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A consciência de Abraão.

Excerto de Lotufo Jr., Z. (2007) “Bible and Obedience. To Whom?” in Ellens, J. H. (org.)
“Text and Community”, Sheffield: Sheffield Phoenix Press, Vol. 2, pp. 58-81.

O episódio do quase sacrifício de Isaac tem lugar privilegiado sempre que se


reflete sobre a questão da obediência a Deus. A interpretação tradicional e conservadora
[De certa forma acompanhando Tiago 2.21], apresenta a passagem como prova da fé do
patriarca; sua obediência teria sido testada por Deus e ele passou na prova. A versão da
Bíblia que tenho em mãos, tradução de Almeida Revista e Atualizada – Bíblia de
Estudo, acrescenta a seguinte nota explicativa para Gn 22.1-19: “Abraão se mostra
disposto a cumprir essa ordem divina, e por se haver mantido fiel no momento da prova
suprema, Abraão se tornou o modelo de fé e de obediência à palavra do SENHOR.”
Naturalmente, tem sido uma grande dificuldade explicar que esse modelo de fé e de
obediência não deve ser seguido, ou seja, na verdade, não serve de modelo para
ninguém.
O problema das diferentes vozes falando através da consciência coloca-se aqui com
agudeza. Em sua exegese do texto, depois de registrar que o sacrifício humano era
prática comum entre os cananitas em meio aos quais vivia, Walter Russell Bowie
escreve que Abraão
[V]ia as pessoas ao seu redor oferecendo seus filhos para mostrar sua fé e obediência
a falsos deuses. Apesar do tormento que isso representava para o seu amor humano, ele
não podia deixar de ouvir uma voz interior perguntando por que ele não devia fazero
mesmo e, uma vez que esse pensamento parecia pressionar sua consciência, ele
acreditava que era a voz de Deus. O clímax da história é a revelação de que o que a
voz de Deus acabaria por dizer era algo completamente diferente do que Abraão, em
sua agonia inicial, havia imaginado. [BOWIE, W.R., (1952). Exposition of The Book
of Genesis in Interpreter’s Bible, Nasville: Abingdon-Cokesbury, Vol. I., p. 643.]
Bowie não discute um ponto que me parece crucial: se Abraão prontificou-se a
sacrificar Isaac pensando ouvir a voz de Deus, mas uma voz que, falando a sua
consciência provinha de um “Deus de fora” -- o que poderia ser identificado porque era
a esse Deus que os que estavam à sua volta ouviam e a idéia de que a Deus agradavam
os sacrifícios chegara-lhe por meio de seus vizinhos – terá também a ordem para não
matar o filho vindo de fora? Porque se este for o caso, se Abraão é um mero cumpridor
de ordens, não vejo nele nenhum valor moral. Pessoas assim, além de facilmente
manipuláveis, são perigosas porque não costumam recuar no cumprimento do que lhes é
solicitado pelos superiores. [Estudada pelo já clássico experimento de Stanley Milgran,
a obediência cega à autoridade é um problema que se manifesta a todo o momento,
sobretudo em ambientes militares, revelando como é fácil para certos indivíduos que, de
resto, são bons vizinhos e bons chefes de família, cometer atrocidades quando aqueles
que ele vê como autoridades lhes ordenam que o façam. [Veja-se MILGRAN, S.,
(1974). Obedience to Authority: An Experimental View. New York: HarperCollins.]
Em seu La Fe de Abraham y el Edipo Occidental, [HINKELAMMERT, F. J.,
(1991). La Fe de Abraham y el Edipo OccidentalSan Jose, Costa Rica: Departamento
Ecuménico de Investigaciones.] Franz Hinkelammert mantém a idéia de que Deus
está provando Abraão, mas inverte, com relação à interpretação tradicional, o
significado de sair-se bem no teste. Para Hinkelammert “[U]ma leitura que leve em
conta o contexto, teria que chegar ao resultado de que a fé de Abraão fica comprovada
pelo fato de que ele rechaça o sacrifício de seu filho.” [Op. cit., p. 106.] Analisando
outras passagens na Bíblia, como aquelas em que Deus ordena a Davi que faça o senso
do povo israelita (II Sam. 24.1) e, depois o recrimina por tê-lo feito (II Cr. 21.7-8), esse
autor conclui que Deus espera de suas criaturas que demonstrem maturidade, coragem e
compaixão suficientes para se rebelar contra suas ordens, propositadamente iníquas.
Hinkelammert asssim se refere quanto à prova de Abraão:
Neste caso, a prova consiste em algo que deveria ser rechaçado para ser
aprovado. Deus exige o sacrifício de Isaac como prova. Se Abraão efetivamente o
sacrifica, perde a prova e se revela um homem sem fé. Um homem que faz o que todos
fazem, que cumpre a lei que exige esse sacrifício. Seria um homem do seu tempo. Ao
renunciar ao sacrifício e rechaçá-lo, ele se transforma em um homem de fé frente à lei
vigente. Ao fazer o que ninguém faz, ele é o homem da fé para todos os seus
descendentes, de todos os tempos. Aparece o Deus vivente dos vivos, ao qual entrega o
filho através do ato de não sacrificá-lo. [Idem.]
A idéia de que Deus espera que o ser humano revele coragem e compaixão a
ponto de antepor-se a ele, está presente também no pensamento do rabino Harold
Kushner conforme ele expõe em seu pequeno e excelente livro Quando Tudo Não É o
Bastante [KUSHNER, H. S., (1990). Quando Tudo Não É o Bastante. São Paulo:
Nobel]. Imaginando uma conversa entre o Eclesiastes e Deus em que o primeiro se
queixa de que obedeceu fielmente às ordens de Deus e, mesmo assim, continua se
sentindo insatisfeito com a vida:
O Eclesiastes, ao final de sua fase religiosa, bem pode ter dito a Deus: “Que
mais o Senhor quer de mim? Humilhei-me, dediquei ao Senhor a mais cega obediência,
fiz tudo o que o Senhor mandou. Por que, então, o Senhor me nega o sentimento de
inteireza, aquela promessa de eternidade que estive procurando?” E Deus bem pode
ter respondido: “Que prazer você acha que eu posso obter com sua humilhação? Você
acha que Eu sou tão inseguro que preciso vê-lo rebaixado para me sentir grandioso?
Eu gostaria que as pessoas parassem de repetir o que disse à espécie humana em sua
infância e ouvissem o que lhes digo hoje. Das crianças, e das crianças em espírito,
espero a obediência. Mas, vinda de você, a ‘obediência cega’ é só um outro nome para
o fracasso em agir como adulto e assumir a responsabilidade pela própria vida. Quer
se sentir íntegro e completo? Quer sentir que finalmente aprendeu a viver? Então pare
de dizer que ‘só fiz o que o Senhor me mandou’ e comece a dizer: ‘Quer o Senhor goste
ou não, pensei muito e é isto que considero certo’.” [Op. cit., p. 74.]
Não resta dúvida de que superar a obediência cega e imatura é um passo dos
mais importantes para o crescimento psicológico e espiritual e Kushner o coloca muito
bem nessa bela passagem. O que talvez precise ser acrescentado é que, ao optar pelo
que considera certo, a pessoa está, sem que normalmente tenha disso plena consciência,
conciliando sua capacidade de livre escolha com a obediência à voz interna de Deus, a
qual pode ser considerada ao mesmo tempo, uma manifestação do mais íntimo do seu
próprio ser.
A meu ver, Abraão só pode ser visto com o “Pai da fé” se a história do
sacrifício de Isaac for entendida como paradigma de um momento decisivo, pelo
qual todos aqueles que querem de fato obedecer a Deus precisam passar, embora
felizmente não de maneira tão dramática, no qual superamos – ou não - todas as forças
que nos levam a obedecer ao “Deus de fora” para obedecer à voz interior de Deus,
falando à nossa consciência. [Já escrevi sobre isso em outro trabalho: LOTUFO JR., Z.
& MARTINS, J. C., (2004). Revenge and Religion. in ELLENS, J. H. (Edit.),. The
Destructive Power of Religion. Westpoint, CT: Praeger, Vol. 2, pp.131-153.]
Em nenhum outro lugar encontro esse momento decisivo exposto de forma tão
adequada quanto na passagem em que Mark Twain descreve o conflito que enfrenta o
garoto Huck Finn quando se vê diante das alternativas, ambas terríveis para ele, de
denunciar Jim, o escravo fugido – e condenar o amigo a uma vida de maus-tratos – ou
de omitir-se e, como acreditava em decorrência dos ensinamentos que recebera na
Escola Dominical, pagar por seu pecado nas chamas do Inferno. Não é difícil imaginar a
aflição por que passa o menino: por um lado, tem bem presente tanto as várias
demonstrações de amizade e carinho que já lhe dera o amigo quanto a perspectiva de
como seria a situação dele se vendido para senhores cruéis; por outro, entende que sua
propensão para livrar o companheiro decorre de más inclinações de sua natureza;
acredita, pois aprendera na igreja, que deixar de denunciar um escravo fugido significa
quebra do mandamento “não roubarás” e teria por conseqüência a perdição eterna.
Decidido a escrever a carta com a denúncia, sente-se aliviado. Mas o alívio dura pouco;
recorda-se dos bons momentos em companhia de Jim e chega a uma decisão final:
“Eu procurava suavizar as coisas apresentando-as sob uma luz que me favorecesse,
dizendo a mim mesmo que havia sido educado na maldade e, por isso, ninguém podia
me censurar muito; mas havia uma voz dentro de mim que insistia: ‘Por que não foi à
Escola Dominical? Se você a tivesse frequentado, ter-lhe-iam ensinado que as pessoas
que agem como você agiu com relação a esse negro, ardem eternamente no inferno.’
Este pensamento me deu um calafrio. Estava já quase resolvido a orar e a me esforçar
para deixar de ser o tipo de menino que eu era e passar a ser alguém melhor. Assim, me
ajoelhei. Mas não me ocorriam palavra para orar. Por que não me ocorriam? Era
inútil procurar ocultar o fato de Deus. E, também, de mim mesmo. Compreendia
perfeitamente porque não me vinham as palavras. Era porque meu coração não
procedia honradamente, não procedia de forma limpa, porque jogava trapaceando. Por
fora, eu renunciava a continuar pecando; mas lá no meu íntimo, me apegava ao maior
de todos os pecados. Eu me esforçava para fazer que minha boca dissesse que eu agiria
de forma correta e limpa escrevendo à proprietária do negro e contando-lhe onde este
estava; mas, no mais profundo de meu coração, sabia que isso era mentira, e Ele
também o sabia. O que descobri então é que não se pode orar mentindo.
Estava desconcertado com tudo isso até não poder mais. Não sabia o que fazer.
Finalmente, veio-me uma idéia. ‘Vou escrever uma carta - disse a mim mesmo - depois
verei se consigo orar. Foi espantoso como todo aquele peso me saiu de cima; senti-me
leve como uma pena e minha preocupação desapareceu. Peguei papel e lápis, sentei-me
cheio de alegria e de emoção e escrevi:
‘Senhorita Watson: O negro Jim que fugiu se encontra aqui, duas milhas abaixo de
Pikesville, e quem está com ele é o Sr. Phelps. Este o entregará em troca da
recompensa.”
Pela primeira vez em toda a minha vida, senti minha consciência tranquila e limpa de
pecado; compreendi que já podia orar. Não o fiz imediatamente mas, deixando de lado
o papel, comecei a pensar..., comecei a pensar que havia sido uma sorte que as coisas
tivessem acontecido daquela maneira e de como estive muito perto de me perder e de ir
para o inferno. E continuei pensando. Cheguei a repassar em meu pensamento toda a
viagem que havia feito rio abaixo; Jim estava a todo o momento diante de meus olhos:
de dia e de noite, algumas vezes à luz da lua, outras entre tempestades, enquanto
flutuávamos arrastados pela corrente, conversando, cantando e dando risada. Não sei
bem o que acontecia, mas a verdade é que não conseguia descobrir nenhum motivo que
me indispusesse com Jim, muito pelo contrário. Via-o dobrando sua guarda e
encarregando-se da minha, sem me despertar, para que eu pudesse continuar
dormindo; via-o transbordante de alegria quando eu subi na balsa na noite da neblina,
e quando fui buscá-lo na ilhota do pântano, naquela região da vingança entre as duas
famílias, e em outros momentos parecidos. Como ele procurava me agradar, me dizia
palavras carinhosas, fazia por mim tudo que lhe passava pela cabeça, e como era
sempre bondoso. Me lembrei, finalmente, aquele dia em que o salvei dizendo que a
bordo de nossa balsa havia doentes de varíola. Como ele ficou agradecido, dizendo que
eu era o melhor amigo que o velho Jim jamais tivera no mundo, e também o único que
lhe restara. Nesse instante minha vista deu com o papel que eu acabara de escrever.
Minha situação era difícil. Agarrei o papel e fiquei com ele na mão. Eu tremia; tinha
que decidir para sempre entre duas coisas e estava perfeitamente consciente disso.
Meditei um momento, segurando a respiração. Disse para mim mesmo em seguida:
‘Pois bem; nesse caso, irei para o inferno.’ E fiz o papel em pedacinhos.
Pensamento terrível e palavras terríveis; mas eu as disse. E continuei firme em minha
decisão, sequer cogitando em me corrigir. Afastei da cabeça todo aquele assunto e
disse para mim mesmo que reiniciaria minha vida de pecado, que parecia ser a que me
cabia, uma vez que havia sido criado nela e em nenhuma outra. Para começar, iria dar
um jeito de outra vez roubar Jim, tirando-o da escravidão; se me desse na telha fazer
alguma coisa pior, faria também; se tinha entrado na dança, e entrado para valer, uma
má ação a mais ou a menos, não ia fazer diferença.”
Mark Twain, “As Aventuras de Huckleberry Finn” [Twain, M.. The Adventures of
Huckeberry Finn, Cap. 31. http://www.online-
literature.com/twain/huckleberry_finn/31/. Accessedo em 15/02/. Tradução minha.]
Parece-me notável o paralelo entre Abraão e Huck: para obedecer ao que
acreditavam ser a vontade de Deus – do “Deus de fora”, precisavam sacrificar alguém a
quem amavam. Como acontece com outros personagens importantes, notadamente
Paulo, a Bíblia não entra em pormenores sobre o inevitável conflito que se passava no
interior deles antes dos momentos decisivos; no caso de Huck, esse conflito está
descrito com maestria. Tanto Abraão—se minha interpretação está correta—quanto
Huck acreditam estar desobedecendo a Deus quando, de fato, estão ouvindo a voz dele
falando a suas consciências. Ambos necessitam de compaixão e coragem para chegar à
decisão final de obedecer a suas consciências, com isso desobedecendo ao “Deus de
fora”. Quanto a Huck, nada sabemos sobre os rescaldos do episódio; Abraão,
aparentemente, termina por perceber a quem, de fato, havia obedecido ao decidir não
sacrificar o filho.

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