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“Eu não vejo a determinação quidativa a partir do objeto, ao contrário, eu vejo sua determinação,
por assim dizer, 'em redor'5. Eu preciso ver para além do conteúdo quidativo e me ater apenas a que
o objeto é dado e apreendido num modo de colocação [ou de atitude]. Assim a formalização surge
a partir do sentido de remissão da própria relação pura de colocação, e não do 'conteúdo quidativo
em geral'6”.
3
Fenomenologia da Vida Religiosa, GA 60, p. 58 e seguintes; Vozes, p. 54 e seguintes.
4
Tanto Bezug quanto Einstellung oscilam nestes trechos entre uma acepção mais hipostasiada e outra mais
performativa. Esta ambiguidade é o solo em que Heidegger está discutindo com a tradição filosófica que
tomou a atitude intencional como estruturas mentais subsistentes, e da qual vai se afastar ao propor que estas
estruturas são elaboradas tardiamente em relação à implementação originária destes modos de acesso, cujo
resgate ele pretende empreender fazendo uso da indicação formal.
5
Uma tradução assumidamente livre que proponho para este difícil trecho: “Ich sehe nicht die
Wasbestimmtheit aus dem Gegenstand heraus, sondern ich sehe ihm seine Bestimmtheit gewissermaßen
»an«.” GA 60, p. 58.
6
“Ich muß vom Wasgehalt wegsehen und nur darauf sehen, daß der Gegenstand ein gegebener,
einstellungsmäßig erfaßter ist. So entspringt die Formalisierung aus dein Bezugssinn des reinen
Einstellungsbezugs selbst, nicht etwa aus dem »Wasgehalt überhaupt«.” Idem.
Com isso pode se concluir que a formalização trata justamente dos modos de acesso ao
ente intramundano que Heidegger pretendia ter um horizonte mais apropriado de interpretação
na indicação formal, e que por Einstellung toma numa acepção mais performativa a relação
intencional que neste período considera sob o termo “ter”, e em ST sob os termos “comportar-
se perante a” e “compreender”. Acontece que a formalização ainda é um teorização, porque
ela é guiada pelo mesmo ideal de universalidade da generalização, e assim é possível se
propor teorias lógico-formais e ontologias formais 7. A mesma expectativa de se apreender os
aspectos mais gerais das coisas, de modo a organizá-las em esferas, ou regiões, sob conceitos
reais, permite que se proponha esferas, ou regiões, sob conceitos de segunda ordem, quer
dizer, conceitos que organizam os modos de compreensão dos conceitos reais de primeira
ordem.
Formal aqui, portanto, diz respeito ao sentido relacional ou de remissão deste modo
performativo de colocação, que não é o sentido em que se acessa as determinações reais
apuradas nesta colocação. Se tomarmos “sentido” na acepção de ST, ele é o próprio quadro
em que se organiza este modo de acesso, ou seja, é o próprio modo de colocação
satisfatoriamente articulado. Dizer que algo tem sentido, é dizer que algo está configurado de
modo a ser compreensível, ou seja, interpretado como algo (ST, 151). Convém reter isso de
modo mais claro. Há o sentido em que tematizamos o ente intramundano, um quadro de
compreensão ou perspectiva a partir do qual apuramos determinações genéricas das coisas.
Compreendemos um certo ente em termos de água, a partir do que apuramos que a água está
fria, fervida, boa para se beber etc. Mas na formalização se quer abordar este próprio quadro
ou perspectiva em que algo se dá a compreensão. É preciso, portanto, um arcabouço de
sentido diverso, ao que parece reflexivo, que se volte não para o objeto, mas para a própria
atitude de remissão em que qualquer objeto se dê, o que tradicionalmente a tradição propôs
como a relação intencional:
7
Idem, GA 60, p. 59.
medida em que ganha forma numa categoria de objeto a que uma região corresponde8.”
“Sob a formalização temos que compreender portanto diversas coisas: determinação de algo como
objeto, atribuição à categoria formal objetiva, a qual por sua vez não é originária mas apenas
representa o dar forma de uma remissão. Tarefa de dar forma à multiplicidade dos sentidos de
remissão. (…) Através deste dar forma a partir do sentido de remissão, as categorias formais
possibilitam a realização de operações matemáticas. (…) Teoria do ontológico-formal (mathesis
universalis) a partir do sentido da própria possibilidade de remissão9”.
“Pois já se pensa na “Ontologia Formal” algo que ganhou forma objetivamente. Num sentido lato,
a “região formal” também é um “domínio material”; também é algo que contém matéria10.”
Heidegger precisa tornar claro este sentido mais fundamental de “formal”, para poder
propor que suas indicações formais não se reduzem às formalizações habituais da matemática
e da metafísica, o que ele tenta num outro curso deste período, Interpretações
8
“Die Bestimmung biegt sofort ab von der Sachhaltigkeit des Gegenstands, sie betrachtet den Gegenstand
nach der Seite hin, daß er gegeben ist; er wird bestimmt als Erfaßtes; als das, worauf der erkenntnismässige
Bezug geht. Der Sinn von »Gegenstand überhaupt« besagt lediglich: das » Worauf« des theoretischen
Einstellungsbezugs. Dieser Einstellungsbezug hat in sich eine Mannigfaltigkeit des Sinnes, die expliziert
werden kann -- und zwar so, dass diese Explikation als Bestimmtheit nach der Gegenstandssphäre hin
betrachtet werden kann. Aber der Bezugssinn ist keine Ordnung, keine Region; oder nur indirekt, sofern er
ausgeformt wird zu einer formalen Gegenstandskategorie, der eine »Region« entspricht.” GA 60, p. 61
9
“Wir haben also unter Formalisierung Verschiedenes zu verstehen: Bestimmung eines Etwas als
Gegenstand, Zuordnung zur formal gegenständlichen Kategorie, die aber ihrerseits nicht ursprünglich ist,
sondern nur die Ausformung eines Bezugs darstellt. Aufgabe der Ausformung der Mannigfaltigkeit des
Bezugssinnes. (…) Durch ihre Ausformung aus dem Bezugssinn ermöglichen die formalen Kategorien eine
Durchführung mathematischer Operationen. (...) Theorie des Formal-Ontologischen (mathesis universalis)
aus dem Sinn der Bezugsmöglichkeit selbst.” GA 60, p. 61-62
10
“Denn man meint in der »formalen Ontologie« schon ein gegenständlich Ausgeformtes. Die »formale
Region« ist im weiteren Sinne auch ein »Sachgebiet«; auch sachhaltig.” GA 60, p. 59.
Fenomenológicas de Aristóteles:
“Para apreender o sentido plenamente, é preciso uma interpretação radical do próprio 'formal': um
sentido existenciário do formal. O contrário não é 'material', conteúdo eventual. Formal também
não é o mesmo que eidético, e o uso deste termo no sentido de 'generalidade universal' é
absolutamente problemático na fenomenologia. 'Formal' fornece o 'caráter inicial' da execução da
temporalização da implementação originária do que é indicado”11.
Heidegger parece pretender que o sentido mais fundamental de “formal” deveria não
somente atentar para as possibilidades de compreensão dos entes intramundanos, em cujo
horizonte os mesmos se atualizam num conteúdo material real, mas também mostrar o
contexto histórico e existencial de instauração destas possibilidades, noutras palavras,
denunciar a contingência histórica das mesmas. Examinando mais atentamente, vê-se que
Heidegger pretende que as formalizações não são radicalmente formais justamente por
abstraírem de todo o conteúdo:
“Mas justamente porque a determinação formal é inteiramente indiferente ao conteúdo ela é fatal
para o aspecto remissional e executivo do fenômeno, já que prescreve, ou ao menos contribui para
prescrever, um sentido de remissão teórico. Ela encobre o que é relativo à execução – o que
possivelmente é ainda mais fatal – e se dirige unilateralmente para o conteúdo.”12
Heidegger não ignora que o que ele está propondo ser a filosofia não é coisa fácil de
ser concedida pela tradição filosófica que trabalha a partir de formalizações e que busca
elaborar ontologias formais. Por isto, queixa-se de um preconceito que a indicação formal
poderia evitar, o de que a filosofia deve sempre atender o mesmo ideal de universalização que
está em curso na generalização e na formalização 13. No entanto, é certo também que quem se
filia a este ideal pretende justamente evitar qualquer prejulgamento, abstraindo de qualquer
elemento que particularizasse a abordagem, sob a presunção de que o que é abordado é algo
subsistente e determinado em si mesmo independentemente do modo de se abordar e que,
tanto quanto possível, o melhor é se evitar que o que há de casuístico em cada modo de
abordagem vicie a apuração destas determinações. A indicação formal, portanto, não visa a
prevenir todo e qualquer julgamento, como Heidegger insinua um pouco antes 14, e tal não
poderia ser mesmo o caso em se prevalecendo a relevância da circularidade hermenêutica,
mas sim um preconceito bastante específico, que não é simplesmente a presunção de que o
modo de ser dos entes subsistentes está aberto a um acesso teórico, o que é uma suposição
legítima da ciência, mas sim a presunção de que todo o ente é um ente subsistente e, portanto,
tem seu acesso adequado numa abordagem teórica. Um tal preconceito, cuja força sistemática
e implícita ST demonstra estar radicado na acessibilidade pública do ente intramundano
aberta na impessoalidade e preservada e difundida na enunciação categórica, não pode ser
vencido tão somente com a petição de princípio de que a filosofia não é uma disciplina
teórica, justamente porque, de um modo ou de outro, a filosofia é uma disciplina que faz uso
de enunciações categóricas e não é claro que se pudesse dispensar de fazê-lo. A possibilidade
da filosofia ser uma disciplina teórica não pode ser afastada tão simplesmente enquanto não se
demonstrar que pelo menos um dos seus temas tradicionais, por exemplo, o sentido de ser,
não é um ente subsistente. No entanto, é isto que está por se demonstrar e, para tanto, é
preciso empreender-se uma especulação que já se pretende filosófica 15.
Ao que parece, Heidegger tende a pecar por algum excesso de confiança aqui, porque
espera resgatar o caráter comportamental da filosofia, e então fazer uso da sua noção de
compreender como projeção de possibilidades concretas para reivindicar uma originalidade,
no sentido de relevância e autoridade, do acesso pragmático e cotidiano em relação ao acesso
teórico. Mas isto pouco lhe aproveita, primeiro porque, com relação ao ente subsistente, esta
suposição está errada, como o próprio Heidegger terá que reconhecer tacitamente quando
considerar e reconhecer legítimas dentro do seu âmbito de projeção as presunções implícitas
no acesso científico da natureza. E em segundo lugar, porque compreender e comportar-se
13
Fenomenologia da Vida Religiosa, GA 60, p. 60; Vozes, p. 56.
14
Fenomenologia da Vida Religiosa, GA 60, p. 54; Vozes, p. 52.
15
Na verdade, Heidegger não poderá sequer excluir de antemão a possibilidade de que a filosofia se resolva
numa ciência, ou excluir que uma tal possibilidade já não se atualiza parcialmente em certos contextos, ou
mesmo que se não venha a se atualizar integralmente num futuro viável. Com os resultados de ST, poderá
apenas propor que uma tal possibilidade é imprópria, quer dizer, decaída da responsabilidade pelo projeto
histórico que projeta a própria filosofia.
captura o sentido tradicional da relação intencional e portanto inclui tanto os modos
pragmáticos quanto teóricos de acesso, e não há clareza quanto à autoridade específica de
cada um destes modos, ou seja, não sabemos ao certo que, ou em que situações, resgatar o
acesso pragmático e existencial mediante uma hermenêutica da faticidade é mais consequente
do que empreender um acesso teórico destes mesmos fenômenos para apurá-los em fatos
determinados, pelo menos não enquanto não se elucidou e assegurou um sentido de verdade
mais consequente do que o da correspondência categórica, e é muito difícil propor isso sem
uma elucidação satisfatória do modo de ser do ser-aí que por seu lado também não trivialize o
modo de ser do ente subsistente. Heidegger tem pouco espaço para sustentar seu polêmico
conceito de filosofia enquanto não assegurou de modo convincente o conceito de verdade
como desvelamento, o qual informaria a relevância filosófica específica e irredutível a
qualquer ganho epistêmico dos procedimentos hermenêuticos. Sem uma tal elucidação, o
conceito de filosofia proposto nestes textos que antecedem ST dão a falsa impressão de que
Heidegger rejeita todo e qualquer acesso teórico como impróprio em si mesmo, o que sem
dúvida favoreceu a impressão negativa que seus críticos apontaram para lhe dirigir a acusação
de irracionalismo.
Se Heidegger não pode sustentar um conceito tão forte de filosofia, qual seja, o de
uma disciplina que por princípio não é teórica, quer dizer, uma disciplina que é
eminentemente indicativo formal, ele tão pouco precisa de um tal conceito. Tudo o que seria
preciso para começar neste ponto seria supor que a filosofia é uma disciplina que, em
princípio, pode não ser teórica. Para tanto, poderia dispor de uma concepção suficientemente
econômica de filosofia, por exemplo, uma análise das presunções implícitas em certos temas
que se encontram na linguagem natural, do que encontraria facilmente um cânone na
maiêutica socrática. Na prática, é o que Heidegger empreende na analítica do ser-aí 16. Que o
prosseguimento desta análise se resolva numa resposta categórica, um enunciado
determinante de um ente subsistente, ou numa elucidação, mesmo que aporética, que deixe
em aberto o tema debatido para a responsabilidade existencial dos debatedores, ou seja,
16
Heidegger é mais consequente ao definir a filosofia momentos que sucedem ST. Por exemplo, em
Introdução a Filosofia, propõe a filosofia como transcender expresso, ao passo que qualquer ciência é
positividade e como tal tem por condição algum transcender, expresso ou inconspícuo. Podemos daí propor
uma noção de filosofia mais consequente e que pode mesmo eventualmente se orientar para o
questionamento do ser como sua possibilidade mais própria. A transcendência, a partir de ST, é uma
compreensão de ser que está em curso de modo inconspícuo na cotidianidade, a partir da qual podem ser
propostas teorizações sobre o ente que se deixa acessar em sua subsistência nesta compreensão. A filosofia,
portanto, é a retomada expressa dessa compreensão de ser em que já habitamos e dentro da qual descobrimos
os entes que podem ser objeto de conhecimento, ou seja, a elucidação das presunções implícitas na
cotidianidade, e não a teorização de outros entes a serem acrescidos aos que são descobertos a luz destas
presunções.
entregue à decisividade histórica que está por se definir como o que nos é mais próprio, é algo
que não pode ser decretado de antemão mas precisa ser mostrado no curso da própria análise.
Acontece que, para prosseguir a partir daqui, Heidegger precisaria de uma concepção
de linguagem bastante ampla, diferente daquelas que a filosofia até o seu tempo fazia uso, e
que compartilhavam em sua maioria de uma ênfase exagerada na função enunciativa
categorial. Do contrário, toda análise conceitual acabaria parecendo, de antemão, a
elucidação de um significado que remeteria a um objeto, e a filosofia analítica da linguagem
de inspiração fregeana é farta de exemplos desse tipo de preconceito, pelos menos em seus
primórdios. O esboço para uma nova concepção de linguagem, que servisse às pretensões
hermenêuticas da analítica existencial, ao que me parece, só começa a ser delineado na
primeira parte de ST, invertendo-se a prioridade que a filosofia tradicionalmente atribuía à
linguagem categórica em desfavor da linguagem natural, e mostrando-se que o teor histórico e
singular desta última desafia o preconceito metafísico-epistêmico, abrindo-se por fim a
expectativa de que a interpretação de outras práticas discursivas seria relevante para se
implementar o projeto de uma ontologia fundamental, uma possibilidade que depois, acredito,
Heidegger vai dar prosseguimento no seu interesse pela poesia e pela chamada história do ser.
Mas para o intérprete que tem a disposição uma tal concepção mais abrangente da relevância
filosófica das diversas funções discursivas em uso na linguagem, fica a tarefa de repensar se a
indicação formal é um mal explicado método epistêmico sui generis e proposto ad hoc apenas
para os fins da analítica existencial. Uma vez que se conclua pela implausibilidade desta
hipótese, restaria então decidir se ao reivindicar o caráter indicativo formal de suas próprias
considerações Heidegger estaria sendo bem sucedido em introduzir em filosofia recursos
discursivos próprios de jogos de linguagem não epistêmicos, tais como a arte, a poesia e a
oratória, ou se estaria apenas pondo em ação um esforço de elucidação das presunções
implícitas nestas práticas discursivas mencionadas.
Bibliografia:
HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2006, 19ª edição.
REIS, R. R. Ilusão e indicação formal nos conceitos filosóficos. In: Revista Integração -
Ensino Pesquisa Extensão, Universidade São Judas Tadeu, ano X, n. 37, 2004, p. 171.
http://www.usjt.br/prppg/revista/integracao_37.php
STREETER, R. Heidegger's formal indication: A question of method in Being and Time. In:
Man ahd World, V. 30, p. 413-430, 1997.