorrências como um acidente potencial e três como um padrão estabelecido. A suposta
imbecilidade de Emma e Carrie poderia ter sido uma coincidência infeliz, mas o diagnóstico de uma
deficiência semelhante em Vivian Buck (feito por uma assistente social, como veremos, quando
Yivian tinha apenas seis meses) inclinou a balança a favor de Laughlin e levou Holmes a declarar a
linhagem de Buck inerentemente corrupta por causa de herança deficiente. Yivian selava o padrão —
três gerações de imbecis são suficientes. Além disso, se Carrie não tivesse Vivian ilegitimamente,
nada teria vindo à luz (em duplo sentido).
Oliver Wendell Holmes encarou o seu trabalho com orgulho. O homem tão famoso pelo seu
princípio de comedimento judiciário, que proclamara que a liberdade não devia ser restringida sem
“perigo nítido e presente” — sem o equivalente de gritar “fogo” num teatro lotado, quando não há
fogo — escreveu sobre o seu julgamento em Buck versus Bell: “Senti que estava próximo do
primeiro princípio de reforma real.”
E assim Buck versus Bell permaneceu por cinquenta anos uma nota de rodapé de um momento da
história americana que talvez fosse melhor esquecer. Então, em 1980, ele ressurgiu para espetar a
nossa consciência coletiva, quando o dr. K. Ray Nelson, então diretor do Lynchburg Hospital, onde
Carrie Buck fora esterilizada, pesquisou os registros da instituição e descobriu que 4.000
esterilizações haviam sido executadas, a última em 1972. Ele também encontrou Carrie Buck, viva e
passando bem, perto de Charlottesville, além de sua irmã, Doris, esterilizada dissimuladamente com
base na mesma lei (disseram- lhe que se tratava de uma operação de apendicite), agora, com uma
dignidade feroz, arrasada e amarga porque queria um filho mais do que qualquer outra coisa na vida
e finalmente descobrira, na velhice, por que nunca havia concebido.
À medida que especialistas e repórteres visitavam Carrie Buck e a irmã, o que alguns poucos
especialistas sabiam o tempo todo tomou-se fartamente claro para todos. Carrie Buck era uma mulher
de inteligência obviamente normal. Por exemplo, Paul A. Lombar do, da Faculdade de Direito da
Universidade de Virgínia, e um dos maiores conhecedores do caso Buck v. Bell, escreveu, numa carta
dirigida a mim:

Quanto a Carrie, quando a encontrei, ela lia jornais diariamente e reunia- se com uma amiga mais
instruída para que ela a ajudasse nas pelejas regulares com as palavras cruzadas. Não era uma
mulher refinada e faltava-lhe o requinte social, mas os profissionais de saúde mental que a
examinaram posteriormente confirmaram a minha impressão de que ela não era mentalmente
enferma ou retardada.

Então, com base em que indícios Carrie Buck foi confiada à Colônia Estadual para Epilépticos e
Deficientes Mentais em 23 de janeiro de 1924? Vi o texto da audiência de internamento; ele é, no
mínimo, superficial e contraditório. Além da autoridade dos pais adotivos, nua e sem documentação,
e de uma rápida apresentação perante uma comissão de dois médicos e um juiz de paz, nenhuma
prova foi apresentada. Nem mesmo o tosco e ainda jovem teste Stanford-Binet, tão fatalmente
inadequado como medida de valor inato (ver meu livro, The Mismeasure of Man, embora os indícios
do caso de Buck sejam suficientes) fora aplicado.
Quando entendermos por que Carrie Buck chegou a ser internada em 1924, conseguiremos
finalmente compreender o significado oculto do seu caso e a sua mensagem para nós hoje. A solução
silenciosa é, mais uma vez, como foi desde o início, sua filha, Vivian, nascida em 28 de março de
1924, e, na época, apenas uma saliência evidente na sua barriga. Carrie Buck foi uma dentre os
vários filhos ilegítimos que sua mãe, Emma Buck, deu à luz. Ela cresceu com pais adotivos, J. T. e
Alice Dobbs, e continuou morando com eles quando adulta, ajudando nos serviços de casa. Foi
violentada por um parente dos pais adotivos e depois culpada pela gravidez resultante. Quase que
com certeza, ela veio a ser (como costumavam dizer) internada para esconder a sua vergonha (e a
identidade do estuprador), não porque a ciência esclarecida acabava de descobrir o seu verdadeiro
estado mental. Em resumo, ela foi mandada embora para ter o filho. O seu caso nunca foi de
deficiência mental; Carrie Buck foi perseguida por suposta imoralidade sexual e comportamento
social divergente. Os anais do julgamento e da audiência têm o fedor do orgulho dos bem de vida e
bem criados pelas pessoas pobres de “moral frouxa’’. Ninguém iria mesmo se importar em saber se
Vivian era ou não um bebê de inteligência normal; ela era filha ilegítima de uma filha ilegítima. Duas
gerações de bastardos são suficientes. Harry Laughlin iniciou a “história de família” dos Buck
escrevendo: “Estas pessoas pertencem à classe inepta, ignorante e inútil de brancos antissociais do
sul.”
Pouco sabemos sobre Emma Buck e sua vida, mas não temos maiores motivos para suspeitar da
sua deficiência mental bem como da de sua filha Carrie. O suposto desvio de ambas foi social e
sexual; a acusação de imbecilidade veio a ser apenas um disfarce, o sr. juiz Holmes não obstante.
Chegamos então ao ponto crucial do caso, a filha de Carrie, Vivian. Que indícios foram
apresentados para provar a sua deficiência mental? Este e apenas este: no julgamento original, no fim
de 1924, quando Vivian Buck tinha sete meses, uma certa srta. Wilhelm, assistente social da Cruz
Vermelha, compareceu perante o tribunal. Ela começou por declarar honestamente o verdadeiro
motivo para o internamento de Carrie Buck:

O senhor Dobbs, que tinha a guarda da jovem, tendo-a acolhido ainda pequena, havia contado à
srta. Duke [secretária temporária do Bem- Estar Público da Comarca de Albemarle] que a jovem
estava grávida e que ele queria que fosse internada em algum lugar — que fosse enviada para
alguma instituição.

A srta. Wilhelm forneceu então o seu julgamento sobre Vivian Buck comparando-a com a neta
normal da sra. Dobbs, nascida apenas três dias antes:
É difícil julgar as probabilidades de uma criança tão jovem quanto essa, mas ela não me parece
um bebê inteiramente normal. Na aparência — devo dizer que talvez o meu conhecimento da mãe
possa me tornar preconceituosa nesse aspecto, mas eu vi a criança na mesma época em que vi o
bebê da filha da sra. Dobbs, que é apenas três dias mais velha do que essa, e existe uma
diferença indiscutível no desenvolvimento dos bebês. Isso foi há, mais ou menos, duas semanas.
Existe algo nela que não é inteiramente normal, mas exatamente o que é, eu não sei dizer.

Este breve depoimento, e nada mais, constituiu toda a prova para a crucial terceira geração de
imbecis. Um novo interrogatório revelou que nem Vivian nem a neta dos Dobbs sabia andar ou falar,
e que o bebê da “sra. Dobbs é uma menina bastante receptiva. Quando você brinca com ela ou tenta
atrair a sua atenção — é um bebê com quem se pode brincar. A outra não. Ela parece bastante apática
e bem pouco receptiva”. A srta. Whilhelm então instigou a esterilização de Carrie Buck: “Eu acho”,
disse ela, “que isso pelo menos impediria a propagação dos da sua espécie.” Vários anos depois, a
srta. Whilhelm negou que houvesse examinado Vivian ou que houvesse considerado a criança débil
mental.
Infelizmente, Vivian morreu com oito anos de “enterocolite” (tal como registrado no certificado
de óbito), um diagnóstico ambíguo que pode significar muitas coisas, mas que pode muito bem
indicar que ela foi vítima de uma das doenças infantis evitáveis, derivadas da pobreza (um
desagradável lembrete da verdadeira questão em Buck versus Bell). Ela está, portanto, emudecida
como testemunha na nossa reavaliação do famoso caso.
Quando Buck versus Bell voltou à tona em 1980, ocorreu-me imediatamente que o caso de Vivian
era de extrema importância, e que os indícios quanto à condição mental de uma criança morta aos
oito anos poderiam ser encontrados em boletins escolares. Portanto, nos últimos quatro anos, saí em
busca dos registros escolares de Vivian Buck e finalmente consegui. (Eles me foram fornecidos pelo
dr. Paul A. Lombardo, que também me enviou outros documentos, inclusive o depoimento da srta.
Wilhelm, e que gastou horas respondendo às minhas perguntas por carta, e Deus sabe quanto tempo
bancando o detetive bem-sucedido no que se refere aos registros escolares de Vivian. Nunca conheci
o dr. Lombardo; ele fez todo o trabalho por gentileza, espírito acadêmico e amor ao jogo do
conhecimento, não na expectativa de recompensa ou mesmo por reconhecimento. Numa profissão —
a acadêmica — tantas vezes prejudicada por banalidades e brigas tolas por causa de prioridades sem
sentido, essa generosidade deve ser registrada e celebrada como um sinal de como as coisas podem
e deveriam ser.)
Vivian Buck foi adotada pela família Dobbs, que havia criado (mas depois mandado embora) sua
mãe, Carrie. Com o nome de Vivian Alice Elaine Dobbs, ela frequentou a Venable Public Elementary
School de Charlottesville durante quatro períodos, de setembro de 1930 até maio de 1932, um mês
antes da sua morte. Foi uma estudante perfeitamente normal, inteiramente dentro da média, nem
particularmente destacada, nem muito problemática. Naqueles dias, antes da inflação das notas,
quando C queria dizer “bom, 81-87” (tal como definido no boletim) e não apenas aprovado
“raspando”, Vivian Dobbs recebeu A e B por comportamento e C em todas as matérias acadêmicas,
menos matemática (que sempre foi difícil para ela, e na qual tirou D) durante o seu primeiro período,
na série IA, de setembro de 1930 a janeiro de 1931. Ela progrediu durante o segundo período, na
série 1B, merecendo um A em comportamento, C em matemática e B em todas as outras matérias
acadêmicas; foi colocada na lista de louvor em abril de 1931. Promovida para a 2A, teve problemas
durante o período de outono de 1931, sendo reprovada em matemática e ortografia, mas recebendo A
em comportamento, B em leitura e C em composição e inglês. Foi “retida na 2A” pelo período
seguinte — ou “repetiu”, como costumávamos dizer, algo que, quando me lembro de todos os meus
camaradas que tiveram o mesmo destino, dificilmente pode ser caracterizado como sinal de
imbecilidade. De qualquer modo, ela mais uma vez se saiu bem no período final, com B em
comportamento, leitura e ortografia, e C em composição, inglês e matemática durante o seu último
mês na escola. Essa filha de mulheres “lascivas e imorais” teve comportamento excelente e um
desempenho adequado, ainda que não brilhante, nas matérias acadêmicas.

Em resumo, só podemos concordar com a conclusão a que o dr. Lombardo chegou na sua
pesquisa sobre Buck versus Bell — não havia imbecis, uma que fosse, nas três gerações dos Buck.
Sei que tais correções de erros passados, mas esquecidos da história, não valem grande coisa; no
entanto, acho simbólico e satisfatório descobrir que a esterilização eugênica compulsória, um
procedimento de moralidade tão dúbia, tenha conseguido a sua justificação (e ganho a sua frase
retórica mais citada) fundamentando-se numa falsidade patente.
Carrie Buck morreu no ano passado. Por um capricho do destino, e não por lembrança ou
propósito, ela foi enterrada a apenas alguns passos do túmulo de sua única filha. No enésimo e
definitivo verso de uma velha balada favorita, uma rosa e uma sarça — o doce e o amargo —
emergem das tumbas de Barbara Allen e de seu amante, entrelaçando-se na união da morte. Que
Carrie e Vivian, vítimas de modo diferentes, na flor da idade, descansem em paz juntas.
21. O patrimônio (e o matrimônio) de Cingapura

Alguns argumentos históricos são tão intrinsecamente ilógicos ou implausíveis que, após caírem
em descrédito, não prevemos nenhuma espécie de ressureição subsequente em tempos e contextos
posteriores. O desaparecimento de algumas ideias deveria ser tão irrevogável quanto a extinção das
espécies.
De todas as noções inválidas da eugenia — a tentativa de “melhorar” as qualidades humanas por
meio de cruzamentos seletivos — nenhuma me parece tão tola ou egoísta quanto a tentativa de inferir
a “inteligência” intrínseca, de base genética, das pessoas, a partir do número de anos em que elas
freqüentaram a escola. Gente burra, como dizia o argumento, simplesmente não dá certo na sala de
aula; elas abandonam a educação formal tão logo é possível. A falácia, claro, encontra-se na mistura,
mais exatamente na inversão, de causa e efeito. Não negamos que os adultos que nos impressionam
como inteligentes em geral (mas não sempre, em absoluto) pasSaram vários anos na escola. Mas o
bom senso obriga-nos a reconhecer que boa parte das suas realizações é resultado do próprio ensino
e do aprendizado (e dos meios ambientes econômicos e intelectuais favoráveis que permitem o luxo
da educação avançada), e não de um patrimônio genético que os manteve nos bancos escolares. A
menos que a educação seja uma monumental perda de tempo, os professores devem transmitir e os
alunos receber algo de valor.
Essa explicação invertida faz tanto sentido que mesmo os mais firmes adeptos da eugenia
abandonaram a versão genética original há muito tempo. O argumento genético foi bastante popular
desde o início das avaliações de QI no começo do século até meados da década de 1920, mas quase
não encontro referências a ele desde então — em- bra Cyril Burt, aquele grande farsante e
desacreditado líder veterano dos adeptos da hereditariedade, tenha mesmo escrito em 1947:
É impossível um jarro de um quartilho conter mais de um quartilho de leite; e é igualmente
impossível que as conquistas educacionais de uma criança sejam mais altas do que permite a sua
capacidade de ser educada.
No meu exemplo favorito da versão genética original, o psicólogo de Harvard, R. M. Yerkes,
submeteu a testes quase dois milhões de recrutas para o seu exército durante a Primeira Guerra
Mundial e calculou um coeficiente de correlação de 0,75 entre inteligência medida e anos de
escolaridade. Ele concluiu:

A teoria de que a inteligência inata é um dos fatores condicionantes de maior importância na


permanência na escola é sem dúvida sustentada por esta coleta de dados.

Yerkes notou então uma correlação adicional entre as marcas baixas obtidas pelos negros nos
testes e a escolaridade limitada ou inexistente. Ele parecia prestes a fazer uma observação social
significativa ao escrever:

Os recrutas negros, embora criados neste país, onde a educação elementar supostamente é não
apenas gratuita, mas também compulsória, revelam ausência de escolaridade numa proporção
notavelmente grande.
Mas ele imprimiu aos dados a costumeira distorção genética, argumentando que uma falta de
inclinação para frequentar a escola só podia refletir uma falta inata de inteligência. Ele não disse
nem uma palavra sobre a má qualidade (e os maus orçamentos) das escolas segregadas ou sobre a
necessidade prematura de emprego remunerado entre os pobres. (Ashley Montagu reexaminou os
volumosos dados de Yerkes vinte anos depois e, numa famosa dissertação, demonstrou que os negros
de vários Estados nortistas, com orçamentos escolares generosos e compromissos firmes com a
educação, se saíram melhor nos testes de que os brancos sulistas com o mesmo tempo de
escolaridade. Quase pude ouvir os eugenistas da velha guarda resmungando nas suas covas: “Sim,
mas, só os pretos mais inteligentes foram espertos o suficiente para se mudar para o norte”).
De qualquer modo, nunca esperei que a argumentação de Yerkes fosse ressuscitada como arma da
hereditariedade no contínuo debate sobre a inteligência humana. Eu estava errado. A reencarnação é
particularmente curiosa porque vem de um local e de uma cultura muito distantes do contexto original
dos testes de QI da Europa ocidental e dos Estados Unidos. Isso deveria nos ensinar que os debates
entre acadêmicos nem sempre são exibições impotentes de uma misteriosa ginástica mental, como
são muitas vezes retratados nas nossas sátiras e estereótipos, mas que as ideias podem ter
consequências sociais importantes, com impactos sobre as vidas de milhões de pessoas. Noções
antigas podem ressurgir mais tarde, muitas vezes em contextos curiosamente alterados, mas a sua
fonte ainda pode ser reconhecida e remontada a asserções feitas em nome da ciência e que, no
entanto, nunca tiveram outro fundamento real que não os preconceitos sociais (com frequência
negados) dos seus propositores. As ideias têm importância de modo tangível.
Recebi recentemente de alguns amigos de Cingapura um grosso pacote de reportagens xerocadas
da imprensa de língua inglesa da sua nação. Essas páginas cobriam um debate que vem sacudindo o
país desde agosto de 1983, quando, no seu discurso do Dia Nacional (pelo que entendi, um
equivalente da mensagem State of union nos Estados Unidos), o primeiro-ministro Lee Kwan Yew
abandonou o costumeiro relato de perspectivas econômicas e progresso e, ao contrário, devotou as
suas observações ao que ele considera o grande perigo que ameaça a nação. A manchete do dia 15 de
agosto do Straits Times (Cingapura já foi a cidade principal de uma colônia britânica chamada
Straits Settlement) diz: “Amarre-se... e não pare no primeiro. PM prevê o esgotamento da fonte de
talento em 25 anos, a menos que os mais instruídos se casem e tenham mais filhos.”
O primeiro-ministro Lee havia estudado os números do recenseamento de 1980 e encontrado uma
relação perturbadora entre os anos que as mulheres passam na escola e o número de filhos nascidos
depois. Especificamente, o sr. Lee percebeu que as mulheres sem instrução têm, em média, 3,5 filhos;
as com educação primária, 2,7; as com escolaridade secundária, 2,0; e as com diplomas
universitários, apenas 1,65. Ele afirmou:

Quanto mais instruídas são as pessoas, menos filhos elas têm. Elas conseguem perceber as
vantagens de uma família pequena. Elas sabem como é duro criar uma família grande. ... Quanto
mais instruída a mulher, menos filhos ela tem.

Até aí, é claro, o primeiro-ministro Lee apenas observou na sua nação um padrão demográfico
comum a quase todas as sociedades tecnológicas modernas. Mulheres com títulos superiores e
carreiras interessantes não querem passar a vida em casa tendo filhos e criando famílias grandes. O
sr. Lee reconheceu:
Já é tarde demais para revertermos a nossa política e fazer com que as nossas mulheres voltem ao
papel primário de mães. ... Nossas mulheres não aceitarão isso. E, de qualquer modo, elas já se
tornaram um fator muito importante na nossa economia.

Mas por que esse padrão é perturbador? Ele existe há gerações em vários países, o nosso, por
exemplo, sem nenhum detrimento aparente para as nossas reservas mentais ou morais. A correlação
da educação com uma quantidade menor de filhos torna-se um dilema apenas quando nela se instila o
velho e desacreditado argumento de Yer- kes de que pessoas com menos anos de escolaridade são
irreversível e biologicamente menos inteligentes, e que a sua estupidez será herdada pela prole. O sr.
Lee propôs justamente esse argumento, iniciando desse modo aquilo que a imprensa de Cingapura
intitulou “o grande debate do casamento”.
O primeiro-ministro, é claro, não ignora que os anos de escolaridade podem refletir vantagens
econômicas e tradições de família que pouco têm a ver com inteligência herdada. Mas ele fez uma
afirmação específica que retirou a ênfase, até torná-la insignificante, da contribuição potencial de
tais fatores ambientais na quantidade de anos de escolaridade. Cingapura fez grandes e recentes
avanços na educação: a escolaridade universal foi introduzida durante a década de 1960 e as
universidades foram abertas a todos os candidatos qualificados. Antes dessas reformas, argumenta
Lee, muitas crianças geneticamente brilhantes cresceram em lares pobres e nunca receberam uma
educação adequada. Mas, afirma ele, essa única geração de oportunidade universal resolveu todas as
injustiças genéticas num único golpe. Os filhos capazes de pais pobres foram descobertos e
instruídos até o limite do seu nível de competência. A sociedade se ordenou de acordo com a
capacidade genética — e o nível de educação agora é um guia seguro da capacidade herdada.

Demos educação universal à primeira geração no começo da década de 1960. Nas décadas de
1960 e 1970, tivemos uma grande colheita de rapazes e garotas capazes. Eram filhos de pais
brilhantes, muitos dos quais nunca haviam tido instrução. Na geração de seus pais, os capazes e
os não-capazes tinham famílias grandes. Foi uma colheita excepcionalmente enorme que
provavelmente não se repetirá. Pois, assim que essa geração de pais não-instruídos, com
educação adquirida no final da década de 1960 e na de 1970, e os brilhantes chegam ao ápice, ao
nível terciário [isto é, à universidade], eles têm menos de dois filhos por mulher casada. Eles não
terão famílias grandes como os seus pais.

Lee então esboçou um quadro lúgubre da gradual deterioração genética:

Se continuarmos a nos reproduzir desta maneira desequilibrada, certamente seremos incapazes de


manter os nossos atuais padrões. Os níveis de competência declinarão. A nossa economia será
debilitada, a administração sofrerá, e a sociedade entrará em declínio. Pois, como poderemos
evitar a queda no desempenho, se, daqui a 25 anos, para cada dois indivíduos diplomados que
temos hoje (com certo exagero para que a ideia fique bem clara), haverá um diplomado, e para
cada dois operários não-instruídos haverá três?

Até agora não provei a minha proposição — a de que os piores argumentos levantados pelos
adeptos da hereditariedade nas grandes guerras dos intelectuais do Ocidente ao redor do tema
qualidades inatas versus influências externas podem ressurgir com grande impacto social em
contextos posteriores consideravelmente diversos. As afirmações do sr. Lee certamente soam como
uma repetição do debate sobre imigração nos Estados Unidos durante o início da década de 1920 ou
da longa controvérsia na Grã-Bretanha sobre o estabelecimento de escolas separadas, patrocinadas
pelo Estado (feito durante vários anos), para crianças brilhantes e para crianças lamentavelmente
ignorantes. Afinal, é fácil elaborar argumentos, ainda que falhos. Talvez o primeiro-ministro de
Cingapura os tenha reinventado, sem nenhuma informação sobre as encarnações ocidentais mais
antigas.
No entanto, outra passagem fundamental do discurso de Lee — a que provocou ondas de
reconhecimento e me inspirou a escrever este ensaio — localiza a fonte das suas asserções nas
antigas falácias da literatura ocidental. Deixei de lado uma parte crucial da argumentação — a
justificação “positiva” de uma predominância da hereditariedade no progresso intelectual (em
oposição à asserção meramente negativa de que a educação universal deveria uniformizar qualquer
componente ambiental). Numa passagem que provocou um arrepio de déjà- vu na espinha, Lee
declarou que:

O desempenho de uma pessoa depende das qualidades inatas e das influências externas. Há
indícios crescentes de que as qualidades inatas, ou aquilo que é herdado, é um fator determinante
maior do que as influências externas (ou educação e ambiente) no desempenho de uma pessoa. ...
A conclusão que os pesquisadores extraem é que 80% vêm da natureza, ou são herdados, e que
20% vêm das diferenças de ambiente e criação.

Note-se a expressão delatora: “80%” (suplementada pelas referências específicas de Lee a


estudos de gêmeos idênticos criados separadamente). Todos os cognoscenti do debate ocidental
reconhecerão de imediato a fonte dessa asserção na “cifra-padrão”, tantas vezes citada pelos adeptos
da hereditariedade (especialmente por Arthur Jensen, no notório artigo de 1969, intitulado “How
much can we boost IQ and scholastic achievement” (Em quanto podem ser fomentados o QI e o
aproveitamento escolar?), de que o QI tem 80% de hereditário.
As falácias desta fórmula de 80%, tanto de fato quanto de interpretação, foram expostas à
exaustão, mas aparentemente, e lamentavelmente, esse aspecto do debate não chegou a Cingapura.
Quando Jensen defendeu os 80% de hereditariedade, a sua principal defesa repousava no estudo
de Cyril Burt de gêmeos idênticos separados no início da vida e criados longe um do outro. Burt, o
grande ancião da hereditariedade, escreveu o seu primeiro trabalho em 1909 (apenas quatro anos
depois de Binet publicar o seu teste inicial de QI) e continuou, com uma coerência inabalável, a
propor os mesmos argumentos até a sua morte em 1971. O seu estudo de gêmeos separados
conquistou uma fama especial porque ele conseguiu acumular uma amostragem enorme desses
raríssimos animais — mais de cinquenta casos — enquanto nenhum pesquisador antes dele
conseguira encontrar sequer a metade. Agora sabemos que o “estudo” de Burt foi talvez o caso mais
espetacular e rematado de fraude científica do nosso século — não há problema algum em localizar
cinquenta pares de gêmeos separados quando eles só existem na sua cabeça.
Os adeptos da hereditariedade que apoiavam Burt no princípio reagiram à acusação de fraude
atribuindo a acusação a ideólogos ambientalistas de esquerda, dispostos a destruir um homem com
insinuações, já que não podiam derrotá-lo por meio de lógica ou provas. A partir do momento em que
a fraude de Burt ficou estabelecida além de qualquer possível dúvida (ver a bibliografia de L. S.
Hearnshaw, Cyril Burt, Psychologist), os antigos defensores propõem outro argumento — a cifra de
80% está tão bem estabelecida em outros estudos que a “corroboração” de Burt não tem importância.
A meu ver, a literatura a respeito de estimativas de hereditariedade no QI é uma bagunça
estonteante — com valores que vão de 80%, cifra ainda citada por Jensen e outros, até a alegação de
Leon Kamin (ver Bibliografia) de que a informação existente não é incompatível com um grau de
hereditariedade igual a zero. De qualquer modo, o número real não tem importância, pois a
argumentação de Lee repousa sobre uma falácia mais profunda e fundamental — uma interpretação
falsa do que significa hereditariedade, seja lá qual for o seu valor numérico.
O problema começa com uma equiparação comum e incorreta de hereditário com “fixo e
inevitável”. A maioria das pessoas quando escuta que o QI tem 80% de hereditariedade, conclui que
quatro quintos do seu valor estão irrevogavelmente estabelecidos nos nossos genes, com apenas um
quinto sujeito a melhoria por meio de instrução e ambiente de boa qualidade. O primeiro-ministro
Lee caiu direitinho nessa velha armadilha de raciocínio falso quando concluiu que 80% de
hereditariedade estabeleciam a predominância de qualidades inatas sobre fatores externos.
A hereditariedade, como termo técnico, mede quanto da variação no surgimento de uma
característica dentro de uma população (altura, cor de olhos, ou QI, por exemplo) pode ser explicado
por diferenças genéticas entre indivíduos. A hereditariedade simplesmente não é uma medida de
flexibilidade ou inflexibilidade na expressão potencial de uma característica. Um tipo de deficiência
visual, por exemplo, poderia ser 100% hereditária, mas, ainda assim, ser facilmente corrigida por um
par de óculos capaz de normalizar a visão. Mesmo que o QI tivesse 80% de hereditário, ele ainda
poderia estar sujeito a grande melhoria por meio de educação adequada. (Não afirmo que todas as
características hereditárias sejam facilmente alteradas; algumas deficiências visuais herdadas não
podem ser superadas por qualquer tecnologia disponível. Estou apenas assinalando que a
hereditariedade não é uma medida de biologia intrínseca e imutável.) Assim, confesso que nunca me
interessei muito pelo debate sobre a hereditariedade do QI — pois mesmo um valor bem alto (que
está longe de ser estabelecido) não diria respeito à questão principal, caracterizada com tanta
precisão por Jensen no título do seu artigo — em quanto podem ser fomentados o QI e o
aproveitamento escolar? E eu nem ao menos mencionei (e não discutirei, para que este ensaio não se
torne interminável) a falácia mais profunda deste debate inteiro — a suposição de que uma noção tão
maravilhosamente multifacetada como a inteligência possa ser medida de modo significativo por um
único número, com as pessoas sendo hierarquizadas desse modo ao longo de uma escala unilinear de
valor mental. O QI pode ter uma parcela de hereditariedade, mas se essa venerável medida de
inteligência for (como suspeito) uma abstração sem sentido, então que diferença faz? A primeira junta
do meu anelar direito provavelmente tem uma dose de hereditariedade mais alta que o QI, mas
ninguém se importa em medir o seu comprimento porque o traço não possui nem realidade
independente, nem importância.
Ao afirmar que o primeiro-ministro Lee baseou os seus temores pela deterioração intelectual de
Cingapura numa leitura falsa de alguns dados ocidentais dúbios, eu renuncio a qualquer direito de
deitar sentenças sobre os problemas de Cingapura ou sobre as suas soluções potenciais. Tenho
qualificações para fazer comentários sobre a nação do sr. Lee apenas segundo o primeiro critério da
velha piada que diz que os especialistas em outros países viveram lá por menos de uma semana ou
então por mais de trinta anos. Contudo, metido como sou, não posso resistir a duas pequenas
intromissões. Primeiro, questiono se uma nação com tradições culturais tão diversas entre os seus
setores chineses, malaios e indianos pode realmente ter expectativas de nivelar todas as influências
ambientais em apenas uma geração de oportunidade educacional. Segundo, pergunto-me se a nação
mais densamente povoada do mundo (excluindo cidades-estado tão minúsculas quanto Mônaco)
deveria mesmo encorajar uma taxa de reprodução mais alta em qualquer segmento da população.
Apesar da minha fidelidade ao relativismo cultural, ainda preservo o direito de fazer comentários
quando outras tradições pegam emprestada a ilogicidade da minha própria cultura.
A maior barreira à compreensão da questão real nesse debate histórico pode ser expressada da
melhor maneira expondo-se a abordagem falsa encorajada por aquele contraste eufônico entre dois
pretensos opostos — nature e nurture (Nature [natureza] e nurture [criação, educação, soma das
influências e condições ambientais que atuam sobre um organismo] foram traduzidos neste texto
como, respectivamente, qualidades inatas e influências externas - N.T.). (Como eu queria que o inglês
não tivesse um par tão irresistível — pois a linguagem canaliza o pensamento, muitas vezes, rumo a
direções infelizes. Em séculos passados, a felicidade de expressão sublinhando uma comparação
entre as palavras de Deus e as suas obras (Em inglês, words e works, respectivamente - N.T.).
encorajou uma leitura errônea da natureza como espelho da verdade bíblica. Na nossa época, uma
antítese imaginada entre qualidades inatas e influências externas provoca uma compartimentalização
inteiramente alheia ao nosso mundo de interações.) Todas as características humanas complexas são
construídas por uma mistura inextricável de ambientes variados operando sobre o desdobramento de
um programa contido em DNA herdado. A interação começa no momento da fertilização e continua
até o instante da morte; não podemos dividir exatamente nenhum comportamento humano em uma
parte rigidamente determinada pela biologia e uma porção sujeita a modificação por influência
externa.
A verdadeira questão é a potencialidade biológica versus o determinismo biológico. Somos
todos interacionistas; todos reconhecemos a poderosa influência da biologia sobre o comportamento
humano. Mas os deterministas, como Arthur Jensen e o primeiro-ministro Lee (pelo menos no
discurso de agosto), usam a biologia para elaborar uma teoria de limites. Na versão do sr. Lee, a
falta de escolaridade implica uma inerradicável falta de inteligência, já que, se somos subalternos, a
culpa (ou pelo menos quatro quintos dela) não se encontra realmente nas nossas estrelas, mas em nós
mesmos. Os potencia- listas reconhecem a importância da biologia, mas enfatizam que as
complexidades da interação e a resultante flexibilidade de comportamento excluem a programação
genética rígida como base para as conquistas humanas.
O determinismo tem um uso político duradouro (e contínuo) como ferramenta para justificar as
iniquidades de um status quo culpando a vítima — como John Conyers, Jr., um dos nossos poucos
congressistas negros, afirma num vigoroso artigo do New York Times de 28 de dezembro de 1983.
Conyers começa:

Na década de 1950, boa parte da literatura sociológica sobre a pobreza atribuía as dificuldades
econômicas dos negros e de outras minorias ao que eles diziam ser a indolência e a
inferioridade intelectual a elas inerentes. Isso desviava a atenção das muralhas virtualmente
intransponíveis de segregação que bloqueavam a mobilidade social e econômica.

Conyers então analisa uma literatura crescente que busca causas genéticas para as altas taxas de
mortalidade entre os negros, particularmente por causa de várias formas de câncer. “No local de
trabalho”, Conyers escreve,

os negros têm um risco 37% mais alto de doenças provocadas pelo trabalho e uma taxa de
mortalidade 20% maior devido a doenças relacionadas ao trabalho.

A suscetibilidade à doença pode ser influenciada por constituição genética, e os grupos raciais
tendem a variar quanto à propensão média. Mas se nos concentrarmos em especulações não
fundamentadas sobre heranças, negligenciamos a razão imediata do racismo e da desvantagem
econômica — pois esses problemas profundos são certamente as causas principais da discrepância,
que poderia então ser reduzida ou eliminada pela reforma social. (Como comentário político óbvio, a
localização da causa numa biologia intratável diminui a pressão pelas reformas.) Conyers prossegue:

Assim como na década de 1950, estão dizendo aos negros que os seus problemas são, em boa
parte, autoinfligidos, que a sua saúde ruim é uma manifestação de hábitos pessoais imoderados.
Tais estratégias do tipo culpar-a-vítima... servem para desviar a atenção do fato de que os
negros são os alvos de uma ameaça desproporcional de toxinas, tanto no local de trabalho, onde
lhes são confiados os trabalhos mais sujos e perigosos, quanto nas suas residências, que tendem
a estar situadas nas comunidades mais poluídas.

Como exemplo, Conyers observa que os operários siderúrgicos negros exibem uma taxa de
mortalidade por câncer duas vezes maior que a dos operários brancos, e, em particular, uma taxa de
morte por câncer pulmonar oito vezes maior que a dos brancos. “Esta disparidade”, argumenta
Conyers,

é explicável pelos padrões de trabalho: 89% dos operários negros trabalham nos fornos de
coque — a parte mais perigosa da indústria; apenas 32% dos seus companheiros brancos
realizam tais tarefas.

Devemos lutar diretamente para melhorar as condições de trabalho ou especular sobre


diferenças raciais inerentes? Mesmo se preferirmos hipóteses genéticas, só poderíamos pô-las à
prova igualando (e melhorando) os nossos locais de trabalho e depois avaliando o impacto sobre a
mortalidade. De modo semelhante, deveríamos proclamar que as mulheres com pouca escolaridade
devem ser intratavelmente estúpidas ou deveríamos remover os obstáculos sociais e econômicos,
incentivar um pouquinho mais a educação universal e ver como se saem essas mulheres? Em meio ao
grande debate do casamento em Cingapura, o Jakarta Post deu uma espiada no tumulto do vizinho e
comentou: “Seria mais sensato e menos polêmico construir mais escolas.”

Pós-escrito

Nas palavras imortais de Alice, a situação em Cingapura tornou-se “mais e mais esquisitérrima”
desde que escrevi este ensaio. Alguns relatos parecem quase cômicos, mas rimos com risco próprio
(como documentarei em breve). Logo após o discurso do primeiro-ministro Lee Kuan Yew e o furor
resultante descrito em meu ensaio original, o representante do primeiro-ministro, o dr. Goh Keng
Swee, lançou o primeiro pacote de contramedidas ao público. Elas incluíam o estabelecimento de
serviços computadorizados de dados para incrementar uniões apropriadas e instruções para que a
Universidade Nacional de Cingapura introduzisse cursos de namoro para aperfeiçoar as habilidades
de reprodutores potenciais capazes, porém tímidos. Segundo o New York Times (12 de fevereiro de
1984), a televisão estatal de Cingapura “está planejando exibir uma série que vai procurar mostrar
que mulheres bem-sucedidas, porém solteiras, são incompletas e que as suas vidas são vazias”.
Bem mais sério, e chegando perto do insidioso, o primeiro-ministro Lee agora instituiu as
primeiras medidas oficiais de preferência e incentivo. A Comissão de Planejamento Familiar de
Cingapura inverteu a sua longa política de persuasão a favor de famílias restritas a dois filhos —
mas só na propaganda dirigida aos bem instruídos. A Comissão agora empreende uma campanha com
“mensagem dupla”: “Dirão aos diplomados que cresçam e se multipliquem; junto aos menos
instruídos insistirão para que não tenham mais de dois filhos” (New York Times, 12 de fevereiro de
1984).
Como primeiro ato explícito, o governo proclamou, em janeiro de 1984, que as mulheres com
diploma universitário terão prioridade para matricular os filhos nas escolas primárias da sua
escolha. Os menos instruídos — escute essa e estremeça — terão preferência logo a seguir se
concordarem com a esterilização após o nascimento do primeiro ou do segundo filho (New York
Times, 12 de fevereiro de 1984).
Os planos do primeiro-ministro Lee não receberam aprovação universal, nem em Cingapura,
nem nos países vizinhos. Warren Y. Broc- kelman, da Universidade Manhidol de Bangkok juntou-se a
Youngyuth Yuthavong e dez outros membros da Faculdade de Ciência num vigoroso protesto
(publicado no Bangkok Post de 16 de fevereiro de 1984. Agradeço ao dr. Brockelman por enviar,
via David Woodruff, os documentos que usei para escrever este pós-escrito). Ele escrevem:

Não existe nenhuma prova de que diferenças de taxa de natalidade entre classes econômicas ou
níveis educacionais produzam quaisquer mudanças na estrutura genética de uma população
humana. ... Um aspecto particularmente contraproducente e injusto da nova política é que as
crianças nascidas de pais instruídos terão preferência sobre outras na admissão em escolas. O
efeito dessa política será assegurar que as famílias menos instruídas permaneçam sem instrução
e com taxas de natalidade altas. Ela não aumentará a fonte de talentos instruídos. Uma política
mais sensata seria dar preferência de admissão aos filhos de casais menos instruídos, para que
eles elevem o seu nível de progresso sócio-econômico e atinjam as taxas de natalidade mais
baixas geralmente associadas a tal progresso.

Na vizinha Maláisia, Chee Heng Leng e Chan Chee Khoon publicaram uma série de críticas
inspiradas pela ressurreição da eugenia em Cingapura (Designer Genes, IQ Ideology and Biology,
INSAN, Selangor, Malásia — a capa exibe a fotografia de um par de denins — marca Lee, é claro.
Deixou-me satisfeito saber que puderam incluir na coletânea um ensaio meu, de Darwin e os grandes
enigmas da vida). Os drs. Chee e Chan assinalam que há ideias semelhantes a caminho em Malásia
(embora ainda não traduzidas em política oficial), onde o primeiro-ministro Datuk Seri Dr. Mahathir
Mohamad afirmou que os malaios nativos herdaram um caráter fraco e despreocupado como
resultado do ambiente físico propício combinado com a endogamia (ao passo que os indivíduos de
etnia chinesa são um grupo mais vigoroso, criado numa terra mais dura). Chee e Chan resumem a
situação em Cingapura de modo admirável:

O que há de notável a respeito da situação presente em Cingapura é, na verdade, o modo tosco


como foi formulado o conceito de “hereditariedade de QI”. Além disso, dados ditos científicos,
que perderam toda a credibilidade nos círculos científicos há uma década, estão sendo usados
para fundamentar essas asserções. Também é admirável na situação em Cingapura que esses
pronunciamentos científicos tenham sido rapidamente transformados em políticas sociais que
favorecem descaradamente a classe alta e fazem discriminações contra a maioria pobre da
população de Cingapura.
6. Darwiniana
22. O ombro esquerdo de Hannah West e a origem da seleção natural

No seu ensaio “Technical Education”, escrito em 1877, Thomas Henry Huxley proclamou que “o
grande fim da vida não é o conhecimento, mas a ação”. Como Huxley não era nenhum desleixado
intelectual, podemos ter certeza de que ele não estava defendendo o esforço irrefletido, mas
afirmando que o conhecimento obtido com esforço conquistava o seu valor supremo na utilidade.
Como Marx escreveu na sua última tese sobre Feuerbach: ‘‘Até agora os filósofos só interpretaram
de vários modos o mundo; o que importa, porém, é modificá-lo.”
A originalidade pura é uma ilusão: todas as grandes ideias foram pensadas e expressadas antes
que um descobridor convencional as proclamasse. Copérnico não inverteu o movimento celeste
sozinho, e Darwin não inventou a evolução. Os descobridores convencionais conquistam a sua justa
reputação porque se preparam para a ação e porque compreendem a implicação plena de ideias que
predecessores exprimiram com uma apreciação escassa do seu poder revolucionário.
Todos os especialistas sabem que vários cientistas destacados — Lamarck, em particular —
desenvolveram elaborados sistemas de pensamento evolutivo antes de Darwin. Muitos supõem, no
entanto, que Darwin foi o verdadeiro criador da sua própria teoria específica de como a evolução
ocorreu — a teoria da seleção natural. No entanto, segundo a sua própria e tardia confissão (no
prefácio histórico acrescentado a edições posteriores da Origem das espécies), Darwin admitiu que
dois autores o haviam precedido na formulação do princípio da seleção natural. Ele também afirmou,
pelo menos por implicação — e eu concordo vigorosamente —, que nenhuma dessas antecipações
diminuía o seu direito à fama ou à originalidade. Ele não as havia desconsiderado por má vontade,
mas simplesmente porque nunca ouvira falar delas, apesar dos seus hábitos de leitura e
correspondência absolutamente onívoros. Os motivos dessa ignorância justificável reforçam a
condição de Darwin e nos auxiliam a compreender a diferença que existe entre apenas expressar uma
ideia e compreender o que ela pode fazer e significar.
Um dos predecessores de Darwin, o naturalista e fruticultor escocês, Patrick Matthew, publicou a
sua versão da seleção natural em 1831, como apêndice a uma obra intitulada Naval Timber and
Arboriculture [Madeira para construção naval e arboricultura]. E lá ela ficou definhando,
despercebida no seu bizarro contexto, até que Darwin fosse publicado em 1859. Matthew então
escreveu uma carta para a Garden ’s Chronicle reivindicando a sua prioridade não apenas na seleção
natural, mas também na

primeira proposta do aríete a vapor (pretensão também de vários outros — ingleses, franceses e
americanos) e de uma marinha de canhoneiras a vapor como requisitos indispensáveis na guerra
marítima futura, propostas que, como a lei da seleção orgânica, só agora estão ganhando impulso.

Darwin escreveu à Garden’s Chronicle em 21 de abril de 1860 (agradeço a W. J. Dempster por


me enviar cópias dessa correspondência e por chamar a minha atenção para os pareceres de
Matthew):
Fiquei muito interessado no comunicado do sr. Patrick Matthew, no número do seu jornal datado
de 7 de abril. Reconheço francamente que o sr. Matthew antecipou em vários anos a explicação
que ofereci da origem das espécies sob o nome de seleção natural. Acho que não será motivo de
surpresa para ninguém que nem eu, nem, aparentemente, qualquer outro naturalista, tenha ouvido
falar dos pareceres do sr. Matthew, considerando-se a brevidade com que são expostos e o fato
de terem surgido no apêndice de uma obra sobre madeira para construção naval e arboricultura.
Nada mais posso fazer, além de oferecer as minhas desculpas ao sr. Matthew pela minha
completa ignorância a respeito da sua publicação. Se for pedida outra edição da minha obra,
publicarei uma nota com tal propósito.

A segunda antecipação, anterior, da seleção natural não foi apresentada dentro de um contexto tão
obscuro. Em 1813, William Charles Wells, outro cientista e médico escocês (embora nascido em
Charleston, Carolina do Sul) proferiu uma dissertação perante a Royal Society de Londres, a
preeminente instituição científica da Inglaterra. Ela carregava um daqueles títulos assombrosamente
grandes tão comuns na época: Account of a female of the white race of mankind, parts of whose skin
resembles that of a negro, with some observations on the causes of the differences in color and
form between the white and negro races of men [Descrição de uma mulher da raça branca do gênero
humano, cuja pele em certas partes lembra a de um negro, com algumas observações sobre as causas
das diferenças de cor e forma entre as raças branca e negra dos homens].
O ensaio não produziu nenhum impacto de que se tenha notícia na ocasião de sua apresentação, e
Wells não o imprimiu na época. Cinco anos depois, quando esperava a morte por causa de uma
doença cardíaca, Wells preparou para publicação um único volume com os seus ensaios mais
importantes. Esse volume, publicado postumamente em 1818, incluía a breve comunicação de 1813,
quase que como uma lembrança de última hora, bem no final. O volume de Wells foi bem recebido,
pois incluía os dois ensaios que haviam conquistado para ele a fama, limitada, porém segura — um
sobre a formação do orvalho (um problema solucionado definitivamente por Wells, que provou que o
orvalho não é nem chuva invisível, nem uma exsudação das plantas, mas uma condensação do ar
circundante), e outro sobre o motivo pelo qual os nossos dois olhos veem apenas uma única imagem.
Ironicamente, e como testemunho da total obscuridade do pequeno ensaio de Wells sobre a origem da
cor da pele humana, quando Hugh Falconer propôs Darwin para a Medalha Copley da Royal Society
em 1864, ele elogiou Darwin comparando os seus métodos de pesquisa com aqueles seguidos por
Wells no excelente tratado sobre o orvalho: “Pode ser comparado com o ‘Ensaio sobre o orvalho’ do
dr. Wells, na condição de original, exaustivo e completo — contendo a observação mais minuciosa,
com generalização ampla e importante.” Aparentemente, Falconer nunca se deu conta de que o
volume que consultara para a leitura do “Ensaio sobre o orvalho” de Wells também continha uma
declaração antecipatória sobre a própria seleção natural.
Wells era um homem austero, intensamente reservado e idiossincrático. Segundo o seu próprio
relato, ele tinha poucos amigos, menos pacientes, e bem pouco dinheiro (em boa parte porque passou
a maior parte da vida pagando empréstimos aos poucos bons amigos). Passou a sua vida adulta
sozinho em Londres. Nunca se casou, teve pouco convívio social e publicou menos ainda. A
autobiografia que precede o volume de ensaios lamenta as persistentes dificuldades financeiras, em
especial a sua incapacidade de manter uma carruagem, o que impedia a maior parte da atividade
social e o acesso a pacientes potenciais (naqueles dias felizes, mas passados, em que as visitas de
médicos eram praticamente obrigatórias).
Embora nascido nos Estados Unidos, Wells era filho de fervorosos legalistas britânicos. Wells
registra a preocupação do pai de que um jovem pudesse ser conquistado pela causa republicana na
agitada América pré-revolucionária:

Temendo que eu viesse a ser infectado pelos princípios desleais que começaram a prevalecer por
toda a América imediatamente após a paz de 1763, ele me obrigou a usar um casaco com tartã e
um gorro escocês azul, esperando conseguir, por esses meios, que eu me considerasse um
escocês. A perseguição que passei a sofrer desde então produziu tal efeito completamente.

Wells tinha pouco de bom a dizer sobre a América, pois atribuía à sua infância na Carolina do
Sul virtualmente todas as imperfeições da sua vida posterior, inclusive esta embaraçosa confissão:

O que direi em seguida sem dúvida será considerado bastante ridículo. Até atingir quase onze
anos, vivi bem perto das docas de um grande porto marítimo na América, e, desse modo, tive
muito contato com vários jovens marinheiros de baixa condição. A esse fato atribuo o hábito de
praguejar que tenho desde criança, do qual sou frequentemente culpado quando meus sentimentos
são agitados ou mesmo quando não existe nenhuma desculpa de tal tipo.

Portanto, Wells ficou feliz ao deixar a América para ser educado na Grã-Bretanha. Ele retornou à
Carolina (então nas mãos de monarquistas) em 1781, para cuidar dos negócios do pai; mas acabou
preso após a derrubada do poder político e foi com bastante alegria que conquistou a repatriação
para a Grã-Bretanha, desta vez em caráter permanente. Ele se mudou para Londres e foi licenciado
pelo Royal College of Physicians em 1788. O ensaio de 1792 sobre a visão única com dois olhos
assegurou-lhe a eleição para a Royal Society, enquanto o ensaio de 1814 sobre o orvalho conquistou-
lhe a cobiçada Medalha Rumford da mesma sociedade. Apesar da qualidade e do renome dessas
obras, Wells publicou pouca coisa mais. Sua autobiografia nem menciona o ensaio de 1813 sobre a
cor da pele humana, e não possuímos nenhuma indicação de que ele lhe conferisse qualquer
importância em sua mente ou de que reconhecia quaisquer implicações adicionais para suas ideias.
Como tantos relatos gerais escritos por médicos, o ensaio de Wells, de 1813, sobre a seleção
natural, começa com a descrição da história de um caso médico incomum. Elannah West, uma jovem
de Sussex, filha de “um lacaio a serviço da família de um fidalgo”, visitou-o para que ele observasse
a sua pele peculiar. Seus pais e todos os parentes eram caucasianos convencionais, mas Elannah
West, embora com a pele apropriadamente pálida em todos os lugares, tinha o ombro, o braço e o
antebraço esquerdos “tão escuros quanto os de qualquer negro”. Em deferência para com a venerável
teoria, ainda reinante, das “impressões maternais” (ver o último ensaio de Hen’s Teeth and Horse’s
Toes), a família de West e os vizinhos atribuíram a sua calamidade a este peculiar evento:

A mãe... levou um susto, quando ainda estava grávida dela, ao pisar acidentalmente numa lagosta
viva; e a isso foi atribuído o negrume de parte da pele da menina, verificado quando ela nasceu.

Wells observou Hannah West cuidadosamente, notou a transição abrupta entre a incomum pele
escura e a esperada pele branca, assombrando-se com o negrume do seu braço esquerdo — “mais
escuro que a parte correspondente de qualquer negro que eu tenha visto; pois a palma da sua mão e a
parte interna dos dedos são pretos, ao passo que essas partes num negro são apenas de coloração
meio parda”. Mas, na verdade, Wells nunca transcendeu o puramente descritivo e não relatou nada de
interesse geral. Mesmo a premissa básica da descrição era errônea; os brancos com grandes trechos
de pele melânica não mantêm qualquer semelhança significativa, genealógica ou de outra espécie,
com pessoas negras. Se Wells não houvesse acrescentado sete páginas de especulação sobre a
origem das cores da pele humana ao relato, este certamente teria caído no total e permanente
esquecimento, em vez da mera obscuridade (com a ressurreição posterior na condição de
curiosidade). Essas sete páginas, o pensamento de última hora de um ensaio publicado na última
hora, incluem uma seção de duas ou três páginas sobre a seleção natural, a primeira expressão clara
e reconhecida do grande princípio de Darwin.
Wells começa com hesitação, talvez temeroso de que um excesso de especulação dilua o valor
das sóbrias observações sobre a pele incomum de Hannah West:

Ao considerar a diferença de cor entre europeus e africanos, ocorreu-me um parecer sobre o


assunto, o qual não foi emitido por nenhum autor cujos trabalhos tenham vindo às minhas mãos.
Ousarei, portanto, mencioná-lo aqui, embora sob o risco de que venham a considerá-lo mais
fantasioso do que correto.

Wells invoca a seleção natural para explicar o sucesso dos negros em climas quentes. Partindo do
costumeiro e inconfessado pressuposto racista de que a pele branca é adequada e primordial, Wells
imagina que os habitantes originais da África eram mais claros do que os seus descendentes atuais.
Ele explica a mudança por meio da seleção natural e até mesmo invoca o argumento favorito de
Darwin, o da analogia com a seleção artificial, tal como praticada por criadores de animais:

Aqueles que se dedicam à melhoria de animais domésticos, quando encontram indivíduos que
possuem, num grau maior que o comum, as qualidades que eles desejam, cruzam um macho e uma
fêmea destes, tomam então os melhores da sua prole como novo plantei e desse modo
prosseguem, até chegarem tão perto do resultado em vista quanto permite a natureza das coisas.
Mas o que é feito aqui pela arte, parece ser feito, com igual eficácia, embora mais lentamente,
pela natureza, na formação das variedades do gênero humano, adaptadas ao território que elas
habitam.

Esse pronunciamento foi citado em várias obras anteriores (é a citação “padrão” de Wells), mas
não acho que qualquer comentarista anterior percebeu o caráter decididamente heterodoxo da
exposição de Wells. Curiosamente, as suas características mais incomuns antecipam alguns dos
argumentos que agora são apresentados por muitos evolucionistas contra a interpretação estrita do
darwinismo que tem sido tão popular nos últimos vinte e poucos anos.
O argumento convencional, estritamente darwiniano, destacaria a adaptação direta da cor da pele
e a mudança evolutiva impelida pela competição entre organismos individuais. Em outras palavras,
afirmaríamos que a pele negra oferecia vantagens em climas quentes e que surgiu por meio da
sobrevivência diferencial e da propagação de indivíduos mais escuros dentro de uma população.
Wells nega explicitamente ambas as partes dessa sequência de eventos.
Quanto à adaptação, Wells refuta a ideia de que a pele negra forneça qualquer benefício em si
(ele provavelmente estava errado) e afirma ao contrário que alguma outra característica fisiológica
adapta as pessoas negras aos climas quentes conferindo-lhes resistência a doenças tropicais. Wells
faz a especulação de que essa característica pode ser sutil e não manifesta na morfologia evidente. É
possível que a pele negra esteja correlacionada a essa característica por algum motivo desconhecido
de desenvolvimento e, portanto, ela pode servir como um sinal da vantagem, embora não ofereça
nenhum benefício em si:

Não suponho, contudo, que as suas diferentes suscetibilidades a doenças dependam propriamente
da diferença de cor. Pelo contrário, acho provável que isso seja apenas sinal de alguma diferença
entre eles, a qual, embora vigorosamente manifestada pelos seus efeitos na vida, é, porém, sutil
demais para ser descoberta por um anatomista após a morte; da mesma maneira que um corpo
humano, que é incapaz de contrair a varíola, não difere em nada observável de outro, o qual, no
entanto, está sujeito a ser afetado por essa doença.

Darwin ponderou sobre essas “correlações de desenvolvimento” e reconheceu que muitas


características podem não oferecer nenhum benefício direto e, no entanto, caracterizar grandes
grupos pela sua relação fisiológica obrigatória com outros traços. As versões radicais do
darwinismo esqueceram essa sutileza e tentaram encontrar vantagens adaptativas diretas, muitas
vezes por meio de argumentação puramente especulativa, para quase todas as características de
grande difusão.
O tema das “consequências não-adaptativas” de Wells tem sido retomado ultimamente numa
atmosfera de atenção renovada pelos padrões de desenvolvimento e pela integridade de organização
(os animais não podem ser analisados como um amálgama de partes independentes). O tratamento
dado por Wells à cor acompanha essas críticas recentes.
Quanto à seleção, o argumento costumeiro proporia uma população humana com variação
considerável de cor de pele entre os seus membros. As pessoas de cor escura seriam, em média,
melhor sucedidas na criação da prole e, com vagar, mas inevitavelmente, a cor da pele dentro da
população mudaria para tonalidades mais escuras. Em outras palavras, a mudança evolutiva ocorre
por meio de competição entre indivíduos dentro de uma população (a “luta pela existência”).
Wells nega explicitamente essa forma costumeira de seleção afirmando que variantes favoráveis
não podem se difundir através de populações grandes e estáveis. O seu argumento é incorreto e
fundamentado numa opinião falsa sobre a hereditariedade, corrente na época, chamada herança por
mistura (blending inheritance) — a ideia de que todas as variantes favoráveis serão diluídas pela
metade na prole através do casamento com um membro normal da população. A prole diluída em
geral se casa com indivíduos normais (já que as variantes favoráveis são tão raras) e a geração
subsequente será diluída em um quarto. Dentro de pouco tempo, as variantes raras e favoráveis
desaparecerão por completo. A hereditariedade não funciona desse modo (embora Wells não pudesse
ter conhecimento do que Mendel descobriria cinquenta anos depois). Traços favoráveis muitas vezes
surgem por mutação, e tais características não podem ser diluídas por meio de cruzamento com
indivíduos normais. É possível que a mutação (se recessiva) não se manifeste na geração seguinte,
mas ela não será eliminada. A crença de Wells na herança por mistura levou-o a negar a seleção por
meio de transformação lenta dentro de uma população:

Essas variedades [isto é, as variações favoráveis], na maior parte, desaparecem com rapidez,
através dos casamentos de famílias diferentes. Desse modo, se for produzido um homem bem
alto, ele provavelmente se casará com uma mulher bem mais baixa do que ele, e a sua prole
dificilmente diferirá em tamanho dos seus compatriotas.

Como funcionará então a seleção? Wells argumenta que variantes favoráveis podem se difundir,
presumivelmente mais por acaso do que por seleção (embora ele não seja explícito), através de
populações pequenas e móveis onde um grande número de indivíduos normais não pode impor a
diluição, devido à existência de retrocruzamento (back- breeding):

Contudo, em algumas regiões, de extensão bem pequena, e com pouco contato com outras terras,
uma diferença acidental na aparência dos habitantes frequentemente será transmitida à
posteridade.

Assim, Wells conjecturou que o povo da África estava de início dividido em populações
pequenas, que não interagiam. Por acaso, cores médias diferentes (e a resistência a doenças que as
acompanhava) tornaram-se estabelecidas entre essas populações. A seleção então atuou por meio de
competição entre populações já diferentes (por motivos não relacionados com a seleção natural) em
cor média de pele. Dentro de cada grupo, a cor era relativamente constante e a seleção só podia
operar por meio do reordenamento dos própios grupos. Em outras palavras, a seleção ocorre entre
grupos, não entre indivíduos dentro de um grupo.

Das variedades acidentais do homem [desta vez com o sentido de populações; Wells e os seus
contemporâneos usavam a palavra variedade tanto para indivíduos distintos quanto para
populações diferentes], as quais ocorreriam entre os primeiros habitantes, poucos e espalhados,
das regiões do meio da África, algumas estariam melhor adaptadas do que outras para suportar as
doenças da terra. Consequentemente, essa raça iria se multiplicar, ao passo que as outras
diminuiriam, não apenas devido à incapacidade de sustentar os ataques das doenças, como
também à incapacidade de fazer frente aos seus vizinhos mais vigorosos. A partir daquilo que já
foi dito, tenho por certo que a cor dessa raça vigorosa seria escura.

O local ou nível da seleção é um “tópico quente” da teoria evolutiva hoje. Embora ninguém negue
que a seleção opere vigorosamente no nível tradicional de diferenças entre organismos dentro de uma
po- pulação, outras modalidades também podem ser importantes. A ideia de que a seleção pode
operar sobretudo entre populações locais — a chamada seleção intergrupal — tem sido defendida há
um bom tempo pelo grande geneticista Sewall Wright (que, com 95 anos, ainda argumenta com
bastante eloquência a favor da sua posição). O eclipse de Wright dentro dos círculos darwinianos
estritos foi recentemente invertido, e a seleção intergrupal está recebendo um segundo exame, mais
favorável. Acho curioso que a primeira formulação da seleção natural advogasse um processo
intergrupal, em vez da ênfase tradicional sobre organismos em competição.
Contudo, embora a argumentação de Wells fosse heterodoxa pelos padrões darwinianos
posteriores, ela de fato expressa o princípio da seleção natural. Devemos, portanto, retornar à nossa
pergunta inicial. Por que esses precursores darwinianos foram totalmente ignorados, e por que
Darwin merece a sua presente condição (e, receio, Wells e Matthew também as suas)?
Loren Eisele nota com perspicácia (em Darwin’s Century) que a argumentação de Wells, tal
como formulada, não pode ser ampliada ou generalizada para fornecer um quadro completo da
modificação evolutiva ao longo da história da vida. Todos sabiam que os organismos variam e que
raças locais podem ser fabricadas a partir desse material bruto (de que outro modo os criadores
imaginosos de cães e pombos trabalham, isso para não falar dos fazendeiros?). Mas a variação entre
raças de cães não é extrapolada automaticamente para a transformação de peixe para humano. Talvez
as espécies possuam limites de variação fixos e dados por Deus. Podemos produzir novas raças
fazendo seleções de extremos dentro desses limites, mas não podemos transcender a fronteira para
construir criaturas fundamentalmente novas. Wells não generaliza a sua argumentação para que ela
compreenda a mudança evolutiva em larga escala, e apenas o exame em retrospecto permite que
interpretemos as suas especulações como precursoras da reviravolta da biologia realizada por
Darwin.
Ainda assim, a incapacidade de Wells para generalizar não pode ser o principal motivo da sua
obscuridade. (A propósito, Darwin só soube do trabalho de Wells através de um correspondente
americano com interesses bibliográficos de antiquário.) A justificativa principal não é complexa. As
ideias são baratas; a simples declaração conta pouco ou nada. A fama intelectual é dada às pessoas
que possuem a visão para fazer com que uma boa ideia funcione de duas maneiras: usando-a para
fazer novas descobertas e reconhecendo as suas implicações como um instrumento de longo alcance
para transformar atitudes gerais.
Não temos nenhum motivo para suspeitar que Wells ou Matthew reconhecessem o poder
revolucionário por trás da sua inteligência. Wells apresentou a seleção natural como apêndice a um
ensaio que ele nem se deu ao trabalho de publicar até às vésperas da morte. Matthew enterrou-a entre
as suas árvores e não viu floresta alguma (embora, ao contrário de Wells, tenha defendido a evolução
como sendo a causa da história da vida). Na verdade, numa segunda carta, em resposta ao pedido de
desculpas de Darwin de 1860, Matthew faz elogios frouxos a Darwin (e se condena
inadvertidamente) afirmando que nunca dera muita importância à seleção porque, ao contrário de
Darwin, que lutara tanto para formular o princípio, ele o captara como uma dedução evidente da
natureza das coisas. Ele a considerava como necessariamente verdadeira, quase trivial nesse sentido,
e, assim, indigna de muito desenvolvimento. Matthew, portanto, deixou passar toda a sua
significação:

Para mim, a concepção desta lei da Natureza veio intuitivamente, como um fato auto-evidente,
quase que sem um esforço de pensamento concentrado. Neste ponto, o sr. Darwin parece ter mais
mérito na descoberta do que eu — para mim, ela não surgiu como uma descoberta. Ele parece tê-
la formulado por meio de raciocínio indutivo, vagarosamente e com a devida prudência para
fazê-lo de modo sistemático, de fato para fato e assim por diante; ao passo que para mim, foi por
meio de um vislumbre geral do esquema da Natureza que avaliei essa produção seletiva de
espécies como um fato reconhecível a priori — um axioma, exigindo apenas que fosse
assinalado para ser admitido por mentes de entendimento suficiente e sem preconceitos.

Por outro lado, Darwin usou a seleção natural como o fulcro intelectual de toda uma carreira. Ele
interpretou a evolução humana à sua luz, reformulou os princípios da psicologia e explicou a
coevolução das orquídeas e dos seus insetos polinizadores, a distribuição biogeográfica dos
organismos, os hábitos e ações das minhocas — uma rica panóplia de questões, dos maiores enigmas
da vida até os menores caprichos de organismos particulares. Ele estabeleceu um programa viável de
pesquisas para toda uma profissão.
Nenhum documento do pensamento humano revelou-se mais estimulante para mim do que os
cadernos de anotações que Darwin encheu em Londres, quando era um jovem de vinte e tantos anos,
recém- chegado de uma viagem de cinco anos a bordo do Beagle. Ele tinha a chave para uma nova
visão da vida e sabia disso. A sua mente estendeu-se por toda a paisagem intelectual, da biologia até
a psicologia, a moralidade, a filosofia e a literatura. A evolução por seleção natural invadiu tudo.
Wells e Matthew haviam expressado o mesmo princípio, mas então esqueceram ou não conseguiram
extrair quaisquer implicações. Darwin ficou em Londres, um jovem reconstruindo um mundo de
pensamento. Considere-se apenas uma declaração, como um símbolo do seu feito e como final
apropriado para este ensaio. Charles Darwin, rompendo dois mil anos de tradição na filosofia
ocidental com uma observação epigramática para si mesmo:

Platão diz no Fédon que as nossas “ideias imaginárias” surgem da preexistência da alma, não são
deriváveis da experiência — leia-se macacos no lugar de preexistência.
23. Darwin em alto-mar — e as virtudes do porto

Charles Darwin e Abraham Lincoln nasceram no mesmo dia — 12 de fevereiro de 1809. Eles
também estão unidos de outra maneira curiosa — pois ambos têm de desempenhar simultaneamente, e
por motivos semelhantes, o papel de homem e o de lenda. Numa nação jovem demais para possuir
heróis míticos, os de carne e osso têm de substituí-los. Daí os escolares aprenderem sobre o honesto
Abe, que libertou os escravos sozinho, apenas por uma questão de justiça, e que, quando jovem,
percorreu penosamente milhas e milhas para devolver alguns cents a uma mulher a quem
inadvertidamente dera troco a menos. Esse Lincoln lendário pode preencher uma necessidade
nacional ou psicológica, mas os historiadores também têm de trabalhar para resgatar o homem real, e
extraordinariamente complexo, desse papel tão efetivamente inexato. De modo semelhante, a ciência
não adora nenhum deus, e os sábios antigos encontram-se estritamente em falta. Mais uma vez, as
figuras históricas têm de constituir o material para as lendas necessárias. A maçã despenca sobre
Newton; Galileu atira os seus projéteis da torre inclinada; e Darwin, sozinho em alto-mar, num
isolamento mental esplêndido, transforma o mundo intelectual.
O mito do Beagle — o de que Darwin tornou-se um evolucionista por meio da observação
simples e imparcial de um mundo inteiro estendido à sua frente durante uma viagem de cinco anos ao
redor do mundo — ajusta-se a todos os nossos critérios românticos para a melhor das lendas: um
jovem, livre dos empecilhos da sociedade inglesa e dos seus pressupostos limitadores, face a face
com a natureza, exercitando a sua mente formidável e inexperiente com todos os desafios oferecidos
por plantas, animais e rochas do globo todo. Ele parte da Inglaterra em 1831, com planos de se tomar
um pároco de aldeia ao voltar. Retorna em 1836, tendo visto a evolução em estado bruto,
compreendendo (embora vagamente) as suas implicações e comprometido com uma vida científica
de pensador evolucionista. O catalisador principal: as ilhas Galápagos. Os atores principais:
tartarugas, tordos-dos-remédios (em inglês mockingbirds, pássaros da família Mimidae, especialmente o Mimus
polyglottos, notáveis devido à capacidade de imitar o canto de outros pássaros) e, acima de tudo, treze espécies de
tentilhões de Darwin — o melhor laboratório evolutivo que a natureza nos ofereceu.
Podemos precisar de lendas simples e heroicas para aquele peculiar gênero de literatura
conhecido como livro didático. Mas os historiadores também devem lutar para resgatar os seres
humanos das suas lendas na ciência — se não por outro motivo, pelo menos para que possamos
compreender direito o processo do pensamento científico. Para começar, Darwin só se tornou um
evolucionista depois de passados vários meses do seu regresso a Londres — provavelmente não
antes de março de 1837 (o Beagle atracou em outubro de 1836). Ele não percebeu a significação
evolutiva das Galápagos enquanto lá esteve e, de início, compreendeu os tentilhões de modo tão
absolutamente errôneo que, mais tarde, mal conseguiu reconstruir a história a partir dos seus
registros sofrivelmente inadequados. A lenda dos tentilhões pode persistir, mas foi desmascarada de
modo esplêndido em dois artigos recentes do historiador de ciência Frank Sulloway. Os seus
argumentos constituem a base deste ensaio (ver Bibliografia).
As treze espécies de tentilhões de Darwin formam um grupo genealógico estreitamente
relacionado, com estilos de vida amplamente divergentes — um caso clássico de irradiação
adaptativa numa série de papéis e nichos que, em situações continentais mais convencionais e
populosas, seriam preenchidos por membros de outras famílias de pássaros. Conseguimos as
principais pistas sobre a adaptação das espécies a partir do formato dos seus bicos. Três espécies de
tentilhões de chão possuem bicos grandes, médios e pequenos, ao passo que um quarto desenvolve
um bico agudo, pontudo. Todos estão adaptados ao consumo de sementes diferentes, de tamanho e
dureza apropriados. Duas espécies alimentam-se de cactos e outra de mangues. Quatro habitam
árvores — dessas, uma é vegetariana, ao passo que as outras comem insetos grandes, médios e
pequenos, respectivamente. Uma décima segunda espécie lembra os “trinadores” (em inglês warblers,
nome comum a vários pássaros da família Parulidae) na forma e nos hábitos; ao passo que a décima terceira, a
mais curiosa de todas, usa gravetos e espinhos de cactos como ferramentas para extrair insetos de
buracos em troncos de árvores.
O bom trabalho do grande ornitologista David Lack nos ensinou que as treze espécies evoluíram
e tornaram-se distintas através de um processo de quatro estágios: colonização, isolamento e
formação de espécies, reinvasão, e aperfeiçoamento de adaptação na competição. Lack também deu
aos pássaros o bem escolhido nome de “tentilhões de Darwin”, no seu livro de 1947, com o mesmo
título. Mas, contra- riando a lenda anacrônica, essa descrição clássica de formação de espécies é
uma história da qual Darwin nunca teve conhecimento.
Darwin visitou as Galápagos em setembro e outubro de 1835, desembarcando em apenas quatro
das ilhas. Em alto-mar, em certo momento de meados de 1836, ele escreveu uma famosa declaração
nas suas Ornithological Notes [Observações ornitológicas], uma das principais fontes da lenda
segundo a qual as suas experiências nas Galápagos haviam-no convertido diretamente à evolução e
que os tentilhões tinham inspirado a sua nova visão da vida:

Quando me recordo de que os espanhóis conseguem dizer imediatamente, a partir da forma do


corpo, do formato das escamas e do tamanho geral, de qual ilha pode ter sido trazida qualquer
tartaruga. Quando vejo essas ilhas tão próximas entre si, possuídas apenas por um parco grupo de
animais, habitadas por esses pássaros, que diferem apenas levemente na estrutura e que ocupam o
mesmo lugar na natureza, tenho de suspeitar de que são apenas variedades. O único fato de tipo
similar do qual tenho conhecimento é a diferença constantemente afirmada — entre a raposa
semelhante a um lobo que habita as Ilhas Falkland do leste e do oeste. — Se houver o menor
fundamento para essas observações, será de grande valia examinar a zoologia dos arquipélagos;
pois tais fatos abalariam a ideia da estabilidade das espécies.

Antes de mais nada, os “pássaros” desta passagem são os tordos-dos-remédios das Galápagos,
não os tentilhões. Darwin percebeu que três das quatro ilhas que visitou continham tordos
nitidamente diferentes. À primeira vista, essa declaração pode exibir uma forte preferência pela
evolução; ela com certeza levanta a possibilidade. Mas a familiaridade com a terminologia zoológica
do século XIX sugere uma interpretação alternativa. Todos os criacionistas admitiam que as espécies
muitas vezes assumem formas moderadamente distintas em certas condições, tais como as de cadeias
de ilhas e arquipélagos, nas quais as populações podem ficar isoladas em circunstâncias diferentes
de ecologia e clima. Essas raças locais eram chamadas variedade, e elas não ameaçavam o caráter
criado e imutável da essência de uma espécie. Adequadamente traduzido a partir da terminologia da
sua época, Darwin diz na sua famosa declaração que, ou as tartarugas e os tordos são apenas
variedades — caso em que não ameaçam os seus pareceres criacionistas — ou então se tornaram
espécies separadas, e, se for esse o caso, então eles o fazem. Ele considerou brevemente a evolução
ao admitir a segunda possibilidade, mas acabou voltando atrás ainda durante a viagem, decidindo em
caráter provisório (incorretamente, pelo menos no caso dos tordos) que as formas insulares eram
apenas variedades. As memórias da velhice de Darwin confirmam essa opinião, de que ele apenas
flertou brevemente com a evolução a bordo do Beagle, rejeitando-a depois. Ele escreveu ao
naturalista alemão Otto Zacharias em 1877: “Quando estava a bordo do Beagle, eu acreditava na
permanência das espécies, mas, tanto quanto consigo me lembrar, de vez em quando vinham-me à
mente algumas vagas dúvidas.”
Uma segunda declaração, tomada em conjunto com uma interpretação errônea das Ornithological
Notes, também poderia ser considerada um indício de que Darwin tornou-se um evolucionista em
1836, ainda em alto-mar. Ele escreveu no seu diário de bolso: “Em julho, iniciei primeiro caderno
sobre ‘transmutação das espécies’ — fiquei impressionado desde março passado com o caráter de
fósseis da América do Sul — e espécies no arquipélago das Galápagos. Esses fatos originaram
(especialmente mais tarde) todos os meus pareceres.” Sabemos que ele iniciou o primeiro caderno
sobre a transmutação em julho de 1837 e poderíamos, portanto, interpretar o “março passado” como
1836, mais ou menos a mesma época em que ele escrevia as Ornithological Notes, em alto-mar. Mas
o março passado poderia muito bem ser 1837, ocasião em que, como veremos em breve, ele se
encontrava em Londres, descobrindo junto a especialistas da Sociedade Zoológica o verdadeiro
caráter das suas coleções das Galápagos — uma série de fenômenos que ele não conseguiu perceber
durante a visita em si.
O que, então, Darwin realmente viu nas Galápagos, e o que lhe passou despercebido? Três
grupos de animais atravessaram a história como os mais famosos laboratórios evolutivos das
Galápagos: os tordos-dos-remédios, as tartarugas e os tentilhões. Foi apenas no caso dos tordos que
Darwin fez a observação-chave subjacente à história evolutiva contada depois (embora, como vimos,
Darwin tenha rejeitado explicitamente a leitura evolutiva em favor de uma interpretação diferente).
Em resumo, ele percebeu que formas variantes (mais tarde reconhecidas como espécies verdadeiras,
embora Darwin as tenha catalogado originalmente como variedades) habitavam as diferentes ilhas
que visitou. Ele desembarcou primeiro na ilha Chatham, depois na ilha Charles, e então percebeu que
podia distinguir o tordo da ilha Charles da forma que coletara antes na ilha Chatham. Assim, ele
passou a coletar mais tordos onde quer que desembarcasse e teve o cuidado de manter as coleções de
cada ilha diferente bem catalogadas e distintas. Ele não conseguiu distinguir o tordo de Albemarle,
na terceira ilha que visitou, da forma da ilha Chatham, mas o pássaro da ilha James representava uma
terceira variedade distinta (de acordo com a sua interpretação original). [Ilhas Chatham, Charles, Albemarle e
James. Trata-se, respectivamente, das ilhas San Cristobal, Floreana, Isabella e Santiago].
As tartarugas das Galápagos são todas de uma espécie, mas a maioria das ilhas apresenta as suas
próprias subespécies reconhecíveis. Estas cobrem uma amplitude impressionante de formas, desde as
carapaças lisas, abobadadas, até aquelas com a peculiar forma de sela, com uma corcova
pronunciada logo acima da cabeça. A história passou completamente despercebida a Darwin. Ele não
notou nem mesmo as carapaças em forma de sela. Além disso, o seu conceito básico a respeito
dessas tartarugas garantia virtualmente que não seria capaz de fazer a observação crucial.
Nicholas Lawson, o vice-governador, disse a Darwin que “as tartarugas diferem de ilha para
ilha, e que ele podia dizer com certeza de qual ilha cada uma delas havia sido trazida” (embora as
distinções sejam abundantes, essa declaração é excessivamente otimista, e os especialistas modernos
nem sempre conseguem distinguir a variedade de cada ilha). Darwin, contudo, segundo confissão
própria, pouco fez dessa informação, escrevendo na edição de 1845 da Viagem do Beagle:
Durante algum tempo não dei atenção suficiente a essa declaração, e já havia misturado
parcialmente as coleções de duas das ilhas. Nunca imaginei que ilhas separadas entre si por
cinquenta ou sessenta milhas, a maioria delas à vista uma da outra, formadas precisamente pelas
mesmas rochas, colocadas sob clima inteiramente similar, erguendo-se quase que à mesma altura,
pudessem ser povoadas de modo diverso.

Como resultado de um erro comum em classificação, Darwin estava pouco disposto a considerar
as diferenças entre as ilhas como evolutivamente (ou taxonomicamente) significativas. Darwin
aceitou a opinião geral de que as tartarugas das Galápagos não eram taxonomicamente distintas, mas
que pertenciam à espécie Testudo indicus, a tartaruga terrestre gigante das ilhas Aldabra, no oceano
índico. Elas haviam sido trazidas para as Galápagos por bucaneiros, prosseguia a falsa história,
apenas recentemente. Portanto, as diferenças de ilha para ilha, se é que realmente existiam, só
podiam ser imediatas e superficiais — causadas por climas rudes na época da introdução. Além
disso, Darwin nunca viu tartarugas com carapaça em forma de sela vivas. Ele observou tartarugas
vivas apenas nas ilhas James e Chatham, e ambas possuem versões de carapaças abobadadas quase
indistinguíveis.
Ainda assim, Darwin não pode ser inteiramente absolvido da acusação de certo descuido na
observação. Ele realmente teve uma oportunidade de observar a carapaça em forma de sela, mas não
conseguiu fazê-lo, ou então deixou de registrar qualquer impressão. A raça da ilha Charles estava
extinta quando Darwin chegou, mas havia carapaças antigas em abundância no povoado, onde
serviam como vasos de flores. Além disso, Darwin demonstrou singularmente pouco interesse em
preservar para comparação os espécimes das diferentes ilhas, um sinal óbvio de que não considerava
significativa a declaração de Lawson (algo de que posteriormente se arrependeria muito). O capitão
Fitzroy embarcou trinta grandes tartarugas de Chatham para reforçar o suprimento de carne do Beagle
para a longa travessia do Pacífico. Sulloway observa:

Mas Darwin e os outros membros da tripulação foram gradualmente comendo os indícios que,
por fim, na forma de boatos, deveriam revolucionar as ciências biológicas. Lamentavelmente,
nenhuma das trinta carapaças da ilha Chatham chegou à Inglaterra, tendo todas sido jogadas ao
mar, junto com todos os restos não comestíveis.

A reação de Darwin aos tentilhões das Galápagos foi ainda mais cheia de erros e incompreensão.
Mais uma vez, ele não demonstrou qualquer apreço pela importância das diferenças entre as ilhas.
Na verdade, ele nem mesmo se deu ao trabalho de registrar ou catalogar as ilhas que haviam
abrigado os espécimes colhidos. Apenas três dos seus 31 tentilhões são identificados por ilha nas
Ornithological Notes, todos membros de uma espécie altamente distinta que Darwin recordava- se
ter visto apenas na ilha James. Mais tarde, ele escreveu com pesar na Viagem do Beagle\
“Infelizmente, a maioria dos espécimes da tribo dos tentilhões foi misturada.” Em segundo lugar, ele
absolutamente não coletou espécime algum numa das ilhas que visitou — Albemarle. É verdade que
esteve lá apenas durante parte de um dia, mas o seu próprio diário testemunha uma abundância de
tentilhões facilmente coletáveis numa fonte perto de Bank’s Cove: “Para o nosso desapontamento, os
pequenos poços de Sandstone mal continham um galão de água, e esta não era boa. Era, porém,
suficiente para atrair todos os passarinhos do lugar; as suas margens fervilhavam de pombos e
tentilhões.”
Em terceiro lugar, excetuando-se o tentilhão dos cactos e o tentilhão trinador, Darwin não
observou qualquer distinção na dieta e acreditou erroneamente que todos eles comiam os mesmos
tipos de alimento. Assim, ele não poderia ter reconstruído a nossa história moderna, mesmo que
estivesse inclinado a ter opiniões evolutivas.
Em quarto lugar, todo o estilo de coleta de Darwin nas Galápagos refletia vigorosamente os seus
pressupostos criacionistas. Os evolucionistas veem a variação como fundamental, como a matéria-
prima da mudança evolutiva. As espécies só podem ser bem definidas através da coleta de vários
espécimes e da definição do seu espectro de variação. Os criacionistas acreditam que cada espécie é
dotada de uma essência fixa. A variação é meramente um incômodo, uma série confusa de desvios de
uma forma ideal, induzidos pelo ambiente. Os criacionistas tendem a colher um número limitado de
cada espécie e a concentrar-se na obtenção de indivíduos mais próximos da forma essencial. Darwin
coletou bem poucos espécimes, geralmente apenas um macho e uma fêmea de cada espécie. Ao todo,
ele obteve apenas 31 tentilhões das Galápagos. Em contrapartida, uma expedição, entre 1905 e 1906,
da Academia de Ciências da Califórnia, enviada explicitamente para estudar a evolução, trouxe mais
de 8.000 espécimes.
Em quinto lugar, e mais importante, os tentilhões não revelam nenhuma história evolutiva, a
menos que se reconheça que, apesar das diferenças externas de forma e comportamento, todos eles
constituem um grupo genealógico intimamente relacionado. Porém enquanto Darwin esteve nas
Galápagos, foi logrado pela estonteante diversidade e não reconheceu os tentilhões de Darwin como
uma entidade taxonômica. Ele relacionou os tentilhões dos cactos com uma família de pássaros que
inclui papafigos e calhandras, e classificou erroneamente o tentilhão trinador como uma carriça ou
um “trinador”. Aqueles que reconheceu como tentilhões, ele dividiu em dois grupos de parentesco
distante dentro da família. Sulloway observa: “Quanto ao suposto discernimento de Darwin da
evolução por meio de irradiação adaptativa enquanto ainda se encontrava nas Galápagos, na época,
quanto mais as várias espécies de tentilhões exibiam esse fenômeno notável, mais Darwin as tomava
erroneamente pelas formas que elas imitavam.”
A fonte teórica do erro de Darwin encontra-se num princípio razoavelmente misterioso do estilo
criacionista de taxonomia por ele seguido. Se os animais são criados de acordo com um plano
racional e geral na mente da divindade, então certos “caracteres-chaves” poderiam ser pistas para a
estrutura taxonômica em diferentes níveis. Por exemplo, a variação em caracteres “superficiais”
como o tamanho e o formato poderiam definir espécies diferentes, ao passo que a variação em traços
“fundamentais” como a forma de órgãos essenciais poderia testemunhar as diferenças mais
importantes entre gêneros e famílias. Idealmente, uma hierarquia de caracteres-chaves deveria definir
níveis taxonômicos. Darwin tentou seguir tal sistema nas classificações preliminares do Beagle. As
espécies dentro de um gênero de pássaros deveriam diferir na plumagem, ao passo que os gêneros
deveriam ser separados por caracteres tais como a forma do bico. Os tentilhões de Darwin são todos
semelhantes na plumagem, mas diferem muito nos estilos de alimentação e, consequentemente, no
formato dos bicos. Pela hierarquia criacionista de caracteres-chaves de Darwin, eles pertenciam a
gêneros ou famílias diferentes.
A hierarquia de caracteres-chaves não faz sentido algum num contexto evolutivo. Os caracteres
que definem gêneros numa situação poderiam variar bastante entre espécies dentro de outro grupo.
Os bicos podem definir tipos de alimentação, e os tipos de alimentação em geral tendem a distinguir
gêneros em continentes. Mas se apenas um tipo de passarinho consegue alcançar um arquipélago
oceânico e então se diversificar, na ausência de competidores, numa ampla variedade de nichos
ecológicos e tipos de alimentação, então os critérios tradicionais para os gêneros — a forma do bico
— serão agora diferentes em espécies intimamente aparentadas. Na exuberante confusão da
evolução, em oposição à ordem da mente de um criador, são as respostas a ambientes locais
prefixados, e não regras de mudança, que determinam quais partes do corpo serão modificadas em
qualquer caso particular. O comportamento e a plumagem num lugar; a alimentação e o formato do
bico em outro. Não existe tal coisa como um caráter invariavelmente “específico” ou “genérico”.
Resumindo, então, Darwin chegou às Galápagos e delas saiu como criacionista, e o seu estilo de
coleta durante toda a visita refletiu essa posição teórica. Vários meses depois, compilando as
anotações em alto-mar, durante as longas horas da travessia do Pacífico, ele flertou brevemente com
a evolução enquanto pensava nas tartarugas e nos tordos, não nos tentilhões. Mas ele rejeitou essa
heresia e atracou na Inglaterra em 2 de outubro de 1836 na condição de criacionista que nutria
dúvidas nascentes.
Esta nova versão da história dos tentilhões é particularmente satisfatória porque se ajusta bem
melhor do que a velha lenda ao uso que Darwin fez dos tentilhões das Galápagos ao longo de todos
os seus escritos posteriores. Ele nunca os mencionou em nenhum dos Transmutation Notebooks que
manteve de 1837 a 1839 e que servem de fundamento para a sua obra posterior. Eles recebem apenas
uma observação passageira na primeira edição (1839) da Viagem do Beagle. É claro que a segunda
edição (1845) realmente contém essa declaração profética, escrita depois de Darwin ter descoberto
que os tentilhões formam um grupo genealógico intimamente relacionado.
Vendo a gradação e a diversidade de estrutura num grupo pequeno, intimamente relacionado, de
pássaros, poder-se-ia de fato imaginar que, de um pequeno número de pássaros neste arquipélago,
üma espécie foi tomada e modificada para diferentes fins.
Mas se os tentilhões produziram uma impressão tão tardia, o impacto parece não ter se mantido.
Os tentilhões não são absolutamente mencionados na Origem das espécies (1859); o astro
ornitológico daquele grande livro é o pombo doméstico. Sulloway conclui, justificadamente, creio
eu, que:
Contradizendo a lenda, os tentilhões de Darwin não parecem ter inspirado os seus primeiros
pareceres teóricos sobre a evolução, mesmo depois que ele se tornou um evolucionista em 1837:
para ser mais exato, foram os seus pareceres evolutivos que lhe permitiram posteriormente
compreender o complexo caso dos tentilhões.
Darwin retornou em 1836 à Inglaterra, um jovem ambicioso, ansioso por deixar a sua marca na
ciência; não se deve permitir que a posterior e elegante modéstia da velhice ocultem esse vigor
juvenil. Ele sabia que a chave para a sua reputação encontrava-se nos valiosos espécimes que
coletara a bordo do Beagle, e, portanto, fez esforços determinados e bem-sucedidos para confiá-los
aos melhores especialistas e para obter fundos para a publicação dos resultados. Em março de 1837,
ele se mudou para Londres, em boa parte para ficar perto dos especialistas que estudavam os seus
espécimes. Iniciou uma série de encontros com esses homens, descobriu afinal o verdadeiro caráter
do seu material e surgiu, depois de um ou dois meses, como evolucionista.
Na famosa anotação do seu diário de bolso, citada anteriormente, ele escreveu que o caráter dos
fósseis da América do Sul e das espécies das Galápagos haviam sido os principais catalisadores da
sua conversão evolutiva. Richard Owen, o mais eminente paleontólogo de vertebrados da Grã-
Bretanha, concordara em estudar os fósseis e informou a Darwin que eles representavam versões
diferentes, em geral maiores, de animais distintos que ainda habitavam a América do Sul. Darwin
reconheceu que a melhor interpretação desta “lei de sucessão” colocava as formas antigas como
ancestrais evolutivos de animais modernos alterados.
O famoso ornitologista John Gould (não é meu parente) encarregara-se dos pássaros do Beagle.
Darwin encontrou-se com ele em meados de março e soube que três formas de tordos-dos-remédios
eram espécies separadas, não variedades simples e superficiais de um tipo único e criado. Darwin já
havia proclamado que tal conclusão (por ele rejeitada anteriormente) “abalaria a ideia de
estabilidade das espécies”. Além disso, Gould informou-lhe que vinte e cinco dos seus vinte e seis
pássaros terrestres das Galápagos eram espécies novos, mas claramente aparentadas com formas do
continente sul-americano. Darwin integrou essa informação espacial aos dados temporais que Owen
fornecera e oscilou ainda mais para o lado da evolução. Os pássaros distintos das Galápagos devem
ser descendentes evolutivos de colonizadores do continente sul-americano. Darwin não estava
inteiramente preparado para uma interpretação evolutiva dos tentilhões, e a correção de Gould dos
erros de Darwin lhe forneceu também essa peça do quebra-cabeças (embora o próprio Gould não
adotasse pareceres evolutivos).
Apesar de ser um criacionista em taxonomia, Gould reconheceu imediatamente que os bicos não
podiam ser usados como caracteres- chaves e para a separação de gêneros nos tentilhões das
Galápagos. Ele compreendeu que esses pássaros não eram, como Darwin pensara, um agrupamento
heterogêneo de tentilhões divergentes com um papafigo ou um “trinador” jogados no meio; tratava-se,
na verdade, de um grupo peculiar de treze espécies intimamente relacionadas, as quais ele colocou
num único gênero, com três subgêneros. “O bico parece constituir apenas um caráter secundário”,
proclamou Gould. Darwin tinha finalmente a base de uma história evolutiva.
Darwin foi estimulado a se converter à evolução e preparou-se para reinterpretar toda a sua
viagem sob esta nova óptica. Mas ficou também profundamente embaraçado porque agora percebia
que o fato de não ter separado os tentilhões por ilhas, algo que não constituía um problema particular
num contexto criacionista, fora um lapso sério e lamentável. Ele não podia fazer grande coisa com a
sua própria coleção, além de sondar uma lembrança imperfeita e gradualmente enfraquecida; por
sorte, porém, três dos seus companheiros de viagem também haviam coletado tentilhões — e, por não
terem feito (ironicamente) a coleta com uma teoria ativamente criacionista em mente (com a implícita
irrelevância atribuída a dados geográficos precisos), eles haviam registrado as ilhas de coleta. Como
ironia adicional, uma dessas coleções fora reunida pelo próprio capitão Fitzroy, mais tarde inimigo
implacável de Darwin, o homem que, em passos duros, na reunião da British Association em que
Huxley arrasou Wilberforce, brandiu uma Bíblia no ar, exclamando: “o Livro, o Livro.” (A coleção
de Fitzroy continha 21 tentilhões, todos catalogados por ilha. Darwin também teve acesso às
coleções menores do seu criado Syms Covington e de Harry Fuller, que passara uma semana fazendo
coletas com ele na ilha James.)
Darwin, portanto, tentou reconstruir as localidades dos próprios espécimes comparando-os com
as coleções minuciosamente catalogadas dos seus companheiros de navio e, infelizmente, como se
percebeu mais tarde, pressupondo que a história dos tentilhões seria semelhante à dos tordos — com
cada espécie confinada a uma única ilha definida. No entanto, como a maioria das espécies de
tentilhões habita várias ilhas, esse procedimento deu origem a um grande número de erros. Sulloway
relata que ainda existem dúvidas substanciais a respeito da exatidão das informações geográficas de
oito dentre os quinze espécimes de tentilhões do “tipo” Darwin (ou que levam o nome). Não é de
admirar que ele nunca tenha sido capaz de elaborar uma história clara e coerente para os tentilhões
de Darwin. Não é de admirar, talvez, que eles nunca tenham sequer aparecido na Origem das
espécies.
Concluindo, por que esta correção da lenda dos tentilhões de Darwin é de grande importância?
As duas histórias são realmente tão importantes? Darwin, qualquer que tenha sido o caso, foi
bastante influenciado pelos indícios das Galápagos. Na primeira e falsa versão, ele compreende tudo
sozinho durante a visita. No segundo relato, o modificado, ele necessita de uma cutucada (e de
algumas substanciais correções) dos amigos quando retorna a Londres.
Eu vejo um mundo de diferença entre as histórias no que fica nelas implícito sobre a natureza da
criatividade. A primeira versão (falsa) sustenta a visão romântica e empiricista de que o gênio
conquista a sua condição por meio de uma habilidade para ver a natureza com os olhos livres do véu
de preconceitos da cultura circundante e dos pressupostos filosóficos. A visão de um brilhantismo
tão puro e imaculado tem alimentado a maioria das lendas na história da ciência e fornece pareceres
seriamente falsos sobre o processo do pensamento científico. Os seres humanos não podem escapar
aos seus pressupostos e ver “com pureza”; Darwin operou como um criacionista ativo ao longo de
toda a viagem do Beagle. A criatividade não é uma fuga da cultura, mas um uso singular das suas
oportunidades, combinado com um inteligente desvio ao redor das limitações que ela impõe. A
realização científica também é uma atividade comunitária, não a realização de um eremita. Onde
estaria Darwin em 1837, sem Gould, Owen e a vida científica ativa de Londres e Cambridge?
Assim que abandonamos a imagem sedutora, mas falaciosa, de Darwin vencendo a sua batalha
intelectual absolutamente sozinho em alto-mar, podemos fazer a pergunta realmente interessante que
começa a devassar o gênio peculiar de Darwin. Gould era o especialista. Gould resolveu os detalhes
de modo correto. Gould, embora fosse um sólido criacionista em taxonomia, reconheceu que tinha de
abandonar os bicos como caracteres-chaves. Darwin não conseguiu nada disso. Mas foi Darwin, não
Gould, quem reconheceu que todas as peças exigiam uma explicação radicalmente diversa — a
evolução — para que se construísse uma história coerente. O amador triunfou quando os interesses
eram superiores, ao passo que o profissional conseguiu os detalhes com exatidão, mas não percebeu
o tema organizador.
Darwin continuou a trabalhar desse modo durante toda a sua carreira. De alguma forma, como
amador, ele conseguiu romper padrões mais antigos de pensamento e vislumbrar novos modos de
explicação que poderiam se ajustar melhor a uma história nascente, detalhada, elaborada por
especialistas que, de alguma maneira, não conseguiram dar o grande passo final. Darwin, porém,
trabalhou com a sua cultura e os seus colegas. A ciência é um esforço coletivo; mas alguns indivíduos
operam com uma visão ampliada — e gostaríamos de saber como e por quê. Não podemos fazer
pergunta mais difícil, e eu não proponho nenhuma solução geral. Mas sem dúvida precisamos varrer
as lendas heroicas antes de começar.
24. Um caminho curto para o milho

Uma vez que Tipperary ficava a apenas algumas milhas, e não tão longe como na canção e na
lenda, fiz um desvio para visitar a cidade. Logo me senti como o espertalhão da cidade grande
naquela antiga piada da Nova Inglaterra. À procura de um vilarejo, ele para diante de um armazém e
pergunta a um senhor: “Onde fica Pleasantville?” “Não dê mais nem um passo que seja”, responde o
outro.
Tipperary, engrandecida pela sua fama e pela minha imaginação, é apenas uma rua principal com
umas poucas lojas e casas. Esta cena sinistra repetiu-se vezes e vezes durante a minha visita àquela
belíssima terra europeia. Pois a Irlanda, contrariando a tendência da maioria dos outros países, é
uma nação pouco populosa. A cifra atual de três milhões de habitantes é apenas a metade do total da
de 1840. Casas, fazendas e mesmo cidades abandonadas espalham-se pelo campo.
O começo da grande imigração que tanto enriqueceu a minha cidade natal de Nova York e o meu
lar atual, Boston, data da grande fome das batatas de 1845 e 1846, quando um milhão de pessoas
morreu de fome e outro milhão foi embora. A batata é um alimento notável. Ela contém uma série tão
equilibrada de nutrientes que as pessoas podem viver anos a fio sem comer praticamente mais nada.
Monótono talvez, batatas sendo batatas, mas perfeitamente viável. Os camponeses da Irlanda muitas
vezes não comiam mais nada além de batatas durante os longos meses do inverno. Mas a doença
atacou a colheita em 1845, destruindo-a quase que por completo e produzindo fome sem precedentes
e o grande êxodo para Liverpool e além.
A doença das batatas na Irlanda ilustra um dilema clássico na agricultura. Para produzir a
“melhor” planta visando a obtenção de produção máxima, os fazendeiros e cientistas aperfeiçoam e
selecionam durante gerações até obter a combinação certa de características. Eles então propagam a
colheita inteira a partir dessa forma melhorada. Essas plantas, como descendentes de um único tipo
de progenitor, são geneticamente uniformes e de variabilidade esgotada. Em outras palavras,
trocamos a diversidade genética por um ótimo invariável.
Tudo pode ir muito bem durante algum tempo, mas castas uniformes são extremamente suscetíveis
às devastações da doença. Se algum vírus, bactéria ou fungo atacar com sucesso as plantas, pode
destruir todas, devastando assim a colheita. Nas populações naturais, por outro lado, a variação
genética entre os indivíduos assegura que alguns gozarão de proteção contra o agente da doença e que
parte da colheita sobreviverá. Como as plantas do ano seguinte são descendentes desses
sobreviventes imunes, as populações com variabilidade abundante mantêm um mecanismo natural
para se livrarem da doença.
Os irlandeses, cultivando as suas batatas a partir de uma casta uniforme, perderam a colheita
inteira em 1845. Pode-se contar a mesma história em relação à maioria dos principais produtos
agrícolas. Alguns estudiosos acreditam que o misterioso colapso da civilização maia clássica foi
precipitado por um vírus, transmitido por cigarras cicadulídeas disseminadas por correntes aéreas de
grande altitude, que varreu a cultura de milho virtualmente da noite para o dia. O milho continua a
nos atormentar com problemas semelhantes. Durante o verão de 1970, uma nova variedade mutante
do Fungo da Doença das Folhas do Sul assolou os campos de milho americanos ao ritmo de
cinquenta milhas ou mais por dia, devastando todas as plantas que haviam sido criadas para conter
um elemento genético chamado fator citoplasmático Texas de esterilidade masculina.
Para evitar esse dilema, os criadores tentam aumentar a variabilidade genética cruzando as castas
bem-sucedidas, mas uniformes, com variedades diferentes. Com relação ao milho, temos uma
importante fonte de hibridação potencial numa planta de aparência nitidamente diferente, a gramínea
do Novo Mundo conhecida como teosinto. Por exemplo, a Zea diploperennis, uma espécie de
teosinto descoberta há pouco tempo, é a única fonte conhecida de imunidade contra três dos
principais vírus que afligem o milho doméstico. (É bom lembrar que essa espécie é uma planta
perene, ao contrário do milho, com seu ciclo anual; isso dá substância potencial a um velho sonho, o
de que, pela hibridação, os criadores possam produzir um milho perene, que sobreviva de safra para
safra e que não tenha de ser replantado por semente a cada ano).
A princípio, pode parecer estranho que uma planta tão diferente do milho na aparência deva ser
suficientemente similar em estrutura genética para permitir a hibridação. É bem verdade que as
plantas jovens do milho e do teosinto são indistinguíveis, mas depois da floração, as diferenças entre
as estruturas adultas não poderiam ser mais profundas. A parte útil do milho é um grande sabugo com
várias fileiras de grãos (o termo técnico, polístico — que significa simplesmente várias fileiras —,
soa muito bem). O sabugo e os grãos são femininos, e situam-se na ponta terminal de fortes ramos de
posição lateral em relação ao caule principal (preste atenção nisto, pois essas posições tornam-se
cruciais na argumentação que desenvolverei). Muitas pessoas não reconhecem essa posição porque
as espigas de milho parecem estar enfiadas nos lados do caule principal. No entanto, as cascas que
envolvem tão completamente as espigas são na verdade resquícios de folhas que constituíam um
ramo lateral maior. Elas cobrem o sabugo, o qual se encontra, na verdade, em posição terminal num
ramo lateral drasticamente reduzido. O caule central tem na ponta terminal um pendão masculino, a
fonte do pólen. Assim, o milho desenvolve estruturas masculinas e femininas separadas: o pendão,
em posição terminal no caule principal, é masculino; as espigas, em posição terminal nos ramos
laterais, são femininas.
O teosinto, por outro lado, desenvolve um caule central e vários ramos laterais longos, de
comprimento e força comparáveis. Cada ramo termina num pendão masculino. As espigas femininas,
de modo inteiramente diverso do milho, crescem em posição lateral, não terminal, a partir dos ramos
laterais. A “espiga” do teosinto é também um produto análogo pobre, uma nanica, quando comparada
com a majestosa espiga de milho. Ela contém (dependendo da raça de teosinto) de seis a doze grãos
em duas fileiras (tecnicamente, ela é dística) unidas em uma, porque as pontas triangulares dos grãos
opostos se encaixam. Os grãos são envolvidos por uma cobertura externa dura sendo praticamente
inúteis como alimento humano, a menos que sejam estourados (como o milho de pipoca) ou
trabalhosamente moídos e separados da cobertura não-comestível. (Os grãos de milho são moles e
nus, imediatamente disponíveis como alimento porque as estruturas de cobertura não apenas são
flexíveis, mas são tão reduzidas em tamanho que envolvem apenas a base do grão.)
No entanto, apesar dessas diferenças, o milho e o teosinto são cruzados sem qualquer
impedimento, produzindo sabugos de tamanho intermediário. Tal compatibilidade paradoxal existe
por dois motivos básicos que refletem o tema deste ensaio — uma investigação sobre a descendência
e a origem do milho. Primeiro, o teosinto é provavelmente o ancestral direto do milho doméstico
(alguns especialistas discordam, embora nenhum negue o parentesco próximo). Segundo, não foram
encontradas quaisquer disparidades cromossômicas ou mesmo diferenças simples e coerentes em
genes isolados entre o teosinto e o milho. (É claro que as duas formas não poderiam ser tão
diferentes na aparência sem alguma divergência genética, mas a facilidade de hibrida- ção e o nosso
fracasso em encontrar diferenças indicam que a distinção genética entre as duas formas deve ser
minúscula. Na verdade, os botânicos classificam o milho e os teosintos anuais como uma mesma
espécie, Zea mays).

A teoria do teosinto como origem do milho sempre sofreu por causa de um importante dilema:
Como isso pode acontecer? Como a espiga do teosinto, tão diferente do milho, pode se transformar
no sabugo moderno? O milho, como todos os principais cereais domésticos, é uma gramínea. A
origem evolutiva de outros grãos importantes, o trigo, por exemplo, apresenta menos problemas. As
espigas de trigo diferem apenas em termos quantitativos da gramínea ancestral selvagem — são,
essencialmente, a mesma coisa, porém maiores. Podemos compreender com facilidade como a
seleção agrícola conseguiu transformar um ancestral selvagem no trigo doméstico. Mas como é
possível tirar um sabugo de milho de uma espiga de teosinto ou de qualquer outra parte do teosinto?
Eles são construídos de modo tão diferente!
Na versão-padrão da hipótese do teosinto — a qual rejeitarei aqui em favor de uma alternativa
radical —, a espiga do teosinto é, não obstante, transformada gradualmente na moderna espiga de
milho. Aos poucos ela aumenta o número de fileiras, ao passo que a cobertura externa dura vai
amolecendo e se retirando dos grãos. Esse roteiro parece bastante óbvio e compatível com a nossa
costumeira visão de transformação evolutiva. A tradição da modificação gradual da espiga de
teosinto em espiga de milho data, pelo menos, de Luther Burbank, o grande “mago” da criação de
plantas do início do século XX, que afirmou ter transformado o teosinto em milho em dezoito
gerações de seleção. Ele estava errado. Ele começou, não com o teosinto, como pensava, mas com
um híbrido de milho e teosinto — e a sua seleção limitara-se a segregar e acumular os fatores
genéticos do milho. No entanto, o seu argumento geral a favor de uma transformação gradual da
espiga de teosinto em sabugo de milho persistiu. Num artigo de janeiro de 1980 da Scientific
American, George Beadle, um dos grandes cientistas do milho de nossa época, proclamou que “os
sabugos podem ser dispostos numa sequência contínua, do teosinto ao milho moderno, com base em
modificações progressivas”.
No entanto, essa teoria de derivação gradual a partir da espiga de teosinto depara-se com três
grandes problemas, talvez fatais. Primeiro, o milho surge repentinamente no registro arqueológico há
sete mil anos. As primeiras espigas, claro, não são tão gordas, nem têm tantas fileiras como o sabugo
moderno, mas representam nitidamente o milho, não algo entre o milho e o teosinto. Segundo, como
foi dito antes, os criadores não encontraram nenhuma diferença genética sólida entre o milho e o
teosinto. Se o milho fosse o produto de uma seleção longa e vagarosa a partir do teosinto, um número
considerável de mudanças genéticas deveria ter se acumulado. Ambos os argumentos são negativos e,
portanto, não conclusivos. Talvez o surgimento repentino apenas testemunhe um fracasso na
descoberta de formas intermediárias; talvez a ausência de diferença genética signifique apenas que
não olhamos nas partes certas dos cromossomos certos.
O terceiro argumento é positivo e mais perturbador para a hipótese de que as espigas de milho
surgiram das espigas de teosinto. Lembre-se do ponto que pedi que fosse assinalado alguns
parágrafos atrás: as posições das espigas do teosinto e das do milho não são equivalentes. A espiga
de teosinto brota lateralmente a partir de ramos laterais; a espiga de milho desenvolve-se em posição
terminal em ramos laterais. No teosinto, a estrutura terminal dos ramos laterais principais é um
pendão masculino, não uma espiga feminina. Portanto, de acordo com a posição — e direi num
instante porque a posição é um critério tão importante —, a espiga feminina do milho moderno é
equivalente (ou, como dizemos no jargão técnico, homóloga) a um pendão masculino.
Essa homologia de pendão masculino e espiga feminina já foi reconhecida (e afirmada) há um
bom tempo por muitos especialistas em milho, mas nenhum explorou o fato antes para desenvolver
uma hipótese sobre a origem do milho. A teoria óbvia sugerida pela homologia pode, a princípio,
parecer absurda, mas ela resolve de modo plausível e refinado todos os problemas clássicos da
hipótese do teosinto. Em resumo, essa nova teoria propõe que as espigas de milho evoluíram
rapidamente a partir de pendões masculinos por meio do encurtamento dos ramos laterais e da
supressão das espigas de teosinto situadas abaixo. Em vez de um aumento lento e contínuo das
espigas femininas de teosinto, prefiguramos uma transformação abrupta de pendões masculinos em
versões pequenas e primitivas de uma moderna espiga feminina de milho.
Hugh H. Iltis, professor de botânica e diretor do Herbário da Universidade de Wisconsin em
Madison, desenvolveu essa teoria heterodoxa e a divulgou recentemente na principal publicação
profissional dos Estados Unidos (ver Bibliografia) [A teoria não convencional de Iltis logo desencadeou a esperada
rajada de críticas dos defensores dos pareceres mais tradicionais. Os leitores que desejarem acompanhar a controvérsia podem começar
com as críticas de dois “grandes chefes” dos estudos do milho (Walton C. Galinat e Paul C. Mangelsdorf) e a resposta de Iltis, todas
publicadas em Science, 14 de setembro de 1984, pp. 1093-1096, logo após a publicação original deste ensaio. O livro de Mangelsdorf,
Corn (Harvard University Press, 1974), contém uma grande riqueza de informações sobre a maior contribuição do nosso hemisfério para
a alimentação humana]. Não tenho nenhuma credencial de especialista em milho e não posso fazer
qualquer proclamação a respeito da verdade ou da falsidade desta curiosa ideia. Quero, entretanto,
ilustrar a sua condição de exemplo potencial plausível de um processo evolutivo muitas vezes
rejeitado com uma ridícula falta de compreensão — o chamado monstro promissor.
Dizemos que partes de dois organismos são “homólogas” quando elas representam a mesma
estrutura segundo um critério de descendência evolutiva a partir de um ancestral comum. Nenhum
conceito é mais importante na descoberta dos caminhos da evolução, pois as homologias registram a
genealogia, e conclusões falsas a respeito da homologia levam invariavelmente a árvores evolutivas
incorretas.
Estruturas homólogas não têm de ser parecidas. Na verdade, os exemplos-padrão invocam órgãos
bastante dissimilares em forma e função, pois esses “clássicos” são escolhidos para ilustrar a ideia
de que a mera semelhança não tem a qualidade de critério. Os exemplos incluem a homologia do
martelo e da bigorna, ossos do ouvido médio dos mamíferos, com os ossos da articulação da
mandíbula dos répteis; e o pulmão dos vertebrados terrestres com a bexiga natatória dos peixes
ósseos.
Como podemos, então, reconhecer a homologia e, por meio dela, reconstruir os caminhos da
evolução? Essa questão dificílima da teoria evolutiva não tem nenhuma resposta definitiva. Nenhum
critério único funciona em todos os casos; todas as regras têm exceções bem conhecidas. Devemos
avaliar as homologias propostas segundo todos os padrões e aceitar ou rejeitar uma hipótese através
da afirmação conjunta e independente de vários critérios. A similaridade no desenvolvimento
embriológico inicial muitas vezes funciona bem no caso de estruturas que se tornam bastante
diferentes nos adultos: os embriões jovens de mamíferos desenvolvem os ossos do ouvido nas pontas
das mandíbulas — e esse fato harmoniza-se com uma sequência fóssil bem estabelecida que mostra a
redução desses dois ossos mandibulares e o seu deslocamento final para o ouvido médio. No entanto,
órgãos verdadeiramente homólogos podem ser modificados por mudanças evolutivas que dissimulam
os caminhos da descendência.
Um detalhe aparentemente superficial — a simples relação espacial com outras partes — muitas
vezes serve bem como critério de homologia. Como diz a velha ladainha, o osso do pé é mesmo
ligado ao osso do tornozelo, e relações tão fundamentais não podem ser alteradas com facilidade na
evolução. Assim, o chamado “critério posicional” de homologia é provavelmente o mais respeitado
e utilizado dentre todos os padrões. E, por esse critério, as modernas espigas femininas de milho
devem descender dos pendões masculinos do teosinto (pois ambos os traços ocupam posição igual,
nas pontas terminais dos ramos laterais), e não das espigas femininas do teosinto.
Para que não pareça absurdo o fato de estruturas masculinas se transformarem em órgãos
femininos de aparência tão diversa, lembro aos leitores que as partes masculinas e femininas muitas
vezes possuem uma base comum no desenvolvimento embriológico, uma se desenvolvendo
diretamente a partir da outra sob a influência de diferentes hormônios. Os órgãos genitais externos de
todos os mamíferos, por exemplo, têm início como estruturas femininas: o clitóris aumenta, dobra-se
e funde-se para formar um cilindro com um tubo central, o pênis do macho; os labia majora
expandem-se e fundem-se na linha mediana para formar um saco escrotal. No ensaio 11 de Hen ’s
Teeth and Horse’s Toes, usei essas equivalências para afirmar que os notáveis órgãos genitais das
fêmeas das hienas pintadas, que imitam os órgãos masculinos, surgem comumente a partir desses
caminhos comuns de desenvolvimento sexual, porque as fêmeas dessa espécie secretam níveis
extraordinariamente altos de testosterona durante o crescimento e se tornam maiores e dominantes em
relação aos machos.
O pendão e a espiga do milho também são estruturas equivalentes, e a transformação de um no
outro é igualmente plausível. Na verdade, tais trocas muitas vezes ocorrem como teratologias, ou
anomalias de desenvolvimento no milho moderno. Os pendões masculinos podem se desenvolver
como espigas femininas ou como espigas femininas parciais com pontas masculinas por diversos
motivos: mutações genéticas e doenças que reduzem drasticamente o ramo central, por exemplo. Iltis
enviou-me a foto anexa de um pendão feminilizado, vendido como uma espiga de milho comum no
supermercado Kohol em Madison, Wisconsin, por trinta e nove cents. O eixo central desenvolveu-se
como uma espiga feminina completa. Os três ramos laterais são femininos na base, tornando-se
gradualmente masculinos no ápice, com as partes masculinas “dispostas”, disse-me Iltis, “exatamente
como em qualquer ramo de pendão de milho ou teosinto”. É claro que tais teratologias apenas
mostram a permutabilidade entre pendões de milho e espigas de milho, não a derivação evolutiva de
espigas de milho a partir de pendões de teosinto. Mas elas certamente ilustram, através de uma
vigorosa analogia, por que o caminho genealógico do pendão de teosinto até a espiga de milho
continua a ser tão sensato, embora pareça peculiar à primeira vista.

Ao chamar essa teoria de “transmutação sexual catastrófica”, Iltis identifica eficazmente as suas
duas propriedades notáveis e não convencionais. Primeiro, usando o critério posicionai da
homologia como guia, as espigas de milho femininas surgiram através da transmutação de um pendão
masculino de teosinto, e não através do crescimento gradual de uma espiga feminina de teosinto.
Segundo, a transformação ocorreu rapidamente, sob a orientação de pouca (ou nenhuma) mudança
genética, a despeito da alteração repentina e surpreendente da forma. Tentarei resumir a
argumentação de Iltis nos seguintes passos básicos:

1. Tanto no milho quanto no teosinto, os hormônios são distribuídos ao longo de gradientes


simples em caules longos, com zonas
masculinas nos ápices, passando através de um limiar para zonas femininas abaixo.
2. Um gradiente na época de diferenciação durante o desenvolvimento também acompanha essa
distribuição hormonal. As estruturas nos ápices dos caules desenvolvem-se antes das que estão
abaixo. Num ramo lateral de teosinto, o pendão masculino terminal diferencia-se antes das
espigas femininas abaixo.
3. As necessidades alimentares de um pendão masculino são pequenas, as de uma espiga feminina
(particularmente de uma espiga grande e polística de milho) muito maiores. A diferenciação de
um pendão na ponta terminal de um ramo ainda deixa a maioria dos nutrientes disponíveis para o
desenvolvimento de estruturas femininas abaixo (ver ponto 2).
4. Se um pendão masculino terminal se transformasse abruptamente numa espiga feminina, essa
espiga iria se tornar de imediato um receptáculo para todos os nutrientes disponíveis e poderia
suprimir de forma automática o desenvolvimento de qualquer estrutura feminina subsequente em
posição inferior no ramo.
5. O passo inicial da transmutação sexual catastrófica, dados os pontos de 1 a 4, poderia,
portanto, exigir nada mais do que um encurtamento acentuado de um ramo lateral de teosinto. O
encurtamento mudaria a ponta do ramo, de zona masculina para zona feminina (ponto 1). A
estrutura terminal então se diferenciaria primeiro como espiga feminina (pontos 1 e 2). A espiga
terminal iria se apropriar de todos os nutrientes e suprimir o desenvolvimento de quaisquer
estruturas abaixo, inclusive das costumeiras espigas femininas de teosinto (pontos 3 e 4).
6. Embora o encurtamento de um ramo possa induzir uma série profunda e variada de
consequências automáticas (ponto 5), a mudança inicial (o encurtamento em si) é simples e pode
exigir apenas uma alteração genética insignificante, talvez a mutação de um único gene. A
mudança inicial poderia mesmo não exigir absolutamente mutação genética alguma, pois vários
tipos de ferrugem e vírus do milho, ou mesmo uma simples mudança ambiental, como
temperaturas noturnas mais frias, ou dias mais curtos, poderiam levar a uma feminilização dos
pendões centrais do milho.
7. E claro que o produto inicial de tal encurtamento e feminilização não seria uma espiga
moderna de milho plenamente desenvolvida. O primeiro passo produziria, com toda
probabilidade, um sabugo com umas poucas fileiras de grãos femininos na base e estruturas
masculinas acima. A produção de espigas polísticas, ou de muitas fileiras, continua problemática.
Uma hipótese imagina a conjunção de vários segmentos do pendão (à medida que o ramo
diminui) e a sua junção e entrelaçamento subsequentes para formar a espiga polística. Lembre-
se, porém, de que a teoria convencional de derivação a partir de uma espiga de teosinto com duas
fileiras depara-se com o mesmo problema e propõe a mesma resolução básica. Como assinala
Iltis, o pendão de um teosinto é um candidato melhor do que a espiga de teosinto para tal
processo hipotético. A espiga do teosinto é, como dizem os biólogos, uma estrutura fortemente
“canalizada” — uma que se desenvolve basicamente do mesmo modo em todos os indivíduos de
uma raça, sem muita variação de planta para planta. Ela sempre tem duas fileiras e poucos grãos.
O pendão, por outro lado, é bem variável e prolífico em unidades individuais (todas adequadas
para a transformação em grãos). Ao transformar uma variante masculina com quantidade máxima
de fileiras e unidades, o primeiro passo poderia nos trazer bem mais perto de uma espiga de
milho do que qualquer mudança inicial a partir de uma espiga de teosinto.
8. A espiga inicial, pequena, da transmutação sexual catastrófica é imediatamente útil como
alimento humano. Os fazendeiros, portanto, propagam os grãos e selecionam as futuras gerações a
partir das plantas com os grãos maiores. A seleção agrícola comum, portanto, produz a espiga
maior e mais cheia a partir da sua condição inicial, um tanto quanto pequena, mas ainda assim
útil.

Como característica geral mais importante, a teoria de Iltis propõe que uma pequena mudança
genética, que inicia uma modificação básica de forma (encurtamento dos ramos laterais), engendra
automaticamente uma importante alteração de estrutura (transformação da espiga do pendão
masculino em espiga feminina) “destruindo o equilíbrio’ ’ dos sistemas de desenvolvimento e sexual
herdados (gradientes hormonais de macho para fêmea ao longo de um caule, e gradientes em
diferenciação que permitem que estruturas terminais se desenvolvam primeiro). Essa teoria, portanto,
pode servir como um exemplar notável de um processo longamente ridizularizado por evolucionistas
convencionais, mas, a meu ver, eminentemente plausível em certos casos — o “monstro promissor”,
um parecer “saltacionista” para a origem de estruturas morfológicas e de espécies novas (evolução
por saltos). O grande geneticista alemão Richard Goldschmidt propôs essa ideia numa série de
obras, que culminaram no seu livro de 1940, The Material Basis of Evolution (recentemente
reimpresso pela Yale University Press com uma introdução feita por este seu criado). O monstro
promissor de Goldschmidt tornou-se o bode expiatório dos darwi- nianos ortodoxos, com as suas
preferências pela mudança gradual e contínua, e a sua teoria sofreu o destino mais cruel de todos —
não ser lida nem compreendida, ao mesmo tempo em que era ridicularizada numa versão caricata.
Na sua versão caricata, os monstros promissores são rejeitados por três motivos. A proposta de
Iltis sobre a origem do milho ilustra muito bem a teoria na sua forma correta e sutil, tal como
Goldschmidt a apresentou, e fornece um antídoto específico para todos os três argumentos. Primeiro,
os detratores afirmam que a teoria de Goldschmidt representa uma capitulação à ignorância, uma
busca de apoio em algum tipo de acidente singular e caprichoso, útil por acaso, vez ou outra. No
entanto, não sabemos que virtualmente todas as grandes mudanças são prejudiciais? Goldschmidt
reconheceu que a maioria dos macromutantes são inviáveis — monstros verdadeiramente sem
esperança, nas suas palavras. Os poucos promissores conquistaram a sua condição precisamente
porque alcançaram a sua forma abruptamente alterada dentro das limitações impostas por um sistema
de desenvolvimento herdado. Os monstros promissores não são uma velha mudança singular, mas
modificações em larga escala ao longo de caminhos estabelecidos de desenvolvimento sexual e
embriológico comuns. Na teoria de Iltis, os gradientes herdados, de desenvolvimento e hormonais, ao
longo de um ramo, permitem a transformação do pendão em espiga. Mudanças grandes em harmonia
com — e produzidas ao longo de — caminhos comuns de desenvolvimento não têm de ser inviáveis,
pois elas se encontram dentro das possibilidades herdadas da organização fundamental.
Segundo, os monstros promissores têm sido rejeitados porque supostamente propõem
perturbações desconhecidas e de grande escala dos sistemas genéticos. De fato, no fim da carreira,
Goldschmidt infelizmente confundiu a noção inicial de mudança por saltos na forma com uma teoria
posterior de mudança genética abrupta e substancial — a chamada mutação sistêmica. Mas, na versão
inicial de Goldschmidt, o monstro promissor surgiu como consequência de mudanças genéticas
pequenas — e, portanto, plausíveis e ortodoxas — que produzem grandes efeitos na forma porque
alteram estágios iniciais de desenvolvimento que provocam efeitos em cadeia no desenvolvimento
subsequente. Iltis propõe uma mudança genética pequena (ou mesmo nenhuma) como base para o
encurtamento dos ramos laterais e a produção do salto, de pendão para espiga, como uma
consequência automática de padrões de desenvolvimento.
Terceiro, quem o monstro promissor irá escolher para o acasalamento? Ele é apenas um
indivíduo, ainda que bem dotado, e a evolução exige a difusão dos traços favoráveis na população. A
prole de duas formas diferentes, um indivíduo normal e um monstro promissor, será, com toda
probabilidade, estéril ou, pelo menos, no seu estado peculiarmente híbrido, não será páreo para os
indivíduos normais na seleção natural. No entanto a teoria de Iltis evita esse problema invocando a
ajuda humana na propagação das sementes. O teosinto trans- mutado catastroficamente ainda é uma
criatura viável, com um pendão masculino na espiga central e espigas femininas em posições
terminais nos ramos laterais.
Por fim, uma última característica, interessante e incomum, da teoria de Iltis: ela recorre à
resposta humana, não apenas para melhorar a espiga inicial por meio da seleção convencional, mas
também para torná-la, antes de mais nada, uma estrutura viável — um exemplo notável de interação
entre duas espécies disparatadas na natureza. A espiga de milho, como objeto natural, pode muito
bem não ser funcional — pois os folhelhos, que envolvem o sabugo com firmeza como resultado do
encurtamento tão drástico do ramo lateral, impedem qualquer dispersão das sementes (os grãos). Em
estado natural, a espiga simplesmente apodreceria no local onde caísse, ou daria origem a plantas tão
próximas entre si que nenhuma delas alcançaria a maturidade plena. Mas os fazendeiros podem tirar
os folhelhos e plantar as sementes — convertendo um monstro sem esperança num monstro
muitíssimo promissor e útil.
O milho é a terceira maior cultura do mundo, não muito atrás do trigo e do arroz. Na condição de
cultura básica original dos povos do Novo Mundo, ele construiu as civilizações de um hemisfério
inteiro. Hoje plantamos 270 milhões de acres de milho por ano, que produzem quase nove bilhões de
Bushels (unidade de medida de grãos. Equivale a oito galões ou 36,5 litros - N.R.T.). A maior parte disso não acaba em
tacos ou salgadinhos, mas em ração animal — a fonte primária para os nossos apetites carnívoros.
Precisamos do milho para uma vida confortável, mas o milho precisa de nós, simplesmente para
sobreviver.
7. Avida aqui e em outros lugares
25. Justamente no meio

A defesa da integridade orgânica foi expressada com mais vigor por um poeta, e não por um
biólogo. Na sua peã romântica, The Tables Turned, William Wordsworth escreveu:

Doce é o saber que a natureza traz;


O nosso intelecto intrometido
Desfigura as formas belas das coisas:
Assassinamos para dissecar.

O ranço de anti-intelectualismo que impregna este poema sempre me perturbou, por mais que eu
aprecie a sua defesa da unidade da natureza. Pois ele deixa implícito que qualquer tentativa de
análise, qualquer esforço de compreensão por meio da fragmentação de um sistema complexo em
partes constituintes é não apenas inútil, como também imoral.
No entanto, a caricatura e a rejeição do outro lado têm sido igualmente intensas, se bem que em
geral não expressadas com tanta inspiração. Os cientistas que estudam sistemas biológicos
decompondo-os em partes cada vez menores, até chegarem à química das moléculas, muitas vezes
ridicularizam os biólogos que insistem em tratar os organismos como todos irredutíveis. Os dois
lados desta dicotomia excessivamente simplificada têm até nomes, muitas vezes invocados de modo
pejorativo pelos seus oponentes. Os dissecadores são “mecanicistas”, que acreditam que a vida nada
mais é que a física e a química das suas partes componentes. Os integralistas são “vitalistas”, e
afirmam que a vida, e apenas a vida, tem aquele “algo especial”, para sempre fora do alcance da
química e da física, até mesmo incompatível com a ciência “básica”. Nessa interpretação, uma
pessoa é, de acordo com os adversários, ou um mecanicista insensível ou um místico vitalista.
Sempre me diverti com a nossa tendência vulgar para tornar questões complexas, com soluções
que não se encontram nem num extremo nem no outro de uma sequência contínua, e dividi-las em
dicotomias, atribuindo a um grupo um dos pólos e ao outro o extremo oposto, sem nenhum
reconhecimento das sutilezas e posições intermediárias — e quase sempre com o opróbrio moral
vinculado aos oponentes. Como canta o sábio Private Willis em Iolanthe, de Gilbert e Sullivan:

Muitas vezes acho cômico


Como a natureza sempre consegue
Que todo rapaz e toda moça
Nascidos vivos neste mundo
Sejam, ou um pequeno liberal
Ou então um pequeno conservador!
Fal la la!

As categorias hoje mudaram, mas ainda somos direitistas ou esquerdistas, defensores da energia
nuclear ou do aquecimento solar, pró escolha ou contra o assassinato de fetos. Simplesmente não nos
permitem a sutileza de uma opinião intermediária em questões intrincadas (embora eu suspeite que o
único debate verdadeiramente importante e complexo sem nenhum posicionamento intermediário
possível é saber se você é a favor ou contra a regra do rebatedor indicado [Regra segundo a qual o técnico
pode indicar o rebatedor dentre os jogadores da equipe que não estejam desempenhando função na defesa - N.R.T.] — e eu sou
contra).
Assim, persiste a impressão de que os biólogos são mecanicistas ou vitalistas, partidários de uma
redução final à física e à química (sem consideração alguma pela integridade do organismo) ou
defensores de uma força especial que dá sentido à vida (e místicos modernos que negariam a unidade
potencial da ciência). Por exemplo, um popular artigo sobre pesquisas no Laboratório de Biologia
Marinha em Woods Hole (no número setembro-outubro de 1983 da Harvard Magazine) discute o
trabalho de um cientista que usa uma abordagem de físico para problemas neurológicos:

No jargão dos filósofos da ciência, ele poderia ser considerado um “reducionista” ou


“mecanicista”. Ele acredita que as leis fundamentais da mecânica e do eletromagnetismo são
suficientes para explicar todos os fenômenos nesse nível. Os vitalistas, por contraste, sustentam
que algum princípio vital, alguma chama da vida, separa a matéria viva da não-viva. Thomas
Hunt Morgan, um vitalista confesso, observou acidamente certa vez que os cientistas que
comparavam os organismos vivos com máquinas eram como “índios selvagens que descarrilavam
trens e procuravam pelos cavalos dentro da locomotiva”. A maioria dos mecanicistas, por sua
vez, consideram o princípio vital dos seus oponentes como pouco mais que magia negra.

Mas essa dicotomia é uma caricatura absurda das opiniões mantidas pela maioria dos biólogos.
Embora eu tenha conhecido alguns mecanicistas, tal como definidos no artigo, acho que nunca
encontrei um vitalista (embora a posição de fato tenha gozado de certa popularidade durante o século
XIX). A vasta maioria dos biólogos, incluindo o grande geneticista T. H. Morgan (um antivitalista
como qualquer cientista do nosso século), defende uma posição intermediária. Os extremos podem
dar boas matérias e um tema conveniente (ainda que simplista) para discussões, mas eles são
adotados por poucos cientistas praticantes, se é que o são por algum. Se conseguirmos compreender
esta posição intermediária e entender por que ela tem gozado de uma popularidade tão persistente,
talvez consigamos começar, antes de mais nada, a criticar a nossa lamentável tendência de reduzir
temas complexos a dicotomias. Portanto, devoto o presente ensaio à definição e ao apoio a essa
posição intermediária, mostrando como ela foi desenvolvida e defendida por um bom biólogo
americano, Ernest Everett Just, no curso da sua própria pesquisa biológica.
A posição intermediária sustenta que a vida, como resultado da sua complexidade estrutural e
funcional, não pode ser separada em constituintes químicos e explicada na sua totalidade por leis
físicas e químicas funcionando em nível molecular. Mas o caminho intermediário nega com o mesmo
vigor que esse fracasso do reducionismo testemunhe qualquer propriedade mística da vida, qualquer
“chama” especial inerente apenas à vida. A vida obtém da estrutura hierárquica da natureza os seus
princípios próprios. À medida que os níveis de complexidade ascendem à hierarquia de átomo,
molécula, gene, célula, tecido, organismo e população, surgem novas propriedades como resultado
das interações e interconexões que emergem em cada nível. Um nível superior não pode ser
plenamente explicado através da decomposição em elementos constituintes e da apresentação das
suas propriedades na ausência dessas interações. Assim, precisamos de princípios novos, ou
“emergentes”, para abarcar a complexidade da vida; esses princípios suplementam a física e a
química dos átomos e moléculas, e são compatíveis com eles.
Esse caminho intermediário pode ser designado como “orgânico” ou “holístico”; ele representa a
postura adotada pela maioria dos biólogos e até mesmo pela maioria dos físicos que pensaram com
afinco sobre a biologia e que experimentaram diretamente a sua complexidade. Ele foi, por exemplo,
defendido no que pode ser o mais famoso livro do nosso século sobre “o que é a vida?” — a
pequena obra-prima do mesmo título, escrita em 1944 por Erwin Schrödinger, o grande estudioso de
física quântica que se voltou para os problemas biológicos no fim da carreira. Schrödinger escreveu:

A partir do que aprendemos sobre a estrutura da matéria viva, devemos estar preparados para
encontrá-la funcionando de uma maneira que não pode ser reduzida às leis comuns da física. E
isso não tomando como fundamento a existência de uma “nova força” ou sabe-se lá o quê, que
dirige o comportamento dos átomos isolados dentro de um organismo vivo, mas sim porque a
construção é diferente de qualquer coisa que tenhamos posto à prova no laboratório de física.

Schrödinger então apresenta uma analogia notável. Compare-se o físico comum a um engenheiro
familiarizado apenas com a operação de máquinas a vapor. Quando esse engenheiro encontrar, pela
primeira vez, um motor elétrico mais complicado, ele não irá supor que este funciona através de leis
intrinsecamente misteriosas apenas porque não consegue compreendê-lo com os princípios próprios
das máquinas a vapor: “Ele não irá suspeitar que um motor elétrico é acionado por um espírito só
porque começa a girar depois de ligada uma chave, sem caldeira e vapor.”
Ernest Everett Just, um embriologista sério, que desenvolveu uma atitude holística semelhante
como consequência direta da sua própria pesquisa, nasceu há cem anos em Charleston, Carolina do
Sul (Escrevi este ensaio em 1983, para o centenário do nascimento de Just). Formou-se em 1907, em Dartmouth, na
condição de melhor aluno da sua turma, e fez a maior parte da sua pesquisa no Laboratório de
Biologia Marinha de Woods Hole, durante a década de 1920. Continuou o trabalho em vários
laboratórios europeus de biologia durante a década de 1930, e foi internado por um breve período
pelos nazistas depois da derrota francesa em 1940. Repatriado para os Estados Unidos, com o
espírito abatido, morreu de câncer pancreático em 1941, aos 58 anos de idade.
Just começou como experimentalista, estudando problemas de fertilização em nível celular e na
grande tradição de pesquisa descritiva, cuidadosa, tão característica da “escola de Woods Hole”. À
medida que se desenvolvia esse trabalho, e especialmente depois da partida para a Europa, a sua
carreira entrou numa nova fase: ele ficou fascinado com a biologia das superfícies celulares. Essa
mudança teve origem direta no seu interesse pela fertilização e na preocupação particular com um
velho problema: como o espermatozoide penetra a membrana exterior de um óvulo, e como a
superfície do óvulo reage então em termos físicos e químicos? Ao mesmo tempo, o trabalho de Just
assumiu um tom mais filosófico (embora ele nunca tenha abandonado os seus experimentos), e ele
pouco a pouco desenvolveu uma perspectiva holística, orgânica, a meio caminho dos extremos
caricatos do mecanicismo e do vitalismo clássicos. Just expôs essa filosofia biológica, um resultado
direto da sua preocupação crescente com a superfície celular considerada como um todo, em The
Biology of Cell Surfaces, publicado em 1939.
O trabalho inicial de Just sobre fertilização antecipava coisas que estavam por vir. Ele não se
mostrava particularmente interessado em como o material genético do óvulo e do espermatozoide se
fundem e então dirigem a subsequente arquitetura do desenvolvimento — um tema clássico da
tradição reducionista (uma tentativa de explicar as propriedades da embriologia em termos de genes
alojados num núcleo controlador). Ele estava mais preocupado com os efeitos que a fertilização
impõe à célula inteira, particularmente à sua superfície, e com a interação de núcleo e citoplasma na
divisão celular e diferenciação subsequentes do embrião.
Just possuía uma habilidade fora do comum para inventar experimentos simples e refinados que
iam de encontro às principais questões teóricas do seu tempo. Logo no primeiro trabalho, por
exemplo, ele demonstrou que, pelo menos em algumas espécies de invertebrados marinhos, o ponto
de entrada do espermatozoide determina o plano da primeira clivagem (a divisão inicial do óvulo
fertilizado em duas células). Ele também provou que a superfície do óvulo é “equipotencial” — isto
é, que o espermatozoide tem probabilidades iguais de entrar em qualquer ponto. Nessa época, os
biólogos conduziam um vigoroso debate (lá vamos nós outra vez com as dicotomias) entre pré-
formacionistas, que afirmavam que a diferenciação de um embrião em partes e órgãos especializados
já está prefigurada na estrutura de um óvulo não-fertilizado, e epigeneticistas, que afirmavam que a
diferenciação surge durante o desenvolvimento de um óvulo inicialmente capaz de formar qualquer
estrutura subsequente a partir de qualquer uma das suas regiões.
Ao demonstrar que a direção da clivagem seguia o caráter aleatório do ponto de penetração de
um espermatozoide (e que um espermatozoide podia penetrar em qualquer parte da superfície do
óvulo), Just apoiava a alternativa epigenética. Essa primeira dissertação já continha a base para o
holismo posterior e explícito de Just — o seu interesse pelas propriedades de organismos inteiros (a
superfície completa do óvulo) e pelas interações de organismo e ambiente (o caráter epige- nético do
desenvolvimento contrastado com a opinião pré-formacionista de que os caminhos do
desenvolvimento posterior se encontram dentro da estrutura do óvulo).
Acredito que o holismo maduro de Just teve duas fontes primordiais nos seus primeiros trabalhos
experimentais sobre fertilização. Primeiro, Just distinguiu-se em Woods Hole pela sua “boa mão”, a
melhor da sua geração. Era absolutamente rigoroso em questões de procedimento e limpeza
adequadas nos laboratórios. Tinha uma empatia fantástica com os invertebrados marinhos que
habitam as águas perto de Woods Hole. Sabia onde encontrá-los e compreendia muito bem os seus
hábitos. Conseguia extrair ovos e mantê-los em estado normal e saudável sob condições de
laboratório. Tornou-se a principal fonte de conselhos técnicos para jovens e brilhantes
pesquisadores, que haviam dominado todas as últimas novidades na técnica de experimentação, mas
que pouca coisa sabiam de história natural.
Just, portanto, compreendia melhor do que qualquer outra pessoa a importância da normalidade
saudável dos óvulos usados para experimentos de fertilização — a integridade de células inteiras nas
suas condições normais não podia ser comprometida. Vezes e vezes, ele demonstrou como vários
experimentos famosos de cientistas eminentes não tinham validade porque eles haviam usado células
moribundas ou anormais, e que os resultados podiam ser atribuídos a essas condições ‘ ‘pouco
vitais” e não à intervenção experimental em si. Por exemplo, Just refutou uma série importante de
experimentos sobre anomalias de desenvolvimento quando os óvulos são fertilizados por
espermatozoides de outra espécie. Ele provou que os padrões peculiares de desenvolvimento
embriológico devem ser atribuídos, não ao espermatozoide alienígena em si, mas ao estado
moribundo dos óvulos, causado pelas condições ambientais (de temperatura e condição química da
água) necessárias para induzir a fertilização anormal, mas que eram incompatíveis com a boa saúde
do óvulo.
Just ridicularizava a falta de preocupação pela história natural exibida por tantos
experimentadores, que tudo sabiam sobre o que havia de mais recente e requintado na física e na
química, mas que não sabiam praticamente nada sobre organismos. Eles se referiam aos óvulos e ao
esperma como ‘ ‘material” (tenho a mesma reação diante dos modernos reducionistas que chamam de
“preparados” as células e os órgãos vivos das suas experiências) e aceitavam os seus objetos
experimentais em quaisquer condições, porque não sabiam distinguir a normalidade da anomalia: “Se
a condição dos óvulos não for levada em consideração”, escreveu Just, “os resultados obtidos por
meio do uso de óvulos subnormais poderão ser atribuídos inteiramente ou em parte às más condições
fisiológicas dos óvulos.”
Segundo, e mais importante, os vinte anos de pesquisas de Just sobre a fertilização o conduziram
direta e quase que inexoravelmente ao interesse pela superfície celular e à sua filosofia holística.
Uma vez que a sua obra, tal como previamente mencionado, se concentrava nas mudanças que as
superfícies celulares sofrem durante a fertilização, Just logo percebeu que a superfície celular não
era uma fronteira simples, passiva, mas uma parte complexa e essencial da organização celular;

Não se pode pensar no citoplasma superficial como inerte ou separado da substância celular
viva. O ectoplasma [o nome que Just dava ao material superficial] é mais do que uma barreira
para deter a maré alta dentro da substância celular ativa; é mais do que uma barragem contra o
mundo exterior. É uma parte móvel e viva da célula.

Depois, perseguindo uma preocupação comum da biologia holística, Just enfatizou que a
superfície celular, na condição de domínio de comunicação entre o organismo e o meio ambiente,
corporifica o tema da interação — uma complexidade orgânica que não pode ser reduzida a partes
químicas:

Ela está sintonizada com o mundo exterior como nenhuma outra parte da célula. Ela monta guarda
à forma peculiar da substância viva, amortece os ataques do meio ambiente e é o meio de
comunicação com este.

Além disso, como principal contribuição experimental, Just demonstrou que a superfície celular
reagia à fertilização como uma entidade contínua e indivisível, muito embora o espermatozoide
apenas penetrasse num único ponto. Se a superfície possui tamanha integridade, e se ela regula tantos
processos celulares, como podemos interpretar significativamente as funções das células separando-
as em componentes moleculares?

Sob o impacto de um espermatozoide a superfície do óvulo primeiro cede e depois se recompõe:


a membrana do óvulo move-se para dentro e para fora abaixo do espermatozoide, que se move
ativamente, durante um ou dois segundos. Então, de repente, o espermatozoide fica imóvel, com a
ponta enterrada numa pequena reentrância da superfície do óvulo, ocasião em que o ectoplasma
desenvolve uma aparência nebulosa. A turbidez se espalha a partir desse ponto, de modo que,
vinte segundos após a inseminação — a mistura de óvulo e espermatozoide —, o ectoplasma
inteiro está nublado. Em seguida, como um relâmpago, começando no ponto da ligação com o
espermatozoide, uma onda varre a superfície do óvulo, clareando o ectoplasma à medida que
passa.

À medida que o trabalho progredia, Just reclamava mais e mais importância para a superfície
celular, acabando por ir longe demais. Ele sabiamente negou a premissa reducionista de que todas as
características celulares são produtos passivos de genes diretores localizados no núcleo, mas o seu
parecer alternativo de controle ectoplasmático sobre os movimentos nucleares tampouco pode ser
sustentado. Além disso, o seu argumento de que a história da vida testemunha um domínio crescente
da parte do ectoplasma, já que as células nervosas são as mais ricamente dotadas de material
superficial e já que o tamanho do cérebro aumenta continuamente durante a evolução, reflete a
concepção errônea e comum de que a evolução inevitavelmente produz progresso, o qual tem o
avanço mental como principal critério. A seguinte passagem pode refletir a habilidade literária de
Just, mas coloca- se como uma metáfora confusa, não como biologia esclarecida:

A nossa mente abrange os movimentos planetários, delimita as eras geológicas, reduz a matéria
aos seus elétrons constituintes, porque a nossa mentalidade é a expressão transcendental da
integração antiqüíssima entre o ectoplasma e o mundo não-vivo.

Por fim, a obra de Just também sofreu porque ele teve a infelicidade de empreender a sua
pesquisa e de publicar o seu livro pouco antes da invenção do microscópio eletrônico. A superfície
celular é por demais delgada para ser esclarecida pela microscopia óptica, e Just nunca teve
condições de compreender a sua estrutura. Ele foi obrigado a trabalhar a partir de inferências
baseadas em mudanças efêmeras da superfície celular durante a fertilização — e, em face dessas
limitações, o seu sucesso foi brilhante. Porém, uma década depois da sua morte, boa parte do seu
árduo trabalho já havia se tornado obsoleta.
Assim, Just caiu na obscuridade em parte porque fazia asserções em demasia e se alheava dos
colegas, e em parte porque sabia muito pouco, consequência das técnicas limitadas à sua disposição.
Ainda assim, o presente esquecimento da biologia de Just parece injusto por dois motivos. Primeiro,
ele estava basicamente certo a respeito da integridade e da importância das superfícies celulares.
Com o microscópio eletrônico, agora esclarecemos a estrutura da membrana — uma história
complexa e fascinante que vale um ensaio por si só. Além disso, aceitamos a premissa de Just de que
a superfície não é uma simples barreira passiva, mas um componente ativo e essencial da estrutura
celular. Q livro didático de biologia mais popular (Biological Science, de Keeton) proclama:

A membrana celular não serve apenas como um envoltório que dá forr ça mecânica, forma e
alguma proteção à célula. É também um componente ativo da célula viva, impedindo que algumas
substâncias entrem nela e impedindo que outras saiam. Ela regula o tráfego de materiais entre o
interior precisamente ordenado da célula e o ambiente externo, essencialmente desfavorável e
potencialmente destruidor. Todas as substâncias que se movem entre o meio ambiente da célula e
o interior celular, em qualquer direção, têm de passar através da membrana.

Segundo, e mais importante para este ensaio, qualquer que seja a condição concreta das opiniões
de Just sobre as superfícies celulares, ele usou as suas ideias para desenvolver uma filosofia
holística que representa um caminho intermediário sensato entre os extremos do mecanicismo e do
vitalismo — uma filosofia sábia que pode continuar a nos guiar hoje.
Podemos sintetizar o holismo de Just e identificá-lo como uma solução genuína do debate
mecanicista-vitalista, resumindo as suas três premissas principais. Primeiro, nada na biologia
contradiz as leis da física e da química; qualquer forma adequada de biologia deve se conformar às
ciências “básicas”. Just iniciou o seu livro com estas palavras:

As coisas vivas têm composição material, são compostas, em última análise, as unidades,
moléculas, átomos e elétrons, com tanta certeza quanto a matéria não viva. Como todos as formas
na natureza, elas têm estrutura química e propriedades físicas; são sistemas físico-químicos.
Como tais, eles obedecem às leis da física e da química. Caso se negasse este fato, negar-se-ia
com isso a possibilidade de qualquer investigação científica das coisas vivas.

Segundo, os princípios da física e da química não são suficientes para explicar objetos
biológicos complexos porque novas propriedades surgem como resultado de organização e interação.
Essas propriedades só podem ser compreendidas por meio do estudo direto de sistemas vivos
inteiros no seu estado normal. Just escreveu num artigo de 1933:

Temos nos esforçado muitas vezes para provar que a vida é inteiramente mecânica, começando
com a hipótese de que os organismos são máquinas! Assim, deixamos passar a organodinâmica
do protoplasma — o seu poder de organizar a si mesmo. A substância viva é tal porque possui
essa organização — algo mais que a soma das suas partes mínimas. ... É ... a organização do
protoplasma, que é a sua característica predominante e que coloca a biologia numa categoria
inteiramente separada da física e da química. ... Tampouco é vitalismo estéril dizer que resta algo
no comportamento do protoplasma que os nossos estudos físico-químicos deixam por explicar.
Esse “algo” é a organização peculiar do protoplasma.

Numa metáfora notável, Just ilustra a inadequação dos estudos mecanicistas:

A coisa viva desaparece e resta apenas um mero aglomerado de partes. Quanto melhor o
prosseguimento dessa análise e maiores os seus resultados, mais completamente a vida
desaparece da matéria viva investigada. A condição de ser vivo é como um floco de neve numa
vidraça, que desaparece sob o toque morno de uma criança curiosa. ... Hoje, acho que poucos
investigadores subscrevem a comparação ingênua, mas seriamente proposta, feita certa vez por
uma eminente autoridade em biologia, a saber, de que o experimento num óvulo procura conhecer
o seu desenvolvimento despedaçando-o, como se despedaça um trem para compreender o seu
mecanismo. ... Os dias da embriologia experimental como expedição punitiva contra o óvulo,
esperamos, passaram.

Terceiro, a insuficiência da física e da química para a compreensão da vida não testemunha


nenhuma adição mística, nenhuma contradição às ciências básicas, mas reflete apenas a hierarquia
dos objetos naturais e o princípio de propriedades emergentes em níveis superiores de organização:

A análise direta da condição de ser vivo nunca deve descer abaixo da ordem de organização que
caracteriza a vida: ela deve se confinar à combinação de compostos na unidade vital, nunca
descendo a compostos isolados e, portanto, certamente nunca abaixo destes. ... O físico almeja a
partícula mínima, indivisível, da matéria. O estudo da condição de ser vivo confina-se à
organização que lhe é peculiar.

Finalmente, tenho de enfatizar mais uma vez que os argumentos de Just não são singulares ou
mesmo incomuns. Eles representam a opinião padrão da maioria dos biólogos praticantes, e, como
tal, refutam o esquema dicotômico que vê a biologia como uma guerra entre vitalistas e mecanicistas.
O caminho do meio é eminentemente sensato e popular. Escolhi Just como ilustração porque a sua
carreira exemplifica como um biólogo sério pode ser levado a tal posição pela sua própria
investigação de fenômenos complexos. Além do mais, Just disse tudo isso muito bem e com vigor;
ele se qualifica como um exemplar do caminho intermediário segundo o nosso mais venerável
critério — “o que foi muitas vezes pensado, mas nunca tão bem expressado”.
Este ensaio deveria terminar aqui. Num mundo decente e justo ele terminaria. Mas não pode. E.
E. Just lutou toda a sua vida para ser julgado pelo mérito intrínseco apenas da sua pesquisa biológica
— algo que venho tentando inutilmente (e postumamente) conceder-lhe aqui. Ele nunca conseguiu o
reconhecimento, nunca chegou perto dele, por um motivo intrinsecamente biológico que não deveria
ter importância, mas que sempre teve nos Estados Unidos. E. E. Just era negro.
Hoje, um negro que fosse o melhor aluno de alguma escola da Ivy League seria coberto de
oportunidades. Just não conquistou absolutamente mobilidade alguma em 1907. Como escreveu o seu
biógrafo, o historiador de ciência do M. I. T. (Massachussets Institute of Technology), Kenneth R.
Manning: ‘‘Um negro instruído tinha duas opções, ambas limitadas: ele podia ensinar ou pregar — e
apenas entre negros.” (A biografia de Manning, Black Apollo of Science: The Life of Ernest Everett
Just, foi publicada em 1983 pela Oxford University Press. É um livro esplendidamente escrito e
documentado, a melhor biografia que já li em anos. O livro de Manning é uma história institucional
da vida de Just. Ele discute a sua interminável luta por patrocínio e as suas complexas relações com
instituições de ensino e pesquisa, mas diz relativamente pouco a respeito da sua obra biológica per
se — uma lacuna que tentei, em alguns aspectos, preencher com este ensaio.)
E assim, Just foi para Howard e lá ficou toda a sua vida. Howard era uma escola de prestígio,
mas não mantinha nenhum programa de pós-graduação, e as exigências excruciantes de ensino e
administração não deixaram a Just nem tempo, nem oportunidade para a carreira de pesquisa que ele
desejava tão ardentemente. Just, entretanto, não admitiria a derrota. Por meio de uma constante e
incansável autopromoção, ele buscou o apoio de todas as instituições filantrópicas e fundações que
pudessem patrocinar um biólogo negro — e se saiu relativamente bem. Obteve patrocínio suficiente
para passar longos verões em Woods Hole e conseguiu publicar mais de setenta dissertações e dois
livros, ao longo de uma carreira que nunca poderia ser mais do que uma carreira de pesquisa de meio
período, juncada de obstáculos, tanto ostensivos quanto psicológicos.
Por fim, o racismo explícito dos seus detratores e, pior ainda, o persistente paternalismo dos seus
defensores esgotaram Just. Ele não se atrevia nem mesmo a ter esperanças de um emprego
permanente em qualquer instituição branca que pudesse promover a pesquisa, e o acúmulo de
desrespeito e críticas acabaram por tornar a vida intolerável para um homem orgulhoso como Just.
Se houvesse se encaixado no molde de um cientista negro aceitável, ele poderia ter sobrevivido no
mundo hipócrita do liberalismo do seu tempo. Um homem como George Washington Carver, que
apoiava a doutrina de Booker T. Washington, de iniciativa individual lenta e humilde para os negros,
que vestia as suas roupas de agricultor e passou a vida ajudando fazendeiros negros a encontrarem
mais usos para amendoins, era festejado como um exemplo da ciência negra adequada. Mas Just
preferia ternos elegantes, bons vinhos, música clássica e mulheres de todas as cores. Ele desejava
empreender a pesquisa teórica nos mais altos graus de abstração e obteve sucesso com distinção. Se
o seu trabalho divergia das teorias de cientistas brancos eminentes, ele o dizia, e com vigor (embora
a sua conduta geral tendesse à modéstia).
A única coisa que Just queria tão desesperadamente, acima de tudo — ser julgado apenas pelo
mérito da sua pesquisa —, ele nunca conseguiu. Os seus defensores mais fortes tratavam-no com o
que, em retrospecto, só pode ser rotulado como paternalismo esmagador. Esqueça a sua pesquisa,
diminua a ênfase dela, vá mais devagar, todos diziam. Volte para Howard e seja um “modelo para a
sua raça”; desista de objetivos pessoais e devote a vida ao treinamento de doutores negros. Tal
questão teria alguma vez vindo à baila no caso de um homem branco com o evidente talento de Just?
Por fim, como tantos outros intelectuais negros, Just buscou exílio na Europa. Lá, na década de
1930, ele afinal encontrou o que procurava — a aceitação simples da sua excelência como cientista.
No entanto, a sua alegria e a produtividade tiveram curta duração, já que o espectro do nazismo logo
se tornou realidade e o mandou de volta para Howard e para a morte prematura.
Just foi um homem brilhante, e a sua vida incorporou fortes elementos de tragédia, mas não
devemos retratá-lo como um herói irreal. Ele era um homem por demais fascinante, complexo e
ambíguo para se prestar a uma interpretação errônea tão simplista. Profundamente conservador e com
um caráter não pouco elitista, Just nunca identificou o seu sofrimento com o destino dos negros em
geral e considerou cada objeção como um insulto pessoal. A sua raiva tornou-se tão profunda, e a
alegria pela aceitação europeia tão grande, que ele compreendeu de uma forma equivocada toda a
política italiana da década de 1930, tornando-se um defensor de Mussolini. Ele chegou mesmo a
buscar fundos de pesquisa diretamente com II Duce.
No entanto, como podemos nos atrever a julgar um homem tão contrariado na sua terra natal?
Sim, Just deu-se bem melhor do que a maioria dos negros. Tinha um bom emprego e segurança
econômica razoável. Mas, na verdade, não vivemos apenas de pão. Just foi roubado do direito inato
do intelectual — o desejo de ser levado a sério por suas ideias e realizações. Eu conheço, do modo
mais direto e pessoal, a alegria e a necessidade da pesquisa. Nenhuma chama arde mais
profundamente dentro de mim, e nenhum cientista de mérito e realizações se sente de modo diferente.
(Um dos meus colegas mais eminentes disse-me certa vez que considerava a pesquisa como a maior
de todas as alegrias, pois era como um orgasmo contínuo.) O sofrimento de Just pode ter sido sutil
comparado com a brutalização de tantas vidas negras nos Estados Unidos, mas foi profundo, sempre
presente e aniquilador. O homem que compreendeu tão bem o holismo na biologia não teve o direito
de viver uma vida completa. Podemos, pelo menos, assinalar o seu centenário refletindo sobre as
ideias que ele lutou para desenvolver e que apresentou tão bem.
26. Mente e supermente

Harry Houdini usou a sua consumada habilidade como prestidigitador para desmascarar legiões
de mágicos menores que se faziam passar por médiuns, com acesso direto a um mundo independente
do puro espírito. Os seus dois livros, Miracle Mongers and their Methods (1920) (Milagreiros e os
seus métodos) e A Magician among the Spirits (1924) (Um mágico entre os espíritos), poderiam ter
ajudado Arthur Conan Doyle, houvesse esse devoto acrítico do espiritualismo sido tão inclinado ao
ceticismo e dedicado ao racionalismo quanto a sua criação literária, Sherlock Holmes. Mas Houdini
batalhou com uma geração de atraso, tarde demais para poder ajudar os intelectuais crédulos que
haviam sucumbido a uma onda de espiritualismo vitoriano tardio — uma turma distinta, que incluía o
filósofo Henry Sidgwick e Alfred Russel Wallace, o parceiro de Darwin na descoberta da seleção
natural.
Wallace (1823-1913) nunca perdeu o interesse pela história natural, mas devotou a maior parte
da sua vida ulterior a uma série de causas que hoje parecem esquisitas (ou pelo menos
idiossincráticas), embora formassem na sua mente um curioso padrão de encadeamento comum —
campanhas contra a vacinação, a favor do espiritualismo, e a tentativa apaixonada de provar que,
muito embora a mente impregne o cosmos, a nossa Terra abriga a única experiência de objetos
físicos com consciência. Estamos verdadeiramente sozinhos em corpo, embora unidos na mente,
proclamou o primeiro exobiólogo eminente dentre os evolucionistas (ver o livro de Wallace, Man’s
Place in the Universe: a Study of the Results of Scientific Research in Relation to the Unity or
Plurality of Worlds, 1903) (O lugar do homem no universo: um estudo dos resultados da pesquisa
científica em relação à unidade ou à pluralidade dos mundos).
O argumento básico de Wallace a favor de um universo impregnado pela mente é simples.
Também o considero mal fundamentado de modo patente e curiosamente antiquado no seu fracasso
em evitar a velha cilada da vida intelectual do Ocidente — a representação da esperança crua
travestida como realidade racionalizada. Em resumo (os detalhes vêm depois) Wallace examinou a
estrutura física da Terra, do sistema solar e do universo, e concluiu que se qualquer parte fosse
construída com a menor diferença que fosse, a vida consciente não teria surgido. Portanto, a
inteligência deve ter planejado o universo, pelo menos em parte, para que ele pudesse gerar vida.
Wallace concluiu:

Para produzir um mundo que devesse ser precisamente adaptado em cada detalhe para o
desenvolvimento ordenado da vida orgânica culminando no homem, um universo tão vasto e
complexo como o que sabemos existir ao nosso redor pode ter sido absolutamente necessário.

Como poderia um homem duvidar que o seu médium favorito podia entrar em contato com o
espírito do querido tio George quando a prova da existência da mente desencarnada encontrava-se na
estrutura do próprio universo?
A argumentação de Wallace tinha as suas peculiaridades, mas um aspecto da história me parece
ainda mais singular. Durante a última década, como os gatos e os maus pences dos nossos
provérbios, o argumento de Wallace tem retornado em outra roupagem. Alguns físicos o apregoaram
como sendo algo fresco e novo — uma fuga ao mecanicismo sombrio da ciência convencional e uma
reafirmação de antigas verdades e suspeitas a respeito da força espiritual e do seu lugar legítimo no
nosso universo. Para mim, trata-se do mesmo argumento ruim, só que desta vez privado da sutileza de
Wallace e do reconhecimento de interpretações alternativas.
Outros chamaram-no de “princípio antrópico”, a ideia de que a vida inteligente encontra-se
prefigurada nas leis da natureza e na estrutura do universo. Emprestando o termo de um oponente que
o usou com desprezo, o físico Freeman Dyson classifica-o orgulhosamente como “animismo”, não
porque a ideia seja animada ou orgânica, mas por causa do latim anima, ou “alma”. (O ensaio de
Dyson, “The argument from design”, na sua boa autobiografia, Disturbing the Universe, oferece uma
boa expressão do argumento.)
Dyson começa com a costumeira profissão de esperança:

Não me sinto um forasteiro neste universo. Quanto mais examino o universo e estudo os detalhes
da sua arquitetura, mais provas encontro de que o universo, em certo sentido, devia saber que
viríamos.

A sua defesa é pouco mais do que uma relação de leis físicas que impossibilitariam a vida
inteligente, caso as suas constantes fossem apenas um pouquinho diferentes, e de condições físicas
que nos destruiriam ou excluiriam se sofressem a menor mudança. Estes são, escreve ele, “os
acidentes numéricos que conspiram para tornar o universo habitável”.
Considere-se, diz ele, a força que mantém juntos os núcleos atômicos. Ela é forte o suficiente
para superar a repulsão elétrica entre as cargas positivas (prótons), mantendo desse modo o núcleo
intacto.
Mas essa força, se fosse um pouquinho mais forte, juntaria pares de núcleos (prótons) de
hidrogênio em sistemas presos que seriam chamados “diprótons”, se existissem. “A evolução da
vida”, lembra-nos Dyson, provavelmente “requer uma estrela como o Sol, que fornece energia num
ritmo constante por bilhões de anos”. Se as forças nucleares fossem mais fracas, o hidrogênio
absolutamente não se queimaria, e não existiria nenhum elemento pesado. Se fossem fortes o
suficiente para formar diprótons, então todo o hidrogênio potencial existiria nessa forma, deixando
muito pouco para a formação de estrelas que pudessem sobreviver durante bilhões de anos por meio
da queima de hidrogênio no seu centro. Uma vez que a vida planetária, tal como a conhecemos,
requer um Sol central que queime de modo estável durante bilhões de anos, “então a potência das
forças nucleares teve de se colocar dentro de uma amplitude um tanto estreita para tornar a vida
possível”.
Dyson então se desloca para outro exemplo, tirado desta vez do estado do universo material, em
vez da natureza das suas leis. O nosso universo é construído numa escala que oferece, em galáxias
típicas como a nossa Via-Láctea, uma distância média entre as estrelas de algo por volta de vinte
milhões de milhões de milhas. Suponha-se, argumenta Dyson, que a distância média fosse dez vezes
menor. Nessa densidade reduzida, tornar-se-ia avassaladoramente provável que, pelo menos uma
vez, durante os 3,5 bilhões de anos de domínio da vida na Terra, outra estrela passaria
suficientemente perto do nosso Sol para puxar a Terra da sua órbita, destruindo assim toda a vida.
Dyson extraiu então a conclusão inválida que constitui a base do animismo ou princípio
antrópico:
A peculiar harmonia entre a estrutura do universo e as necessidades da vida e da inteligência é
uma manifestação da importância da mente no esquema das coisas.

A falácia central desse argumento recém-apregoado, mas historicamente carcomido, encontra-se


na natureza da própria história. Qualquer resultado histórico complexo — vida inteligente na Terra,
por exemplo — representa uma soma de improbabilidades e torna-se, desse modo, absurdamente
improvável. Mas alguma coisa tem de acontecer, mesmo que essa “alguma coisa” particular nos
deixe atordoados com a sua improbabilidade. Podemos olhar para qualquer resultado e dizer: “Que
espantoso! Se as leis da natureza fossem estabelecidas com um tiquinho de diferença, não teríamos
esse tipo de universo de jeito nenhum.”
Esse tipo de probabilidade permite-nos concluir alguma coisa que seja a respeito daquele
mistério dos mistérios, a origem definitiva das coisas? Suponha-se que o universo fosse feito de
pouca coisa além de diprótons. Isso seria ruim, irracional ou indigno do espírito que se move de
diversas maneiras para realizar os seus prodígios? Poderíamos concluir que existiria algum tipo de
Deus parecido com núcleos presos de hidrogênio ou que meramente os adora, ou então que não existe
nenhum Deus ou mentalidade? De modo semelhante, a existência de vida inteligente no nosso
universo exige alguma mente preexistente só porque outro cosmos teria produzido um resultado
diverso? Se a mente desencarnada realmente existir (e macacos me mordam se conheço alguma fonte
de indícios científicos contra ou a favor de tal ideia), ela tem de preferir um universo capaz de gerar
o estilo de vida da nossa Terra em vez de um cosmos cheio de diprótrons? O que podemos dizer
contra os diprótons como sinais de inteligência preexistente, exceto que tal tipo de universo não teria
cronistas entre os seus objetos físicos? Toda a inteligência concebível tem de possuir um desejo
incon- trolável de se encarnar inevitavelmente no universo da sua escolha?
Se retornarmos agora à formulação inicial de Wallace do princípio antrópico, poderemos
compreender melhor ainda por que as suas raízes se encontram na esperança e não na racionalidade
forçosa. Primeiro, temos de mencionar uma diferença notável entre as visões de Dyson e Wallace.
Dyson não tem objeção alguma à perspectiva de inteligência em numerosos mundos de um vasto
universo. Wallace sustentava a singularidade humana e, portanto, defendia a ideia de um universo
limitado, contido dentro da Via-láctea, e de uma Terra planejada de modo impecável através de uma
série de eventos necessários à evolução da vida inteligente, que seriam suficientemente numerosos e
complexos para excluir a possibilidade de repetição em outros lugares. Não conheço as raízes mais
profundas da crença de Wallace e tenho pouca simpatia por psicobiografia, mas a seguinte passagem
da sua conclusão para Man ’s Place in the Universe certamente testemunha uma necessidade pessoal
que ultrapassa a simples inferência a partir do fato científico. A mente preexistente, transcendente, do
universo, escreve Wallace, permitiria apenas uma encarnação de inteligência, pois uma pluralidade

... introduziria a monotonia num universo cujo principal caráter e ensinamento é a infindável
diversidade. Isso implicaria que, produzir a alma viva no corpo maravilhoso e glorioso do
homem — o homem com as suas faculdades, aspirações, poderes para o bem e o mal — é uma
coisa fácil, que poderia ser realizada em qualquer lugar, em qualquer mundo. Isso implicaria que
o homem é um animal e nada mais, que não tem importância no universo, que não foram
necessários grandes preparativos para o seu advento, apenas, talvez, um demônio de segunda
categoria, e uma Terra de terceira ou quarta.

Essa diferença fundamental de opinião a respeito da frequência da vida inteligente não deve
encobrir a identidade básica do argumento principal, proposto por Wallace e pelos modernos
defensores do princípio antrópico: a vida inteligente, seja rara ou comum, não poderia ter se
desenvolvido num universo físico construído com um mínimo de diferença; portanto, a inteligência
preexistente deve ter planejado o cosmos. A descrição de Wallace dos seus defensores poderia muito
bem incluir Dyson: “Eles afirmam que a maravilhosa complexidade de forças que parecem controlar
a matéria, se é que não a constituem efetivamente, são e têm de ser produtos da mente.’’
No entanto, o universo usado por Wallace para sustentar o princípio antrópico não poderia ser
mais radicalmente diverso do de Dyson. Se o mesmo argumento se aplica a ordenamentos tão
diferentes da matéria, não podemos suspeitar legitimamente que o apelo emocional, em vez de um
suposto fundamento no fato ou na lógica, explica essa curiosa persistência? O Universo de Dyson é
aquele agora familiar a todos nós — espantoso em extensão e ocupado por galáxias tão numerosas
quanto os grãos de areia numa vasta praia. O cosmos de Wallace era um produto passageiro do que
os seus contemporâneos orgulhosamente chamavam “Nova Astronomia”, as primeiras inferências,
essencialmente errôneas, feitas a partir de um exame espectrográfico das estrelas.
No universo limitado de Wallace, a Via-láctea ocupa cerca de 3.600 anos-luz num cosmos que,
pelos cálculos de Lord Kelvin, não podia ter o dobro desse tamanho em diâmetro total (o espaço
além da Via-Láctea seria ocupado por poucas estrelas, se é que o seria). Um pequeno “agrupamento
solar” de estrelas coloca-se no centro do universo; o nosso Sol encontra-se no seu limite exterior ou
próximo a ele. Uma região quase vazia estende-se para além do agrupamento solar, seguida, num raio
de cerca de trezentos anos-luz, a partir do centro, por um anel interno de estrelas e outros objetos
cósmicos. Outra região, bem maior, de espaço pouco ocupado estende-se depois do interno, seguida
por um anel exterior, bem maior, densamente ocupado, a Via-láctea propriamente dita, com uma
extensão de 600 anos- luz, encontrando-se de 1.200 a 1.800 anos-luz do centro.
A versão de Wallace do princípio antrópico sustenta que a vida requer cada parte desse
intrincado universo físico, e que a vida só poderia surgir ao redor de um Sol situado no local onde,
por sorte, está o nosso, na borda exterior do agrupamento solar central. Todos esses anéis,
agrupamentos e espaços vazios devem, portanto, refletir o plano da inteligência preexistente.
O argumento de Wallace requer que as estrelas distantes exerçam uma influência direta e
sustentadora sobre a capacidade da Terra de manter vida. Enquanto tenta desesperadamente elaborar
argumentos em torno de um cálculo contemporâneo, segundo o qual a brilhante estrela Vega
proporciona à Terra cerca de 1/200.000.0Ú0 do calor de uma vela comum a um metro de distância,
ele flerta com a ideia de que os raios estelares podem ser benéficos para as plantas. Ele até mesmo
propõe o dúbio argumento de que, como as estrelas podem imprimir a sua luz sobre uma placa
fotográfica, as plantas também podem requerer a mesma luz para executar as suas atividades noturnas
— um salto bem precipitado, que parte do fato de que o filme pode registrar para a inferência de que
a matéria viva necessita.
Mas Wallace não insistiu nesse débil argumento especulativo. Em vez disso, ele enfatizou que a
vida depende da estrutura física detalhada do universo pelo mesmo motivo que Dyson cita nos seus
dois principais exemplos: a evolução de vida complexa, inteligente, requer um Sol central que possa
se queimar de modo estável por eras incontáveis, e tais sóis estáveis desenvolvem-se apenas dentro
de um âmbito delicado e estreito de leis e condições físicas. Dyson enfatiza a densidade estelar e os
diprótons; Wallace argumentava que sóis adequados só podiam existir num universo estruturado
como o nosso e apenas na borda de um agrupamento central de tal universo.
No universo de Wallace, as estrelas estão concentradas em três regiões: o anel exterior (ou a Via-
Láctea propriamente dita), o anel interior que rodeia o agrupamento central, e o próprio agrupamento
central. O anel exterior da Via-Láctea é uma região muito densa e ativa para permitir a existência de
sóis estáveis. As estrelas movem-se com muita rapidez e encontram-se tão próximas entre si que as
colisões e aproximações romperiam inevitavelmente qualquer sistema planetário antes que a vida
inteligente evoluísse.
Wallace então afirma que a estabilidade solar não pode (como acreditamos hoje) surgir como um
produto do suprimento de combustível próprio de uma estrela (ele sabia pouca coisa sobre
radioatividade e fusão nuclear). As estrelas só podem se queimar de modo estável se forem
constantemente abastecidas com matéria nova proveniente de outros lugares. Essa matéria se desloca,
por gravitação, das regiões exteriores do universo (particularmente do anel da Via-Láctea) rumo ao
centro, onde reside o nosso Sol. O anel interior não pode abrigar sóis estáveis, já que é
bombardeado por muita matéria exterior. O centro do agrupamento solar não serve, porque recebe
muito pouco material nutritivo. Apenas na borda exterior do agrupamento solar, onde (e certamente
de modo planejado) reside o nosso Sol, é que uma estrela consegue obter o equilíbrio ideal de
material para ser queimado de modo estável, durante um período de tempo longo o suficiente para a
evolução da inteligência.
Cada detalhe do plano cósmico conspira para permitir a vida num planeta que circula ao redor de
um Sol tão afortunadamente situado. Precisamos da Via-láctea para fornecer o combustível externo.
Precisamos do anel interno como um filtro, permitindo que apenas a quantidade certa de combustível
passe. Precisamos de um agrupamento central onde as estrelas se movem vagarosamente e não
interferem uma na outra. Tudo isso poderia ter acontecido sem alguma inteligência diretora? Oitenta
anos depois do livro de Wallace, o nosso universo não poderia ser mais radicalmente diferente, e, no
entanto, a esperança humana continua a lhe impor o mesmo argumento inválido.
Uma diferença importante, final, separa Wallace de Dyson e da maioria dos defensores modernos
do princípio antrópico. Nossos adeptos contemporâneos desenvolvem os seus argumentos e então
apresentam a conclusão — a de que a mente planejou o universo, em parte para que a vida inteligente
pudesse evoluir dentro dele — como uma inferência necessária e lógica. Wallace era um cientista
histórico muito bom para se permitir uma certeza tão fácil; ele compreendia muito bem que
resultados ordenados e complexos podem surgir de improbabilidades acumuladas. Portanto, ele
reconheceu e apresentou francamente a interpretação alternativa:

Um corpo considerável, incluindo provavelmente a maioria dos homens de ciência, admitirá que
os indícios sem dúvida levam a essa conclusão aparente, mas irá explicá-la como tendo sido
causada por uma feliz coincidência. Poderiam ter existido cem ou mil planetas capazes de
sustentar vida, houvesse o curso da evolução sido um pouco diferente, ou poderia não ter existido
absolutamente nenhum.

Esse bom cientista, cansado pela idade e por tantas batalhas solitárias por causas
idiossincráticas, mas que ainda era incisivamente autocrítico, apresentou então a sua interpretação
favorita, reconhecendo com honestidade que ela tinha como base uma visão confortadora da vida,
impossível de ser provada:

O outro corpo, que provavelmente é bem maior, seria representado por aqueles que, afirmando
que a mente é essencialmente superior à matéria e dela distinta, não conseguem acreditar que a
vida, a consciência, a mente, são produtos da matéria. Eles afirmam que a maravilhosa
complexidade de forças que parece controlar a matéria, se é que não a constituem de fato, são e
têm de ser produtos da mente.

Não posso negar que este segundo parecer, o princípio antrópico, é uma interpretação possível
dos indícios, embora eu prefira a primeira explicação. (Sempre suspeite de conclusões que reforçam
a esperança acrítica e que seguem tradições confortadoras do pensamento ocidental.) Não me oponho
à sua apresentação e discussão, contanto que a sua condição de interpretação possível, não de
inferência lógica, seja adequadamente identificada — como Wallace fez há oitenta anos, e Dyson não
fez no nosso tempo. Quanto a mim, procurarei a minha esperança em outro lugar. Também ficaria
surpreso, mas nem um pouco insatisfeito, se, mirabile dictu, Wallace e Dyson estivessem certos,
afinal.

Pós-escrito

Vários leitores me informaram (como eu deveria ter me lembrado) que o famoso ensaio de Mark
Twain, “A maldita raça humana”, foi escrito como resposta explícita à versão de Wallace do
princípio antrópico. A Parte 1 desta série, intitulada ‘‘O mundo foi feito para o homem?”, tem como
epígrafe: “A ressurreição, promovida por Alfred Russell [s/c, Russel] Wallace, da teoria de que esta
Terra está no centro do universo estelar, e é o único globo habitável, despertou grande interesse no
mundo.” Twain, à sua moda inimitável, reconta então a história da vida em cinco páginas,
assegurando-nos de que toda a rica e desordenada diversidade só podia representar um longo cortejo
de preparo para aquele segundo geológico final da habitação humana! — o suficiente para a asserção
de Wallace de que o universo deve ter sido planejado conosco em mente.
Fiquei fascinado ao ver quantos outros temas destes ensaios estão embutidos na sátira sucinta de
Twain. Por exemplo, ele cita Kelvin como fonte de autoridade para afirmar a grande idade da Terra
— uma confirmação do meu argumento (ensaio 8) de que o trabalho de Kelvin, na sua própria época, e
contrariando o mito comum que o retrata como um vilão arrogante contra a ciência empírica, foi
interpretado como prova da confortável antiguidade da Terra, não como uma restrição da imensidade
do tempo: “De acordo com esses números [os de Kelvin], foram necessários 99.968.000 anos para
preparar o mundo para o homem, impaciente como estava o Criador, sem dúvida, para vê-lo e
admirá-lo. Mas um empreendimento como esse tem de ser conduzido com cautela, a duras penas e de
maneira lógica.”
O final de Mark Twain apresenta uma metáfora maravilhosa (a literatura e a ciência popular
contêm tantas) para a grande idade da Terra em relação ao espaço de tempo da ocupação humana.
(Eu o vejo como um tipo de ancestral literário da imagem de John McPhee em Basin and Range — a
de que, se imaginássemos o tempo geológico como a antiga jarda inglesa, a distância do nariz do Rei
até a ponta do seu braço esticado, um golpe de lixa aplicado à unha do seu dedo médio apagaria toda
a história humana):

Tal é a história. O homem está aqui há 32.000 anos. Que tenham sido necessários cem milhões de
anos para preparar o mundo para ele é prova de que é para isso que o mundo foi feito. Acho que
sim. Sei lá. Se a Torre Eiffel agora representasse a idade do mundo, a casquinha de tinta na
bolinha do pináculo, lá no topo, representaria a parte do homem nessa idade; e qualquer um
perceberia que foi para essa casquinha que a torre foi feita. Imagino que achariam isso, sei lá.
27. O programa SETI e a sabedoria de Casey Stengel

Como o estudo da vida extraterrestre carece de qualquer objeto provado, as opiniões sobre a
forma e a frequência de seres não terráqueos testemunha mais as esperanças e os temores de
cientistas especuladores do que a força de indícios. Alfred Russel Wallace, por exemplo, parceria de
Darwin na descoberta da seleção natural e o primeiro grande evolucionista a considerar a
exobiologia em detalhe, sustentava com firmeza que o homem deve estar sozinho no cosmos inteiro
— pois não conseguia suportar a ideia de que a inteligência humana não fosse a dádiva especial e
singular de Deus, conferida a um planeta idealmente apropriado. Ele escreveu em 1903 que a
existência de extraterrestres numerosos e inteligentes “implicaria que o homem é um animal e nada
mais, que não tem importância no universo, que não foram necessários grandes preparativos para o
seu advento, apenas, talvez, um demônio de segunda categoria, e uma Terra de terceira ou quarta”
(ver ensaio anterior para uma versão completa dessa citação e uma discussão das opiniões de
Wallace).
O interminável debate sobre a vida extraterrestre tem se concentrado sobre o cálculo de
probabilidades — quantas estrelas, quantos planetas adequados, a probabilidade de que a vida se
origine em Terras adequadas, a probabilidade de que a vida por fim gere inteligência. Devo
confessar que sempre vi essa literatura como árida e inconclusiva, excessivamente misturada com a
esperança e a incerteza para alcançar qualquer conclusão respeitável.
Recentemente, vários astrônomos e astrofísicos defenderam uma abordagem diferente — uma
busca direta de subprodutos tecnológicos da inteligência por meio do exame sistemático dos céus
com radio- telescópios à procura de sinais emitidos por outras civilizações. Esse, assim chamado,
programa SETI (search for extraterrestrial mteligence) [procura de inteligência extraterrestre - N.T.] tem sido
objeto de vigoroso debate. Os proponentes afirmam que ele exigiria apenas uma fração minúscula do
orçamento anual da NASA e, quaisquer que sejam as suas fontes de sucesso, removeria o tema do
debate estéril sobre probabilidades para uma sondagem experimental através dos únicos meios agora
disponíveis. Os oponentes contra-atacam dizendo que o plano é uma inutilidade, que custa milhões e
tem o seu fracasso tão virtualmente assegurado que não merece um centavo dos parcos fundos
públicos destinados à ciência.
Na condição de biólogo evolutivo, não possuo nenhum conhecimento especializado na maioria
das áreas que motivam o debate. Sinto-me obrigado a fazer comentário apenas porque oponentes do
SETI apresentaram um argumento da minha área como uma de suas armas mais poderosas. Eles
afirmam que todos os principais biólogos evolutivos proclamaram a existência de vida extraterrestre
como quase que inconcebível. O otimismo de alguns cientistas físicos reside, portanto, no seu
fracasso em compreender o caráter distintivo do raciocínio evolutivo. Mas os oponentes do SETI
formularam erroneamente o argumento biológico, e eu gostaria de explicar por que pelo menos um
biólogo evolutivo acha que o SETI é um tiro no escuro que pode muito bem valer a pena.
Frank J. Tipler, um matemático da Tulane University, tem sido o crítico mais infatigável do SETI.
Numa longa série de artigos veementes em publicações técnicas e populares (New Scientist,
Mercury, Physics Today, Quarterly Journal of the Royal Astronomical Society, por exemplo), ele
fornece “dois motivos básicos para a minha descrença na existência de seres extraterrestres com
inteligência” (todas as transcrições são do seu artigo de 1982, na Bibliografia, embora Tipler faça
uso dos mesmos temas em todos os seus escritos contra o SETI).
O segundo motivo encontra-se fora da minha área e não me deterei sobre ele, embora deva ser
mencionado. Tipler argumenta que “se ‘eles’ existissem, já estariam aqui. ... Porque não estão aqui,
tais seres não existem”. Em resumo, Tipler afirma que qualquer criatura verdadeiramente inteligente
inspecionaria ou colonizaria o cosmos com um instrumento que ele chama de máquina Von Neumann
— “um computador com inteligência próxima do nível humano, capaz de auto-reprodução e capaz, na
verdade, de construir qualquer coisa para a qual esteja programada, usando as matérias brutas
disponíveis no sistema solar para o qual está voltado”. A vida inteligente poderia, portanto, explorar
uma galáxia inteira “pelo preço de uma máquina Von Neumann” — pois esse computador escavaria
nos asteroides e cometas a matéria para construir réplicas de si mesmo e da sua sonda envoltória.
Essas réplicas iriam então correr para outras estrelas adequadas e replicar-se novamente. Numa
simples questão de trezentos milhões de anos, uma galáxia inteira poderia estar saturada com os
produtos duplicados de uma única máquina Von Neumann.
Tal máquina seria capaz até mesmo de fabricar a carne e o sangue de extraterrestres extraindo das
minas os elementos químicos necessários e depois indicando o programa genético do seu criador a
partir da memória armazenada:

Essa informação poderia, em princípio, ser armazenada na memória de uma máquina Von
Neumann, que seria, eventualmente, instruída para sintetizar um óvulo e colocar a “célula
fertilizada” num ventre artificial. ... Em nove meses, haveria um bebê humano no sistema estelar,
e este poderia ser criado até a idade adulta por pais substitutos, construídos pela máquina Von
Neumann.

Não quero ser prosaico, mas devo confessar que simplesmente não sei como reagir a tais
argumentos. Já tenho trabalho de sobra prevendo os planos e reações das pessoas mais próximas de
mim. Em geral fico desconcertado pelos pensamentos e realizações de culturas diferentes. Macacos
me mordam se posso dizer com certeza o que alguma fonte extraterrestre de inteligência poderia
fazer. Assim, o segundo argumento de Tipler segue a tradição especulativa que o SETI, com a sua
abordagem experimental, tem o intuito de transcender.
Como primeiro argumento, porém, Tipler apresenta um tipo diferente de asserção, fundamentada
em métodos e dados do meu campo. Ele escreve:

Primeiro, todos os grandes especialistas modernos da teoria da evolução — Francisco Ayala,


Theodosius Dobzhansky, Ernst Mayr e George Simpson — são unânimes em afirmar que a
evolução de uma espécie inteligente a partir de organismos unicelulares é tão improvável que é
possível que sejamos a única espécie inteligente a existir.

No nível mais mundano, se me é permitido fazer o irrelevante “jogo do especialista” apenas por
uma sentença, a afirmação de Tipler é empiricamente falsa. Conto pelo menos quatro evolucionistas
perfeitamente respeitáveis na petição intemacional pró-SETI publicada recentemente por Cari Sagan
(Tom Eisner, de Cornell, Dave Raup, da Universidade de Chicago, Ed Wilson, de Harvard e, com
desculpas pela arrogância, este seu criado). Os biólogos evolutivos, na sua habitual conformidade
com o tema principal da natureza, mantêm uma diversidade de opiniões sobre esse assunto.
Mais importante, acho que Tipler compreendeu mal o que os biólogos evolutivos rejeitam com
tanto vigor, combinando duas questões bem diferentes. Todos os evolucionistas que discutiram a
exobiologia detalhadamente delinearam com nitidez duas preocupações separadas — uma asserção
específica e um argumento geral.
A questão específica considera a ideia de repetição detalhada de qualquer sequência evolutiva
particular — neste caso, a evolução de criaturas bem parecidas conosco: de simetria bilateral, com
órgãos dos sentidos em cima e na frente, dois olhos, um nariz no meio, uma boca e um cérebro. Se
pudéssemos começar de novo a fita da evolução, criaturas inteligentes se desenvolveriam novamente
com essa forma? Se outros mundos compartilhassem a nossa química e as condições básicas, tais
“humanoides” se desenvolveriam lá?
A questão geral pergunta se atributos que identificaríamos como inteligência poderiam surgir em
criaturas de qualquer conformação — bolhas, películas, esferas de energia pulsante ou formas
difusas e inimaginadas, bem além das visões limitadas da maioria dos escritores de ficção científica.
Todos os evolucionistas negaram com veemência a asserção específica, e eu me junto a eles com
todo o vigor. Muitos evolucionistas ainda deram um passo adicional e duvidaram também do
argumento geral, mas nunca com tanta certeza — e isso sempre na condição de opinião pessoal,
nunca como uma proclamação com o imprimatur da “teoria da evolução”. Eu me encontro entre os
evolucionistas que negam a asserção específica, mas que sentem ser impossível alimentar alguma
opinião de peso contra o argumento geral. O SETI só precisa do argumento geral como defesa para o
seu apoio.
Gregory Bateson, o recentemente falecido guru das ciências que lidam com objetos complexos e
sistemas em interação, enfatizou várias vezes que a confusão de categorias hierárquicas pode ser a
falácia mais comum e séria do raciocínio humano (ver o seu livro, Mind and Nature, por exemplo).
Como um exemplo principal de “confusões de categorias”, Bateson identificou a substituição de
classes por indivíduos (ou vice-versa).
Casey Stengel, um dos maiores gurus gerais do nosso tempo, cometeu conscientemente a falácia
de categorias de Bateson para evitar o calor do escrutínio num momento difícil. Ele foi severamente
criticado por desperdiçar a primeira escolha dos Mets no recrutamento de novos jogadores com um
apanhador particular de habilidade bem modesta (um tal de Hobie Landrith) [Depois de encerrado o
campeonato de beisebol, cada equipe, de acordo com a sua classificação, pode escolher um novo jogador dentre as equipes amadoras.
Neste caso, os Mets tinham o direito de fazer a primeira escolha e, entre as diversas posições existentes no beisebol, resolveram
escolher um apanhador, jogador menos importante que tem a função de interceptar a bola caso o rebatedor erre - N.R.T.]. Casey
respondeu invocando a classe dos apanhadores em geral: “Você tem que ter um apanhador, porque se
não tiver, é provável que passe um monte de bolas.” Ora, o velho Case, como sempre, sabia
exatamente o que estava dizendo (nunca deixe que a conversa fiada conhecida como “stengelês” o
engane). Ele usou o humor quando recebia críticas rudes porque sabia que todos nós
reconheceríamos a falácia de raciocínio e daríamos risada da combinação. Mas nós cometemos o
mesmo erro em circunstâncias mais sutis e não conseguimos identificar a nossa confusão.
Quando usamos a “teoria evolutiva” para negar categoricamente a possibilidade de inteligência
extraterrestre cometemos a falácia clássica de substituir classes (a probabilidade de que a evolução
em outros lugares possa produzir uma criatura na classe geral dos seres inteligentes) por questões
específicas (a possibilidade de repetição individual de humanoides). Posso apresentar um bom
argumento da “teoria evolutiva” contra a repetição de qualquer coisa parecida com o corpo humano
em outros lugares; mas não posso estendê-lo à proposição geral de que alguma forma de inteligência
possa estar difundida no universo.
Os cientistas físicos, seguindo o estereótipo da ciência como empreendimento determinista,
previsível, muitas vezes raciocinaram que, se os humanos surgiram na Terra, então devemos inferir
(como a causa leva invariavelmente ao efeito) que criaturas inteligentes de forma aproximadamente
humana surgiriam em qualquer planeta que tivesse início com condições físicas e químicas
semelhantes às vigentes na Terra primitiva.. Talvez essa perspectiva determinista seja responsável
pela imaginação pobre dos cineastas e escritores de ficção científica, com as suas intermináveis
criaturas, todas planejadas a partir de um modelo humano, com dois olhos, um nariz, uma boca, dois
braços e duas pernas (Contatos imediatos, ET e até mesmo o mais imaginativo, Guerra nas
estrelas). Essa tendência podia ser perdoada quando atores humanos tinham de desempenhar os
papéis nos filmes, mas agora que pedaços de plástico podem evocar as nossas emoções mais
profundas e mover-se com tanta sutileza a ponto de o ET tornar-se um herói nacional, essa desculpa
não serve mais.
No entanto, os estilos de ciência são tão diversos quanto os seus objetos. O determinismo
clássico e a previsibilidade completa podem prevalecer no que se refere a objetos macroscópicos
sujeitos a umas poucas leis de movimento (as bolas descendo em planos inclinados nas experiências
de física e no colegial), mas os objetos históricos complexos não se prestam a um tratamento tão
fácil. Na história da vida, todos os resultados são produtos de uma longa série de eventos, cada um
dependendo de modo tão intrincado de meios ambientes particulares e histórias anteriores que não
podemos prever com certeza alguma o seu curso futuro. As ciências históricas tentam explicar
situações singulares — acidentes históricos imensamente complexos. Os biólogos evolutivos, na
condição de cientistas históricos, não esperam a repetição detalhada e não podem usar os resultados
efetivos da história para estabelecer probabilidades de novas ocorrências (um César iria mais uma
vez morrer brutalmente em Roma, se pudéssemos voltar ao Australopithecus na África e começar de
novo?). Os evolucionistas encaram a origem dos humanos (ou de qualquer borboleta, barata ou
estrela-do-mar específica) como um evento histórico de tamanha complexidade e improbabilidade
que nunca poderíamos ter a expectativa de ver algo exatamente igual outra vez (ou em outro lugar) —
daí a nossa vigorosa oposição ao argumento específico sobre humanoides em outros mundos.
Considere-se apenas dois dos muitos motivos para a singularidade de eventos complexos na história
da vida.
1. As extinções em massa como influência-chave na história da vida na Terra [ver ensaios na seção
8]. Os dinossauros morreram há cerca de 65 milhões de anos na grande extinção mundial do período
cretáceo, que também pôs fim a cerca de metade das espécies de invertebrados marinhos de água
rasa. Eles haviam dominado os meios ambientes terrestres durante cem milhões de anos e
provavelmente reinariam hoje se houvessem sobrevivido à catástrofe. Os mamíferos surgiram mais
ou menos na mesma época e passaram os seus primeiros cem milhões de anos como criaturas
pequenas habitando os esconderijos e gretas de um mundo de dinossauros. Se a morte dos
dinossauros não houvesse lhes dado a grande oportunidade, os mamíferos ainda seriam criaturas
pequenas e insignificantes. Não estaríamos aqui, e nenhuma vida com consciência inteligente
enfeitaria a nossa Terra. Os indícios colhidos desde 1980 [ver ensaio 29] indicam que o impacto de um
corpo extraterrestre detonou essa extinção. O que poderia ser mais imprevisível e inesperado do que
cometas ou asteroides atingindo a Terra vindos do nada? No entanto, sem tal impacto, a nossa Terra
não teria vida inteligente com. consciência. Muitas grandes extinções (várias delas maiores do que as
do evento do cretáceo) estabeleceram padrões fundamentais na história da vida, conferindo uma
aleatoriedade essencial ao nosso cortejo evolutivo.
2. Cada espécie como uma concatenação de improbabilidades. Cada espécie animal — humano,
lula ou coral — é o elo mais recente de uma cadeia evolutiva que se estende através de milhares de
espécies desde o início da vida. Se qualquer uma dessas espécies houvesse se extinguido ou
evoluído em qualquer outra direção, os resultados finais seriam nitidamente diferentes. Cada cadeia
de eventos improváveis contém adaptações desenvolvidas para um meio ambiente local e apenas
fortuitamente apropriadas para sustentar modificações posteriores. Os nossos ancestrais entre os
peixes desenvolveram uma nadadeira peculiar com um eixo ósseo, rijo e central. Sem uma estrutura
desse tipo, os descendentes destinados à terra não poderiam ter se sustentado num meio ambiente
terrestre, sem flutuação. (A maioria das linhagens de peixes não desenvolveu e não poderia ter
desenvolvido descendentes terrestres porque não tinha a nadadeira com essa forma.) No entanto,
essas nadadeiras não foram desenvolvidas como antecipação de futuras necessidades terrestres. Elas
surgiram como adaptações a um meio ambiente local aquático, e, por sorte, eram adequadas para,
posteriormente, permitir uma nova direção terrestre. Todas as sequências evolutivas contêm tais
grandes séries de sine quibus non, séries fortuitas de acidentes relacionados com o sucesso
evolutivo futuro. Os cérebros e corpos humanos não evoluíram ao longo de uma escada direta e
inevitável, mas por meio de uma rota tortuosa e cheia de rodeios, talhada por adaptações
desenvolvidas por diferentes motivos e que, afortunadamente, eram adequadas a necessidades
posteriores.
As improbabilidades da história proclamam que todas as espécies são únicas e irrepetíveis em
detalhe. A teoria evolutiva, como ciência da história, realmente nega o argumento específico de que
existem hu- manóides em outros mundos. Todos os principais evolucionistas, nos seus escritos sobre
exobiologia, disseram-no com entusiasmo, e eu concordo. Wallace iniciou o tema em 1903:

O desenvolvimento final do homem, portanto, dependeu, grosso modo, de algo como um milhão
de modificações distintas, cada uma de um tipo especial e dependente de algumas modificações
precedentes nos meios ambientes orgânicos e inorgânicos, ou em ambos. As improbabilidades de
que série tão vastamente longa de modificações definidas tenha ocorrido duas vezes... são quase
infinitas.

Simpson expressou o tema com mais eloquência em anos recentes, no seu famoso ensaio sobre “a
não-prevalência de humanoides” (ver Bibliografia):

Essa irrepetibilidade essencial da evolução na Terra obviamente possui um significado


importante para as chances de que ela tenha sido repetida ou de que algo comparável tenha
ocorrido em algum outro planeta. A suposição, tão livremente feita por astrônomos, físicos e
alguns bioquímicos, de que, uma vez iniciada a vida em algum lugar, os humanoides acabarão por
surgir inevitavelmente, é claramente falsa. ... Aceitemos a afirmação não comprovada de que
existem milhões ou bilhões de possíveis abrigos planetários para a vida; as chances de tal
duplicação histórica ainda são infinitamente pequenas.

No entanto, todos esses evolucionistas também distinguiram esta proposição específica a respeito
de humanoides do argumento geral segundo o qual a inteligência numa outra forma poderia surgir em
outro lugar. Sobre a proposição geral, eles mantiveram uma diversidade de opiniões — que leva à
conclusão empírica de que a “teoria evolutiva” não tem nenhum pronunciamento claro a fazer. Tanto
Wallace quanto Simpson ampliaram a sua argumentação para duvidar também da asserção geral, mas
de modo bem mais gentil, e apenas na condição de opinião individual. Simpson, por exemplo,
escreveu:

Mesmo em histórias planetárias diferentes da nossa não poderiam alguns seres bem diferentes e,
no entanto, de inteligência comparável... terem se desenvolvido? Trata-se, claro, de questões que
não podem ser respondidas categoricamente. Só posso expressar uma opinião... Acho
extremamente improvável que exista no universo acessível qualquer coisa semelhante o suficiente
a nós em comunicação de pensamento real.

Outros evolucionistas, inclusive dois citados por Tipler como negando qualquer possibilidade de
sucesso para o SETI, também distinguem o argumento específico do geral, mas expressam muito mais
otimismo quanto ao argumento geral. Num importante livro didático Dobzhansky e Ayala (em co-
autoria com G. L. Stebbins e J. W. Valentine), escrevem (ver Bibliografia):

Admitindo que a possibilidade de se obter uma criatura semelhante ao homem é infinitamente


pequena, mesmo dado um número astronômico de tentativas... existe ainda uma pequena
possibilidade de que outra espécie inteligente tenha surgido, uma capaz de alcançar uma
civilização tecnológica.

Não estou convencido de que a possibilidade seja tão pequena.


A teoria da evolução oferece algum discernimento sobre o argumento geral? A partir do
fenômeno conhecido como “convergência”, conquistamos certo senso das probabilidades de
repetição de um tema básico (mas não de detalhes específicos). O vôo foi desenvolvido
separadamente nos insetos, pássaros, pterossauros (répteis voadores) e morcegos. Os princípios de
aerodinâmica não mudam, mas as morfologias diferem amplamente (os pássaros usam penas; os
morcegos e pterossauros empregam uma membrana, mas os morcegos estendem-na entre vários
dedos, os pterossauros a partir de apenas um). “Toupeiras” e “lobos” marsupiais desenvolveram-se
na Austrália, um continente isolado dos mamíferos placentários de outros lugares. Como os temas
adaptativos são limitados e os animais são tão diversos, a convergência de diferentes linhagens
evolutivas rumo à mesma solução geral (mas não à repetição detalhada) é comum. Formas altamente
adaptativas que se desenvolvem com facilidade surgem vezes e vezes. Morfologias mais complexas
sem tal necessidade adaptativa oferecem pouca ou nenhuma perspectiva de repetição. A inteligência
consciente evoluiu na Terra apenas uma vez, e não apresenta nenhuma perspectiva concreta de
ressurgimento, caso escolhamos fazer uso do nosso dom de destruição. Mas a inteligência encontra-
se dentro da classe de eventos excessivamente complexos e por demais condicionados
historicamente para serem repetidos? Não acho que a sua singularidade na Terra especifique tal
conclusão. Talvez, em outra forma, num outro mundo, a inteligência fosse tão fácil de ser
desenvolvida como no nosso.
Tipler rejeita a questão da convergência afirmando que o biólogo Leonard Ornstein (num artigo
em que apoia Tipler, ver Bibliografia) refutou a mais famosa de todas as convergências — o “olho
em câmera” dos vertebrados e dos cefalópodes (lulas e aparentados) — sugerindo que essa estrutura
surgiu em ambos os grupos a partir de um ancestral comum, e não separadamente em cada um deles.
Mesmo que Ornstein estivesse correto, a rejeição de um caso específico não nega a importância da
convergência como fenômeno geral. Entretanto, os argumentos de Ornstein são seriamente
defeituosos. Ele nunca mencionou o argumento “clássico”, o mais forte, a favor da convergência — o
de que os olhos, embora tão semelhantes em modelo e operação, têm desenvolvimentos
embriológicos fundamentalmente diversos (os olhos das lulas formam-se a partir de precursores
cutâneos, ao passo que os olhos dos vertebrados, com exceção das lentes, desenvolvem-se a partir
do cérebro). Além disso, o principal argumento de Ornstein a favor da evolução a partir de um
ancestral comum fundamenta-se num princípio biológico refutado há mais de cinquenta anos. Ele
invoca a desacreditada lei de Haeckel de que “a ontogenia recapitula a filogenia” — que o
desenvolvimento embriológico de um organismo repete a sequência de ancestrais adultos da sua
bnhagem evolutiva. Como o olho se desenvolve cedo embriologicamente, Ornstein argumenta que ele
já pode ter existido num ancestral bastante remoto — remoto o bastante para anteceder a separação
das linhagens evolutivas das lulas e dos vertebrados. Não apenas a lei de Haeckel foi refutada (os
embriões não repetem estágios ancestrais), como também o próprio Haeckel, quando o seu princípio
estava no auge, jamais usou a época de surgimento no desenvolvimento embriológico para
especificar o momento de origem evolutiva — pois ele mesmo identificara e nomeara uma grande
classe de exceções a essa generalização simplista.
Mesmo se seguirmos Tipler na argumentação de que as máquinas Von Neumann são o único
caminho adequado a seguir, ele admite que antes de um século não teremos a tecnologia para
construir uma. Sou um sujeito impaciente e mortal. Como acho cruel pedir às minorias
desfavorecidas para “irem devagar” nas exigências de mudança política — garantindo assim que
quaisquer benefícios práticos irão apenas para os filhos dos seus filhos — assim eu também,
egoisticamente, quero ver alguns resultados exobiológicos (positivos ou negativos) durante a minha
vida. O SETI é tudo o que temos por enquanto. É relativamente barato, e (a meu ver) inteiramente
sensato segundo as perspectivas que a teoria evolutiva pode esclarecer. Francamente, acho que as
suas chances de sucesso são bem menores do que as probabilidades imaginadas pelos seus
defensores mais entusiásticos entre os cientistas físicos. Mas não podemos saber antes de tentar.
Contudo, devo, por fim, justificar a tentativa de tal tiro no escuro dizendo que um resultado positivo
seria o evento mais cataclísmico de toda a nossa história intelectual. A curiosidade impele e nos faz
humanos. Ela poderia impelir outros também?
8. Extinção e continuidade
28. Sexo, drogas, desastres e a extinção dos dinossauros

Na sua definição mais fundamental, a ciência é um modo produtivo de investigação, não uma lista
de conclusões sedutoras. As conclusões são a consequência, não a essência.
A minha maior infelicidade com a maioria das apresentações populares de ciência diz respeito ao
seu fracasso em separar proposições fascinantes dos métodos que os cientistas usam para estabelecer
os fatos da natureza. Os jornalistas e o público vivem de declarações polêmicas e impressionantes.
Mas a ciência, basicamente, é um modo de saber — nas palavras perspicazes de P. B. Medawar, “a
arte do solúvel”. Se o batalhão crescente de escritores populares de ciência se concentrasse em
como os cientistas desenvolvem e defendem essas fascinantes proposições, eles dariam a sua maior
contribuição possível para a compreensão do público.
Considere-se três ideias, propostas com perfeita seriedade para explicar o mais instigante de
todos os enigmas — a extinção dos dinossauros. Como essas três ideias invocam os temas de
fascínio fundamental da nossa cultura — sexo, drogas e violência — elas com certeza se encontram
na categoria das propostas fascinantes. Quero demonstrar por que duas delas se classificam como
especulação tola, ao passo que a outra representa a ciência no que ela tem de mais grandioso e útil.
A ciência trabalha com propostas averiguáveis. Se, após muita compilação e escrutínio de dados,
novas informações continuam a afirmar uma hipótese, podemos aceitá-la provisoriamente e ganhar
confiança à medida que se acumulam indícios adicionais. Nunca podemos ter certeza completa de
que uma hipótese é correta, embora sejamos capazes de demonstrar com confiança que ela está
errada. As melhores hipóteses científicas também são generosas e expansivas: elas sugerem
ampliações e implicações que esclarecem assuntos relacionados e até mesmo outros bem distantes.
Considere-se simplesmente como a ideia de evolução influenciou virtualmente todos os campos
intelectuais.
A especulação inútil, por outro lado, é restritiva. Ela não gera nenhuma hipótese averiguável e
não oferece nenhum modo de se obter indícios potenciais de refutação. Note, por favor, que não estou
falando de verdade ou falsidade. A especulação pode muito bem ser verdadeira; contudo, se não
oferece, em princípio, nenhum material para confirmação ou rejeição, não podemos fazer nada com
ela. Ela, simplesmente, tem de permanecer para sempre como uma ideia curiosa. A especulação
inútil volta-se para si mesma e não leva a lugar algum; a ciência boa, que contém tanto as sementes
da sua refutação potencial quanto implicações para conhecimentos adicionais diferentes e
averiguáveis, se expande. Mas, basta de pregação. Passemos para os dinossauros e as três propostas
a respeito da sua extinção.

1.Sexo: Os testículos funcionam apenas numa faixa muito estreita de temperatura (os dos
mamíferos pendem externamente num saco escrotal porque as temperaturas internas do corpo são
muito altas para que eles funcionem adequadamente). Um aumento da temperatura em todo o
mundo no final do período cretáceo fez com que os testículos dos dinossauros parassem de
funcionar, o que levou esses animais à extinção através da esterilização dos machos.
2. Drogas: As angiospermas (plantas com flores) desenvolveram- se de início por volta do final
do reinado dos dinossauros. Muitas dessas plantas contêm agentes psicoativos, evitados hoje
pelos mamíferos em virtude do seu sabor amargo. Os dinossauros não tinham nem como sentir o
amargor, nem fígados eficientes o bastante para eliminar a toxicidade das substâncias. Eles
morreram de overdoses maciças.
3. Desastres: Um grande cometa ou asteroide chocou-se com a Terra há cerca de 65 milhões de
anos, o que provocou uma nuvem de poeira no céu e bloqueou a luz solar; isso impediu por
completo a fotossíntese, e as temperaturas do mundo se reduziram tão drasticamente que os
dinossauros e legiões de outras criaturas acabaram sendo extintas.

Antes de analisar essas três provocantes declarações, devemos estabelecer uma regra
fundamental muitas vezes violada nas propostas sobre a extinção dos dinossauros. Não existe o
problema específico da extinção dos dinossauros. Muitas vezes, divorciamos eventos específicos
dos seus contextos e sistemas mais amplos de causa e efeito. O fato fundamental da extinção dos
dinossauros é a sua sincronia com o desaparecimento de tantos outros grupos ao longo de uma grande
faixa de habitais, do terrestre ao marinho.
A história da vida tem sido pontuada por breves episódios de extinção em massa. Uma análise
recente dos paleontólogos Jack Sepkoski e Dave Raup, da Universidade de Chicago, baseada na
melhor e mais exaustiva tabulação de dados jamais reunida, mostra claramente que cinco episódios
de extinção em massa colocam-se bem acima das extinções “de fundo” dos tempos normais (quando
consideramos todas as extinções em massa, grandes e pequenas, elas parecem localizar-se num ciclo
regular de 26 milhões de anos — ver ensaio 30). A catástrofe do cretáceo, que ocorreu há 65 milhões
de anos e separa a era mesozoica da cenozoica na nossa escala de tempo geológico, destaca-se entre
as cinco. Quase todo o plâncton marinho (criaturas unicelulares flutuantes) morreu de repente pelos
padrões geológicos; dentre os invertebrados marinhos, pereceram quase 15% de todas as famílias,
inclusive muitos grupos anteriormente dominantes, sobretudo as amonitas (parentes das lulas, com
conchas espiraladas). Sobre a terra, os dinossauros desapareceram depois de mais de cem milhões
de anos de domínio incontestado.
Nesse contexto, as especulações limitadas apenas aos dinossauros ignoram o fenômeno maior.
Precisamos de uma explicação coordenada para um sistema de eventos que tem a extinção dos
dinossauros como um dos seus componentes. Assim, faz pouco sentido, embora isso possa alimentar
o nosso desejo de encarar os mamíferos como herdeiros inevitáveis da Terra, conjecturar que os
dinossauros morreram porque os pequenos mamíferos comiam os seus ovos (uma favorita eterna
dentre as especulações não averiguáveis). Parece por demais improvável que algum desastre
peculiar aos dinossauros tenha ocorrido a essas imponentes feras — e que a catástrofe tenha ocorrido
justamente quando uma das cinco grandes mortandades da história envolvia a Terra por motivos
completamente diversos.
A teoria testicular, uma velha favorita da década de 1940, teve origem num estudo interessante e
perfeitamente respeitável sobre as tolerâncias de temperatura no aligátor americano, publicado no
sóbrio Bulletin of the American Museum of Natural History, em 1946, por três especialistas em
répteis vivos e fósseis — E. H. Colbert, o meu primeiro professor de paleontologia, R. B. Cowles e
C. M. Bogert.
A primeira sentença do seu sumário revela uma proposta que vai além dos aligatores: “Este
relatório descreve uma tentativa de inferir as reações de répteis extintos, especialmente os
dinossauros, a altas temperaturas, fundamentadas nas reações observadas no aligátor moderno.” Por
meio de termometria retal, eles estudaram as temperaturas corporais de aligátores sob mudanças
variáveis de aquecimento e resfriamento. (Ora, encare a verdade, você não iria querer enfiar um
termômetro debaixo da língua de um aligátor.) As previsões sob averiguação remontam a uma teoria
formulada primeiramente por Galileu na década de 1630 — a gradação desigual de superfícies e
volumes. À medida que um animal, ou qualquer objeto, cresce (contanto que não mude o seu
formato), as áreas de superfície têm de aumentar mais vagarosamente do que os volumes — já que as
superfícies aumentam como comprimento ao quadrado, ao passo que os volumes crescem com muito
mais rapidez, como comprimento ao cubo. Portanto, os animais pequenos possuem quocientes
elevados de superfície para volume, ao passo que os animais grandes se cobrem com relativamente
pouca superfície.
Entre os animais de sangue frio, que não dispõem de qualquer mecanismo para manter as suas
temperaturas constantes, as criaturas pequenas têm um trabalho danado para se manterem quentes —
porque elas perdem muito calor através das suas superfícies relativamente grandes. Por outro lado,
os animais grandes, com as suas superfícies relativamente pequenas, podem perder calor tão devagar
que, uma vez aquecidos, podem manter com eficiência temperaturas constantes contra flutuações
comuns de clima. (De fato, a solução da controvérsia do “dinossauro de sangue quente”, que foi
objeto de intenso debate há alguns anos, pode ser, simplesmente, o fato de que, embora os grandes
dinossauros não possuíssem nenhum mecanismo fisiológico para manter a temperatura constante, não
sendo, portanto, animais de sangue quente no sentido técnico, o seu grande porte e a superfície
relativamente pequena mantinham-nos aquecidos.)
Colbert, Cowles e Bogert compararam as taxas de aquecimento de aligatores pequenos e grandes.
Tal como previsto, os miúdos esquentaram (e esfriaram), com mais rapidez. Quando exposto ao sol
quente, um aligátor pequeno, de 50 gramas, ganhou um grau Celsius a cada minuto e meio, ao passo
que um aligátor grande, 260 vezes maior, com 13.000 gramas, levou sete minutos e meio para ganhar
um grau. Extrapolando para um dinossauro adulto, de 10 toneladas, eles concluíram que um aumento
de um grau na temperatura do corpo levaria 86 horas. Se animais grandes absorvem calor tão
lentamente (através das suas superfícies relativamente pequenas), eles também não terão como
eliminar qualquer excesso de calor quando as temperaturas subirem acima de um nível favorável.
Os autores conjecturaram então que os grandes dinossauros viviam em temperaturas ótimas ou
quase ótimas; Cowles sugeriu que um aumento em temperaturas globais pouco antes da extinção do
período cretáceo fez com que os dinossauros se aquecessem além da sua tolerância ótima — e, sendo
tão grandes, eles não conseguiam eliminar o calor indesejável. (Então, numa declaração por demais
incomum numa dissertação científica, Colbert e Bogert repudiaram essa extensão especulativa do seu
trabalho empírico com aligatores.) Cowles admitiu que esse excesso de calor provavelmente não era
suficiente para matar ou mesmo para debilitar as grandes feras, mas como os testículos muitas vezes
funcionam apenas dentro de uma estreita faixa de temperatura, ele propôs que esse aumento global
poderia ter esterilizado todos os machos, causando a extinção por meio dessa contracepção natural.
A teoria da overdose foi recentemente defendida por Ronald K. Siegel, da Universidade da
Califórnia. Siegel colheu, afirma ele, mais de 2.000 registros de animais que, quando conseguem
acesso, administram várias drogas a si mesmos — de um mero gole de álcool até doses maciças de
heroína. Os elefantes são capazes de engolir por vez o equivalente a vinte cervejas, mas não gostam
de álcool em concentrações acima de 7%. Num pequeno e tolo exemplo de especulação
antropocêntrica, Siegel diz que “os elefantes talvez bebam para esquecer... a ansiedade produzida
pela diminuição das pastagens e pela competição por alimento”.
Como as imaginações férteis conseguem aplicar quase que qualquer ideia quente à extinção dos
dinossauros, Siegel encontrou um jeito. As plantas com flores não surgiram até perto do fim do
reinado dos dinossauros. Essas plantas também produziam uma série de alcaloides — o principal
grupo de agentes psicoativos — aromáticos, de base aminoácida. A maioria dos mamíferos é
“esperta” o suficiente para evitar esses venenos potenciais. Os alcaloides simplesmente têm gosto
ruim (são amargos); de qualquer modo, e para nossa sorte, nós, mamíferos, temos fígados dotados da
capacidade de lhes tirar a toxidade. No entanto, especula Siegel, talvez os dinossauros não pudessem
nem sentir o amargor nem eliminar a toxicidade das substâncias uma vez ingeridas. Recentemente ele
disse aos membros da Associação Psicológica Americana: “Não estou sugerindo que todos os
dinossauros tomaram overdoses de drogas vegetais, mas isso com certeza foi um fator.” Ele também
afirmou que a morte por overdose pode ajudar a explicar por que tantos fósseis de dinossauros são
encontrados contorcidos.
As catástrofes extraterrestres têm uma longa linhagem na literatura popular de extinções, mas o
assunto explodiu novamente em 1979, após uma prolongada calmaria, quando a equipe de pai e filho,
físico e geólogo, de Luis e Walter Alvarez propôs que um asteroide, com cerca de 10 km de
diâmetro, chocou-se com a Terra há 65 milhões de anos (os cometas, ao contrário dos asteroides, têm
ganho preferência desde então, por motivos delineados no ensaio 30. A boa ciência é autocorretiva).
A força de tal colisão seria imensa, bem maior que a megatonagem de todas as armas nucleares
do mundo (ver ensaio 29). Ao tentarem reconstruir um roteiro capaz de explicar a morte simultânea
dos dinossauros sobre a terra e de tantas criaturas no mar, os Alvarez propuseram a hipótese de que
uma nuvem gigantesca de poeira, gerada por partículas arremessadas para o alto com o impacto, teria
escurecido a Terra de modo a impossibilitar a fotossíntese e a fazer com que as temperaturas caíssem
precipitadamente. O plâncton oceânico unicelular fotossintético, com ciclos vitais medidos em
semanas, pereceria de imediato, mas as plantas terrestres poderiam sobreviver através da dormência
das sementes (as plantas terrestres não foram muito afetadas pela extinção do cretáceo, e qualquer
teoria adequada deve explicar o curioso padrão de sobrevivência diferencial). Os dinossauros
morreriam de fome e frio; os mamíferos, pequenos, de sangue quente, com necessidades alimentares
mais modestas e uma melhor regulagem de temperatura corporal, mal e mal escapariam. “Que os
miseráveis congelem no escuro”, como proclamavam, vários anos atrás, os adesivos dos nossos
vizinhos chauvinistas dos Estados do sul, durante a crise de óleo no inverno dos Estados do nordeste.
Todas as três teorias, a disfunção testicular, a ingestão excessiva de agentes psicoativos, e o
impacto de um asteroide, conseguem arrebatar a nossa atenção. Como fenomenologia pura, elas estão
empatadas na parada de fascínio primordial. No entanto, uma representa ciência expansiva, as outras,
especulação restritiva e inaveriguável. O critério apropriado encontra-se nos indícios e na
metodologia; devemos investigar o que há por trás do fascínio superficial de proposições
particulares.
Como seria possível decidirmos se a hipótese dos testículos fritos é certa ou errada? Teríamos de
saber coisas que o registro fóssil não oferece. Quais temperaturas eram ótimas para os dinossauros?
Eles podiam evitar a absorção de excesso de calor ficando na sombra ou em cavernas? A que
temperatura os seus testículos deixavam de funcionar? Os climas do fim do cretáceo foram quentes o
suficiente para empurrar as temperaturas internas dos dinossauros até esse teto? Testículos
simplesmente não se fossilizam, e mesmo que o fizessem, como poderíamos inferir as suas
tolerâncias de temperatura? Em resumo, a hipótese de Cowles é apenas uma especulação curiosa que
não leva a lugar algum. A declaração mais condenatória contra ela surgiu logo na conclusão da
dissertação de Colbert, Cowles e Bogert, quando eles admitiram: “É difícil propor quaisquer
argumentos definidos contra esta hipótese.” O que tenho a dizer pode parecer paradoxal — uma
hipótese contra a qual não se pode elaborar nenhum argumento não é mesmo boa de verdade? Muito
pelo contrário. Ela é simplesmente inaveriguável e inútil.
A overdose de Siegel tem menos força ainda. Cowles pelos menos fez uma extrapolação a partir
de dados de boa qualidade sobre aliga- tores. Ele não violou completamente a regra primária de
situar a extinção dos dinossauros no contexto de uma grande mortandade em massa — pois o aumento
de temperatura poderia ser a causa básica de uma catástrofe geral, que acabaria com os dinossauros
por disfunção testicular e grupos diferentes por outros motivos. Mas a especulação de Siegel não
consegue tocar a extinção das amonitas ou do plâncton oceânico (as diatomáceas produzem a própria
comida com a boa e pura luz do Sol; elas não tomam overdoses de substâncias químicas de plantas
terrestres). Trata-se apenas de um palpite gratuito, que busca chamar a atenção. Não pode ser
averiguado, pois como vamos saber que sabores os dinossauros sentiam ou o que os seus fígados
conseguiam fazer? Fígados não se fossilizam melhor do que testículos.
A hipótese não faz sentido nem mesmo no seu próprio contexto. As angiospermas estavam em
plena floração dez milhões de anos antes que os dinossauros seguissem o caminho de toda a carne.
Por que demorou tanto a acontecer? Quanto às dores da morte química registradas nas contorções dos
fósseis, lamento dizer (ou melhor, sinto-me satisfeito por dizer, em consideração para com os
dinossauros) que o conhecimento de geologia de Siegel deve ser um bocado deficiente: os músculos
se contraem após a morte, e os estratos geológicos sobem e descem com os movimentos da crosta
terrestre após o sepultamento — motivos mais do que suficientes para distorcer a aparência original
de um fóssil.
Por outro lado, a hipótese do impacto possui um fundamento sólido de indícios. Ela pode ser
submetida a exame, expandida, refinada e, se for incorreta, rejeitada. Os Alvarez não se limitaram a
elaborar um palpite arrebatador para consumo público. Eles propuseram a sua hipótese após
laboriosos estudos geoquímicos com Frank Asaro e Flelen Michael terem revelado um vasto aumento
de irídio nas rochas depositadas justamente na época da extinção. O irídio, um metal raro do grupo
da platina, está virtualmente ausente das rochas nativas da crosta terrestre; a maior parte do nosso
irídio provém de objetos extraterrestres que se chocam com a Terra.
A hipótese Alvarez rendeu frutos imediatos. Fundamentada originalmente nos indícios de duas
localidades europeias, ela levou os bioquímicos de todo o mundo a examinar outros sedimentos de
mesma idade. Eles encontravam quantidades atipicamente altas de irídio em toda a parte — das
rochas continentais do oeste dos Estados Unidos até pontos do fundo do mar no Atlântico Sul.
Cowles propôs a sua hipótese testicular em meados da década de 1940. Até onde ela chegou
desde então? Absolutamente a lugar algum, porque os cientistas nada podem fazer com ela. A
hipótese tem de permanecer na condição de apêndice curioso de um sólido estudo sobre aligatores. O
roteiro da overdose de Siegel também vai conquistar algumas notas na imprensa até cair no
esquecimento. O asteroide dos Alvarez classifica-se numa categoria inteiramente diversa, e boa parte
do comentário popular não percebeu a distinção essencial porque se concentrou no impacto e nos
seus resultados, e esqueceu o que realmente importa para um cientista — o irídio. Se você fala
apenas sobre asteroides, poeira e escuridão, não está contando histórias melhores ou mais divertidas
do que as dos testículos fritos ou das “viagens” terminais. É o irídio — a fonte de evidência
averiguável — que importa e que forja a distinção crucial entre especulação e ciência.
A prova, distorcendo uma expressão, encontra-se no fazer. A hipótese de Cowles não gerou coisa
alguma em 35 anos. Desde a sua proposição em 1979, a hipótese Alvarez gerou centenas de estudos,
uma importante conferência e as publicações resultantes. Os geólogos estão em polvorosa. Procuram
por irídio em todas as outras fronteiras de extinção. Toda semana surge algo novo na imprensa
científica. Continuam a se acumular os indícios de que o irídio do cretáceo representa um impacto
extraterrestre e não o vulcanismo nativo. Enquanto faço a revisão deste ensaio em novembro de 1984
(este parágrafo estará antiquado quando o livro for publicado), estão surgindo novos dados que
incluem “assinaturas” químicas de outros isótopos que apontam para uma origem extraterrestre,
esférulas de vidro do tamanho e do tipo produzidos por impacto e não por erupções vulcânicas, e
variedades de sílica de alta pressão que se formam (pelo que sabemos) apenas sob o tremendo
choque do impacto.
Minha tese é simplesmente esta: qualquer que seja o resultado final (suspeito que será positivo),
a hipótese Alvarez é ciência estimulante, proveitosa, porque gera exames, oferece-nos o que fazer e
se expande. Estamos nos divertindo, avançando e recuando, rumando para uma solução e ampliando
a hipótese além do seu propósito original (ver no ensaio 30 algumas ampliações verdadeiramente
extraordinárias).
Apenas como exemplo das contribuições inesperadas que a boa ciência engendra em outros
campos, a hipótese Alvarez fez uma importante contribuição para um tema que tem arrebatado a
atenção pública nos últimos meses — o chamado inverno nuclear (ver ensaio seguinte). Num
discurso proferido em abril de 1982, Luis Alvarez calculou a energia que um asteroide de dez
quilômetros liberaria no impacto. Ele comparou tal explosão com uma troca nuclear plena e deixou
implícito que uma guerra atômica total poderia desencadear consequências semelhantes.
Este tema, do impacto que gera nuvens gigantescas de poeira e quedas de temperatura, constituiu
um importante estímulo para a decisão de Cari Sagau e um grupo de colegas, de formular as
consequências climáticas do holocausto nuclear. A troca nuclear plena provavelmente geraria o
mesmo tipo de nuvem de poeira e escurecimento que pode ter eliminado os dinossauros. As
temperaturas cairiam precipitadamente e a agricultura poderia se tornar impossível. Evitar a guerra
nuclear é fundamentalmente um imperativo ético e político, mas temos de saber as consequências
concretas para podermos fazer julgamentos firmes. Sinto-me encorajado por uma ligação final, entre
disciplinas e preocupações profundas — a propósito, outro critério da ciência no que ela tem de
melhor (Essa caprichosa ligação estimula de tal modo a minha imaginação que vou quebrar a minha regra estrita de eliminar
redundâncias desses ensaios e terminarei este e o próximo ensaio com este incitamento ao pensamento e à ação): reconhecer o
fenômeno que, exterminando os dominadores prévios, os dinossauros, e abrindo caminho para a
evolução de mamíferos grandes, inclusive nós, tornou possível a nossa evolução, pode ajudar
concretamente a evitar que nos juntemos àquelas feras magníficas em suas poses contorcidas nos
estratos da Terra.
29. Continuidade

Uma faixa dourada de mosaicos circunda o interior da cúpula de Michelângelo na Basílica de


São Pedro no Vaticano. Ela é adornada por aquele trocadilho geológico definitivo, as palavras de
Cristo, tomadas desde então como justificativa da supremacia e da continuidade papal. Tu es Petrus,
et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam — “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha igreja” (Mateus 16:18) Em latim, e em outras línguas do tempo de Cristo, o nome de Pedro
significa pedra petra) — portanto, Cristo nomeou o seu primeiro papa por nome e talvez não sem um
toque de humor. (É claro que não é da minha conta, mas sempre considerei Pedro — o hómem que
negou Cristo três vezes e então tentou escapulir de Roma até que Cristo reaparecesse e respondesse
com uma suave censura à sua indagação “Domine, quo vadis?” — um caráter um tanto fraco para
assumir uma responsabilidade tão importante.) De qualquer modo, as palavras em mosaico dourado
simbolizam uma das grandes continuidades da nossa instável e efêmera história — uma instituição (o
papado) que tem como reconstituir a sua linhagem ao longo de dois milênios.
Não há nenhuma cidade exatamente como Roma, e nenhuma instituição exatamente como a Igreja
católica, no que diz respeito a continuidade apreciável — aquela propriedade fugaz que um
paleontólogo como eu deve considerar de valor intrínseco e inestimável. Se o ajustamento sutil a
necessidades e sentimentos humanos profundos representa a melhor fórmula para a continuidade,
então a Igreja de Roma conquista os aplausos deste leigo. Ao fim da tarde, na bela igreja de Santa
Maria de Trastevere, iniciada no século III, rapazes jogam futebol na praça contígua. À medida que o
dia se esvai, eles se deslocam para o pórtico iluminado, sob os magníficos mosaicos da Virgem, e
prosseguem com o jogo, em meio às tumbas de cristãos primitivos. O sagrado e.o profano devem se
misturar.
Na Casina Pio Quatro (palácio de Pio IV), no território do Vaticano, em janeiro de 1984, começo
do ano de Orwell, encontrei-me com vinte cientistas de oito nações para esboçar um relatório sobre
o “inverno nuclear” que o papa pudesse usar nos seus discursos contra a guerra atômica. Pio IV foi
um papa quinhentista da poderosa família Mediei. A casa dele é um palácio romano, rodeado de
grutas e terraços ornados com estátuas e relevos de jovens romanos em várias poses de brincadeira e
contentamento. Os tetos são pintados com desenhos ondulantes de criaturas imaginárias e símbolos
sexuais e de fertilidade razoavelmente ostensivos. Querubins erguem o escudo de seis bolas dos
Mediei, o símbolo do poder temporal, com o seu título digno de um monarca terreno, Pius IIII
Pontifex Optimus Maximus. Aqui e ali, quase que como um pensamento de última hora, uma cena
bíblica — o batismo de Cristo por João, por exemplo — preenche um espaço entre motivos romanos.
Mais uma vez, sagrado e profano, espiritual e temporal, prazer e contemplação — todos contidos
numa única unidade artística, um símbolo de continuidade que incorpora o passado e reconhece
realidades humanas do presente.
Estive em Roma para discutir a continuidade na mais grandiosa escala. Uma série de estudos,
executados por grupos independentes de cientistas em diversas nações, examinados e confirmados
por líderes das várias disciplinas envolvidas, parecem estar convergindo (apesar de várias
incertezas remanescentes) para uma conclusão perturbadora. Em todos os prognósticos sobre os
horrores da guerra nuclear, deixamos passar anteriormente um tema importante que torna a
perspectiva de tal holocausto ainda mais impensável. Exploramos as consequências imediatas da
explosão e da precipitação radioativa, mas não avaliamos os efeitos a longo prazo (de meses e anos)
sobre o clima produzidos pelas nuvens de poeira e fuligem erguidas por grandes explosões. Sob uma
série de circunstâncias plausíveis, um manto de partículas poderia cobrir a Terra, trazendo
temperaturas abaixo de zero nos verões de latitudes médias e envolvendo a Terra em tamanha
escuridão que a agricultura poderia desaparecer completamente. Esse inverno nuclear levanta, pela
primeira vez, a aterrorizante perspectiva de que uma grande guerra não apenas debilitaria e
dizimaria, trazendo consigo sofrimento humano inigualado, mas também levaria à extinção total e
irremediável de várias espécies vegetais e animais. Nós, humanos, somos um grupo robusto e bem
distribuído, mas até mesmo a possibilidade do nosso próprio desaparecimento, como consequência
da pior sequência de eventos de um inverno nuclear, não deve ser de todo excluída.
Por que devemos nos preocupar tanto com a extinção? Já é bastante considerar a destruição
aterradora da guerra nuclear sem essa dimensão adicional. Eu poderia oferecer uma série de motivos
“objetivos”. Alguns são práticos. O milho, a nossa colheita mais importante, estará em dificuldades
se perdermos o teosinto, a sua gramínea ancestral, com uma distribuição geográfica e ecológica
limitada na América Central e América do Sul. O teosinto produz híbridos com o milho (ver ensaio
24) e constitui uma importante reserva de variabilidade genética de que todas as espécies necessitam
para a sua própria preservação e flexibilidade evolutiva. Outros motivos são francamente estéticos.
Este seria mesmo um mundo bem empobrecido e triste se não encontrássemos nada além de humanos,
e um rato ou uma barata de vez em quando. Mas, no presente ensaio, que apresento mais como uma
divagação sobre a continuidade do que como um relato técnico sobre o inverno nuclear, gostaria de
enfatizar um argumento altamente pessoal, moral (não sujeito a prova, mas simplesmente à expressão,
profundamente sentida), que se origina da minha própria carreira de paleontólogo, um estudioso da
maior de todas as continuidades naturais, a genealogia da vida na Terra.
Temos hoje provas, nos fósseis de células simples e nos tapetes de sedimentos que os agregados
dessas células capturam e prendem, de que a vida surgiu há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Desde
então, ela tem se expandindo no tempo, numa sequência ininterrupta até o presente. Todos nós, musgo,
efêmera, hipopótamo, podemos, de modo absolutamente literal, rastrear toda a nossa ascendência até
esses primórdios. A árvore é uma metáfora precisa para a história da vida; a ponta de cada ramo hoje
existente (nós, humanos, somos um deles) recua por ramos sempre mais largos e robustos, até o
tronco comum das células originais com quase quatro bilhões de anos de idade.
Cada extinção remove em caráter permanente um pedaço desse patrimônio; cada morte
irremediável de uma espécie não destrói meramente um bocado do protoplasma presente, mas um
caminho singular da história, mantido durante quatro bilhões de anos. Cada extinção é um
rompimento de continuidade na mais grandiosa escala. Claro, a partir de uma perspectiva geológica
medida em milhões de anos, a extinção é inevitável, até mesmo necessária para a manutenção de uma
vigorosa árvore da vida. Também podemos argumentar, tanto no nível abstrato quanto na história
efetiva da vida, que um ocasional episódio catastrófico de extinção em massa abre novas
possibilidades evolutivas, liberando espaço ecológico num mundo lotado.
Mas essas escalas geológicas não são adequadas para se considerar a nossa própria vida e o seu
significado imediato. O efeito potencialmente benéfico de uma extinção em massa no imprevisível
ricochete da vida ao longo de dez milhões de anos não pode expressar o significado do nosso
pequeno ramo na árvore da vida — e não estamos exibindo uma vaidade cósmica quando achamos
melhor alimentar e defender este raminho em especial, mas apenas um auto-interesse adequado.
O nosso raminho é bem pequeno mesmo, mas lembre que ele remonta, por meio de uma miríade
de galhos maiores, ao longo de quatro milhões de anos, ao próprio tronco central. A nossa origem na
África e a subsequente difusão por todo o mundo formam uma história complexa e instigante que
expressa a nossa continuidade com toda a história da vida. Se extirparmos este raminho diretamente,
por meio do inverno nuclear, ou se perdermos tantos outros ramos que o nosso venha por fim a
murchar, teremos então cancelado para sempre o experimento mais peculiar, diferente e imprevisto
jamais gerado entre os bilhões de ramos — a origem, via consciência, de um ramo capaz de
descobrir a sua própria história e de apreciar a sua continuidade.
Algumas pessoas, que nunca se livraram da cadeia do ser (ver ensaios 17-19) e que encaram a
história da vida como um relato de progresso linear que leva de modo previsível à evolução da
consciência, poderiam sentir-se menos perturbadas (em certo sentido abstrato) pela nossa potencial
auto-remoção. Afinal, a evolução se desloca rumo à complexidade e à consciência. Se não nós, então
algum outro ramo sobrevivente entrará na corrente e por fim dará uma segunda chance à inteligência.
E, se não aqui, então em outro lugar, num universo povoado, pois as leis da natureza não variam de
lugar para lugar.
Como estudioso da história da vida, e como homem que trabalhou duro para separar o
preconceito cultural e a esperança psicológica da história que os fósseis tentam nos contar, cheguei a
uma conclusão inteiramente diversa, compartilhada, penso eu, pela maioria dos colegas
profissionais: a consciência é um caprichoso acidente evolutivo, um produto de uma linhagem
peculiar que desenvolveu a maioria dos componentes da inteligência para outros propósitos
evolutivos (ver ensaio 27). Se perdermos esse ramo com a extinção humana, a consciência pode não
se desenvolver outra vez em qualquer outra linhagem durante os mais ou menos cinco bilhões de anos
que restam à Terra antes da explosão do Sol. Sem nenhuma culpa nossa, e sem a pressão de nenhum
plano cósmico ou propósito consciente, nós nos tornamos, pelo poder de um glorioso acidente
evolutivo chamado inteligência, os administradores da continuidade da vida na Terra. Não pedimos
esse papel, mas não podemos abjurá-lo. Podemos não estar qualificados para tamanha
responsabilidade, mas cá estamos nós. Se a mandarmos pelos ares (em sentido absolutamente
literal), romperemos em caráter permanente uma continuidade de eras que reduz a nossa minúscula
história à insignificância geológica, mas que, não obstante, nós agora controlamos. Não consigo
imaginar nada mais vulgar, mais odioso, do que a perspectiva de que um ramo minúsculo, com um
poder peculiar, possa dizimar uma árvore majestosa e antiga, cuja continuidade se prolonga desde a
aurora dos tempos da Terra e cujo tronco e ramos abrigam milhares de pré-requisitos para a
existência desse mesmo ramo.
O argumento do inverno nuclear tem várias fontes e progenitores. Mas ele ganhou destaque em
fins de 1983 principalmente através do trabalho de uma equipe com a apropriada acrossemia de
TTAPS (Taps significa toque fúnebre - N.T.) — R. P. Turco, O. B. Toon, T. P. Ackerman, J. B. Pollack e Cari
Sagan. A modelagem climática representa um estilo pouco familiar de ciência, bem diferente do
estereótipo escolar de experimento simples, previsão clara e prova inequívoca. Temos de lidar, ao
contrário, com uma série de variáveis cujos valores não conseguimos especificar com exatidão e
cujas interações são, em boa parte, desconhecidas, já que o experimento, graças a Deus, não foi
tentado. Quanta poeira e fuligem sobe; ela se espalha numa camada homogênea ou deixa brechas para
a luz solar intermitente; ela se espalha para o hemisfério sul e, se o fizer, com que intensidade; em
que lugar da atmosfera a poeira e a fuligem se alojam e por quanto tempo elas permanecerão antes
que a chuva consuma as partículas e as traga de volta ao chão; a que nível chegará o frio; por quanto
tempo durarão os efeitos? Eu poderia continuar por uma eternidade, mas vou parar por aqui. Além
disso, estas são apenas as questões de primeira ordem sobre resultados imediatos desconhecidos. O
que dizer das interações entre os efeitos, pois tais “sinergias” muitas vezes não são, no jargão
técnico, cumulativas — isto é, mau com mau pode não ser duas vezes mau, mas muitas vezes pior. A
radiação, por exemplo, enfraquece o sistema imunológico humano. Ela também engendra altos ritmos
de mutação capazes de levar à evolução de um agente de doenças particularmente virulento. A
interação desse novo vetor de doença, junto com corpos humanos de resistência nitidamente
reduzida, poderia produzir uma pandemia bem maior em efeito do que qualquer previsão baseada em
componentes considerados em separado seria capaz de imaginar.
Em face dessas dificuldades e incertezas, a equipe TTAPS procedeu especificando os âmbitos de
valor mais sensatos para cada efeito e elaborando centenas de roteiros possíveis para obter algum
senso de campo de ação plausível. As variações principais dependem em boa parte dos diferentes
comportamentos e quantidades de poeira e fuligem. Em resumo, e simplificando um pouco, impactos
diretos longe de cidades podem erguer grandes quantidades de poeira fina na atmosfera; as explosões
sobre cidades e florestas podem acender gigantescas labaredas que colocam nuvens de fuligem mais
grossa em níveis atmosféricos mais baixos. A poeira e a fuligem bloqueiam a luz solar e engendram o
inverno nuclear. (Nem mencionei as séries de outros efeitos profundamente negativos como, por
exemplo, a radiação e o esgotamento da camada de ozônio).
Não posso nem começar a tratar dos detalhes técnicos neste pequeno ensaio. (O relatório original
do TTAPS e o comentário de biólogos que o acompanha, divulgados primeiro como dois artigos na
Science, em 23 de dezembro de 1983, foram republicados por W. W. Norton como The Cold and the
Dark, de Paul Ehrlich et al. — ver Bibliografia. Cari Sagan também publicou um relato menos
técnico, mas, ainda assim, completo, no número de inverno de 1983/1984 da Foreign Affairs.)
Mencionarei, porém, apenas duas conclusões gerais. Primeiro, o limiar do inverno nuclear pode ser
atingido através de várias sequências plausíveis de eventos envolvendo uma porcentagem apropriada
da megatonagem do mundo e um número plausível de bombas explodidas sobre cidades e alvos
militares. Segundo e, de certo modo, surpreendentemente, mesmo uma guerra nuclear “pequena”
poderia, sob circunstâncias plausíveis, detonar o inverno nuclear (por exemplo, apenas 100
megatons, do estoque mundial de aproximadamente 10.000, se explodidos em cidades, com grandes
incêndios subsequentes e uma produção máxima de fuligem, poderiam ser suficientes).
Não sou um observador astuto da política mundial, e fiquei surpreso (mas bastante satisfeito)
com o reconhecimento de que a possibilidade do inverno nuclear surtiu efeito com tanto vigor em
tantos setores. Sempre achei que a nossa velha história, restrita às conseqüên- cias imediatas de
explosão e precipitação radioativa, era tão horrível que nenhum acréscimo adicional de tormento
seria necessário para galvanizar a opinião pública. Mas agora percebo, criaturas esperançosas que
somos, que muitas pessoas viviam com a ilusão, a essa altura dissipada, de que, se residissem longe
o suficiente das explosões imediatas e permanecessem o tempo suficiente em seus abrigos, em breve
poderiam voltar à superfície de um mundo luminoso esperando para ser reconstruído. Também não
havia conseguido notar que pessoas de outras nações, particularmente do hemisfério sul, conseguiam
sentir certa segurança pessoal, agora também dissipada, frente à loucura do norte. O inverno nuclear
também ajuda a esclarecer o que me parece a quase certeza de que qualquer “conquista” na guerra
nuclear poderia se tornar apenas a definitiva vitória de Pirro, à medida que um clima impiedoso
fosse propagando os seus enregelantes efeitos contra qualquer agressor.
De qualquer modo, o argumento do inverno nuclear espalhou-se por todo o mundo como a sua
nuvem de poeira, tornando-nos, talvez, mais próximos e unindo-nos contra um perigo comum — pois
a Terra, assim como um organismo, possui a sua própria continuidade e pode distribuir em partes
iguais os insultos que sofrer. A Academia Pontifícia de Ciências, representando a instituição mais
ecumênica do mundo, trouxe ao Vaticano vinte de nós, de oito nações e mais religiões (e não
religiões) a fim de elaborar um pronunciamento sobre o inverno nuclear e para um encontro com o
papa João Paulo II num esforço para desenvolver esse novo argumento como uma arma eficaz contra
a ameaça de uma guerra nuclear. Num breve pronunciamento a nós, o papa argumentou que devemos
combinar o nosso modo científico de dissuasão (a nossa melhor estimativa das consequências
concretas) com o meio de dissuasão moral que ele e outros podem oferecer. E eu pensei no
casamento do espiritual e do temporal, da contemplação e da sensualidade, da força física e da
persuasão moral, todos retratados nos tetos quinhentistas do nosso local de encontro. A continuidade
exigirá essa flexibilidade, essa união de todas as nossas forças.
Também podemos estender este tema de continuidade, flexibilidade e ecumenismo ao próprio
processo de geração do argumento do inverno nuclear na ciência. A elaboração dos detalhes exigiu
as habilidades combinadas de físicos, meteorologistas, químicos, biólogos, especialistas na
mecânica da formação de crateras e no comportamento de partículas em suspensão. Fico feliz em
dizer que uma das duas maiores fontes de inspiração para o grupo TTAPS veio diretamente do meu
campo, a paleontologia, tantas vezes vista como uma disciplina arcana devotada a eventos do
passado distante, sem relevância imediata para a vida humana. Escrevi diversos ensaios sobre a
teoria do impacto na extinção do período cretáceo — a ideia instigante, com apenas alguns anos de
idade, mas conquistando continuamente força e indícios de que a extinção dos dinossauros e muitas
outras criaturas há 65 milhões de anos pode ter sido detonada pelo impacto de cometas ou asteroides
que se chocaram com a Terra e deixaram indícios do seu bombardeio nos altos níveis de irídio, um
elemento extremamente raro em rochas nativas da crosta terrestre, porém mais comuns em corpos
extraterrestres (ver ensaios 28 e 30).
Luis Alvarez, o grande físico de Berkeley e cofundador da teoria do impacto, defendeu desde o
início uma sequência de eventos para a extinção que tem como base uma gigantesca nuvem de poeira
ergui- da pelo choque cósmico, com a subsequente supressão de fotossíntese e o súbito declínio de
temperatura. Ele também reconheceu explicitamente os paralelos entre o choque com um cometa e a
guerra nuclear (na verdade, a megatonagem de tal impacto excede em muito a força de todo o nosso
arsenal nuclear). Sagan e os seus colegas leram a mensagem e aplicaram-na diretamente. A boa
ciência também exibe a continuidade entre disciplinas aparentemente não relacionadas.
O impacto tornou possível a nossa evolução; sem tal explosão, duvido que estivéssemos aqui
para considerar o inverno nuclear. Os mamíferos desenvolveram-se mais ou menos ao mesmo tempo
que os dinossauros e passaram os seus primeiros cem milhões de anos como criaturas pequenas,
vivendo na periferia de um mundo dominado por répteis gigantes. Se os dinossauros não houvessem
se extinguido no bombardeio do cretáceo, eles presumivelmente ainda dominariam a Terra (já que o
haviam feito por cem milhões de anos, por que não por mais 65 milhões ou mais?), os mamíferos
teriam continuado a viver como criaturas pequenas, do tamanho de ratos, e a inteligência não se teria
desenvolvido para criar as glórias do intelecto e os horrores do holocausto nuclear. Não é mesmo um
pensamento cheio de esperança o de que, reconhecendo a causa de um evento fundamental para a
nossa evolução, podemos também contribuir, através do seu uso direto na formulação do argumento
do inverno nuclear, para a nossa sobrevivência na luta contra a maior ameaça já produzida pela
árvore da vida contra a sua própria e frágil continuidade?

Pós-escrito
O pronunciamento oficial do Vaticano, elaborado durante o nosso encontro, foi agora publicado.
O texto completo aparece abaixo.

Inverno nuclear: uma advertência

A guerra nuclear teria entre as suas consequências imediatas a morte de uma grande proporção
das populações das nações combatentes. Tal guerra representaria uma catástrofe sem precedentes na
história humana. A subsequente precipitação radioativa, o enfraquecimento do sistema imunológico, a
doença e o colapso do serviço médico e outros serviços civis ameaçariam um grande número de
sobreviventes.
Temos agora de emitir uma advertência adicional: efeitos recém- reconhecidos da guerra nuclear
sobre o clima global indicam que as consequências a longo prazo podem ser tão terríveis quanto os
efeitos imediatos, se não piores.
Numa guerra nuclear, as armas detonadas perto do solo introduziriam grandes quantidades de
poeira na atmosfera, e as detonadas acima de cidades e florestas gerariam repentinamente enormes
quantidades de fumaça fuliginosa dos incêndios resultantes. As nuvens de partículas finas logo se
espalhariam por todo o hemisfério norte, absorvendo e dispersando a luz solar e desse modo
escurecendo e resfriando a superfície da Terra. As temperaturas continentais poderiam cair
rapidamente — bem abaixo do nível de congelamento, durante meses, mesmo no verão — criando um
“inverno nuclear”. Isso aconteceria mesmo com grandes variações na natureza e no âmbito da guerra
nuclear.
Apenas recentemente nos demos conta de quão severos o frio e a escuridão poderiam ser,
sobretudo como consequência dos intensos e numerosos incêndios provocados por explosões
nucleares, e das mudanças consequentes na circulação atmosférica. Isso produziria uma agressão
adicional profunda às plantas, aos animais e humanos sobreviventes. A agricultura, pelo menos no
hemisfério norte, poderia ficar seriamente prejudicada por um ano ou mais, causando fome
generalizada.
Os cálculos demonstram que a poeira e a fumaça podem muito bem se espalhar para os trópicos e
boa parte do hemisfério sul. Assim, nações não combatentes, incluindo aquelas bem distantes do
conflito, poderiam ser seriamente danificadas. Nações como índia, Brasil, Nigéria e Indonésia
correriam o risco de ser atingidas por desastres sem paralelo, sem que uma única bomba explodisse
em seus territórios.
Além disso, o inverno nuclear poderia ser detonado por uma guerra nuclear relativamente
pequena, envolvendo apenas uma fração reduzida dos presentes arsenais estratégicos do globo,
bastando que cidades sejam alvejadas e queimadas. Mesmo se uma guerra nuclear “limitada” fosse
iniciada de uma maneira que tivesse como intenção minimizar os seus efeitos, ela provavelmente
aumentaria até o uso maciço de armas nucleares, como salientou a Academia Pontifícia de Ciências
na precedente “Declaração sobre a prevenção da guerra atômica” (1982).
Os resultados gerais parecem ser válidos num âmbito amplo de condições plausíveis, e ao longo
de grandes variações no caráter e na extensão de uma guerra nuclear. Contudo, ainda existem
incertezas nas presentes avaliações, e há efeitos que ainda não foram estudados. Portanto, trabalhos
científicos adicionais e o escrutínio crítico contínuo de métodos e dados são nitidamente necessários.
Perigos adicionais imprevistos da guerra nuclear não podem ser excluídos.
O inverno nuclear implica um vasto aumento do sofrimento humano, incluindo nações não
diretamente envolvidas na guerra. Uma grande proporção de humanos que sobrevivessem às
consequências imediatas da guerra nuclear provavelmente morreria de frio, fome, doença e, além
disso, dos efeitos da radiação. A extinção de muitas espécies vegetais e animais pode ser esperada,
e, em casos extremos, poderia ocorrer a extinção da maioria das espécies não oceânicas. A guerra
nuclear traria na sua esteira uma destruição inigualada de vida em qualquer tempo durante o período
de vida dos humanos na Terra, e poderia, portanto, colocar em risco o futuro da humanidade.

Carlos Chagas, Brasil, Presidente


S. N. Isaev, URSS
Vladimir Alexandrov, URSS
Raymond Latarjet, França
Edoardo Amaldi, Itália
Louis Leprince-Ringuet, França
Dan Beninson, Argentina
Carl Sagan, EUA
Paul J . Crutzen, República Federal da Alemanha
Carlo Schaerf, Itália
Lars Ernster, Suécia
Eugene M. Shoemaker, EUA
Charles Townes, EUA
Giorgio Fiocco, Itália
Stephen J. Gould, EUA
Eugene P. Velikhov, URSS
José Goldemberg, Brasil
Victor Weisskopf, EUA
30. A dança cósmica de Shiva

Vulcano, o deus romano do fogo, deu o seu nome a um planeta durante uns poucos anos no século
XIX. Apropriadamente situado no ponto mais quente do nosso céu imediato, entre Mercúrio e o Sol,
esse planeta putativo surgiu porque a ciência newtoniana não conhecia nenhum outro modo de
explicar (por meio da atração gravitacional) a ligeira irregularidade que fora medida na órbita de
Mercúrio. Como Vulcano tinha de existir, e como a teoria consegue exercer um efeito notável sobre a
observação, muitos realmente disseram ter visto o planeta. Agora compreendemos que a gravitação é
einsteiniana, não perfeitamente newtoniana, e equações de relatividade explicam de maneira
adequada as perturbações de Mercúrio sem a interferência de um corpo adicional. Privado da sua
necessidade teórica, Vulcano desapareceu silenciosamente.
Nenhuma atividade científica oscila mais precariamente no precipício entre a bravura e a
insensatez do que a descrição de objetos não observados, com existência justificada apenas pela sua
necessidade teórica. Os audaciosos podem até mesmo dar um passo mais firme rumo à perdição ou à
fama, conferindo um nome formal à sua entidade hipotética. O que um observador amistoso pode
dizer sobre tal estratégia? É impossível formular quaisquer regras gerais para o sucesso; como diz
Nick, o grego: “Você ganha umas e perde outras.” Os proponentes de Vulcano perderam feio, mas
outros obtiveram triunfo no mesmo jogo.
Ernst Haeckel, o principal evolucionista da Alemanha no tempo de Darwin, descreveu uma
linhagem hipotética da evolução humana trinta anos antes que Eugene Dubois descobrisse os
primeiros fósseis de transição. Nessa árvore, o Homo sapiens ligava-se a um predecessor menos
digno chamado Homo stupiduz — um cretino hipotético, descendente do verdadeiro elo perdido que
liga macacos e homens. Haeckel não tinha fóssil algum, mas sem dúvida tinha um nome. Ele chamou
o ancestral putativo de Pithecaníhropus alalus, ou homem- macaco que não sabia falar. Mas Haeckel
venceu onde os vulcanófilos encontraram a derrota. Tão exatas foram as previsões principais de
Haeckel — sobretudo a sua afirmação de que o nosso ancestral imediato andava plenamente ereto
mas possuía um cérebro bem menor do que o nosso — que Dubois aceitou de boa vontade o nome
por ele escolhido, batizando os primeiros fósseis humanos como Pithecanthropus erectus (os
espécimes de Java agora chamados Homo erectus).
Em abril de 1984, inspirados por uma nova teoria sobre a causa das extinções em massa, vários
cientistas batizaram outro membro não observado do nosso sistema solar. O Sol, propuseram eles,
tem uma companheira previamente não reconhecida, uma estrela que gira numa órbita excêntrica e
que agora se encontra a uma distância máxima de mais de dois anos-luz (portanto, com uma massa
pequena e uma luminosidade fraca, tão praticamente indiscernível, mesmo com os mais poderosos
telescópios, que facilmente nos passaria despercebida para sempre, a menos que a procurássemos
diretamente). Eles também — já que estamos nisso, por que não ir até as últimas consequências —
propuseram um nome para a companheira hipotética do Sol. Chamaram-na Nêmesis (explicarei num
instante) para homenagear a personificação grega da ira justificada em forma de deusa. “Receamos”,
escreveram eles, “que se a companheira não for encontrada, este trabalho será a nossa Nêmesis.”
(Marc Davis, Piet Hut, e Richard A. Muller, ver Bibliografia. Daniel P. Whitmire e Albert A.
Jackson IV postularam independentemente a existência de Nêmesis no mesmo número da Nature.)
A previsão de Nêmesis é o ponto culminante de uma longa série de descobertas e conjecturas
diversas, ao longo de mais de um século, mas que vem ganhando força considerável nos últimos
meses. Discuti cada um dos temas, por diversas vezes, durante uma década de ensaios. A sua
presente conjunção e síntese caracteriza o evento mais instigante da minha profissão, a paleontologia,
durante toda a minha vida, ou então apenas mais um erro daqueles mortais falíveis conhecidos como
cientistas. (Devido ao entusiasmo, tenho dez libras em jogo com um cético colega inglês.) Com o meu
prazo de três meses (agora um ano e meio entre a composição e o livro — um espaço de tempo absurdamente longo para um
área instigante da ciência). e a enxurrada de artigos de jornais e revistas que serão produzidos com mais
rapidez, eu não prestaria serviço algum ao apresentar uma exposição metódica da teoria em si.
Quero, ao contrário, explicar por que essa nova teoria de extinção em massa poderia ser tão
vitalmente importante na alteração da nossa concepção básica das causas do padrão na história da
vida. Também quero terminar com um pequeno comentário sobre a teoria em si — um apelo aos
descobridores potenciais para que batizem a nossa companheira como Shiva, e não Nêmesis, tanto
para expressar o espírito ecumênico da ciência no que ela tem de melhor, quanto para reconhecer
uma semelhança quase devastadora entre o papel proposto dessa companheira solar e os atributos
desse deus oriental da destruição. Mas, primeiro, permita-me enumerar os eventos principais que
agora se unem numa nova visão da extinção em massa.
1. Há quase dois séculos os geólogos sabem que extinções amplas, que afetaram a vida numa
enorme variedade de meios ambientes, ocorreram muitas vezes durante os últimos seiscentos milhões
de anos esporádica e rapidamente. A nossa escala temporal geológica depende dessas extinções em
massa, já que elas estabelecem as fronteiras das divisões principais. Minha resposta-padrão a
gerações de gemidos estudantis (diante da necessidade imposta de memorizar todos aqueles nomes
engraçados do cambriano ao pleistoceno) lembra meus pupilos que eles não estão aprendendo
palavras extravagantes para a divisão arbitrária do tempo contínuo, mas antes as datas de importantes
eventos na história da vida.
2. As teorias de extinção em massa encheriam um livro grosso o bastante para elevar a altura de
qualquer garoto à de um adulto na mesa do jantar. Mas um impasse se rompeu há cerca de cinco anos,
quando altos níveis de irídio em rochas da fronteira entre o cretáceo e o terciário (o juízo final dos
dinossauros) forneceram o primeiro indício sólido de coincidência entre impacto extraterrestre e
épocas de extinção (ver ensaio 25 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes), O irídio é um elemento pesado,
não reativo, e o estoque original da Terra presumivelmente afundou no seu interior quando o nosso
planeta se liquefez e se diferenciou há cerca de quatro bilhões de anos. O irídio de rochas
superficiais provém em boa parte de fontes extraterrestres — asteroides, meteoritos e cometas, a
menos, é claro, que o irídio original da Terra possa surgir do interior em erupções vulcânicas — o
único desafio sério proposto contra a teoria do impacto.
3. Luis Alvarez, Walter Alvarez, Frank Asaro e Helen Michael propuseram a hipótese de que um
grande asteroide, com cerca de dez quilômetros de diâmetro, chocou-se com a Terra e depositou o
irídio há cerca de 65 milhões de anos. Eles basearam a sua sugestão na elevada quantidade de irídio
em três sítios, todos referentes a uma extinção. As reações paleontológicas variaram de início do
ceticismo ao escárnio (sinto-me consideravelmente orgulhoso, numa carreira fartamente semeada de
erros, pelo meu entusiasmo iconoclasta original). Desde então, a tênue base de indícios iniciais
ganhou bastante força. Quantidades elevadas de irídio foram encontradas em todo o mundo, em mais
de cinquenta localidades, justamente da fronteira entre o cretáceo e o terciário, de sedimentos
terrestres até pontos do fundo do mar. Também foi descoberto irídio, com graus variáveis de certeza,
em rochas que marcam quatro ou cinco outros episódios de extinção em massa.
1. David Raup e Jack Sepkoski, trabalhando com amplas compilações das épocas de vida e morte
de famílias fósseis, descobriram uma periodicidade de 26 milhões de anos nas extinções durante os
últimos 225 milhões de anos (ver ensaio 15). (Essa ciclicidade não fora percebida antes porque a
menor dessas extinções não podia ser separada dos níveis de fundo comuns antes que Sepkoski
compilasse os seus dados mais amplos e refinados.)
2. Walter Alvarez e Richard A. Muller descobriram uma periodicidade, semelhante em ritmo e
intervalo (28,4 milhões de anos), aos picos de extinção de Raup-Sepkoski, em crateras de impacto
bem datadas da Terra, com diâmetros de mais de dez quilômetros. Como tais crateras são raras
(menos de vinte), as conclusões têm de ser provisórias, mas a coincidência de duas séries de dados
— as quais nunca se pensou em usar antes para demonstrar ciclicidade ou (falando nisso) sequer se
imaginou que tivessem qualquer relação entre si — é (no mínimo) sugestiva.
3. Até aqui, dados sólidos. O resto é especulação produtiva sobre mecanismos: A ciclicidade
enfraqueceu o asteroide dos Alvarez (a boa ciência é autocorretiva). Os impactos de asteroides, tal
como os compreendemos, só podem ocorrer aleatoriamente quando um objeto Apoio (um asteroide
com uma órbita excêntrica o suficiente para atravessar a nossa parte do céu durante as suas andanças)
se choca com a Terra. Que objeto extraterrestre poderia introduzir irídio mas também atingir a Terra
com um ritmo coerente? O pensamento deslocou-se para os cometas.
4. Especulação de segundo nível: bilhões de cometas circundam o Sol num envoltório chamado
nuvem de Oort, localizado bem além da órbita de Plutão. A perturbação gravitacional dessa nuvem
poderia alterar as órbitas de cometas e arremessar grandes quantidades deles para o espaço dos
planetas interiores. Alguns deles então se chocariam com a Terra.
5. Especulação de terceiro nível: O que poderia perturbar de tal modo a nuvem de Oort com uma
periodicidade de 26 milhões de anos? Surgiram várias sugestões. Oscilações do sistema solar em
relação ao plano da nossa galáxia (estabelecendo e interrompendo o contato da nuvem de Oort com
nuvens interestelares de poeira e gás) foram propostas, mas o ritmo e a extensão dessas excursões —
um ciclo de cerca de 33 milhões de anos — ajustam-se mal aos dados das extinções e da formação
de crateras. Uma companheira do Sol, numa órbita tão excêntrica que perturba a nuvem de Oort
apenas durante a sua proximidade máxima, parece funcionar em princípio. Tal ideia, confesso
francamente, soa como ficção científica da pior espécie, mas tem de ser tomada seriamente, pois ela
obedece ao critério cardeal da ciência produtiva. Ela é plausível na teoria e averiguável na prática
(ver ensaio 28). Podemos esquadrinhar os céus e ter esperanças de saber — uma jogada que vale a
pena tentar (mesmo com baixa probabilidade), dada a imensa recompensa intelectual do possível
sucesso. Piet Hut disse-me que devemos ter uma chance de 50% de encontrar a companheira em três
anos, se ela existir. E, ah, sim, não se preocupem. A nossa companheira está agora na sua distância
máxima; a nuvem de Oort não será sacudida por mais ou menos 13 milhões de anos.
Chuvas de cometas e véus de poeira devem atiçar a fantasia de qualquer um, mas o seu fascínio
para os paleontólogos não se encontra no que isso tem de mais obviamente sensacional, e sim numa
implicação profunda que precisamos encarar com honestidade e que pode alterar de modo
fundamental o nosso princípio favorito para a explicação da história da vida. Podemos identificar
duas posições extremas (e conflitantes) como guias para a interpretação do padrão da vida no tempo.
(Todos os paleontólogos astutos reconhecem que a verdade se encontra em algum lugar entre as duas,
mas quero afirmar que a primeira tem sido favorecida com uma espécie de metáfora controladora, ao
passo que novos pareceres sobre as extinções em massa sugerem um papel bem maior para a
segunda).
A primeira sustenta que a competição entre as espécies impele a história da vida e especifica as
suas mudanças estáveis. Mesmo que os meios ambientes fossem perfeitamente constantes, a evolução
continuaria, já que os organismos lutam (em sentido literal ou figurado) com outros na corrida pela
vida. Não se chega necessariamente a algum lugar (avaliado por meio do triunfo sobre os outros)
porque todos os outros também estão lutando, mas o resultado líquido é um tipo de substituição de
nível superior que preserva os equilíbrios entre os competidores, visto que todos lutam por
vantagens temporárias. O paleontólogo Leigh Van Valen codificou esse modelo para a história de
vida como a hipótese “Rainha Vermelha” em homenagem à compatriota de Alice (em Através do
espelho), que tinha de passar o tempo todo correndo só para ficar no mesmo lugar.
A Rainha Vermelha tem sido o nosso modelo dominante para a história da vida. Ela é a própria
metáfora controladora de Darwin da substituição de cunhas para a plenitude dos tempos:

A natureza pode ser comparada a uma superfície coberta com dez mil cunhas agudas...
representando diferentes espécies, todas bem juntas e impelidas para dentro por golpes
incessantes... sendo atingida às vezes uma cunha de certa forma, às vezes outra; a que foi
empurrada para dentro forçando outras para fora; a trepidação e o choque sendo com frequência
transmitidos para outras cunhas em muitas direções diferentes.

Em outras palavras, a natureza está sempre plena (ou em quase equilíbrio, no jargão técnico).
Uma forma só pode ganhar espaço empurrando outra para fora (“forçando-se a cunha”, como diria
Darwin). A metáfora da cunha é subjacente ao nosso parecer convencional da história da vida e o
sustenta: As criaturas lutam para se aperfeiçoar; a vida ascende de modo regular, embora ninguém
fique à frente em caráter permanente; a ordem prevalece à medida que a luta previsível de indivíduos
se traduz em padrões de complexidade e diversidade crescentes. Marx não estava muito errado ao
comentar que o sistema de Darwin lembrava o bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra
todos) imposto à natureza.
O segundo parecer, ou minoritário, afirma que nenhuma dinâmica interna impele a vida. Se os
meios ambientes não mudassem, a evolução poderia muito bem virtualmente parar. Num alto nível de
resolução paleontológica (se não entre os insetos e pássaros do meu jardim), as espécies passam a
sua vida em independência geral, como os “navios que passam na noite. ... Apenas um sinal que se
mostra e uma voz distante na escuridão...” de Longfellow. As suas “lutas” principais são com climas,
configurações geológicas e geográficas em mudança, não com os outros. (A competição funciona
então como uma interação esporádica e local, que suaviza e modela as arestas da ordem da vida, mas
que não age como força propulsora).
Nesse parecer, os gatilhos externos de meios ambientais em mudança devem impelir a história da
vida. Mas eles a impelem em direções não convencionais: onde podemos encontrar o avanço
ascendente que procuramos de modo tão aplicado (para nos colocarmos no ápice de uma massa em
luta) se a vida apenas corre atrás de um meio que muda caprichosamente? Onde, afinal, podemos
localizar a ordem previsível, se os principais gatilhos ambientais são precipitações periódicas de
cometas?
Para citar um exemplo específico contrastando os dois pareceres e a suas diferentes implicações,
eu reestudei (com C. Brad Calloway, ver Bibliografia) o caso padrão que os livros didáticos
oferecem para a metáfora das cunhas numa escala grandiosa: a interação de mariscos e braquiópodes
ao longo do tempo. Esses grandes grupos de invertebrados marinhos parecem superficialmente
semelhantes: ambos cobrem o corpo com duas conchas, e a maioria das espécies fixa-se sobre o
fundo do mar ou, com mobilidade limitada, enterra-se nos sedimentos. Mas os mariscos possuem uma
anatomia mais complexa e são classificados convencionalmente em nível superior nas velhas
classificações procustianas que forçavam a árvore da vida numa ordem linear. Os mariscos também
dominam as faunas marinhas hoje, ao passo que os braquiópodes são relativamente pouco
abundantes; o nosso registro fóssil, contudo, é rico em braquiópodes e paupérrimo em mariscos.
Assim, temos todos os ingredientes para uma clássica história de substituição competitiva gradual
como na metáfora das cunhas — os mariscos, superiores, pouco a pouco, vão empurrando os
braquiópodes para fora do seu meio ambiente mútuo e limitado. Calloway e eu reunimos um
compêndio de declarações, cobrindo mais de um século, todas citando os mariscos e os
braquiópodes como o caso clássico de progresso na história da vida por meio de exclusão
competitiva.
Descobrimos, no entanto, que os números não corroboram essa história simplista. Os mariscos e
braquiópodes não apresentam a interação negativa minuciosa que o mecanismo das cunhas exige. Na
verdade, a sua comunhão varia ao longo de todo o tempo geológico: períodos com um número acima
da média de mariscos são fartos também em braquiópodes; estágios privados de braquiópodes
também são fracos em mariscos. Além disso, cada grupo parece seguir o seu próprio curso distinto
em tempos normais, alheios ao destino e à história do outro: os mariscos aumentam lentamente a cada
espaço de tempo normal; os braquiópodes se mantêm.
A velha história representa uma inferência falsa a partir de um fato básico: os braquiópodes
realmente dominam as faunas primitivas ao passo que os mariscos são tão abundantes hoje que Ho Jo
consegue alimentar uma nação inteira com os seus pés panados. Verificamos, então, que a suposta
“substituição” de braquiópodes por mariscos não ocorre por meio de expulsão competitiva gradual,
mas simplesmente testemunha reações diferentes à maior de todas as mortandades em massa — a
extinção do permiano (quando com toda probabilidade pereceram mais de 90% das espécies). Os
braquiópodes de fato levaram na cabeça (metafórica); os mariscos mal perceberam a catástrofe.
Assim, os mariscos passaram à frente dos braquiópodes nesse momento geológico e nunca mais
cederam a nova posição. O padrão fóssil testemunha reações independentes a uma extinção em massa
única, não a expulsão gradual e o triunfo de anatomias superiores. Os mariscos e braquiópodes agem
como navios passando pela noite, mas que se comportam de modos diferentes na grande tempestade.
Em resumo, se as extinções em massa são tão frequentes, tão profundas em seus efeitos, e
causadas fundamentalmente por um agente tão catastrófico em impacto e tão completamente além do
poder de antecipação dos organismos, então a história da vida tem uma aleatoriedade irredutível ou
opera através de novas e desconhecidas regras de perturbações, não (como sempre pensamos) por
meio de leis que regulam a competição previsível em tempos normais.
Todo este fermento pode perturbar as nossas esperanças e os nossos desejos de encontrar uma
gratificação ou alívio na natureza, mas ele presenteia a paleontologia com o mais rico campo
possível para o pensamento e a ação. Pois nós, estudiosos da história da vida, somos os guardiães
dos dados que podem solucionar essas questões fundamentais. A teoria cíclica da extinção
catastrófica deixa os paleontólogos no assento do motorista, com uma década de trabalho instigante
pela frente. Raramente os cientistas têm o privilégio de tratar de questões tão fundamentais de um
modo novo e proveitoso.
Não posso, neste contexto, apresentar um programa técnico de trabalho palcontológico, mas
considere-se apenas três questões que exigem alteração e que são suscetíveis de resolução a partir
do registro fóssil:
1. Quantos dos 26 milhões de anos entre catástrofes são necessários para que a vida recupere a
sua antiga riqueza (em número de espécies e complexidade ecológica de comunidades)? Se a maior
parte do tempo transcorre em períodos de recuperação, então os modelos competitivos devem deixar
de funcionar (já que requerem um mundo pleno para a metáfora das cunhas) e gatilhos externos
devem impelir a história da vida.
2. Os padrões de quem morre e de quem sobrevive a uma catástrofe são coerentes com remoções
do campo da vida puramente aleatórias? Se a aleatoriedade não funcionar, as regularidades da
extinção em massa testemunham regras diferentes das que governam a ordem dos tempos normais
entre catástrofes? Sob um modelo aleatório ou de “regras diferentes”, a esperança darwiniana de
fácil extrapolação de eventos em pequena escala (que podem ser estudados diretamente) para o
grande panorama geológico fracassa, e temos de reconhecer o caráter distintivo que a extinção em
massa confere à história da vida.
3. Por que as extinções cíclicas são tão diferentes no que se refere à força (uma que varre mais
de 90% das espécies, outras que se elevam tão pouco acima dos níveis de fundo que necessitamos
dos dados refinados de Sepkoski para reconhecê-los)? Alguns entusiastas da hipótese dos cometas,
na onda de aplicação excessiva que acompanha a maioria das novas ideias, estão tentando explicar
tudo por meio do impacto. Se perturbações da nuvem de Oort arremessam bilhões de cometas em
direção aos planetas, apenas um punhado deles atingirá a Terra — às vezes mais, às vezes menos.
Grandes extinções significam mais cometas; pequenas extinções, menos cometas. Mas isso não pode
ser tão mecanicamente simples. Compilamos um século de dados sobre correlações de eventos
terrestres com extinções em massa (muitas, por exemplo, são acompanhadas por declínio nos níveis
do mar); também sabemos que várias extinções foram precedidas por declínios longos, graduais e
simultâneos em vários grupos. Costumávamos achar que esses correlatos terrestres explicariam as
extinções. Suspeito que precisamos de uma perspectiva inversa, mas uma que ainda leve em conta os
dados terrestres. Os correlatos terrestres provavelmente são, não as causas, mas os principais
reguladores do rigor. Quando os cometas atingem uma biosfera enfraquecida por outros motivos,
seguem-se extinções atipicamente grandes. A maior de todas as extinções ocorreu numa Terra com
todos os continentes fundidos num único, Pangea. Eu costumava achar que Pangea era a causa
principal (ver ensaio 16 em Darwin e os grandes enigmas da vida); agora acho que foi o palco para
o rigor máximo.
Para encerrar essas explosões universais com uma lamúria pessoal, permita-me fazer a minha
pequena sugestão aos colegas astrônomos que estão empreendendo a boa busca. Se Talia, a deusa do
bom humor, sorrir-lhes e vocês encontrarem a estrela companheira do Sol, por favor, não a batizem
(como pretendem) com o nome da sua colega Nêmesis. Nêmesis é a personificação da ira justificada.
Ela ataca os vaidosos e poderosos, e trabalha por causa definida (punir Narciso, com o seu fardo de
inextinguível vaidade). Ela representa tudo o que o nosso parecer sobre a extinção em massa está
lutando para substituir — causas previsíveis, deterministas, que afligem aqueles que o merecem. Ela
também colocaria mais uma figura ocidental num céu universal. Um membro do nossos sistema solar
não pode homenagear as tradições de outra cultura?
As extinções em massa não são invariavelmente destrutivas na história da vida. Elas representam
também uma fonte de criação, sobretudo se o segundo parecer, de gatilhos externos, possuir validade,
e a Rainha Vermelha da competição interna não conduzir a vida inexoravelmente. A extinção em
massa pode ser a fonte principal e indispensável de importantes mudanças e deslocamentos na
história da vida. A destruição e a criação estão entrelaçadas numa dialética de interação. Além disso,
a extinção em massa é provavelmente cega às primorosas adaptações desenvolvidas para meios
ambientes prévios de épocas normais. Ela ataca aleatoriamente ou de acordo com regras que
transcendem os planos e os propósitos de qualquer vítima. Não podemos batizar a potencial
companheira do Sol com o nome de uma figura que incorpora essas características centrais de
criatividade na destruição e “neutralidade” para com as lutas evolutivas das criaturas nos tempos
normais precedentes?
Shiva, o deus hindu da destruição, forma uma tríade indissolúvel com Brahma, o criador, e
Vishnu, o preservador. Todos estão entrelaçados em um — uma trindade de uma diferente ordem —
porque toda a atividade reflete a sua interpretação. A. Parthasarathy escreve no seu Symbo/ism of
Hindu Gods and Rituais-. “Todos os três poderes são manifestos em todos os tempos. Eles são
inseparáveis. Criação e destruição são como dois lados de uma moeda. ... A manhã morre para dar a
luz à tarde. A tarde morre quando nasce a noite. Nesta cadeia de nascimento e morte, o dia é
mantido” — assim como os equilíbrios da história da vida originam-se de recuperações criativas que
sucedem destruições gigantescas.
Shiva é apresentado muitas vezes, e de modo belíssimo, na forma de Nataraja, a dança cósmica.
Ele segura numa das mãos a chama da destruição, e em outra (tem quatro ao todo) o damaru, um
tambor que regula o ritmo da dança e simboliza a criação. Ele se move dentro de um círculo de fogo
— o ciclo cósmico — mantido por uma interação de destruição e criação, batendo um ritmo tão
regular quanto o de qualquer mecanismo de colisões de cometas. “Nesse processo perpétuo de
criação e destruição”, escreve Parthasarathy, “o universo é mantido.” Ao contrário de Nêmesis,
Shiva não ataca alvos específicos com motivo ou como punição. Em vez disso, o seu rosto plácido
testemunha a tranquilidade e a serenidade absolutas de um processo neutro, que não é dirigida a
ninguém, mas que é responsável pela conservação da ordem do nosso mundo.

A maioria das ideias “quentes” acabam por se revelar erradas. Só posso esperar que eu não
venha a ser lembrado como o homem que lutou por um nome para o inexistente (certamente pior que
uma lua para os vis). Alguns riscos valem a pena. Se Talia sorrir, e Shiva existir, pense o que isso
significará para a minha adorada ciência da paleontologia. Trabalhamos há tanto tempo sob o ônus do
tédio e do enfado. Somos os guardiães da história, mas somos muitas vezes retratados como
insensatos filatelistas de pedras; especialistas em cantos insignificantes do espaço, do tempo e da
taxonomia; fornecedores de nomes tão arcanos como Pharkidonotus percarinatus em enormes orgias
de detalhes irrelevantes. Os editores da principal publicação científica da Grã-Bretanha escreveram
sobre nós em 1969: “Os cientistas em geral podem ser desculpados por presumirem que a maioria
dos geólogos são paleontólogos e que a maioria dos paleontólogos tiveram como trabalho da sua
vida delimitar uma milha quadrada com estacas”.
Os tempos vêm mudando há mais de uma década, mas Shiva coroaria a nossa transformação. Que
apoteose para uma ciência anteriormente “enfadonha” — ser a fonte e o ímpeto, por meio da
descoberta do ciclo de 26 milhões de anos, para a maior revisão da cosmologia (pelo menos a do
nosso cantinho dos céus) desde Galileu.
Bibliografia

Agassiz, L. 1862. Contributions to the natural history of the United States, vol. 4. Boston.
Altick, R. D. 1978. The shows of London. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Alvarez, L. W. 1982. “Experimental evidence that an asteroid impact led to the extinction of many
species 65 million years ago”. Proceedings of the National Academy of Sciences 80: 627-42.
Alvarez, L. W.; W. Alvarez; F. Asaro; e H. V. Michel. 1980. “Extraterrestrial cause for the
Cretaceous-Tertiary extinction”. Science 208: 1095-1108.
Alvarez, W., e R. A. Muller. 1984. “Evidence from crater ages for periodic impacts on the earth”.
Nature 308: 718-20.
Anônimo. 1969. “What will happen to geology”. Nature 221: 903.
Barnes, C. W. 1980. Earth, time and life. Nova York: John Wiley.
Bateson, G. 1979. Mind and nature. Nova York: E. P. Dutton.
Beadle, G. W. 1980. “The ancestry of corn”. Scientific American, janeiro, pp. 112-19.
Bigelow, R. P. 1900. “The anatomy and development of Cassiopea xama- chana”. Memoirs Boston
Society of Natural History 5: 191-236.
Briggs, D. E. G.; E. N. K. Clarkson; e R. J. Aldridge. 1983. “The conodont animal”. Lethaia 16: 1-4.
Buckland, W. 1823. Reliquiae diluvianae; or, observations on the organic remains contained in caves,
fissures, and diluvial gravel, and on other geological phenomena attesting the action of a universal
deluge. Londres: John Murray.
Buckland, W. 1836 (edição de 1841). Geology and mineralogy considered with reference to natural
theology. Filadélfia: Lea e Blanchard.
Buffon, G. L. 1828. Oeuvres complètes de Buffon. Editado por M. A. Richard. Vol. 28. Paris:
Baudouin.
Burchfield, J. D. 1975. Lord Kelvin and the age of the earth. Nova York: Science History
Publications.
Buskirk, R. E.; C. Frohlich; e K. G. Ross, 1984. “The natural selection of sexual cannibalism”.
American Naturalist 123: 617-25.
Colbert, E. H.; R. B. Cowles; e C. M. Bogert. 1946. “Temperature tolerances in the American
alligator and their bearing on the habits, evolution, and extinction of the dinosaurs”. Bulletin of the
American Museum of Natural History 86: 327-74.
Coon, C. 1962. The origin of races. Nova York: A. A. Knopf.
Cuvier, G. 1817. “Extrait d’observations faites sur le cadavre d’une femme connue à Paris et à
Londres sous le nom de Vénus hottentotte”. Mémoires du Muséum d’Histoire Naturelle 3: 259-74.
Darwin, C. 1859. On the origin of species. Londres: John Murray.
Darwin, C. 1871. The descent of man and selection in relation to sex. Londres: John Murray.
Davis, M.; P. Hut; e R. A. Muller, 1984. “Extinction of species by periodic comet showers”. Nature
308: 715-17.
Dobzhansky, T.; F. J. Ayala; G. L. Stebbins; e J. W. Valentine. 1977. Evolution. São Francisco: W. H.
Freeman.
Dyson, F. 1979. Disturbing the universe. Nova York: Harper e Row.
Ehrlich, P. R.; C. Sagan; D. Kennedy; e W. O. Roberts. 1984. The cold and the dark. The world after
nuclear war. Nova York: W. W. Norton.
Eiseley, L. 1958. Darwin’s century. Nova York: Doubleday.
Garrett, P., e S. J. Gould. 1984. “Geology of New Providence Island, Bahamas”. Geological Society
of America Bulletin 95: 209-20.
Goldschmidt, R. 1940 (reimpresso em 1982 com prefácio de S. J. Gould). The material basis of
evolution. New Haven: Yale University Press.
Gosse, P. H. 1857. Omphalos: An attempt to untie the geological knot. Londres: John Van Voorst.
Gould, S. J. 1977. Ever since Darwin. Nova York: W. W. Norton.
Gould, S. J. 1977. Ontogeny and phytogeny. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University
Press.
Gould, S. J. 1980. The panda’s thumb. Nova York: W. W. Norton.
Gould. S. J. 1981. The mismeasure of man. Nova York: W. W. Norton.
Gould, S. J. 1983. Hen’s teeth and horse’s toes. Nova York: W. W. Norton.
Gould, S. J., e C. B. Calloway. 1980. “Clams and brachiopods — ships that pass in the night”.
Paleobiology 6: 383-96.
Gould, S. J., e D. S. Woodruff. 1978. “Natural history of Cerion. VIII: Little Bahama Bank — a
revision based on genetics, morphometries, and geographic distribution”. Bulletin of the Museum of
Comparative Zoology 148: 371-415.
Grew, N. 1681. Musaeum regalis societatis, or a catalogue and description of the natural and
artificial rarities belonging to the Royal Society and preserved at Greshan Colledge, whereunto is
subjoyned the comparative anatomy of stomachs and guts. Londres: Thomas Malthus.
Guenther, M. 1980. “The changing Western image of the Bushmen”. Pai- deuma 26: 123-40.
Haeckel, E. H. 1869. Über Arbeitstheiling in Natur undMenschenleben (On the division of labor in
nature and human life). Berlim.
Haeckel, E. H. 1888. “Report on the Siphonopharae collected by HMS Challenger during the years
1873-1876. Voyage of HMS Challenger”, Zoology, vol. 28.
Hearnshaw, L. S. 1979. Cyril Burt, psychologist. Londres: Hodder and Stoughton.
Hoagland, K. E. 1978. “Protandry and the evolution of environmentally- mediated sex change: A
study of the Molusca”. Malacologia 17: 365-91.
Howard, L. O. 1886. “The excessive voracity of the female Mantis”. Science 8: 326.
Huxley, T. H. 1849. The oceanic Hydrozoa observed during the voyage of HMS “Rattlesnake” in the
years 1846-1850. Londres: The Ray Society.
Huxley, T. H. 1863. Evidence as to man’s place in nature. Londres: Williams e Norgate.
litis. H. H. 1983. “From teosinte to maize: The catastrophic sexual transmutation”. Science 222: 886-
94.
Jenkin, P. M. 1957. “The filter feeding and food of flamingoes (Phoenicop- teri)”. Philosophical
Transactions of the Royal Society of London, Series B. 240: 401-93.
Jensen, A. R. 1969. “How much can we boost IQ and scholastic achievement”. Harvard Educational
Review 33: 1-123.
Just, E. E. 1912. “The relation of the first cleavage plane to the entrance point of the sperm”.
Biological Bulletin 22: 239-52.
Just, E. E. 1933. “Cortical cytoplasm and evolution”. American Naturalist 67: 20-29.
Just, E. E. 1939. The biology of the cell surface. Philadelphia: P. Blakiston’s Son.
Just, E. E. 1940. “Unsolved problems of general biology”. Physiological Zoology 13: 123-42.
Kamin, L. J 1974. The science and politics of IQ. Potomac, MD: Lawrence Erlbaum Associates.
Keeton, W. T. 1980. Biological science. Nova York: W. W. Norton.
Kinsey, A. C. 1930. The gall wasp genus Cynips: A study in the origin of species. Indiana University
Studies, vol. 16, 577 pp.
Kinsey, A. C. 1936. The origin of higher categories in Cynips. Indiana University Publications,
Science Series N? 4, 334 pp.
Kinsey, A. C.; W. B. Pomeroy; e C. E. Martin. 1948. Sexual behavior in the human male. Filadélfia:
W. B. Saunders.
Kinsey, A. C.; W. B. Pomeroy; C. E. Martin; e P. H. Gebhard. 1953. Sexual behavior in the human
female. Philadelphia: W. B. Saunders.
Lack, D. 1947. Darwin’s finches: An essay on the general biological theory of evolution. Cambridge,
Inglaterra: Cambridge University Press.
Lamarck, J. B. 1809 (reproduzido em 1984). Zoological philosophy. Chicago: University of Chicago
Press. (Usei o original francês, portanto a redação pode ser diferente.)
Lewontin, R. C. 1982. Human diversity. Nova York Scientific American Library.
Linnaeus, C. 1758 (reproduzido em fac-símile em 1956). Systema naturae. Regnum animate.
Inglaterra: British Museum (Natural History).
Lovejoy, A. 1936. The great chain of being. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Lyell, C. 1830-1833. Principles of geology. Londres: John Murray.
Manning, K. R. 1983. Black Apollo of science: The life of Ernest Everett Just. Nova York: Oxford
University Press.
Maupertuis, P. (publicado anonimamente). 1745. Venus physique. 194 pp.
Mayer, A. G. 1910. Medusae of the world. Vol. 3. Publicações do Carnegie Institute of Washington,
n? 109.
Mayr, E. 1982. The growth of biological thought. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Montagu, A. 1943. Ed ward Tyson, M. D., F.R.S. 1650-1708, and the rise of human and comparative
anatomy in England. Memoirs of the American Philosophical Society, vol. 20, 488 pp.
Montagu, A. 1945. “Intelligence of northern Negroes and southern whites in the First World War”.
American Journal of Psychology 58: 161-88.
Morton, S. G. 1839. Crania americana. Philadelphia: John Pennington.
Oken, L. 1847. Elements of physiophilosophy (tradução de A. Tulk of Oken’s Lehrbuch der
Naturphilosophie). Londres: Ray Society.
Ornstein, L. 1982. “A biologist looks of the numbers”. Physics Today, março, pp. 27-31.
Parthasarathy, A. 1983. The symbolism of Hindu gods and rituals. Bombay: Shailesh Printers.
Perkins, H. F. 1908. “Note on the occurrence of Cassiopea xamachana and Polyclonia frondosa at the
Tortugas”. Papers from the Tortugas Laboratories 1: 150-55.
Policansky, D. 1981. “Sex choice and the size advantage model in jack-in- the-pulpit (Arisaema
triphyllum)”. Proceedings of the National Academy of Sciences IS: 1306-08.
Polis, G. A., e R. D. Farley. 1979.“Behavior and ecology of mating in the cannibalistic scorpion,
Paruroctonus mesaensis Stahnke (Scorpionida: Vaejovidae)”. Journal of Arachnology 1: 33-46.
Purcell, J. E. 1980. “Influence of siphonophore behavior upon their natural diets: Evidence for
aggressive mimicry”. Science 209: 1045-47.
Raup, D. M., e J. J. Sepkoski, Jr. 1984. “Periodicity of extintions in the geologic past”. Proceedings
of the National Academy of Sciences 81: 801-05.
Reichler, J. L. 1981. Fabulous baseball facts, feats and figures. Nova York: Collier.
Reichler, J. L. 1982. The baseball encyclopedia. Nova York: MacMillan.
Roeder, K. D. 1935. “An experimental analysis of the sexual behavior of the praying mantis (Mantis
religiosa L.)”. Biological Bulletin 69: 203-20.
Ross, K., e R. L. Smith. 1979. “Aspects of the courtship behavior of the black widow spider”,
Laterodectus hesperus (Araneae: Theridiidae), with evidence for the existence of a contact sex
pheromone”. Journal of Arach- nology 7: 69-77.
Sagan, C. 1983. ‘‘Nuclear war and climatic catastrophe: Some policy implications”. Foreign Affairs,
Inverno 1983/84, pp. 257-92.
Schrodinger, E. 1944. What is life? Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press.
Seilacher, A. 1984. “Late Precambrian and early Cambrian Metazoa: Pre- servational or real
extinctions”. In Patterns of change in Earth evolution', ed. H. D. Holland e A. R. Trendall, pp. 159-68.
Berlim: Springer Verlag.
Sepkoski, J. J.; R. K. Bambach; D. M. Raup; em J. W. Valentine. 1981. “Phanerozoic marine diversity
and the fossil record”. Nature 293: 435.
Serres, E. R. A. 1833. “Recherches d’anatomie transcendante et pathéologique. Théorie des
formations et des déformations organiques, appliquée à l’anatomie de Ritta Christina, et de la
duplicité monstrueuse”. Mémoires de l’Académie Royale des Sciences 11: 583-895.
Shapiro, D. Y. 1981. “Sequence of coloration changes during sex reversal in the tropical marine fish
Anthias squamipinnis”. Bulletin of Marine Sciences 31: 383-98.
Siegel, R., citado por J. Greenberg. 1983. “Natural highs in natural habitats”. Science News, 5 de
novembro, pp. 300-01.
Simpson, G. G. 1964. “The nonprevalence of humanoids”. In This view of life, Ensaio 13, pp. 253-
71. Nova York; Harcourt, Brace e World.
Sterba, G. 1973. Freshwater fishes of the world. Hong Kong TFH Publications, 2 vols.
Sulloway, F. J. 1982. “Darwin and his finches: The evolution of a legend”. Journal of the History of
Biology 15: 1-53.
Sulloway, F. J. 1982. “Darwin’s conversion: The Beagle voyage and its aftermath”. Journal of the
History of Biology 15; 325-96.
Swainson, W. 1835. On the natural history and classification of quadrupeds. Londres. Longman, Rees,
Orme, Brown, Green e Longman.
Thomson, W. (após Lord Kelvin). 1866. “The “doctrine of uniformity” in geology briefly refuted”.
Proceedings of the Royal Society of Edinburgh 5: 512-13.
Tipler, F. J. 1981. “Extraterrestrial intelligent beings do not exist”. Physics Today, abril, pp. 9, 70-71.
Tipler, F. J. 1982. “We are alone in our galaxy”. New Scientist 96 (7 de outubro), pp. 33-35.
Tyson, E. 1699. Orang-Outang, sive Homo sylvestris; or, the anatomy of a pygmie compared with that
of a monkey, an ape, and a man. Londres. Thomas Bennet.
Van Valen, L. 1974. “A new evolutionary law”. Evolutionary Theory 1: 1-30.
Wallace, A. R. 1870. “The measurement of geological time”. Nature 1: 399-401, 452-55.
Wallace, A. R. 1903. Man’s place in the universe: A study of the results of scientific research in
relation to the unity or plurality of worlds. Nova York: McClure Phillips and Company.
Wells, W. C. 1818. “Account of a female of the white race of mankind, part of whose skin resembles
that of a Negro”. In Two Essays: One upon single vision with two eyes, the other on dew. Londres:
Archibald Constable and Company.
White, C. 1799. An account of the regular gradation in man, and in different animals and vegetables.
Londres: C. Dilly.
Whitmire, D. P., e A. A. Jackson IV. 1984. “Are periodic mass extinctions driven by a distant solar
companion?” Nature 308: 713-15.
Cromosete
Gráfica e editora Ltda.
Impressão d acabamento
Rua Uhiand, 307 - Vila Ema
03283-000 - São Paulo - SP
Tel/Fax (011) 6104-117
Email: adm@aomcnrie.cam.br

You might also like