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Reparar brechas
a relação entre as artes poéticas de
Sophia de Mello Breyner Andresen
e Adília Lopes e a tradição moderna
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310636/CB
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Março de 2007
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Sofia Maria de Sousa Silva
REPARAR BRECHAS:
a relação entre as artes poéticas de Sophia de Mello
Breyner Andresen e Adília Lopes e a tradição moderna
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310636/CB
________________________________________
Profa. Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
_______________________________________________
Prof. Eduardo Jardim de Moraes
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
___________________________________________
Prof. Paulo Fernando Henriques Britto
Departamento de Letras – PUC-Rio
___________________________________________
Profa. Ida Maria Santos Ferreira Alves
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas – UFF
_______________________________________________
Profa. Celia de Moraes Rego Pedrosa
Universidade Federal Fluminense – UFF
___________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Ficha Catalográfica
CDD: 800
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310636/CB
E para o Eduardo.
Agradecimentos
Palavras-chave
Modernidade. Função da poesia. Herança.
Abstract
freedom of poetry with a social role for it? On trying to find a solution for this
problem, their works reveal surprising similarities. This thesis studies the
connections between this two writers, as well as the significant differences
between their works, which are usually associated to the history of poetry in the
20th century. Sophia and Adília have a relationship with the tradition of modernity
that is simultaneously close and distant.
Keywords
Modernity. The role of poetry. Heritage.
Sumário
1. Introdução 10
4. Diferenças 96
4.1. A impessoalidade e o auto-retrato 96
4.2. O amor e a falta dele 106
5. Conclusão 115
7. Anexos 135
7.1. Poesia e realidade, por Sophia de Mello Breyner Andresen 135
7.2. Hölderlin ou o lugar do poeta, por Sophia de Mello Breyner
Andresen 140
7.3. Luís de Camões: ensombramento e descobrimento, por Sophia
de Mello Breyner Andresen 144
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Este estudo faz uma leitura comparada da poesia de duas autoras, distantes de
quarenta anos em suas estréias: Sophia de Mello Breyner Andresen e Adília Lopes. O
primeiro livro de Sophia, Poesia, vem a lume em 1944. O primeiro livro de Adília,
Um jogo bastante perigoso, é publicado em 1985. O que nos leva a aproximá-las é,
no entanto, um problema da modernidade artística com que Sophia se depara e que,
meio século mais tarde, voltará a surgir na obra de Adília: o lugar da poesia na cidade
dos homens. Em contextos diferentes, a resposta de cada uma dessas autoras à
questão tem particularidades que merecem ser analisadas a uma luz mais forte.
Há certas frases de Sophia de Mello Breyner Andresen que nunca passam
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despercebidas a qualquer reflexão sobre a sua obra. Ao escrever sobre a arte grega e
descrever os princípios que a regem — princípios que Sophia tomará como
referências para a sua própria produção —, ela diz: “Pois o Kouros é didáctico: ensina
um projecto moral. O corpo educado por uma cultura que é cultura do corpo e do
pensamento ensina uma atitude no lugar e no tempo da vida.”1 De maneira menos
oblíqua, porque tratando da poesia em geral e da sua própria poesia, num discurso
depois transformado em “Arte poética III”, e posteriormente publicado na abertura de
sua obra poética reunida, encontra-se a afirmativa: “E é por isso que a poesia é uma
moral.”2
Quando iniciamos a pesquisa de mestrado, eram precisamente essas as frases
que nos interrogavam e nos instigavam a descobrir de que moral falava Sophia, em
que consistia o projeto moral que a sua arte ensinava, que referências estavam ali
combinadas e reunidas numa síntese própria. Na impossibilidade de sistematizar o
pensamento ético que se mostra na obra andreseniana, o caminho encontrado foi a
leitura comparada com dois filósofos cujo rastro se fazia sentir nos poemas, contos e
ensaios. A resposta que se encontrou é que a obra de Sophia se encaminha para a
compreensão do “tudo-um”, de Heráclito, e, ao fazê-lo, cumpre um percurso de
1
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica. 3.ed. Lisboa: Caminho, 1992, p. 45.
2
ANDRESEN, S. M. B. Livro sexto. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 73. Col. Obra poética.
11
aceitação da finitude. Daí a afirmativa radical com que se inicia o primeiro capítulo
da dissertação: “A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen é uma tentativa de
viver neste mundo.”
Hoje a atenção desloca-se para a outra parte das frases de Sophia. A questão
agora não é mais que moral, mas que poesia; melhor dizendo: como a poesia pode ser
uma moral? É como se agora se tratasse não de um projeto moral, mas
especificamente de um projeto poético que se quer projeto moral. Num depoimento à
revista Relâmpago sobre Sophia, Herberto Helder compreende o problema nos
seguintes termos: “Sabe-se agora que ética significa o rigor de escrever estética.”3 A
pergunta que se formula é: o que é esta poesia que é também uma moral? Qual é,
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segundo a obra de Sophia, o papel da poesia? Como pode ela influenciar a vida e o
destino dos outros homens? 4 Qual pode ser a sua função?
A função social da arte e do artista é um problema sobre o qual muitos autores
se têm debruçado. A modernidade pós-romântica é prolífica em abordagens dessa
questão. Quando o poeta se torna também crítico, há muitas vezes uma reflexão
teórica a acompanhar a produção artística. Nesse contexto, talvez a reflexão
andreseniana, expressa nas frases citadas, tenha um sabor de anacronismo num tempo
em que se separaram por completo (?) as esferas da arte, da moral e da ciência.
Talvez ela pareça um recuo àquilo com que artistas como Edgar Allan Poe,
Baudelaire, Flaubert e, no contexto português, Fernando Pessoa e Mário de Sá-
Carneiro, mais pugnaram: a idéia de que um poema deveria inculcar uma moral. Mas
antes de ceder a essa oposição simples, é preciso lembrar que a presença intertextual
de Fernando Pessoa é incontornável na obra andreseniana, ela mesma filiada a uma
tradição de modernidade.
Mais uma vez à procura de examinar as coordenadas da obra de Sophia,
procuraremos agora orientar-nos por critérios que lhe são intrínsecos e não tanto pela
aproximação com outros autores. O que se deseja fazer portanto é uma leitura do que
3
HELDER, H. “Paradiso, um pouco.”. Relâmpago, n. 9, outubro de 2001, p. 98.
4
ANDRESEN, S. M. B. Livro sexto. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 74. Col. Obra poética.
12
vida.”5 Numa entrevista anterior, declarara: “Para mim, o ético e o estético são a cara
e a coroa, as duas faces, de uma mesma moeda.”6
Antes de mais, as duas declarações impressionam pela coragem. Não pode
passar despercebido o fato de que cerzir o texto com a vida é praticamente o oposto
do que fez Fernando Pessoa, ao cumprir uma quase epopéia de separação do sujeito
empírico e do sujeito lírico.7 Nesse ponto, os termos usados por Adília aproximam-se
dos de Sophia — também ela em grande medida uma “opositora” de Fernando Pessoa
—, quando afirmou que o poema “é uma realidade vivida, integra-se no tempo
vivido”8. Mas Adília leva adiante a cerzidura do texto com a vida, propondo uma
identificação do sujeito lírico com o sujeito empírico. Diz o primeiro poema de
Florbela Espanca espanca: “Este livro / foi escrito / por mim”9.
A expressão “de intervenção” também é digna de exame, pois soa fortemente a
projeto neo-realista, com o conseqüente objetivo de que a literatura esteja a serviço de
uma transformação social imediata. Mas, se a declaração pode sugerir esse caminho,
a leitura dos poemas de Adília nos afasta de qualquer aproximação com o neo-
5
LOPES, A. A mulher-a-dias. Lisboa: & etc., 2002, p. 6.
6
LOPES, A. Entrevista à revista Inimigo Rumor, n. 10, Rio de Janeiro, 7 letras, 2001.
7
Lembre-se o trecho da carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a gênese dos heterônimos: “[...] em tudo
isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve.” (PESSOA, F. Obra em prosa.
Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 97.)
8
ANDRESEN, S. M. B. Livro sexto. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 74. Col. Obra poética.
9
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 399.
13
realismo. Em Adília, tudo se mistura. São seus personagens o mau poeta, o vendedor
de Bíblias, as solteironas, Marianna Alcoforado, Diderot, Ricardo Reis e muitos
outros. Numa obra marcada pela abundância de citações comparecem com o mesmo
à-vontade Camões, cantigas trovadorescas, Agatha Christie e Cesário Verde apenas
para mencionar alguns.
Cotejando os poemas e as declarações, surge a suspeita de que há algo
semelhante ao “projecto moral” andreseniano a subjazer à poesia “de intervenção”
adiliana. A par dos inúmeros versos de Sophia por esta citados, o que parece
aproximar as duas autoras é uma certa atitude e um certo entendimento do papel da
poesia no lugar e no tempo em que vivemos. É certo que, ao ler os poemas de Adília,
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a maior parte das vezes nos sentiremos muitos distantes do universo composto pelos
substantivos mar, praia, cal, casa, jardim, e pelos adjetivos limpo, liso, branco, justo,
claro que dão volume e consistência à obra de Sophia. Pela mão de Adília,
depararemos com um vocabulário variadíssimo que pode incluir xampu Johnson’s,
papelotes, caixa de soutiens, baratas, aeroporto, e entre os adjetivos desfeito, infeliz,
fake, humilhante.
Essa pequena amostra do vocabulário de cada uma já transmite a impressão de
que com Sophia estaríamos num mundo de substantivos concretos (um dos elogios
que João Cabral de Melo Neto lhe teria feito), é certo, mas um mundo concreto que
seria, por assim dizer, mais elevado. Adília, ao incorporar os objetos de consumo do
cotidiano e as ações banais — como tomar o pequeno almoço, consultar um médico,
assistir a filmes ou manter relações sexuais — parece deslocar e ampliar um projeto
de atenção à imanência. Esta a hipótese que colocamos.
Além de estar atenta ao mundo concreto — sem contudo perder de vista a
dimensão do divino, assim como Sophia —, a poesia de Adília, ao incorporar todos
esses elementos tidos como baixos, aprofunda um questionamento sobre o que deve
ser a poesia, de que ela pode tratar, qual é o sentido de fazer poesia “em tempos de
penúria”.
Portanto, é esta Adília que nos interessa. A questão é saber como se constrói a
sua poesia nessa dupla filiação: a tradição da poesia moderna e a obra de Sophia.
14
A Sophia desse tempo [o início da década de cinqüenta] não dispõe ainda das V
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Artes poéticas, os volumes são Poesia, Dia do mar e Coral [...]. Estava-se ainda à
espera de Ponge, Melo Neto ou mesmo do grecismo imagista de H. D., Hilda
Doolittle [...].11
10
HELDER, H. “Paradiso, um pouco.”. Relâmpago, n. 9, outubro de 2001, p. 99.
11
HELDER, H. “Paradiso, um pouco.”. Relâmpago, n. 9, outubro de 2001, p. 98.
12
“A analogia concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima. A
analogia não é só uma sintaxe cósmica, é também uma prosódia. Se o universo é um texto ou um
tecido de signos, a rotação desses signos é regida pelo ritmo. O mundo é um poema; o poema por
sua vez, é um mundo de ritmos e símbolos.” PAZ, O. “Analogia e ironia”. In: ———. Os filhos do
barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 89.
16
Ao leitor da obra de Sophia não chega a surpreender que esta poesia seja
capaz de compartilhar princípios e de dialogar com poéticas tão diversas como a
de um Friedrich Hölderlin, por exemplo, e a de um João Cabral de Melo Neto. É
uma marca sua reunir e harmonizar contradições, no esforço de fazer uma túnica
inconsútil, e por esta marca haveremos de passar diversas vezes ao longo deste
trabalho.
Vejamos então primeiramente como se dá a aproximação entre o
pensamento de Sophia e a matriz romântica.13 Em muitos dos seus textos de
caráter mais teórico, ela afirma ser o compromisso da poesia traduzir a ordem
imanente do mundo. Nas cinco artes poéticas, nos ensaios sobre a escultura grega,
sobre Camões e sobre Hölderlin, a tarefa de tornar presente um esplendor que se
esconde na natureza é tema recorrente. Num texto que por algum tempo levou o
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13
Em sua tese de doutorado, Maria João Borges inicia a parte dedicada à obra de Sophia com uma
frase que resume essa ligação: “A poesia de Sophia formula-se como um voto, a perseguição duma
intensidade que se descobre nas coisas e que a palavra recupera, devolvendo-nos, à maneira da
poesia de vocação sagrada de Hölderlin, a nossa essencialidade, entretecida por essa ligação ao
real, exterior a nós e ao poema, mas que este capta e consubstancia.” BORGES, M. J. Em torno do
conceito de “poesia pura”: Cinatti, Sophia e Eugénio de Andrade – A poesia como investidura,
iniciação e respiração. Lisboa, 1996. Monografia (tese de doutoramento). Faculdade de Letras,
Universidade de Lisboa.
14
LOPES, S. R. “Escutar, nomear, fazer paisagens”. In: ———. Exercícios de aproximação.
Lisboa: Vendaval, 2003, p. 49-75.
15
“[...] quando na nossa tradição de pensamento falamos de ‘real’ ou de ‘presença’ é quase sempre
para identificar presença com presentificação, redução de uma coisa ao seu estar presente, à sua
objectividade. [...] Ver objectivamente não é porém o que aí é descrito. Ver objectivamente será
ver as coisas como objectos — reduzidas aos seus limites, fixas, determinadas do exterior pelo
sujeito que vê. É, na linguagem heideggeriana, apagar a diferença ontológica, reduzir o ser ao ente.
[...] O que temos aí descrito apresenta-se como uma cena de caça. Mas com uma particularidade:
aquilo que é visado é impossível de o ser enquanto tal, pois, entendendo-se que real é tudo o que
existe, ele engloba aquele que o visa. Visa-se assim directamente o impossível, o que está fora de
qualquer possibilidade de apresentação.” LOPES, S. R. “Escutar, nomear, fazer paisagens”. In: —
——. Exercícios de aproximação. Lisboa: Vendaval, 2003, p. 50-1. O pensamento de Silvina
Rodrigues Lopes dialoga com uma questão formulada também por Georges Bataille: “É verdade
17
tornar um homem, assim também o poema é somente algo natural que se quer
tornar obra de arte.”18 Segundo Sophia, herdando a concepção romântica, bastaria
estar atenta para ouvir o poema. O poeta seria então uma espécie de sacerdote, ou
de intérprete, encarregado de traduzir essa respiração cósmica:
Essa forma de escrever poemas, que Sophia identifica a uma herança de sua
infância, tem origem no modo como os gregos concebiam a criação poética: os
poetas e adivinhos transmitiam aos homens o que lhes havia sido revelado pelos
deuses ou pelas musas. Um verso porém marca a sua distância da Grécia: “como
que a poesia, querendo a identidade das coisas refletidas e da consciência, que as refletiu, quer o
impossível. Mas o único meio de não ser reduzido ao reflexo das coisas não é, com efeito, querer o
impossível?” (BATAILLE, G. “Baudelaire”. In: ———. A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos.
Porto Alegre: L&PM, 1989, p. 39.)
16
ANDRESEN, S. M. B. “Arte poética IV”. In: ———. Dual. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 76. Col. Obra
poética.
17
ANDRESEN, S. M. B. “Arte poética V”. In: ———. Ilhas. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 76. Col. Obra
poética.
18
SCHLEGEL, F. “Fragmento 21”, do grupo de Fragmentos críticos: Lyceum”. In: ———. O
dialeto dos fragmentos. Tradução, apresentação e notas de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras,
1997, p. 23
19
ANDRESEN, S. M. B. “Liberdade”. In: ———. O nome das coisas. Edição definitiva. Edição
de Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 38. Col.
Obra poética.
18
se os deuses o dessem” (grifo nosso). Esta poesia busca resgatar a presença dos
deuses, num tempo que sabidamente é o do exílio deles. Como Hölderlin, Sophia
se sabe poeta em tempos de indigência.
A consciência do exílio dos deuses não acarreta contudo o abandono do
terrestre nem o refúgio num mundo imaginário ou a descrença da possibilidade de
encontrar a transcendência no mundo da imanência. Existe uma ordem, princípio
incorruptível de ordenação do mundo, que a nossa civilização traiu e parte da obra
de Sophia se dedica a denunciar os modos dessa traição. O poeta busca então
surpreender os vestígios dessa ordem, refazer o caminho para o mundo dos
deuses, para a experiência da plenitude.
Essa busca se faz pela observação, pela visão, pela audição. O mundo é
visto como um texto. É o que deixa perceber o ensaio O nu na Antiguidade
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Quando na praia apanhamos uma concha aquilo que tão profundamente nos toca é
isto: a forma que temos na mão não podia ser doutra maneira. É como se na concha
estivesse escrito o pensamento do universo. Ela é verdadeiramente o fruto de um
kosmos, o fruto de um mundo ordenado, a palavra que confirma a nossa
confiança.20
20
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica, 3.ed., Lisboa, Caminho, 1992, p. 14
(grifos nossos).
21
ANDRESEN, S. M. B. “Hölderlin ou o lugar do poeta”, Lisboa, Jornal do Comércio, 30 de
dezembro de 1967.
22
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica, 3 ed. revista. Lisboa: Caminho, 1992, p.
17.
19
23
ANDRESEN, S. M. B. “Poema”. In: ———. Geografia. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 89. Col. Obra
poética.
24
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica, 3 ed. revista. Lisboa: Caminho, 1992, p.
17.
25
Ver fragmentos VII e VIII de Heráclito. In: COSTA, A. Heráclito: fragmentos contextualizados.
Tradução, apresentação e comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 198.
26
ANDRESEN, S. M. B. “Homero”. In: ———. Contos exemplares. 34 ed. Com prefácio de
António Ferreira Gomes. Porto: Figueirinhas, 2002, p. 139.
20
27
SCHLEGEL, A.W. “Leçons sur l’art et la littérature”. In: LACOUE-LABARTHE, P.; NANCY,
J.-L. L’Absolu Littéraire: Théorie de la Littérature du Romantisme Allemand. Paris: Seuil, 1978,
p. 341-368.
28
Tradução nossa.
29
ANDRESEN, S. M. B. “Musa”. In: ———. Livro sexto. Edição definitiva. Edição de Luis
Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2003, p. 16-17. Col. Obra poética. Livro sexto é a primeira obra
de Sophia em que um caráter político — e até de intervenção — ganha contornos nítidos. Os
poemas mais visivelmente comprometidos com o momento que se vivia estão agrupados sob o
título “As grades”. No entanto, a reunião de um poema como “Musa” e de um poema como “O
velho abutre” na mesma obra, apesar de em partes diferentes, vem mostrar o quanto seria
equívoco, na obra da autora, fazer uma oposição entre poemas políticos e poemas apolíticos, como
veremos adiante.
30
Em “Poesia e realidade” Sophia rejeita a palavra “absoluto” usada no fragmento de Novalis que
diz ser a poesia o “autêntico real absoluto” por ver nesta palavra um idealismo a que não quer
aderir. A sua poesia busca o concreto e não rejeita a experiência. Porém, não há como deixar de
notar que este concreto não é localizável nem identificável a um elemento tangível. O concreto na
sua poesia identifica-se com o primordial, com o primeiro, com o momento em que o concreto
21
surge. O ensaio “Hölderlin ou o lugar do poeta” fala em “leitura do gesto criador que nas coisas se
mostra”, o que ela busca então é o gesto de criação do concreto e não a coisa concreta. Não nos
parece então despropositado ver nessa busca um desejo de verdade, de encontro do puro e
absoluto.
22
Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava
[...]
31
COSTA, A. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de
Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 201.
32
ANDRESEN, S.M.B. “Espera”. In: ———. Geografia. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 36. Col. Obra
poética.
23
tende a fundir-se com o mundo, tende ao silêncio, assim como o sujeito, que tende
à morte.
2.1.2.
O diálogo com a modernidade
dado”. Em toda parte, vemos surgir um conceito de poesia como experiência vital,
como algo imanente que o poema tenta captar e traduzir.
Por outro lado, a poesia andreseniana liga-se a uma tradição propriamente
moderna quando valoriza a construção do poema (a propósito de Fernando
Pessoa, fala-se em “poema arquitectura”) e a contenção emocional, derivada de
uma poética de impessoalidade. Em “Arte poética V” diz-se: “[...] aqueles
momentos de silêncio no fundo do jardim, ensinaram-me, muito tempo mais tarde,
que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a
despersonalização.”34
Nesse ponto, uma pedra fundamental foi posta por Mallarmé, quando, em
“Crise de vers”, falava em ceder a iniciativa às palavras. Decerto a idéia de
impessoalidade já está presente no romantismo teórico alemão — o gênio
romântico é aquele que ouve o poema que está suspenso no mundo, ele é um
33
Cf. o seguinte trecho do prefácio de Paulo Quintela: “[Hölderlin] Teve da poesia uma concepção
sacral, que era filha da sua funda e essencial religiosidade perante a Natureza e a Vida. O homem,
afastado há muito da comunidade familiar dos deuses, tem de regressar a essa comunidade. O
poeta será o medianeiro, o sacerdote — mais tarde, na fase final, mesmo o profeta. Foi assim na
Grécia da sua saudade, onde ‘a poesia’ — diz ele numa carta ao editor de uma revista literária
(Briefe, p. 350) — [...] ‘em toda a sua essência, no seu entusiasmo, como na sua modéstia e
sobriedade, é um sereno serviço divino...’”. QUINTELA, P. “Prefácio à 1a edição”. In:
HÖLDERLIN, F. Poemas. Prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Relógio
D’Água, 1991 [De acordo com a 2.ed. publicada pela Atlântida em 1959.]. A publicação das
traduções de poemas hölderlinianos feitas por Quintela ocorreu na década de 1940. Sophia cita
algumas dessas traduções em “Hölderlin ou o lugar do poeta”.
34
ANDRESEN, S. M. B. Ilhas. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e
Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 76. Col. Obra poética. No capítulo 3, trataremos
da impessoalidade em Sophia, contrastando-a com a poética de Adília Lopes.
25
35
Cf. MARTELO, R. M. “Modernidade e senso comum”. In: ———. Em parte incerta: estudos
de poesia portuguesa moderna e contemporânea. Porto: Campo das Letras, 2004, p. 213-226.
36
É o que mostra Octavio Paz em Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984. Col. Logos.
37
MELO NETO, J.C. “Poesia e composição”. In: ———. Prosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1997.
26
No entanto, é preciso não esquecer que também ela valoriza algo a que
chama objetividade. E, no seu esforço de ouvir o poema todo, nada se encontra de
subjetivismo, ou de falta de atenção ao mundo em privilégio de sentimentos
próprios. Não há verdadeiramente contradição entre o poema produto do trabalho,
de Cabral, e o poema produto da perseguição do real, tal como entendido por
Sophia. E talvez não seja inútil acrescentar que Cabral afirma ser ela, na sua
geração, o maior poeta português, e dedica-lhe o “Elogio da usina e de Sofia de
Melo Breiner Andresen”38, de A educação pela pedra, onde se valoriza
precisamente o “fazer-refazer” da poesia andreseniana.
Reconhecendo porém que o fazer-refazer de Sophia não inclui turbinas, mas
apenas “algarves de sol e mar por serpentinas”, Cabral insere-a na linhagem de
poetas que trabalham e com isso identifica-a a uma concepção de poesia que ele
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O engenheiro, inspirado pela lei de economia e conduzido pelo cálculo, nos põe em
acordo com as leis do universo. Atinge a harmonia.
O arquiteto, ordenando formas, realiza uma ordem que é uma pura criação do seu
espírito; pelas formas afeta intensamente nossos sentidos, provocando emoções
plásticas pelas relações que cria, ele desperta em nós ressonâncias profundas, nos
dá a medida de uma ordem que sentimos em consonância com a ordem do mundo,
determina movimentos diversos de nosso espírito e de nossos sentimentos; é então
que sentimos a beleza.40
38
Transcrevemos aqui o poema: “1./O engenho bangüê (o rolo compressor,/ mais o monjolo, a
moela da galinha,/ e muitas moelas e moendas de poetas)/ vai unicamente numa direção: na ida./
Ele faz quando na ida ou ao desfazer/ em bagaço e caldo; ele faz o informe;/ faz-desfaz na direção
de moer a cana,/ que aí deixa; e que de mel nos moldes/ madura só, faz-se: no cristal que sabe,/ o
do mascavo, cego (de luz e corte).// 2./ Sofia vai de ida e volta (e a usina);/ ela desfaz-faz e faz-
refaz mais acima,/ e usando apenas (sem turbinas, vácuos)/ algarves de sol e mar por serpentinas,/
Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal, em cristais (os dela, de luz marinha).” MELO NETO, J.C. A
educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 7-8.
39
Não por acaso alguns dos primeiros livros de João Cabral têm epígrafes de Mallarmé e Le
Corbusier. Pedra do sono traz como epígrafe um verso do poema “Salut”, de Mallarmé, e o
volume O engenheiro se inicia com a expressão “machine à émouvoir”, de Le Corbusier.
40
LE CORBUSIER. “Roteiro”. In: ———. Por uma arquitetura. Trad. Ubijara Rebouças. 6.ed.
São Paulo: Perspectiva, 2000, p. XXIX.
27
A idéia de que pela obra de arte se pode entrar em consonância com a ordem
do mundo (e talvez mesmo a de que o mundo tem uma ordem), atingir a
harmonia, é a mesma que encontramos num pensador como Schelling e que vimos
repetida na obra de Sophia. Le Corbusier acrescenta a isso o cálculo, a geometria
e substitui a fórmula do artista que ouve o mundo pela do arquiteto que realiza
uma “pura criação do seu espírito”. Há aqui um espaço sem Deus nem deuses,
livre para que o homem faça o seu o trabalho e, nesse ponto específico, Sophia
não compactua. A sua obra compartilha da consciência moderna da textualidade,
mas recusa a condenação a viver num mundo despojado do divino.
A sua posição é tão peculiar que, ao longo dos ensaios de Le Corbusier, um
dos criadores da arquitetura moderna, surgem palavras muito familiares ao leitor
de Sophia: a geometria, a clareza, a simplicidade e uma limpidez que seria
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41
ANDRESEN, S. M. B. O nome das coisas. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de
Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 70. Col. Obra poética.
42
Cf. COELHO, E.P. “Sophia, a lírica e a lógica”. In: ———. A mecânica dos fluidos: literatura,
cinema, teoria. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.
28
vezes com hesitação, é rejeitada por Sophia, que se mantém fiel à idéia de que o
poeta é um mediador consagrado à busca da unidade.
2.2.
Adília
2.2.1.
Uma batalhação sem deuses
43
Um bom exemplo do tratamento dado pela poesia andreseniana à vida cotidiana é o poema em
prosa “Caminho da manhã”, de Livro sexto, que analisaremos no capítulo 3.
44
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins
Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. Col. Obras escolhidas, v. 3.
29
45
LOPES, A. “Nada te turbe, nada te espante”, Público, 23 de setembro de 2001. Disponível em
http://www.arlindo-correia.com/adilia_lopes_fria.html. Acesso em 15 de outubro de 2006.
30
há uma ênfase nas condições materiais que permitem a escrita semelhante à que
lhes dá Virginia Woolf em A room of one’s own (texto, aliás, citado numa “Nota
da Autora” a O regresso de Chamilly).
No texto de Adília esse caráter material está no papel, nas canetas, mas
igualmente na sua biblioteca e na sua casa. O livro de Woolf — traduzido no
Brasil por Um teto todo seu e em Portugal por Um quarto que seja seu — avança
a hipótese de que o número reduzidíssimo de mulheres escritoras até o século XIX
se deve a que até aquele momento muito poucas mulheres dispuseram de acesso à
educação, de uma renda e de um espaço próprio.
E Virginia Woolf associa o “esquecimento” das condições materiais
necessárias à produção literária à omissão dessas mesmas condições nas obras da
literatura:
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46
WOOLF, V. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004,
p. 14-15.
31
Eu vivo de uma maneira sofrida actualmente porque tenho uma doença psíquica,
posso vir a ter dificuldades de dinheiro e o mundo não está cor-de-rosa. O dia a dia
é muito sofrido.47
47
LOPES, A. Resposta à pergunta “Como se faz um poema?”. Relâmpago. n. 14, Lisboa,
Fundação Luís Miguel Nava, abril de 2004, p. 29.
32
2.2.2.
O cotidiano
O texto ressalta ainda o uso da expressão “em rabo de cavalo” por “[ser] o
quotidiano”. Como muita da poesia feita a partir da segunda metade do século
XX, e sobretudo dos anos de 1970, a obra de Adília debruça-se sobre o cotidiano
e, dando-lhe um tratamento formal, busca nele um efeito de transfiguração. Não
48
LOPES, A. Resposta à pergunta “Como se faz um poema?”. Relâmpago. n. 14, Lisboa,
Fundação Luís Miguel Nava, abril de 2004, p. 29.
33
cidade.
Se pensarmos por exemplo na Ode marítima, de Campos, vemos que é
uma grande lamentação pelo “pouco peso do homem diante do bruto peso da vida
social”, como aponta Octavio Paz.49 O personagem que contempla a entrada e
saída de navios à beira de um cais, em meio ao delírio que daí se segue, deseja
ardentemente algo que o retire da sua condição de “engenheiro, civilizado, prático
à força”. Ele imagina e sente que sua alma se destinava a algo maior que a vida
“estática, sentada, regrada e revista” que lhe coube.
Mesmo que fale da beleza de uma fatura comercial, Campos não deixa de
lamentar a sua condição de homem urbano e civilizado. É ainda Octavio Paz que
chama a atenção para o fato de que uma imagem romântica de homem em conflito
com o mundo é recuperada por muita da poesia da modernidade.
Adília aprende de Cesário e Campos a atenção ao mundo da cidade
moderna, mas parece filiar-se também a uma outra vertente do modernismo,
derivada dessa.
Entre os poetas modernos de língua portuguesa, Manuel Bandeira é um caso
excepcional. O autor de Estrela da vida inteira — que aprende decerto com
António Nobre buscar a poeticidade da fala popular —, em muitos aspectos, é um
precursor dos que escrevem a partir da segunda metade do século XX. O retorno
49
PAZ, O. “O desconhecido de si mesmo: Fernando Pessoa”. In: ———. Signos em rotação. São
Paulo: Perspectiva, 1972, p. 205. É a propósito da “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos, que Paz
faz o comentário. A apropriação aqui se baseia nos pontos de contato entre as duas odes.
34
Ruy Belo. Este último, um atento leitor de Manuel Bandeira, é uma das
influências reconhecidas por Adília. Seu primeiro livro, Aquele grande rio
Eufrates, é publicado em 1961, ano que dá curso a uma espécie de consagração do
alto modernismo. Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão e Gastão Cruz
consolidam uma poética de impessoalidade, buscam a desagregação da sintaxe e
convocam o leitor a participar da construção do sentido do texto. O seu
comprometimento político se revela numa escrita que concita o leitor a fundar
junto do texto uma nova gramática, para a língua e para a vida. A sintaxe não
pode ser a mesma porque os modos de pensar e viver não podem ser os mesmos.
A poesia do grupo de 61 fala do corpo, do erotismo, da libertação da mulher, da
guerra colonial, em meio a um profunda consciência da autonomia da arte e da sua
liberdade. A arte é livre e convoca à liberdade. Recusando a opção entre o
psicologismo de presença e o marxismo neo-realista, os poetas de 61 reatualizam
a lição moderna da liberdade da arte e consolidam uma poética de engajamento
pela forma. A poesia de Ruy Belo, contemporânea dessa e educada na mesma
tradição, emprega porém um processo diferente. Poeta igualmente engajado na
forma, Belo, em vez de investir na opacidade do texto, na exibição do complexo
jogo formal que é cada poema, disfarça-o, forjando uma espécie de transparência.
A linguagem é a de todos os dias (um poema, citado aliás por Adília, pode
50
LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. 2.ed. Lisboa: Gradiva, 1989.
35
começar com uma frase tão coloquial como “Às vezes sabes sinto-me farto”51), há
presença de biografemas, há poemas narrativos, a gramática é em geral respeitada.
Contudo, a poesia beliana revela uma pesquisa formal tão intensa como a de Luiza
Neto Jorge ou a de Gastão Cruz. As aliterações, o ritmo, o diálogo com a tradição
literária como que se escamoteiam, dando aos poemas uma impressão de
naturalidade. Fiel ao ensinamento de Bandeira, sobre quem chega a escrever
ensaios, Ruy Belo afirma: “Em poesia, como se sabe, é muito importante o
trabalho de limar, emendar, corrigir, até conquistar a naturalidade, se possível a
simplicidade, que são uma conquista e não um dado gratuito dos deuses.”52
Manuel Bandeira e Ruy Belo, ao escreverem sobre o cotidiano, não
destinam ao poeta o lugar de ser superior incompatibilizado com o meio. Mesmo
que suas obras sejam marcadas pelo páthos, não parece haver nelas o mesmo
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51
BELO, R. Todos os poemas I. 2.ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 301.
52
BELO, R. Todos os poemas I. 2.ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 245.
53
O resumo que faz Davi Arrigucci Jr. em Humildade, paixão e morte poderia ser apropriado para
falar-se da poesia de Belo como da de Adília: “ [...] o ideal da poética de Bandeira é o de uma
mescla estilística inovadora e moderna, uma vez que persegue uma elevada emoção poética
através das palavras mais simples de todo dia. Para o poeta, o alumbramento, revelação simbólica
da poesia, pode dar-se no chão do mais ‘humilde cotidiano’, de onde o poético pode ser
desentranhado, à força da depuração e condensação da linguagem, na forma simples e natural do
poema.” (ARRIGUCCI JR., D. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 15.)
36
de poemas a marcar uma genealogia: Bandeira compõe uma “Balada das três
mulheres do sabonete Araxá”, Ruy Belo é autor de “Vat 69”, e Adília dá a um
poema um título que repete o slogan do xampu Johnson’s: “No more tears”.
2.2.3.
A impossessão e a permanência do “in-dito”
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
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com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer55
despreparado para a tarefa que vai desempenhar. Sem anzol, rede ou harpão, o
peixe torna-se escorregadio e a tarefa de apanhá-lo é das mais difíceis.
Embora haja certa semelhança entre a comparação feita por Cabral e a feita
por Adília, a aproximação não se sustenta por muito tempo. O poema de Cabral
não deixa espaço para o acaso: a tarefa fica inteiramente a cargo do catador, que
arruma os grãos conforme bóiam ou não, afere o seu valor, dá-lhes uma
organização. O peixe é algo que existe indepentemente do sujeito que o pesca.
Não há como arrumar o seu movimento nem aferir a sua validade. O sujeito
encontra-se numa situação de grande incerteza. Apanhar um peixe é uma
comparação afim da “caçada no quarto penumbroso” da “Arte poética” incluída
em O búzio de Cós e outros poemas, de Sophia. O quarto onde se dá a caçada está
na penumbra, o poeta-pescador não tem instrumentos que o auxiliem. Nos dois
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casos, alguma coisa viva e movente se lhes pode escapar. Nos dois poemas, a vida
de quem caça e de quem pesca está em risco. No poema de Sophia é preciso olhar,
fitar, escutar, atentar para a caçada; no de Adília, ou morrem o peixe e quem o
pesca ou se salvam ambos. Não parecendo próxima de “Musa”, a “Arte poética”
de Um jogo bastante perigoso revela pontos de contato entre as poéticas
andreseniana e adiliana.
O “súbito falar” da musa “foge de repente”, o peixe escapa-se. Os versos
que dizem “tenho de estar atenta/ tenho medo de não chegar ao fim” ecoam um
trecho da sempre citada “Arte poética IV”: “O meu esforço é para conseguir ouvir
o ‘poema todo’ e não apenas um fragmento. Para ouvir o ‘poema todo’ é
necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não
intervenha.”
É no que diz respeito a uma não intervenção do autor que a ligação se torna
mais estreita. Sophia fala de uma musa que sopra um ditado e sua tarefa é ouvi-la.
O peixe existe na natureza, a poetisa tem de capturá-lo. Nos dois casos, o poeta é
alguém que apenas permite que o poema se diga. Não é a sua vontade nem o seu
esforço que darão vida ao ditado da musa ou ao peixe, embora haja sempre uma
luta. O sujeito da “Arte poética IV” e de “Musa” tem de despersonalizar-se até o
máximo grau possível, o sujeito de Um jogo bastante perigoso tem de lutar “corpo
a corpo”. Essa diferença caminha de par com aquela entre o “artesanato muito
38
56
ANDRESEN, S. M. B. “Epidauro 62”. In: ———. Ilhas. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 9. Col. Obra
poética.
57
Grifo nosso.
58
BERTENS, H.; FOKKEMA, D. (ed.) International Postmodernism: Theory and Literary
Practice. Amsterdam/Philadelphia: Johns Benjamins Publishing Company, 1997.
3.
Proximidades entre as duas
3.1.
Os predecessores
duas não se dá tanto num nível estilístico (no capítulo anterior, destacamos a
substituição da locução “um artesanato muito laborioso” pelo termo “stress”), mas
no entendimento sobre o que é a poesia e na insistência em dotar o fazer poético
de uma implicação ética.
Entre a maneira como Sophia compreende o problema e a maneira como
Adília o faz, os quarenta anos que as separam em suas estréias cumprem um papel
importante: Adília não tem com os grandes modernistas a mesma relação
conflituosa que Sophia, tão próxima deles que precisa criar um modo de afirmar a
sua diferença. Escrevendo já depois da consagração do modernismo, mais livre de
uma possível “angústia da influência”, Adília pode rever a maneira modernista de
articular a arte e a moral.
O lugar do poeta na cidade dos homens é tema a que Sophia dedica alguns
ensaios. Neles, recusa a atitude modernista que defende a arte dissociada por
completo da ética e da política, sem contudo afiliar-se ao neo-realismo seu
contemporâneo, que defende a arte a serviço da política. No momento em que o
faz, Sophia tem de abrir caminho por uma floresta densa. É por esse caminho que
Adília poderá caminhar livremente.
A dissociação entre a arte e uma função moral é um dos pilares sobre os
quais se ergue a modernidade estética. Esta cisão, cujas bases teóricas vêm do
final do século XVIII — mais precisamente da filosofia de Kant —, é amplamente
40
3.1.1.
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[...] Beauty is the sole legitimate province of the poem. [...] That pleasure which is
at once the most intense, the most elevating, and the most pure, is, I believe, found
in the contemplation of the beautiful.59
59
POE, E. A. “The Philosophy of Composition”. Graham’s Magazine, April 1846, p. 164.
Disponível em http://www.eapoe.org/works/essays/philcomp.htm. Acesso em 3 de novembro de
2006.
41
Todo poema, diz-se, deveria inculcar uma moral, e por esta moral é que deve ser
julgado o mérito poético do trabalho. [...] Metemos em nossas cabeças que escrever
simplesmente um poema pelo poema e confessar que tal foi o nosso desígnio seria
confessar-nos radicalmente carentes da verdadeira dignidade e força poéticas: mas
o simples fato é que, se nos permitíssemos olhar para dentro de nossas próprias
almas, descobriríamos imediatamente ali que, sob o sol, nem existe nem pode
existir qualquer trabalho mais inteiramente dignificado, mais supremamente nobre,
do que este mesmo poema, este poema per se, este poema que é um poema e nada
mais, este poema escrito por ele mesmo.60
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60
POE, E. A. “O princípio poético”. In: ———. Poemas e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Globo,
1987, p. 79.
42
[...] o artista [...] não tem senão que exercer a sua arte, curando de a exercer tão
bem como possa. Todas as outras considerações lhe devem ser alheias: e assim
cumpre o princípio da divisão do trabalho social, e cumpre-o tanto melhor quanto
menos deixar entrar para a sua arte elementos de preocupação com tudo quanto a
não seja.
[...]
*
Tampouco se deve o artista preocupar com a verdade do que descreve. É-lhe lícito
escrever um poema onde se violem todas as probabilidades — logo que, é claro, a
violação dessas probabilidades não implique diretamente uma falha na natureza do
poema, como seria, por exemplo, o anacronismo num poema histórico, o erro
psicológico num drama, etc. A verdade pertence à ciência, a moral, à vida prática.
A faculdade do espírito que trabalha na ciência é a Inteligência (Observação,
Reflexão). A faculdade que trabalha na vida ativa é a Vontade. A faculdade de que
depende a Arte é a Emoção. Não tem de comum com as outras nada [...].
61
Em Teoria da literatura, Vítor Manuel de Aguiar e Silva faz um breve estudo da fortuna
francesa das idéias de Kant: “Em França, onde as doutrinas da arte pela arte adquiriram uma
estruturação e uma importância sem precedentes, as ideias de Kant, de Schelling, de Hegel e de
outros românticos alemães acerca da autonomia da arte foram difundidas primeiramente pelos
representantes da chamada filosofia ecléctica, Cousin e Jouffroy. [...] Théophile Gautier defende as
doutrinas da arte pela arte e ataca com veemência os moralistas de recorte tradicional, os
utilitaristas modernos e os socialistas utópicos que pregavam uma finalidade moral ou social da
literatura. A arte pela arte começa a encontrar prosélitos em alguns meios românticos, [...] Flaubert
e Baudelaire advogam muitos dos seus princípios.” (SILVA, V. M. A. Teoria da literatura. 3.ed.
Coimbra: Almedina, 1979, p. 84.) De fato, no ensaio de Baudelaire sobre Théophile Gautier,
certos trechos são quase uma tradução de “O princípio poético”, de Poe (Cf. BAUDELAIRE, C.
“Théophile Gautier”. In: ———. Poesia e prosa: volume único. Ed. organizada por Ivo Barroso.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 573-592). Veja-se ainda o ensaio de T.S. Eliot intitulado
“De Poe a Valéry” (ELIOT, T.S. Ensaios escolhidos. Seleção, tradução e notas de Maria Adelaide
Ramos. Lisboa: Cotovia, 1992).
43
Quanto à má influência exercida pela Arte na vida prática, isso é um dos delírios
dos avinhados da Inteligência. A arte propaganda faz mal, porque, por ser
propaganda, é sempre má arte, e, por ser arte, é sempre má propaganda.
*
O artista não tem que se importar com o fim social da arte, ou, antes, com o papel
da arte adentro da vida social. [...] O artista tem só que fazer arte. [...] 62
62
PESSOA, F. Obra em prosa. Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 225-226. (Texto datado provavelmente de 1916.)
63
PESSOA, F. Obra em prosa. Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 428.
64
PAZ, O. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
44
arte e a ética estão presentes por exemplo nas obras de Alberto Caeiro, Ricardo
Reis e Álvaro de Campos. A produção de cada um desses heterônimos encena um
modo de relacionar os dois termos e, cada uma a seu modo, às vezes
ironicamente, “ensina uma atitude no lugar e no tempo da vida”65.
Caeiro quer educar o olhar. Opõe-se a todas as doutrinas de todos os
filósofos para substituí-las por uma “aprendizagem de desaprender”. Quer ensinar
uma relação com a natureza sem mediações. Anuncia-se como aquilo a que
Schiller chamou poeta ingênuo e propõe uma paradoxal educação para a
ingenuidade. Mas não recusa uma educação pela poesia.
Reis, segundo o princípio horaciano, quer ensinar deleitando. O tom
conselheiral, denunciado pela presença maciça de imperativos, é marca sua. Seu
estilo é um pastiche dos poetas antigos, e a sua obra parece brincar com o poder
pedagógico da arte. Os ensinamentos reisianos contrastam com os valores da sua
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época: o poema “Ouvi contar que outrora quando a Pérsia”, no período entre duas
guerras mundiais, propõe uma impassibilidade que decorre de uma autonomia e
uma liberdade impensáveis então. As odes de Reis parecem ironizar a capacidade
educativa da arte, propondo uma total passividade.
A obra de Álvaro de Campos deixa aflorar ímpetos violentos, expressa
desejos masoquistas, impulsos de destruição. Dá voz ao que o homem recalca para
poder viver em sociedade.66 É o espaço da trangressão. Faz ainda a crítica da
civilização técnica moderna, da domesticação do homem, do uso do cálculo para o
o que não pode ser calculado. A sua obra é uma espécie de anti-educação.
É certo que as atitudes ensinadas pela poesia dos heterônimos articulam arte
e ética sem submissão de uma à outra. Elas dependem do abandono da visão
tradicional desse problema, pois é antes nos termos de uma “hipermoral” que elas
se definem.67 Uma afirmativa de Bataille a propósito de Wuthering Heights [O
morro dos ventos uivantes], de Emily Brontë, poderia ser aplicada a este caso:
“Há uma vontade de ruptura com o mundo, para melhor enlaçar a vida em sua
plenitude e descobrir na criação artística o que a realidade recusa.”68 Os poemas
65
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica. 3.ed. Lisboa: Caminho, 1992, p. 45.
66
Cf. FREUD, S. O mal-estar na civilização. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro:
Imago, 1997.
67
O conceito é definido por Georges Bataille no ensaio “Emily Brontë”. In: BATAILLE, G. A
literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989, p. 11-28.
68
BATAILLE, G. “Emily Brontë” In: ———. A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto
Alegre: L&PM, 1989, p. 19.
45
de Caeiro, Reis, Campos, ou de Pessoa ele mesmo, não ensinam como bem
conduzir-se na vida, ou uma maneira apropriada de ser e estar. Eles criam
possibilidades, inventam novas formas, resistem ao que é socialmente
estabelecido.
3.1.2.
Reunir o que foi separado: Mário, Cabral
69
Cf. MORAES, E. J. “O intelectual modernista Mário de Andrade”. In: MARGATO, I.; GOMES,
R. C. (org.) O papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p. 209-219.
70
O pensamento estético de Mário de Andrade é estudado por Eduardo Jardim de Moraes em
Limites do moderno: o pensamento estético de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1999 e A morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
46
em que cada indivíduo artista vale mais que a obra a ser produzida. Para que a
liberdade do artista seja cada vez maior, a obra de arte perde em importância, em
significado social. Numa nota, diz ele:
[...] O artista prescinde das leis técnicas, não em benefício da obra-de-arte, mas de
si mesmo. É a frase de Beethoven: “não há regra que não possa ser superada em
benefício da expressão.” E não virá disto a degringolada da arte, do Romantismo
para cá? Um artista cada vez mais expressivo de si mesmo, e uma obra-de-arte
cada vez mais pessoal e inatingível ao povo?71
Uma obra de arte cada vez mais pessoal e desprovida de uma dimensão
comunicativa é também o tema de dois ensaios de João Cabral de Melo Neto: o já
citado “Poesia e composição”72 (1952) e “Da função moderna da poesia”73 (1954).
Os dois ensaios seguem aproximadamente os passos de Mário de Andrade. Assim
como o modernista, Cabral ataca o individualismo e o formalismo da arte sua
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Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra [...].
O que se espera dele, hoje, é que não se pareça a ninguém, que contribua com uma
expressão original. Por isso, ele procura realizar sua obra não com o que nele é
comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha com todos os
homens, mas com o que nele é mais íntimo e pessoal, privado, diverso de todos.74
71
ANDRADE, M. “O artista e o artesão”. In: ———. O baile das quatro artes. São Paulo:
Martins, [s.d.], p. 11.
72
MELO NETO, J.C. “Poesia e composição”. In: ———. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1997, p. 51-70.
73
MELO NETO, J.C. “Da função moderna da poesia”. In: ———. Prosa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997, p. 97-101.
74
MELO NETO, J.C. “Poesia e composição”. In: ———. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1997., p. 53.
47
elite que seja hermética.75 As alternativas mais fáceis (voltar-se para o passado,
fazer um esforço desesperado de recuperar o valor de culto da obra de arte, ou
pura e simplesmente submeter a arte à política) são, neste momento,
desconsideradas tanto por Mário de Andrade quanto por João Cabral de Melo
Neto.
3.2.
Sophia
3.2.1.
O ritmo e a justiça
O desafio com que se deparam Mário e Cabral nos anos de 1930 e 1950,
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75
Os termos hermetismo e formalismo são utilizados por Mário de Andrade e João Cabral de Melo
Neto em seus ensaios.
49
3.2.2.
O acordo com o terrestre
76
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica. 3.ed. revista. Lisboa: Caminho, 1992, p.
79.
50
77
ANDRESEN, S. M. B. O búzio de Cós e outros poemas. Edição revista. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 12. Col. Obra
poética.
51
Desse lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto antes de ouvir como
depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo esse lógos, e ainda assim
parecem inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações, tais quais
eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se
comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados como
esquecem o que fazem dormindo.79
78
ANDRESEN, S. M. B. “Caminhos da Divina Comédia”, Ler – Livros & Leitores, n. 58,
Primavera de 2003, p. 46-47.
79
COSTA, A. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de
Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 197.
80
COSTA, A. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de
Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 200.
81
COSTA, A. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de
Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 197.
82
COSTA, A. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de
Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 202.
52
[...]
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.85
83
ANDRESEN, S. M. B. “Poesia e realidade”, Colóquio – Revista de Artes e Letras, n. 8, 1960, p.
53.
84
ANDRESEN, S. M. B. Poesia. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 13. Col. Obra poética.
85
ANDRESEN, S. M. B. Poesia. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 40. Col. Obra poética.
53
Assim como nos fragmentos de Heráclito, vemos aqui a crença de que cada
indivíduo tem a possibilidade de entrar nesse acordo, já que o lógos está também
em cada um. Conseguir experimentar a união entre o ritmo interior e o ritmo
exterior, entre si mesmo e o “coração dos ritmos secretos”87, será alcançar a
unidade com o terrestre.
A tarefa específica do poeta será então estar atento a esse ritmo e traduzi-lo
no poema, cada sílaba deve estar afinada com o ritmo do universo. Se, para
Heráclito, o homem só se torna sábio se escutar o lógos, em Sophia esta tarefa é
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86
ANDRESEN, S. M. B. Poesia. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 11. Col. Obra poética.
87
ANDRESEN, S. M. B. “Apolo Musageta”. In: ———. Poesia. Edição definitiva. Edição de
Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2003, p. 18. Col. Obra poética.
54
circunstancial, biográfico, privado deve ser depurado para que se deixe falar
apenas a voz dessa ordem criadora e não a voz individual. A experiência da
unidade é comum a todos — como a descreve Heráclito no primeiro fragmento
conhecido de seu livro —, os homens vivem como se tivessem um entendimento
próprio e particular. Para falar dessa ordem que integra a ele mesmo, o poeta
precisa despojar-se de si mesmo, tal como vimos na leitura do poema “Musa”, no
capítulo 1. Ele partirá sempre da experiência pessoal, mas apenas na medida em
que a experiência pessoal é um encontro com a “presença do real” que ultrapassa
a circunstancialidade.
Vemos por que a justiça não poderia ser assimilada a um projeto político
predeterminado. Ela diz respeito a uma experiência fundadora, é preciso antes
ouvi-la para que se possa dizê-la. Até aqui, curiosamente, o conceito andreseniano
de poesia está mais próximo do de Poe que do à primeira vista se poderia
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imaginar. Poe queria libertar a poesia do seu conteúdo didático e instituir a sua
nobreza como puro objeto estético. Por não estar subordinada a um pensamento
preexistente, é por ser fiel apenas a si mesma que, para Sophia, “a poesia é uma
moral”88. A poesia não seria dirigida por uma moral social, em si mesma ela seria
uma moral. É precisamente por ser objeto estético, e não por estar subordinada a
um pensamento preexistente, por ser uma manifestação do mundo — que se crê
ordenado segundo um princípio de justiça — que Sophia acredita que a arte é uma
moral. Próximo a Poe, o conto “Homero” — que também pode ser considerado
uma arte poética — diz que “as suas palavras reuniam os restos dispersos da
alegria da terra”89. Não era esse o vislumbre que a arte deveria proporcionar?
3.2.3.
A beleza como exigência ética: a arte como lição, exemplo, projeto
de vida
88
ANDRESEN, S. M. B. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho,
2003, p. 73. Col. Obra poética.
89
ANDRESEN, S. M. B. “Homero” In: ———. Contos exemplares. 34.ed. Com prefácio de
António Ferreira Gomes. Porto: Figueirinhas, 2002, p. 139.
55
referenciais para uma intervenção mais direta. Num ensaio intitulado “Ver e usar:
arte e artesanato”90, Octavio Paz mostra que a arte moderna se erige sobre a mútua
exclusão da beleza e da utilidade. Um dogma da religião da arte sustenta que o
belo deve ser inútil. É o que vemos, por exemplo, na produção ensaística de
Pessoa. Essa exclusão é rejeitada por Sophia. Não para que a beleza venha a servir
a uma função determinada dentro duma ordem social, mas porque se entende que
“a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade
da qual ela não pode ser separada”91. No ensaio “Hölderlin ou o lugar do poeta”, é
feita essa mesma ligação entre a beleza e a verdade:
Para o poeta, pureza e beleza estão ligadas. Pois a beleza mostra a ordem, o acerto
do universo, a verdade que nos seres e nas coisas se manifesta. Na beleza lemos
algo que responde ao nosso destino, a significação do nosso estar na terra. A beleza
que está na estrutura duma flor, a beleza que está na estrutura do corpo humano, a
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beleza que está na concha que apanhamos na praia afirmam o gesto criador donde
emergem. A missão do poeta é decifrar, revelar, mostrar e invocar essa ordem.92
A beleza torna-se assim um dever moral, ela diz respeito ao destino de cada
homem, à sua convivência na terra com a natureza e com os outros homens.
Sophia recusa a separação entre a beleza, a verdade e a moral, celebrada pelas
primeiras gerações modernas, o acerto do universo concita a um acerto entre os
homens. A beleza impõe a tarefa de “construir uma cidade humana fiel à perfeição
do universo”.
Na leitura do poema “Deus escreve direito”, vimos que a harmonia
universal se transforma num parâmetro para a ação de cada indivíduo. Do mesmo
modo, ela se torna uma referência para a pólis. É essa a tônica dos textos reunidos
na antologia de “poemas de resistência” intitulada Grades. Todos falam de uma
relação com a natureza, com a ordem do mundo.
Há um chamado, há um destino a cumprir. No desejo de cada homem está
inscrito o traço da ordem cósmica. Para além de toda covardia, de todo desejo de
reconhecimento, de aceitação social ou de comodidade, o homem deve ser capaz
de ouvir a ordem dentro de si e servi-la. “Catilina”, o segundo poema da
90
PAZ, O. “Ver e usar: arte e artesanato”. In: ———. Convergências: ensaios sobre arte e
literatura. Trad. Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 45-57.
91
ANDRESEN, S. M. B. “Arte poética I”. In: ———. Geografia. Edição definitiva. Edição de
Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 93-94. Col.
Obra poética.
92
ANDRESEN, S. M. B. “Hölderlin ou o lugar do poeta”. Jornal do Comércio, 30 de dezembro de
1967, p.11.
56
antologia, fala de alguém que percebe uma correspondência entre cada coisa
vibrante no mundo e o coração a pulsar dentro de si. Haveria assim um dever de
ser fiel a si mesmo, a um princípio que se afirma dentro de si, para deste modo
“cumprir o seu destino”, submeter-se à ordem do universo, integrar-se nela
desempenhando o seu papel.
Se o concerto das estrelas convoca a uma vida plena, recusar o seu chamado
faz com que a própria harmonia universal se retraia. No “tempo em que os
homens renunciam”, em que abandonam a possibilidade que há neles de atingir a
harmonia, é como se ela mesma se perdesse: “Até o ar azul se torn[a] grades / E a
luz do sol se torn[a] impura”.93
Há portanto um duplo compromisso da poesia: uma fidelidade ao universo e
uma ligação íntima e profunda com o seu tempo. Schiller lembra que o artista
deve ser filho da sua época, mas ai dele se for o seu preferido. Nesses mesmos
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93
ANDRESEN, S. M. B. “Este é o tempo”. In: ———. Mar novo. Edição definitiva. Edição de
Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2003, p. 40. Col. Obra poética.
94
ANDRESEN, S. M. B. “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”. In: ———.
Poemas escolhidos. [s.l.]: Círculo de Leitores, [s.d.], p. 149-164.
57
100
Ver o ensaio de MARTELO, R. M. “Sophia e o fio de sílabas”. ESTUDOS EM
HOMENAGEM A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN. Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Porto, 2005, p. 57-67.
59
organização dos astros, a sílaba tem esse mesmo caráter físico, concreto, diz
respeito à organização do poema. A bissemia do adjetivo justo é assim
propositadamente explorada em “Luís de Camões: ensombramento e
descobrimento”: “Camões encontra e constrói a objectividade da língua
portuguesa. E cria a ressonância e o eco, encontra o justo peso das sílabas, o
espaço do silêncio, a articulação justa.”101
Por um lado, a importância dada ao peso das sílabas a vincula a uma
corrente textualista da literatura, por outro, a justiça universal liga-a a uma visão
romântica da poesia e, por fim, a justiça trazida para junto dos homens permite um
diálogo com a corrente dita engajada. Poderíamos dizer que a poesia é justa
porque é ajustada, porque o seu ajustamento é fiel à ordenação do universo.
Assim, somente se for livre a arte poderá traduzir a justiça imanente. É sua
liberdade que garante o seu didatismo. Schiller lembra que “Arte e ciência são
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livres de tudo o que é positivo e que foi introduzido pelas concepções dos homens
[...]”102.Sophia diz: “O poema/ É a liberdade // Um poema não se programa/
Porém a disciplina/ — sílaba por sílaba —/ O acompanha”103.
É conhecida a sua insistência na pronúncia das sílabas inteiras. Entendendo-
se que o poema traduz a ordem do mundo, pode-se pensar que retirar-lhe “sequer
um quinto de vogal”104 seria trair também essa ordem, ferir a justiça da forma.
Assim, o ensinamento de Camões dá-se num aspecto formal e num aspecto
moral, sendo ambos indissociáveis:
101
ANDRESEN, S. M. B. “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”. In: ———.
Poemas escolhidos. [s.l.]: Círculo de Leitores, [s.d.], p. 153. (Grifos nossos.)
102
SCHILLER, F. A educação estética do homem: numa série de cartas. Trad. Roberto Schwarz e
Márcio Suzuki. 4.ed. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 49.
103
ANDRESEN, S. M. B. “Liberdade”. In: ———. O nome das coisas. Edição definitiva. Edição
de Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 38. Col.
Obra poética.
104
ANDRESEN, S. M. B. “Poema de Helena Lanari”. In: ———. Geografia. Edição definitiva.
Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p.
81. Col. Obra poética.
105
ANDRESEN, S. M. B. “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”. In: ———.
Poemas escolhidos. [s.l.]: Círculo de Leitores, [s.d.], p. 164.
60
3.3.
Adília
3.3.1.
Um “ajuste de cantos”
106
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 82.
107
MARTELO, R. M. “Adília Lopes: ironista”. Scripta, v. 8, n.15, Belo Horizonte, 2° sem. 2004,
p. 106-116.
61
ANTI-NAZI
A limpeza
pode ser
pior
que a porcaria
A ordem
pode ser
a maior
desordem109
108
Cf. LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 209-210.
109
LOPES, A. César a César. Lisboa: & etc., 2003, p. 41.
62
Esse sentido político da obra de Adília parece vir-se acentuando nos últimos
livros — publicados após a reunião da Obra, em 2000 — que vêm acompanhados
de prefácios e/ou notas explicativas. Mesmo os títulos A mulher-a-dias e César a
César (dos dois volumes imediatamente seguintes à recolha de 2000) revelam
uma tomada de posição: a busca da humildade, o diálogo com o cristianismo.
Numa entrevista à revista Inimigo Rumor, em 2001, Adília Lopes faz uma
afirmação que em muito lembra certas declarações de Sophia: “Para mim, o ético
e o estético são a cara e a coroa, as duas faces, de uma mesma moeda.”110 Exceto
pelo emprego da expressão “a cara e a coroa”, que remete imediatamente para o
cotidiano mais familiar, a identificação entre o ético e o estético é exatamente a
mesma que vemos feita na obra de Sophia. Poucos anos mais tarde, num texto que
serve de prefácio ao seu livro de poemas A mulher-a-dias, Adília vai um passo
além e diz: “Meus textos são políticos, de intervenção, cerzidos com a minha
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vida.”111
Após o século XX, o uso do sintagma “textos de intervenção” vem
carregado de sentido. A associação mais imediata é com a literatura de fundo
humanista feita nas décadas de 1930 e 1940, no âmbito da resistência aos regimes
fascistas. Ao mesmo tempo, chamar um poema de “texto de intervenção” não
pode parecer mais distante da posição modernista, defensora do poema feito per
se. Torna-se necessário examinar o sentido do que diz Adília ao classificar seus
textos como “políticos, de intervenção”, no início do século XXI.
3.3.2.
“A abóbada não caiu”: Adília lê Herculano
uma humilhação, faz afirmar-se o seu valor. O poema de Adília começa por um
aviso:
A obra de arte
não é um ajuste
de contas112
112
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 286.
113
Lembre-se o texto de Eduardo Lourenço, “Da literatura como interpretação de Portugal (de
Garrett a Fernando Pessoa)” (In: LOURENÇO, E. O labirinto da saudade: psicanálise mítica do
destino português. Lisboa: Dom Quixote, 1988), no qual Alexandre Herculano é tido como
“prospector do tempo perdido de Portugal”. Seu gosto pelas narrativas de cunho histórico, segundo
o ensaísta, não se deveria a um amor pelo passado, mas a uma tentativa de nessa busca decifrar
algo que “lhe é vital para se situar como homem, cidadão e militante num presente enevoado e
oscilante”. Não escapará ao leitor de “A abóbada” ainda o paralelo entre a situação vivida pelo
personagem de Afonso Domingues e a situação de Portugal no século XIX. Em ambos os casos,
encontram-se figuras (um indivíduo e uma pátria) privadas de um poder que é concedido a um
estrangeiro. Na narrativa, Afonso Domingues é substituído por um irlandês. No século XIX,
Lourenço lembra que “Portugal é, de 1808 a 1820, um país invadido, emigrado ou subalternizado
pela presença militar ostensiva do estrangeiro”.
64
é um ajuste
de cantos
de cantos de pedra
de madeira
peças de puzzle
de cantos gregorianos
peças de píncaros
orgasmo
e organigrama
Fátima
e Aljubarrota
114
Compare-se este trecho do prefácio a A mulher-a-dias (LOPES, A. A mulher-a-dias. Lisboa: &
etc., 2002): “Os meus poemas são como puzzles — cada verso, cada palavra é uma peça.” (p. 5.)
115
Nesse ponto, não é possível esquecer que o livro A continuação do fim do mundo é composto
por poemas que, lidos seqüencialmente, contam a história de amor de Túlio e Maria Andrade. O
livro de Adília toma personagens da novela Do fim do mundo, de Nuno Bragança, que termina em
suspenso, para continuar a narrativa, pondo-lhe um fecho. É, a seu modo, um ajuste de cantos. A
relação entre as duas obras é estudada por Sara Ludovico em Do fim do mundo e da sua
continuação: práticas intertextuais em Nuno Bragança e Adília Lopes. Dissertação de mestrado
apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa,
Agosto de 2004.
65
116
Talvez também seja oportuno lembrar o fragmento de Walter Benjamin que diz “A obra de arte
é a máscara mortuária da concepção.” (BENJAMIN, W. Rua de mão única. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1994. Col. Obras
escolhidas, v. 2.
117
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 71.
118
É a idéia central do ensaio de Rosa Maria Martelo, “Adília Lopes: ironista” (Scripta, v. 8, n. 15,
Belo Horizonte, segundo semestre de 2004). Cf. ainda o ensaio de Ida Ferreira Alves “Quando
cantar é cortar a língua: a poesia de Gastão Cruz e Adília Lopes” In: DIAS, A. M.; LEAL, P. G.
(org.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.
119
Ver, p. ex., Alexandre Herculano, “A velhice” [texto publicado na revista Panorama, em 1840],
citado por Vitorino Nemésio, “Eurico: história de um livro”. In: HERCULANO, A. Eurico, o
presbítero. 37.ed. Lisboa: Bertrand, [s.d.], p. xxi-xxii.
66
120
Cf. BARRENTO, J. “Todos os meus poemas são poemas eróticos”, recensão a César a César,
Mil Folhas, Público, 22 de novembro de 2003.
121
Lembre-se o primeiro poema de Florbela Espanca espanca: “a revolução / faz-se na casa de
banho / da casa / da escola / do trabalho”. In: LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p.
401.
122
JARDIM, E. “Filosofia, política e poesia”, comunicação apresentada ao seminário “Literatura e
política”, na PUC-Rio, em 29 de novembro de 2005.
67
estaria submetida a ela, sendo arte engajada (na transformação social). O que este
pensamento parece desconsiderar é que a própria palavra pode ser o local de
encontro entre ética e estética. Um soneto de Carlos de Oliveira, poeta que esteve
ligado ao movimento neo-realista em Portugal, diz: “Rudes e breves as palavras
pesam / mais do que as lajes ou a vida, tanto, / que levantar a torre do meu canto /
é recriar o mundo pedra a pedra. […]”.123 O que o poema de A continuação do fim
do mundo rejeita é a separação entre arte e política em duas esferas, ele não rejeita
que a arte tenha em si mesma um caráter político e até intervencionista. Esta
indissociação dos dois campos é o que vemos quando, numa de suas crônicas,
Adília fala de uma mistura entre arte e moral em termos bastante inovadores:
Eu sei que pode parecer estranho, esquisito, a alguns olhos (ou ouvidos) que uma
pessoa como eu, que escreve palavras como “merda”, goste de livros em que se
escreve a palavra “Deus”. Pronuncio muito raramente palavrões e termos de calão.
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Ultimamente, já há uns anos, uso muitos palavrões nos meus poemas. Alguns
desses palavrões só os conheço por via erudita (romances de Nuno Bragança e de
Almeida Faria, por exemplo) e nem sei ao certo como se pronunciam. Sophia de
Mello Breyner Andresen escreveu “Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o
fenómeno” e, no mesmo texto, “a poesia é uma moral” (in “Arte poética III”).
A minha mãe contava que, no Colégio de S. José, nos anos 40 do século passado,
na Rua José Estêvão em Lisboa, uma freira dizia a outra freira que tinha
pronunciado “merda”: “Ó irmã, diga “arroz” que também tem cinco letras”. Pois,
mas não é a mesma coisa. Para já, não é a mesma coisa foneticamente. Não quero
que nenhuma palavra baixe a cabeça no meio da frase. Assim agrado e desagrado a
gregos e troianos. Do ponto de vista linguístico, científico, filológico, acho isto
correcto, honesto. Talvez isto seja demasiado rebuscado e complicado, um
paradoxo, mas é até, e sobretudo, do ponto de vista da moral que eu acho isto
certo.124
123
OLIVEIRA, C. “Soneto”. In: ———. Obras de Carlos de Oliveira. Lisboa: Caminho, 1992, p.
181.
124
LOPES, A. “Gn 4, 9-10”. Público, 21 de abril de 2002. Disponível em http://www.arlindo-
correia.com/180902.html. Acesso em 10 de abril de 2006.
68
Não querer “que nenhuma palavra baixe a cabeça no meio da frase”125 encontra
paralelo na procura do “justo peso das sílabas”. Por uma relação de
correspondência a justeza da forma liga-se à justiça universal. Derrida lembra que
“o poema [...] nunca se refere a si mesmo”, ele “volt[a] seus signos agudos para
fora”126. Os poemas, sem indicar-nos que caminho seguir, concitam-nos a uma
transformação.
3.3.3.
O horror ao culto do poder
valores cristãos que Sophia apenas aponta (mais nos contos que na poesia), seu
engajamento parece mais amplo e mais direto que o de Sophia. Ele não se limita à
política, estendendo-se a toda sorte de relações pessoais, à discussão sobre a
sexualidade, sobre o que é saúde e o que é doença, o que é belo e o que é feio etc.
Se em Sophia, há uma ligação com o pensamento socialista, no caso de Adília não
há corrente político-partidária a que se possa vincular a sua intervenção.
Por outro, a sua obra não parece indicar um caminho tão certo, o horizonte
não parece tão definido como em Sophia. Não há garantias, há apenas trabalho,
trabalho que precisa ser sempe refeito, perguntas sempre por formular. Não há
certeza de que haja realmente uma unidade em que o homem se possa integrar. E
nem há garantia de que o caminho para ela seja a poesia.
Adília não faz como Sophia a identificação entre a beleza e uma tarefa ética.
A pergunta repetida no último livro é uma prova disso: “Haverá uma beleza que
nos salve? Não.” Há qualquer coisa maior, que não necessariamente poderá ser
compreendida pelo campo literário e que define a ação neste campo. A questão é
estar “atenta ao sofrimento, mesmo que para isso seja preciso renunciar à arte”127.
125
A frase de Adília apropria uma formulação de Ruy Belo, que justificava o emprego de letras
minúsculas numa palavra como deus pelo “desejo de que palavra alguma levante a cabeça no meio
da frase” (BELO, R. Todos os poemas I. 2.ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 17.) A citação de
Belo, neste trecho, pode estar relacionada ainda com a reflexão deste poeta sobre as relações entre
a poesia e a moral.
126
DERRIDA, J. Che cos’è la poesia?. Trad. Osvaldo Manuel Silvestre. Coimbra: Angelus Novus,
2003. Col. Marfim.
127
Trecho da entrevista incluída em anexo.
69
Mesmo o fazer poesia é objeto de hesitação e de dúvida. Adília não está certa de
ser o mediador entre homens e deuses, nem mesmo está certa de que haja esta
mediação.
Sem contar com uma justiça universal a balizar uma forma justa, a obra de
Adília volta-se para a terra e para os homens. A partir de uma idéia de inclusão,
ela se pergunta o que é a beleza e o que é a justiça. Ao lê-la, tem-se a impressão
de que é preciso criar um novo conceito de poesia. Sua obra é, claro, marcada pela
busca da beleza — e incorpora até alguns valores clássicos como a simetria, a
proporção e a clareza —, mas de uma beleza que seja capaz de efetivamente
abrigar a diferença. E assim contraria um princípio clássico — descrito por Sophia
em seu ensaio sobre o nu — que estabelece que o artista não deve retratar “tudo
quanto não encontrou ou perdeu a plenitude da sua forma”128. Distante do mundo
dos deuses, Adília procura uma forma justa em que caibam os homens, na sua
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a revolução
não se faz
nas praças
nem nos palácios
[...]
a revolução
faz-se na casa de banho
da casa
da escola
do trabalho
a relação entre
as pessoas
deve ser uma troca
128
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica. 3.ed. revista. Lisboa: Caminho, 1992, p.
89.
129
A epígrafe de César a César, retirada de Poirot e a terceira inquilina, de Agatha Christie, diz:
“A Norma não é normal!” (LOPES, A. César a César. p. 5)
130
MAULPOIX, J.-M. “Lyrisme et identité”. Cadernos de Literatura Comparada, n. 8/9, dez.
2003, p. 77-89.
70
131
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 401.
132
Cf. a “Nota da autora” em O regresso de Chamilly (LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual,
2000, p. 463-5).
133
PESSOA, F. Poemas de Álvaro de Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 234-5.
71
fracasso, o falhanço. Antes andar aos caídos que aos subidos. Meto no mesmo saco
a inteligência porque a inteligência está muitas vezes ao serviço da estupidez.134
parágrafo do “Retrato”:
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa
mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da “Liga Internacional das Mulheres
Inúteis”, ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser
pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar
de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela,
coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo,
comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as
sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter
muito sucesso e ser muito séria.135
E a página seguinte diz: “Mónica nunca convida pessoas que possam ter
opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez.”
Opiniões inoportunas são o que se encontra em Campos e em Adília (ou em
Sophia). A obra de Adília Lopes incorpora uma vasta galeria de personagens
tradicionalmente excluídos da sociedade e mesmo da literatura: as mulheres
solitárias e as que “não têm atractivos sexuais”, as testemunhas-de-jeová que
vendem Bíblias de porta em porta, o atrasado mental, o mongolóide, o poeta que
faz versos que Diderot acha maus etc. Mas a inclusão dessas figuras não se deve a
um simples desejo de chocar. A obra de Adília desfaz preconceitos sobre a vida e
sobre a arte. Arrisca-se muitas vezes pelo território do ridículo. Quebra a
separação entre o baixo e o elevado, e amplia o gesto modernista que tornou
134
LOPES, A. César a César. Lisboa: & etc., 2003, p. 83.
135
ANDRESEN, S. M. B. Contos exemplares. 34.ed. Com prefácio de António Ferreira Gomes.
Porto: Figueirinhas, 2002, p. 117.
72
3.4.
Excurso
personagem interpretado pelo próprio diretor diz: “Os homens mais humanos não
fazem a revolução [...]. Fazem bibliotecas.” O século XX e o início do século XXI
têm-nos dado abundantes exemplos de situações em que, em nome do humano, ou
do bem comum, se incorre em autoritarismo, em brutalidade. O desejo de
construir um mundo justo, limpo, ordenado, claro e lavado pode levar à “maior
desordem”, no mais trágico sentido.
Assim, cremos que a literatura, a poesia só podem estar a serviço de si
mesmas, da sua liberdade. Só assim poderão dar alguma contribuição à
comunidade dos homens. A literatura, a poesia, será um modo de relação do
homem com a terra, com os outros homens, com o mundo em que vive, em suma.
Ela soletra o ritmo das coisas e abre ao homem a possibilidade de encontrar nele a
sua freqüência. Como lembra José Miguel Wisnik, em O som e o sentido:
“Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite
para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que o nosso ouvido
é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e
sentidos.”136 E ainda, referindo-se a uma experiência de John Cage: “mesmo
quando não ouvimos os barulhos do mundo, fechados numa cabine à prova de
136
WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 2.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, p. 17.
73
evidências e é isso que importa. Não é papel da poesia dizer-nos por onde ir, seu
papel será chamar-nos a assumir a nossa existência terrena e mostrar que há outros
caminhos, que a vida pode ser outra coisa, conduzir-nos pelo “inavegável”,
mesmo quando os sábios tiverem concluído “que só podia haver o já sabido”.141
Os modos de apontar um dedo ao coração do homem são múltiplos. Um
poeta do início do século XX precisa falar de violência, desagregar o discurso,
atingir a fleuma do “burguês lepidóptero”, como dizia Almada Negreiros. Um
poeta do início do século XXI vai no caminho de buscar um pacto com o leitor.142
Adília busca refazer certos questionamentos, que desde sempre são da poesia,
como “relação com o universo” (Sophia), mas não precisa para isso desagregar a
sintaxe. Ao contrário, parte da linguagem cotidiana, criando a partir dela um efeito
de estranhamento.
137
WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 2.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, p. 18.
138
ANDRESEN, S. M. B. Coral. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 16. Col. Obra poética.
139
JORGE, L. N. Poesia: 1960-1989. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 57.
140
Transcrevemos a primeira parte do poema em questão de Luiza Neto Jorge: “Esclarecendo que
o poema/ é um duelo agudíssimo/quero eu dizer um dedo/ agudíssimo claro/ apontado ao coração
do homem// falo/ com uma agulha de sangue/a coser-me todo o corpo/à garganta//e a esta terra
imóvel/ onde já a minha sombra/ é um traço de alarme” JORGE, L. N. “O poema”. In: ———.
Poesia: 1960-1989. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 57.
141
ANDRESEN, S. M. B. Navegações. Edição revista. Edição de Maria Andresen de Sousa
Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 16. Col. Obra poética.
142
Cf. MARTELO, R. M. “Reencontrar o leitor”. Relâmpago, n. 12, abril de 2003, p. 39-52.
74
Tem razão Sophia quando afirma que todo poeta busca uma relação justa
com a pedra, com a árvore e com o homem. O poeta busca uma espécie de nudez.
Sabemos então que “a arte pela arte” ou os grandes modernistas não faziam
exatamente aquilo que propunham. Não por defeito seu, é claro, mas porque o
momento que viviam exigia que a arte fosse libertada de qualquer função
edificante. Assim, os escritos teóricos desses artistas reivindicam a independência
da moral e da verdade, mas hoje vemos que está em jogo apenas um certo
entendimento do que seja a relação da arte com essas duas outras esferas. Como
negar que a Madame Bovary, de Flaubert, faz uma crítica de costumes? Como
ignorar que poemas como “O cisne” e “A passante”, de Baudelaire, levam a uma
reflexão sobre a vida na cidade? Como não ser interpelado por “Lisbon revisited”,
de Álvaro de Campos? Ou perturbado em nossa indiferença por uma ode como
“Ouvi contar que outrora quando a Pérsia”, de Ricardo Reis?
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prender-se a uma vontade pessoal, mas a uma vontade do lógos que se manifesta
em cada um.
É desse modo que Sophia pode escrever poemas muito belos e harmoniosos,
e pouco chocantes e ainda assim estar ligada a uma tradição de modernidade.
A poesia pode verbalmente enlouquecer aos pés da ordem estabelecida, mas ela
não pode se colocar no lugar dela. Quando o horror de uma liberdade impotente
compromete virilmente o poeta na ação política, ele abandona a poesia. Mas desde
então ele assume a responsabilidade da ordem por vir, reivindica a direção da
atividade, a atitude maior: e não podemos deixar de compreender ao vê-lo que a
existência poética, em que percebíamos a possibilidade de uma atitude soberana, é
verdadeiramente a atitude menor, que ela é apenas uma atitude de criança, apenas
um jogo gratuito. A liberdade seria a rigor um poder da criança: ela já não seria
para o adulto engajado na ordenação obrigatória da ação senão um sonho, um
desejo, uma idéia fixa.143
Não é certo que Sophia e Adília não abandonem a atitude menor, não se
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143
BATAILLE, G. “Baudelaire”. In: ———. A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto
Alegre: L&PM, 1989, p. 32.
76
uma realidade fortemente delimitada. Com habilidade, ela consegue formular uma
saída teórica para este seu duplo compromisso, mas não há garantias que de que
tenha sido bem-sucedida o tempo todo. Assim também Adília quando escreve que
“A obra de arte não é um ajuste de contas”, mas reescreve dizendo que “Poesia é/
canto/ conto/ e conta” e escreve ainda “Nada como a bondade vale”. A poesia é
livre mas só a bondade vale? Qual é então o sentido de fazer poesia?
Ao escrever simultaneamente sobre a obra poética de ambas e sobre seu
pensamento a respeito da arte e sua função, o apelo do engajamento se faz ouvir a
todo tempo. O mais fácil e tentador — sobretudo para quem escreve uma tese —
seria limar arestas e contradições e tentar organizar o pensamento das duas
autoras. Ainda mais do que isso, a questão que desafia Sophia e Adília (e não só
elas) é sem qualquer dúvida uma questão que nos desafia e por isso nos lançamos
a ela. Desejaríamos assim encontrar na obra de cada uma delas uma resposta que
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nos apaziguasse: sim, é possível fazer arte livre e dotada de sentido político, as
obras de Sophia e Adília são disso a prova.
No entanto, chegar a uma tal resposta seria sacrificar a liberdade de poeta
das duas autoras. É preciso lembrar o aviso de Bataille de que o poeta é como a
criança, não assumiu a responsabilidade nem entrou no mundo dos adultos. Seria
gravemente equivocado exigir delas a coerência com um sistema de pensamento.
Nosso desafio é então deixar falar os textos de Sophia e Adília, sem fazer com que
eles digam o que nós queremos. Devemos conceder-lhes a liberdade e não torná-
los engajados nas nossas idéias sobre a arte e a cidade. Afinal, a leitura é uma
escuta.
3.5.
Outras semelhanças
3.5.1.
Não eliminar o caos
As suas obras parecem criar uma visão do poeta como alguém capaz de
domar o caos e transformá-lo em cosmo por entrar em harmonia com as forças
secretas do universo. No primeiro caso, vimos que a poesia requer um artesanato
muito laborioso mas define-se principalmente por uma relação com o universo.
No segundo, a obra de arte é tanto peça de puzzle como peça de píncaro. É um
trabalho sobre a forma, uma construção que não se esgota em si, não perde de
vista a ordem do mundo.
Um poema de Dual fala dessa construção:
Não podendo fundir-se com o mar e com o vento, [o poeta] cria um poema onde as
palavras são simultaneamente palavras, mar e vento. Não podendo atingir a união
absoluta com a Realidade, [...] faz o poema onde o seu ser e a Realidade estão
indissoluvelmente unidos.146
144
ANDRESEN, S. M. B. “Em nome”. In: ———. Dual. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 14. Col. Obra
poética.
145
ANDRESEN, S. M. B. “Poesia e realidade”. Colóquio – Revista de Artes e Letras, n. 8, 1960,
p. 53-4.
146
ANDRESEN, S. M. B. “Poesia e realidade”. Colóquio – Revista de Artes e Letras, n. 8, 1960,
p. 53-4.
147
ANDRESEN, S. M. B. “Poesia e realidade”. Colóquio – Revista de Artes e Letras, n. 8, 1960,
p. 53.
78
que essa união não será nunca total, embora assim se desejasse. Talvez não seja
inoportuno lembrar que no conto “Retrato de Mónica”, já referido, a protagonista
é descrita como uma mulher sem falhas, como alguém que tivesse atingido a
perfeição, mas para isso teve de renunciar à poesia, ao amor e à santidade. Onde
há completude não há amor, nem poesia.
De falta ou de ausência também se trata no poema de Dual que lemos
primeiro. É em nome de uma ausência, ou seja, de uma lacuna, que se constrói
uma grande casa branca, que se escreve o poema. É essa construção que permite
que a ausência não consuma a si e ao sujeito e ele simplesmente sucumba ao
contato da realidade. O poema é decerto “um medianeiro”. Do encontro do sujeito
com a realidade e dessa entrega nasce um fruto, nasce a poesia como casa branca.
Ainda que haja loucura, sofrimento no processo de construção da casa (dor pela
impossibilidade de fusão?), ainda que o choro permaneça inscrito em cada parede,
a casa é o que impede que simplesmente se quebre “o [...] rosto contra o
tempo”150. O poema ensina a cair ao encontro do cabo onde a terra abate, diz
148
ANDRESEN, S. M. B. “Poesia e realidade”. Colóquio – Revista de Artes e Letras, n. 8, 1960,
p. 53-4.
149
ANDRESEN, S. M. B. Poesia. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 19. Col. Obra poética.
150
ANDRESEN, S. M. B. “Biografia”. In: ———. Mar novo. Edição definitiva. Edição de Luis
Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2003, p. 46. Col. Obra poética.
79
Luiza Neto Jorge151. É desse contato com a terra, que abate, que surge o
aprendizado do poema. A ausência pode ser dolorosa, mas é fecunda, constrói
casas-poemas.152 Quando a ausência excede suas medidas, constrói-se algo que
transcende o espaço do sujeito e de sua dor pessoal, cria-se para além de si, há
entrega. Como uma entrega amorosa. Essa entrega promove a construção de algo
sólido, de uma casa que se pode habitar. Num comentário ao poema “Em nome”,
Maria João Borges afirma:
limpidez, este pequeno poema de Dual chama a atenção pela sua “rouquidão”.
Numa entrevista, dizia a autora que há sempre num poema uma rouquidão que é a
marca do combate que o poeta travou com o caos e do qual emerge pela
nomeação. Nesses três versos de Dual, encontramos os substantivos ausência e
loucura e o verbo chorar. São palavras que de início não ocorrem ao leitor de
Sophia. No entanto, no mesmo poema constrói-se “uma grande casa branca”. Este
sintagma sim, soa familiar aos leitores de Sophia. A presença simultânea da
ausência, da loucura, do choro e da casa branca vem mostrar o quanto a ordem
provém da desordem e dela se nutre. Por mais que se possa ordenar o caos, ele
também é criação e força, e não deve ser extinto.
A defesa do caos está de forma provocadora no título de um poema de
Adília: “Louvor do lixo”154. Nele, a poetisa não é amante ou construtora de casas,
mas simples mulher-a-dias, empregada doméstica que recebe o seu pagamento por
dia trabalhado. A metáfora da mulher-a-dias (efetivamente apenas uma leitura
151
JORGE, L. N. “O poema ensina a cair”. In: ———. Poesia: 1960-1989. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2001, p. 141.
152
O ensaio “Poesia e realidade” aponta os casos de Hölderlin e Rimbaud, dois poetas que tão
avidamente desejaram o encontro total com a realidade, que o quiseram estender para além da
forma de intermediação que é o poema: “Hölderlin diz-nos que achou ‘a estrada para os Deuses’.
Essa estrada ele a seguirá para além do poema e para além da loucura, quebrando o seu espírito na
busca do encontro total.” (ANDRESEN, S. M. B. “Poesia e realidade”. Colóquio – Revista de
Artes e Letras, n. 8, 1960, p. 54.)
153
BORGES, M. J. Em torno do conceito de “poesia pura”: Cinatti, Sophia e Eugénio de Andrade
(a poesia como investidura, iniciação e respiração). Tese de doutorado. Lisboa: Faculdade de
Letras de Lisboa, 1996, p. 365.
154
LOPES, A. A mulher-a-dias. Lisboa: & etc., p. 13-4.
80
apenas, de cada vez, uma vez, e está sempre por refazer, não porque seria
imperfeito, mas, pelo contrário, porque é, quando é (quando cede), de cada vez
perfeito.”156
Detenhamo-nos por um instante no título “Louvor do lixo”. O louvor indica
que embora a mulher-a-dias possa varrer o lixo, possa arrumar a casa, essa
desarrumação — que é inicial e que se repetirá a cada passagem do cão — não é
indesejável. Veja-se o pedido que parodia o “Pai nosso”: “a entropia de cada dia /
nos dai hoje”. A entropia é o pão de cada dia. Sem ela, não há vida; sem trabalho
não há mulher-a-dias, não há poema: “o pó e o amor / como o poema/ são feitos /
no dia a dia”.
É próprio ainda do serviço doméstico não deixar obras. Se Cabral, por
exemplo, se quer poeta engenheiro, se Sophia concebe a poesia como construção
de uma casa branca, a poetisa mulher-a-dias não enfatiza a criação de algo sólido
sobre quê se possa edificar. Ela valoriza o próprio processo. É tão certo que a
poesia de Sophia (ou a de Cabral) é, como a de Adília, esse acesso que se faz e
permanece sempre por fazer. Mas o engenheiro “sonha coisas claras” e “pensa o
mundo justo”, há nele o desejo de algo que atinja uma forma ideal. O trabalho
155
MELO NETO, J. C. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 86.
156
NANCY, J.-L. Resistência da poesia. Trad. Bruno Duarte. Lisboa: Vendaval, 2005, p. 14.
81
Faço o crochet
O crochet faz-me
E nisto me desato158
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ESTEIRA E CESTO
Nos dois poemas o artesanato aponta para algo que está fora de seu domínio
estrito. O entrançar de esteira e cesto promove um casamento com a terra; o fazer
do crochet deslinda os nós do caos interior. É esse apontar para fora que define a
157
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 18.
158
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 174.
159
ANDRESEN, S. M. B. O nome das coisas. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de
Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 41. Col. Obra poética.
82
poesia como relação com o universo, força que convoca a mudar de vida, lhe dá
poder político.
Nos dois, a metáfora é o artesanato. Mas o poema de O nome das coisas
busca a impessoalidade: o entrançar de cestos promove a união de uma terceira
pessoa com a terra toda. O tecedor não se identifica com um indivíduo em
particular: é o tecedor exemplar, não o retrato de um tecedor. O seu trabalho o
conduz para além da inviduação, para uma integração no todo. O crochet,
atividade mais comumente associada à mulher, é feito por um eu. Pode-se ler
como projeção autobiográfica. Do mesmo modo o verso final concorre para esta
sugestão. Em textos publicados em verso e prosa e em entrevistas, Adília fala de
uma doença psíquica. Independentemente disso, o efeito do crochet se dá numa
esfera que se poderia dizer psíquica. É um poema mais intimista. O poema de
Sophia quer promover a reunião do homem com a terra, quer entrar em acordo
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160
WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 2.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, p. 72.
83
por Eneias
Um desgosto de amor
atirou-me para um
curso de dactilografia
consolo-me
a escrever automaticamente
o pior são os tempos livres161
3.5.2.
Reparar brechas
Acabou
o tempo
das rupturas
Quero ser
reparadora
de brechas162
161
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 357-8.
84
A biblioteca baralhada
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quero arrumar
aqui quase tudo é desordem
e eu quero ficar
E eu quero ficar
para sempre
aqui163
162
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 24.
163
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 79.
85
pública) e o legado da tradição como problemas que lhe concernem, aos quais não
quer fugir. Ao contrário, quer continuar a obra, “ficar/ para sempre /aqui”,
arrumando a casa, arrumando o poema. Sempre no gerúndio.
É claro que dificilmente tenha havido um poeta, por mais vanguardista, que
tenha virado de fato as costas ao passado. Mesmo a célebre frase de Marinetti, no
manifesto futurista, a respeito do carro de corrida e da Vitória de Samotrácia,
convoca a escultura grega como exemplo de beleza. Álvaro de Campos lembra
ainda que “há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas”164. O
que nos parece mais sintomático de uma diferença de posição no poema de Adília
não é a sua relação mais amorosa com a tradição, mas a assunção do “baralhado”
como obra a levar adiante, sem aposta num futuro redentor.
A obra a levar adiante, como no poema “Louvor do lixo”, é o que permite
sobreviver. Esta relação está presente também num poema em que se faz uma
homenagem a Camões por meio da paráfrase de um verso de Cesário Verde.165 O
célebre “Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado”, de “O sentimento dum
ocidental”, de Cesário Verde, é reproduzido numa página e abaixo dele, de cabeça
para baixo, como se refletido num espelho, escreve-se: “Um livro no Sul salva
Camões de morrer afogado”. A paráfrase, na posição em que está, funciona como
164
PESSOA. F. Poemas de Álvaro de Campos. Fixação do texto, introdução e notas de Cleonice
Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 19.
165
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 69.
86
o avesso do que diz “O sentimento dum ocidental”. É então quase impossível não
concordar que foi o livro que salvou Camões e não o contrário, como reza a lenda.
É como se a mulher-a-dias levantasse o tapete para ver o que foi escondido
debaixo dele.
Esse relacionamento peculiar com a tradição já se anunciava num poema de
Um jogo bastante perigoso:
O poema faz lembrar uma cantiga medieval tanto pela temática das águas e
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166
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 31.
167
LOPES, A. A mulher-a-dias. Lisboa: & etc., 2002, p. 52-53.
87
explicar-lhe: “a vida tem que ver / com a porcaria”. A segunda parte do poema de
Adília diz: “Só servirei senhor / que possa morrer”. É como se se intensificasse o
projeto andreseniano de afirmação da mortalidade, reparando-se os pontos em que
ele “fraquejava”. Adília continua essa lição, a sua meditação não é um louvor da
beleza de alguém, mas um louvor do despojo indissociavelmente ligado à beleza.
Reparar brechas diz respeito a corrigir. E, no caso de Adília, corrigir é
principalmente tornar menos romântico, livrar de idealização. Onde se fala de
beleza, ela aponta o despojo; onde se fala de ordem, ela mostra o risco da
desordem; onde se fala em viajar, Adília fala em ficar; onde se vê um poeta
heroicamente salvando um livro, ela vê um livro salvando a vida de um mortal;
onde se fala em construir uma grande casa branca, ela fala em varrer o pó.
Na obra de Sophia, as relações intertextuais também são, muitas vezes,
movidas por uma disposição de corrigir. O seu norte não é tanto uma crítica dos
ideais, mas a restituição da inteireza, o acertar o passo com a ordem imanente do
mundo. Um exemplo é o “Soneto à maneira de Camões”, de Coral, em que o
intertexto com “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, a seleção do vocabulário
e o ritmo revelam uma aprendiz atenta da dicção de Camões e, no entanto, os dois
tercetos como que corrigem uma visão amargurada da mudança característica da
obra do poeta:
88
168
ANDRESEN, S. M. B. “Soneto à maneira de Camões”. In: ———. Coral. Edição definitiva.
Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2003, p. 38. Col. Obra poética.
169
Anna Klobucka e Rosa Maria Martelo sublinham o enfrentamento que caracteriza as menções
de Sophia a Pessoa. Cf. KLOBUCKA, A. “Sophia ‘escreve’ Pessoa”. Colóquio-Letras. n. 140/141.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, abril/set. 1996 e MARTELO, R. M. “Sophia e o nome das
coisas”, texto mimeografado.
170
ANDRESEN, S. M. B. “Escrevemos poesia para não nos afogarmos no ca[o]s”. Entrevista a
Maria Armanda Passos. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 16 de fevereiro de 1982.
89
mas é como se essa capacidade não se cumprisse, pois as forças estão “amarradas
a si mesmas”, e os vôos são “cegos”.
A crítica parece dirigir-se mais a certa atitude expressa na obra de Pessoa do
que propriamente à qualidade de seus versos. Sabemos que a obra andreseniana se
organiza segundo um “projecto moral” próprio e, sobretudo, que pretende
reencontrar a unidade primordial. A poesia de Pessoa, ao contrário, pode ser lida
como o réquiem que acompanha a perda dessa unidade. Daí a “guerra” com
Fernando Pessoa. Sophia seria quem alimenta o fogo, Pessoa, o vazio.174
E o embate com Pessoa permeará sempre a reflexão andreseniana sobre o
criador dos heterônimos. Mesmo num discurso proferido nos anos de 1970, após a
171
ANDRESEN, S. M. B. Coral. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 36. Col. Obra poética.
172
Maria de Lourdes Belchior aponta nos dois versos finais do poema “Praia” — “E uma
antiquíssima nostalgia de ser mastro / Baloiça nos pinheiros” —, de Coral, uma ressonância do
poema sobre d. Dinis da Mensagem, onde se diz: “E a fala dos pinhais, marulho obscuro, / É o som
presente desse mar futuro, /É a voz da terra ansiando pelo mar.” É uma das primeiras marcas da
presença intertextual de Fernando Pessoa na obra de Sophia. BELCHIOR, M. L. “Itinerário
poético de Sophia”, Colóquio-Letras, n. 89, jan. 1986.
173
ANDRESEN, S. M. B. Navegações. Edição revista. Edição de Maria Andresen de Sousa
Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 15. Col. Obra poética.
174
Num ensaio em que analisa os poemas-homenagem a Fernando Pessoa, Fernando J. B.
Martinho comenta o choque entre a poética dos dois autores. Ao referir-se ao poema “Cíclades”,
afirma: “Na poética empenhada de Sophia, Pessoa é interpelado acusatoriamente como um ser
dividido, em contradição consigo próprio e ‘à margem dos outros e da vida’, entregue a um drama
imaginário, a uma ficção, às ‘fúrias do não-vivido’, que não só o privam de viver a sua própria
vida, como também o distanciam irremediavelmente dos outros homens e o fecham na ordem, na
disciplina estéreis da desumana paixão da escrita. ‘Ilha’, ‘desterro’ definem o exílio em que o
poeta, na destruidora vocação da negação, se quis. [...]” (MARTINHO, F. J. B. “Sophia lê Pessoa”,
Persona, n. 7, Lisboa, 1982.)
90
morte Jorge de Sena, Sophia dirá: “[...] a poesia de Jorge de Sena é uma poesia de
resistência porque ele nunca aceita aquela ausência do homem à sua própria vida
da qual Fernando Pessoa fez a sua habitação.”175
No entanto, as possibilidades exploradas por Pessoa foram tantas, que é
difícil que os poetas posteriores a ele não pareçam mais um dos seus heterônimos,
como apontou Luís Miguel Nava. Pouco a pouco vão surgindo na obra de Sophia
poemas com citações de versos pessoanos ou alusões à sua obra. Em Mar novo
encontram-se vários exemplos, como o poema “Luar”176, cujo primeiro verso —
“Toma-me ó noite em teus jardins suspensos” — retoma o início de “Abdicação”:
“Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços”. Ou ainda de “Liberdade”177, cujo
incipit — “Aqui nesta praia onde” — alude a “Aqui na orla da praia, mudo e
contente do mar,”. O poema “Noite”178 também parece retomar uma imagem de
“O guardador de rebanhos”: “Pela janela entrou a noite / Com seu rosto altíssimo
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de estrelas.”, diz o poema de Mar novo, o que faz pensar nos versos de Alberto
Caeiro: “E se sente a noite entrada / Como uma borboleta pela janela.”
Mas somente vários anos mais tarde, Pessoa, nominalmente referido, se
tornará personagem da poesia andreseniana. E o tom será diferente do de
“Sibilas”. O poema “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”179, escrito numa ilha
grega e incluído em Dual (1972), diz:
175
BREYNER, S. M. ; SENA, J. Correspondência – 1959-1978. Lisboa: Guerra & Paz, 2006, p.
154. Col. Tempos Modernos.
176
ANDRESEN, S. M. B. Mar novo. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 54. Col. Obra poética.
177
ANDRESEN, S. M. B. Mar novo. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 26. Col. Obra poética.
178
ANDRESEN, S. M. B. Mar novo. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 55. Col. Obra poética.
179
ANDRESEN, S. M. B. Dual. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e
Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 54-56. Col. Obra poética.
91
180
ANDRESEN, S. M. B. “Acaia”. In: ———. Geografia. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 61. Col. Obra
poética.
181
LOURENÇO, E. “Para um retrato de Sophia”. In: ANDRESEN, S. M. B. Antologia. 4.ed.
Lisboa: Moraes, 1975, p. I-VII.
182
ANDRESEN, S. M. B. “Fernando Pessoa”. In: ———. Livro sexto. Edição definitiva. Edição
de Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2003, p. 45. Col. Obra poética.
92
viagem, não vislumbrara a presença dos “antigos deuses sol interior das
coisas”183.
Precisamente nesse ponto se pode notar que algo da antiga crítica a Pessoa
permanece. Mesmo que se exaltem qualidades como “claridade”, “nitidez” e
“concisão visual”, mesmo que já não se fale em vazio e sim num olhar que torna
as coisas impetuosamente presentes, mesmo que se substitua a viuvez por
disponibilidade. Ele não teria conhecido a unidade, a “harmonia inaparente” que,
no projeto andreseniano, sustenta a necessidade de despersonalização. E é por isso
que Sophia pode fazer suas as palavras de Ulisses para a deusa Calipso:
3.5.3.
A atenção ao mundo sensível: a busca do concreto
183
ANDRESEN, S. M. B. “Crepúsculo dos deuses”. In: ———. Geografia. Edição definitiva.
Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p.
70-71. Col. Obra poética.
184
ANDRESEN, S. M. B. “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”. In: ———. Dual. Edição
definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Col. Obra poética.
Lisboa: Caminho, 2004, p. 55.
93
Sophia, a atenção ao mundo sensível guarda uma relação necessária com o eterno.
Como diz o ensaio O nu na Antiguidade clássica, entre os antigos gregos,
observava-se a natureza num esforço de depreender leis gerais e eternas que
determinassem a ordem do cosmo. Em Adília, encontramos uma releitura dessa
relação entre o cotidiano e o extraordinário. Veja-se, por exemplo, o que ocorre
com o poema “Espera”, de Geografia:
Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
[...]
Ficar
à escuta
À escuta
do silêncio186
185
ANDRESEN, S. M. B. Geografia. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa
Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 36. Col. Obra poética.
186
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 23.
94
Vivo
no instante
casa
da eternidade187
A concisão deste poema e a divisão dos versos permite ainda mais de uma
leitura da palavra “vivo”: como primeira pessoa do singular do verbo viver no
presente do indicativo, referindo-se ao sujeito poético, ou como adjetivo ou
substantivo, referindo-se a uma terceira pessoa.
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Vivo
dia a dia
sou
uma mulher-a-dias
Dia a dia
perto porto parto
da eternidade188
Aqui é impossível decidir sobre a palavra “parto”, que tanto pode ser
substantivo (“parto” no sentido de “nascimento”), ou “parto” como primeira
pessoa do singular do verbo “partir” no presente do indicativo, bem como sobre a
locução “dia a dia” na segunda estrofe. A ausência do hífen na palavra dia-a-dia,
na segunda estrofe, permite que se a leia como substantivo, o viver cotidiano, ou
como a expressão dia a dia, com função adverbial, com o sentido de dia após dia.
Exatamente dez páginas a seguir ao primeiro, este poema estabelece um diálogo
com o anterior e deixa entrever um diálogo entre Sophia e Adília. No primeiro
poema o vocabulário é mais caracteristicamente andreseniano, no segundo, a
menção à mulher-a-dias na primeira estrofe é quase marca registrada de Adília.
187
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 65.
188
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 75.
95
Falo de ovos estrelados, coisa caricata, suja, sublunar, como as maminhas e o cão
animal que ladra. Não falo de Anjos, de Rilke, da Constelação do Cão. Ora, desde
que há Física (desde Galileu), que acabou a distinção entre mundo celeste e mundo
sublunar. Ou seja: os marcianos e os ovos estrelados são feitos do mesmo barro,
são governados por leis matemáticas. Mas o comum dos mortais, que já não
acredita em Deus, acredita, às vezes, na salvação da Terra pelos marcianos. Espero
que o comum dos mortais repare na beleza dos ovos estrelados. 189
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310636/CB
189
LOPES, A. “Ovos estrelados”. Público, 20 de maio de 2001. Disponível em:
http://www.arlindo-correia.com/adilia_lopes_fria.html. Acesso em 16 de outubro de 2006.
4.
Diferenças
4.1.
A impessoalidade e o auto-retrato
EPIDAURO 62
190
ANDRESEN, S. M. B. “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”. In: ———. Dual. Edição
definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho,
2004, p. 54. Col. Obra poética.
191
ANDRESEN, S. M. B. “Epidauro 62”. In: ———. Ilhas. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 9. Col. Obra
poética.
192
ANDRESEN, S. M. B. Dual. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e
Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 76. Col. Obra poética.
97
[...]195
É esse poema em que o sujeito dá a sua voz à veemência das coisas que tem
a capacidade de ser um elemento de religação como a ânfora descrita na “Arte
poética I”. Somente ele poderá restabelecer a aliança com as coisas e traduzir uma
relação com o universo. Há nisso um sentido religioso, de comunhão. Como diz
um poema da “Homenagem a Ricardo Reis”196, a atenção ao mundo é o culto
pedido pelos deuses.
193
ANDRESEN, S. M. B. “Arte poética V”. In: ———. Ilhas. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 76. Col. Obra
poética.
194
ANDRESEN, S. M. B. “Arte poética V”. In: ———. Ilhas. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 76. Col. Obra
poética.
195
ANDRESEN, S. M. B. O búzio de Cós e outros poemas. Edição revista. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 8. Col. Obra
poética.
196
ANDRESEN, S. M. B. Dual. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e
Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 29. Col. Obra poética.
98
deixa de poder ser lida como a brisa desse lugar. Mais uma vez, vemos a
semelhança com o processo descrito no ensaio sobre a arte grega: “O artista não
quer reproduzir a forma individual mas sim a forma exemplar.”198 Há um
calculado afastamento de uma referência possível, para que o poema se torne
menos pessoal e mais universal.
Mesmo quando abordam temas do cotidiano, os poemas de Sophia integram
o que parece pequeno, próximo ou insignificante numa ordem do mundo em que
se faz sentir a presença do divino. Nunca se fazem apenas retratos, quando há uma
descrição de um local em particular o que importa não é retratar o lugar, mas
mostrar como ali pode ser o lugar de uma experiência de plenitude. É o que ocorre
no poema em prosa “Caminho da manhã”, de Livro sexto, de que transcrevemos
um trecho:
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras
cantarão o silêncio de bronze. [...] Segue entre as casas e o mar até ao mercado que
fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o
largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o
branco da cal onde a luz cai a direito. [...] Entra no mercado e vira à tua direita e ao
terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra
peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem
há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem
como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar.
197
Inimigo Rumor: Revista de Poesia, n. 10. Rio de Janeiro, 7 letras, 2001, p. 85.
198
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica. 3.ed. revista. Lisboa: Caminho, 1992, p.
19.
99
Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. [...] À tua
direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que
desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas
finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho
que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo
de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos [...]. Depois vai de
vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos
e limões. [...] Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho
azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu
amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.199
199
ANDRESEN, S. M. B. Livro sexto. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 21-22. Col. Obra poética.
100
Há dias aconteceu-me isto: comecei a escrever um poema à tarde, mas fui tão
interrompida que desisti. À noite tentei acabá-lo mas estava cansada demais e
dispersa em mil bocados. No dia seguinte de manhã fui com a cozinheira à praça. E
de repente no meio dos peixes, das couves e das galinhas pensei que precisava de
parar um minuto, um minuto de férias sem cálculos nem contas. Então mandei a
cozinheira que fosse ela comprando os legumes e “fugi” para o café da praça e pedi
um café ao balcão. Enquanto estava a tomar o café lembrei-me do poema da
véspera e pedi ao empregado que me emprestasse um papel e um lápis. Foi assim
que consegui acabar o poema num misto de pausa e euforia. Depois fui a correr
comprar a fruta!201
200
Francisco de Sousa Tavares, marido de Sophia.
201
BREYNER, S. M. B.; SENA, J. Correspondência – 1959-1978. Lisboa: Guerra & Paz, 2006, p.
61-62. Col. Tempos Modernos.
101
Aqui em Lagos tenho vivido um verão maravilhoso nesta luz mais que limpa, neste
calor leve e doirado, nesta água verde e transparente e nas grutas invisíveis que são
o mais espantoso barroco, roxas e doiradas por dentro. Em Agosto quando o mar
estava liso como um chão e completamente transparente eu alugava uma chata e ia
de gruta em gruta e nadava na gruta do leão e na “sala” e na “porta do sol” e na
“Balança” [...].202
O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa
relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem
com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol olhado de
frente. [...] De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. [...] encosto a
minha cara na superfície das águas lisas como um chão.
[...]203
202
BREYNER, S. M. B.; SENA, J. Correspondência – 1959-1978. Lisboa: Guerra & Paz, 2006, p.
31. Col. Tempos Modernos.
203
ANDRESEN, S. M. B. Livro sexto. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 23. Col. Obra poética.
102
destino da literatura (“o artista não é um homem isolado que vive numa torre de
marfim”, afirma). Em outras palavras: a despersonalização ou a impessoalidade é
decerto uma técnica, mas é também o fruto de uma concepção de poesia como
grande arte e, por fim, uma política de escrita.
Este livro
foi escrito
por mim205
Os versos formam uma frase que poderia ser dita por uma criança ou
adolescente orgulhosa de um trabalho feito talvez a pedido da escola. Mas a frase
muito banal é a retomada de um paradoxo da modernidade: é a reivindicação de
uma ligação direta entre a obra e o autor que a assina.
204
BREYNER, S. M. B.; SENA, J. Correspondência – 1959-1978. Lisboa: Guerra & Paz, 2006, p.
65. Col. Tempos Modernos.
205
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 399. Anna Klobucka aponta a semelhança
entre estes versos e o início do Livro de mágoas, de Florbela. “Spanking Florbela: Adília Lopes
and a Genealogy of Feminist Parody in Portuguese Poetry”. Portuguese Studies, v. 19, n. 1,
August 2004, p. 190-204.
103
“Este livro foi escrito por mim” é quase uma provocação. Parece uma
resposta malcriada a versos como “Não meu, não meu é quanto escrevo”, de
Fernando Pessoa. E, de fato, em Le vitrail la nuit * A árvore cortada, vários são
os poemas que respondem a versos de Pessoa: “A poetisa/ não é/ uma
fingidora”206; “Quem espreita/ por meus olhos/ no espelho/ sou eu// E eu/ sou eu//
Não há enigmas”207.
Insiste-se na idéia de uma coesão entre o autor e a obra e, mais que isso, a
repetição “eu sou eu”, que perpassa o livro, sugere uma identificação entre sujeito
lírico e sujeito empírico. O poeta é fingidor, mas a poetisa não é uma fingidora.
Aparentemente tudo isso é uma oposição à poética da modernidade que se
erige sobre a necessidade de despersonalização. Os poemas de Adília falam dos
seus gatos, da sua casa, localizada na rua José Estêvão, em Lisboa, da sua mãe,
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que era bióloga, da psiquiatra que consultou e que se chama dra. Manuela
Brasette. Ao contrário de Sophia, como vimos, Adília fala de tudo que pode
marcar mais fortemente aquela voz poética, identificá-la com aquele corpo,
daquela mulher, que nasceu em 1960, freqüentou a Faculdade de Física mas se
transferiu depois para a de Letras, sofre de problemas mentais e gosta de gatos.
A sua poesia pede ao leitor que a leia como uma projeção autobiográfica da
autora. Pode assim ser lida por qualquer pessoa. O vocabulário provavelmente não
apresentará dificuldade para um falante da nossa língua e a idéia de que o que há
ali é um monte de confissões até pode ser um chamariz para leitores não educados
pela tradição moderna.
Um poema faz uma declaração de princípios:
Que a obra
não se oponha
à vida
Que a obra
e a vida
sejam uma
O texto nu
e cru
do autor
206
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 22.
207
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 36.
104
O rosto nu
e cru
do autor208
Ao espelho
e nas fotografias
gosto de reconhecer
a minha carinha
com carinho209
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Mas resta saber de quem é este rosto que está no espelho, nas fotografias e
nos textos. Decerto é o rosto do nome Adília Lopes, que assina a obra. É o rosto
que se faz juntamente com esse nome, que, aliás muito significativamente, é um
pseudônimo. A herança moderna é incontornável. Sabemos, pelo menos desde
Freud, que o sujeito não é senhor de suas produções e, desde Mallarmé, que a
linguagem tem uma autonomia que ultrapassa os limites da vontade de um artista
que com ela trabalha. Toda escrita é uma experiência de heteronímia, não só a de
Fernando Pessoa. A de Adília Lopes não foge à regra.
Em vez de enfatizar a distância que separa o autor empírico do sujeito lírico
— como fez Pessoa —, Adília insiste na coincidência entre o sujeito criado pela
escrita e esta mesma escrita. Por isso afirma e repete: “eu sou eu”. Jean-Luc
Nancy observa que “todo auto-retrato é antes de mais um retrato”210. O retrato
constrói um sujeito que antes dele não existia. O crochet faz quem o faz.
O poema “Anonimato e autobiografia” satiriza essa relação entre biografia e
biografado, em que o texto escrito simplesmente pode tomar o lugar de quem o
produziu.211 É a escrita que elimina a referência, não o autor.
208
LOPES, A. Poemas novos. Lisboa: & etc., 2004, p. 51.
209
LOPES, A. Poemas novos. Lisboa: & etc., 2004, p. 50.
210
NANCY, J-L. “Le portrait autonome”. In ———. Le regard du portrait. Paris: Galilée, 2000,
p. 33-34 (tradução nossa).
211
LOPES, A. “Anonimato e autobiografia”. In: ———. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p.
167-168.
105
A poetisa
não é
uma fingidora
Mas
a linguagem-máscara
mascara212
máscara está pegada à cara e à letra. Poetisa e poeta são e não são fingidores, mas
estão ambos sujeitos a um processo, o de escrita que é, este sim, fingidor.
Em Miroirs d’encre, Michel Beaujour observa que o auto-retratista não leva
a vida para dentro da literatura, leva a literatura para dentro da vida.213 É
precisamente por ter um conceito de poesia mais formalista que o de Sophia, que
Adília tem a liberdade de criar tantos auto-retratos. O poema não é a tradução de
uma vivência, a poesia não é vista como uma experiência vital, o poema é texto,
forma criadora de experiência, conformadora de um novo sujeito. Parecendo mais
“espontânea” e até crítica do “livresco”,214 a obra de Adília assenta num conceito
de poesia mais tipicamente moderno, textualista, que a de Sophia. Pouco importa
o tema, o poema sempre corta a garganta.
A voz pessoal é na realidade uma colagem de citações, eco de outras vozes.
Como ironista, Adília recolhe a palavra de outros, a linguagem de todos os dias, e
vai juntando cacos, reparando brechas, para formar o seu discurso próprio. O
trabalho sobre a palavra alheia não faz distinção entre Hölderlin e o slogan do
xampu Johnson’s (“Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos
212
LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 22.
213
BEAUJOUR, M. Miroirs d’encre: rhétorique de l’autoportrait. Paris: Seuil, 1980.
214
Lembrem-se os seguintes versos, também de Florbela Espanca espanca: “os livros não são
feitos/ de carne e osso/ e quando tenho/ vontade de chorar/ abrir um livro/ não me chega/ preciso
de um abraço/ mas graças a Deus/ o mundo não é um livro/ [...]” LOPES, A. Obra. Lisboa:
Mariposa Azual, 2000, p. 421.
106
escritórios!”, diz Álvaro de Campos)215. A palavra a reciclar pode estar tanto num
provérbio, numa revista feminina, como na publicidade e na tradição literária,
desde os clássicos latinos até Maria Aliete Galhoz.
Na resposta à pergunta “Como se faz um poema?”, na revista Relâmpago,
Adília comenta essa conjugação da autobiografia com uma poética da
impessoalidade renovada. O poema parte simultaneamente de um fato
autobiográfico e da leitura de um poema de Sophia. Mas ao tornar-se poema,
escrito na língua comum, não pode ser posse da autora Adília Lopes que afirma:
Eu tenho a minha vida, mas assim como digo “Bom dia!” e a expressão “Bom dia!”
não é da minha autoria, alguém a inventou muito antes de mim, a minha poesia é
como se não fosse minha. Sinto-me despojada, desapossada, despossuída da minha
poesia. O que faço é conviver: pôr a minha vida em comum.216
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A vida em comum. Eis uma expressão chave para pensarmos num caráter
político da busca de materiais autobiográficos para a poesia. Falar da minha mãe,
da minha tia, da rua onde eu moro, da praia onde estive, da minha amiga que se
chama Magda é uma espécie de recusa de abstratização. Se as estrelas e os ovos
estrelados são regidos pelas mesmas leis da física, a alegria que percorre o mundo
está tanto no pão que se come quanto nas mais sofisticadas produções artísticas. E
a tendência ao auto-retrato é mais uma maneira de recusa da exemplaridade, da
diferenciação entre o individual e o exemplar. É uma vertente da crítica aos ideais.
Nesse ponto, Adília se opõe a Sophia por recusar a existência de uma forma ideal.
Adília também fala com uma agulha de sangue a coser-lhe todo o corpo à
garganta, como num poema de Luiza Neto Jorge. E as precariedades do corpo, as
imperfeições, tudo que não se encaixa numa norma, precisa ser assumido, como a
biblioteca baralhada. E visto na sua singularidade.
4.2.
O amor e a falta dele
215
PESSOA, F. Poemas de Álvaro de Campos. Fixação do texto, introdução e notas de Cleonice
Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 61.
216
LOPES, A. Poemas novos. Lisboa: & etc., 2004, p. 30.
107
Não escreverei mais o teu nome em letras gregas sobre a cera das tabuinhas
Porque estás morto
E contigo morreu o meu projecto de viver a condição divina
217
ANDRESEN, S. M. B. Livro sexto. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 74. Col. Obra poética.
218
ANDRESEN, S. M. B. “Epidauro”. In: ———. Geografia. Edição definitiva. Edição de Maria
Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 65. Col. Obra
poética.
219
ANDRESEN, S. M. B. O nu na Antiguidade clássica. 3.ed. revista. Lisboa: Caminho, 1992, p.
15.
220
ANDRESEN, S. M. B. Dual. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e
Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 64. Col. Obra poética.
108
221
ANDRESEN, S. M. B. No tempo dividido. 4.ed. revista. Edição de Maria Andresen de Sousa
Tavares. Lisboa: Caminho, 2005, p. 35. Col. Obra poética.
222
LOPES, A. “Op-art”. In: ———. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 311.
223
Veja-se o seguinte trecho de uma crônica do jornal Público: “Há dois textos em que reconheço
aquilo que sei da poesia. É a “Arte poética IV” de Sophia (publicada em Dual) e “Bresson, o
mergulho” de Nuno Bragança (publicado no catálogo do ciclo de cinema dedicado a Robert
Bresson, Fundação Gulbenkian, Abril de 1978). Paro aqui para reler e sublinhar estes textos. Não
vou resumir nem citar o texto de Sophia. Prefiro citar Baltazar Lopes (Osvaldo Alcântara) citado
por Sophia na portada de Primeiro livro de poesia, “casem-se os poetas com a respiração do
mundo”. Aqui está a resposta à pergunta do Valter Hugo Mãe, ou antes, a esta: com quem quer (ou
com quem deve) casar a poetisa? E eu vou ser mesmo moralista e vou dizer: acho que toda a gente
devia ter o propósito de casar com a respiração do mundo. Ou, porque não?, com a respiração de
Deus. A poesia é uma questão de fidelidade a esse casamento.” (LOPES, A. “Fazer prosa, fazer
rosa”. Público, 17 de junho de 2001. Disponível em http://www.arlindo-
correia.com/adilia_lopes_fria.html. Acesso em 5 de fevereiro de 2007).
109
para que ele pudesse surgir. O amor depende da crítica aos ideais, da defesa do
ridículo, da aceitação do que é pequeno, inglório. Adília visa diretamente o
discurso midiático (mas não só) que tanto se ouve repetir: a supervalorização da
beleza, do corpo perfeito, da pele bem cuidada, de certo tipo de inteligência e de
elegância, a idade certa para ter filhos, o número de parceiros. Um pouco à
maneira de Álvaro de Campos, Adília aponta essas “ficções sociais”. É preciso
libertar o amor. É preciso recuperar o prazer de existir, sem culpar uma abstrata
terceira pessoa.
Quem
nos roubou
o prazer
de existir?
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Porque
nos roubamos
o prazer
de existir?224
“Love is gold/ To the happy few”225, diz um trecho de uma quadra escrita
em inglês. Mesmo quando se trata de amor, há poderes e privilégios. The happy
few, a expressão que comumente designa os privilegiados do ponto de vista
intelectual ou econômico, aplica-se aqui aos indivíduos a quem é dada a
experiência do amor, aos poucos que a podem ter.
Como poeta a quem a musa corta a língua, Adília busca outra língua para
fundar na literatura outro amor. A sua revisão passa, claro, pela leitura da tradição
e por uma tentativa de desmonte do amor romântico a partir de textos literários.
Um poema de Sete rios entre campos dialoga simultaneamente com
Camões, Ricardo Reis e com o jogral Meendinho, autor de uma única cantiga
conhecida (“Sedia-m’eu na ermida de Sam Simiom”). As três seções falam de
uma relação entre amantes e de casamento. E o jogo intertextual também se faz
passo a passo:
(anti-Camões)
224
LOPES, A. César a César. Lisboa: & etc., 2003, p. 27.
225
LOPES, A. A mulher-a-dias. Lisboa: & etc., 2002, p. 60.
110
É bom
tu não seres
eu
é bom
eu ser eu
e tu seres tu
A madrugada
não separa
o amado
da amada
não separa
nada
Que o livro
vá por
água abaixo
mas que maridos
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me aconteçam
(anti-Ricardo Reis)
O rio
é bom
para nadar
e as flores
para dar
o resto
são cantigas
casa-te com Lídia
tem bebés
passa a lua-de-mel
na Grécia
(pró-Meendinho)
Na ermida
de São Simeão
dar-te-ei
a minha mão
meu barqueiro
226
ANDRESEN, S. M. B. Dual. Dual. Edição definitiva. Edição de Maria Andresen de Sousa
Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 27. Col. Obra poética.
112
227
Transcrevemos aqui a cantiga de Meendinho: “Sedia-m’eu na ermida de Sam Simiom / e
cercarom-mi as ondas, que grandes som:/ eu atendend’o meu amigo!/ eu atendend’o meu amigo!//
Estando na ermida ant’o altar,/ cercarom-mi as ondas grandes do mar:/ eu atendend’o meu amigo!/
eu atendend’o meu amigo!// E cercarom-mi as ondas, que grandes som,/ nom ei [i] barqueiro, nem
remador:/ eu atendend’o meu amigo!/ eu atendend’o meu amigo!// E cercarom-mi as ondas do alto
mar,/ nom ei [i] barqueiro, nem sei remar:/ eu atendend’o meu amigo!/eu atendend’o meu amigo!//
Nom ei barqueiro, nem remador,/ morrerei [eu] fremosa no mar maior:/ eu atendend’o meu
amigo!/ eu atendend’o meu amigo!// Nom ei [i] barqueiro, nem sei remar/ morrerei eu fremosa no
alto mar:/ eu atendend’o meu amigo!/eu atendend’o meu amigo!” In: GONÇALVES, Elsa;
RAMOS, Maria Ana. A lírica galego-portuguesa. Lisboa: Comunicação, 1983, p. 254.
113
O homem e a mulher
deixarão pai e mãe
para serem
uma só carne
mas por causa
do assado queimado
descompõem-se
cospem um no outro
fazem as malas
e a mulher volta
para casa
da mãe
e o homem corre
para uma antiga mulher
que o recebe
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de braços abertos
agora há só dois bebés
a berrar por Super Maxs
à porta de uma pastelaria
de Beja
com o ar condicionado
avariado229
228
É curioso observar que há, ao longo de toda a obra de Adília, uma leve seqüência narrativa nos
poemas em que Marianna e Chamilly são personagens. A volta do marquês parece constituir uma
libertação de Marianna para outras vivências. Em Le vitrail la nuit * A árvore cortada, os dois
voltam à cena neste poema: “Depois/ da paixão/ e da ausência/ ficou a esperança/ e a indulgência//
Não sou Marianna/ e tu não és Chamilly// A minha história/ é outra/ e começa agora// Estou
sempre/ a começar” (LOPES, A. Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 21).
No posfácio à Obra de Adília, Elfriede Engelmeyer escreve: “Com Marianna Alcoforado, o
pseudónimo literário Adília Lopes assume uma nova identidade literária. E se, por um lado, isso
significa reclamar a tradição das mulheres que escrevem, por outro lado os poemas deste complexo
marcam a progressiva emancipação da mulher que sofre por amor.” In: LOPES, A. Obra. Lisboa:
Mariposa Azual, 2000, p. 471.
229
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 451.
114
escolhe não ter filhos com Chamilly, mas apega-se a ele “e são ambos/ uma
carne”230.
Uma história de amor plenamente realizada é narrada na seqüência que
compõe o volume A continuação do fim do mundo. A história de Túlio e Maria
Andrade, contada por Adília, parte da novela Do fim do mundo, de Nuno
Bragança, e a continua. Desta vez reparar brechas será apenas dar prosseguimento
à narrativa de Bragança do ponto em que ela se interrompe. O médico Túlio
abandona a mulher, Vera, após apaixonar-se por uma mulher que vê no trem todas
as noites a caminho do bangalô que é a sua residência de verão. Adília dá nome e
biografia à mulher do trem e narra a vida do casal após o encontro que,
significativamente, ocorre na estação da Cruz Quebrada. O protagonista da novela
de Bragança faz uma escolha por uma mulher que em nada se parece com uma
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femme fatale ou com um modelo de mulher sedutora. O que o atrai para ela é o
bem-estar que lhe transmite a sua imagem tricotando um suéter. A mulher que vai
no trem não pinta os cabelos, não usa aliança, não é especialmente bonita nem
propriamente atraente e vai sozinha no trem tricotando uma camisola (um suéter)
que durante muito tempo Túlio se perguntou a quem se destinaria. A escolha do
médico não é determinada por padrões de beleza, nem de inteligência, nem de
sensualidade. É uma escolha pessoal, ele decide ir atrás da mulher que
provavelmente faz um agasalho para si mesma, já que não tem marido. A sua
escolha é também uma aceitação prazerosa de um limite, a descoberta de que a
vida pode ser outra coisa: não mais fazer viagens a países distantes, nem pesca
submarina à noite, nem viver em intermináveis festas, apenas entrar calmamente
numa idade madura, na companhia de uma mulher a quem falta um companheiro.
E é esta história que Adília escolhe continuar, uma história anti-romântica, que
mostra, no entanto, que outro amor é possível.
230
LOPES, A. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000, p. 461.
5.
Conclusão
Embora seja também ela um poeta moderno, Sophia vive um enfrentamento com
a poesia moderna, o que se condensa na sua relação com Fernando Pessoa.
Adília, escrevendo num momento posterior à consagração do modernismo,
pode romper com certos protocolos de escrita típicos desse movimento: é o que
faz ao promover contratos de projeção autobiográfica; reabilitar a
sentimentalidade; recontar histórias exemplares, e ainda resgatar valores cristãos
como bondade e caridade. No entanto, hoje, a poesia de Adília parece-nos mais
intimamente vinculada aos grandes modernistas do que à primeira vista se mostra.
A sua liberdade para com a lição moderna se dá por ser ela tão certa que se pode
reatualizá-la em outras formas, outras dicções. Por isso, a sua obra não teme o
biografema, o piegas, o ridículo. Sua tarefa é sempre reescrever, refazer
perguntas, nunca dar o trabalho por encerrado: “Para que servem poetas/ em
tempos de penúria?// Para que servem poetas?// Para que servem/ tempos de
penúria?”232 E mesmo quando o trabalho se conclui, a fratura fica exposta, “como
o prato Zen/ que tem as fracturas sublinhadas/ com ouro”233.
Para ambas, a poesia é uma possibilidade de construção e de reparação.
Assim, as duas afirmam a existência de uma função para a arte, recusam que a
231
ANDRESEN, S. M. B. “A paixão nua”. In: ———. O nome das coisas. Edição definitiva.
Edição de Maria Andresen de Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p.
52. Col. Obra poética.
232
LOPES, A. César a César. Lisboa: & etc., 2003, p. 90.
233
LOPES, A. “Reconciliada com as memórias”. In: ———. Obra. Lisboa: Mariposa Azual,
2000, p. 213.
116
Cara Sofia,
Recebi o seu pacote em tempo de Natal. Não há melhor prenda de Natal! Que
maravilha os recortes da Sophia! Ela faz-me muita falta. Imaginava-a sempre nas
Mónicas, onde ela morava — rua ou travessa das Mónicas — e fazia bem sabê-la
lá, num sítio de Lisboa, a cismar. Há tanto tempo que não via essa palavra cismar.
A Sophia diz que cismava muito. Como é bom cismar! A escrever assim estou
pirosa.
O livro da Sophia de que mais gosto, neste momento, é Ilhas. A fase de que mais
gosto é a última. Os três últimos livros, a peça O colar. É mais enxuta, solar, leve.
Até ao Livro sexto, acho tudo muito sombrio. O texto dela que prefiro talvez seja o
conto “A viagem”. Há coisas nela de que não gosto e antipatizava com ela como
pessoa. Isto é, achava-a altiva, aristocrática e vaidosa, superior. Mas é do português
dela que mais gosto. “Poesia e realidade” é de uma inteligência brilhante!
234
LOPES, A. Le vitrail la nuit * a árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006, p. 81.
117
Escrevo-lhe com os meus gatos a saltarem para cima da carta. Acho que vão pêlos
deles com a carta.
[...]
Apesar de ser um documento pessoal, pensamos ser esta carta valiosa para
pensar na relação entre as duas autoras. O pacote a que Adília faz referência é um
conjunto de fotocópias de entrevistas e ensaios de Sophia publicados em jornais,
revistas ou livros. Assim, há na resposta, primeiramente, a reação de alguém que
ganha um presente e ela fala de Sophia como alguém que lhe faz falta. Mas
adiante vê-se que essa relação afetuosa com a mestra separa muito bem a pessoa
da obra. Algo na personalidade de Sophia lhe desagrada. E, diríamos, também na
obra. Uma certa superioridade. A lição que Adília reconhece seria sobretudo
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Gosto de gostar de si
num sítio assim235
Uma resposta ponto por ponto ao “Terror de te amar num sítio tão frágil
como o mundo”236. O poema de Sophia falava do amor em oposição a
imperfeição, quebra, emudecimento, fragilidade, mentira, separação, o de Adília
quer incluir o amor nessa orquestra desafinada.
235
LOPES, A. “O mundo é uma casa de passe”. In: ———. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000,
p. 365.
236
ANDRESEN, S. M. B. Coral. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 30. Col. Obra poética.
118
Seguindo talvez uma lição dos românticos, Adília vai resgatar o pequeno, o
frágil, o defeituoso, o que não teve lugar na sociedade dos bons e belos. Os seus
personagens podem fazer parte da galeria de Quasímodo, do patinho feio ou de
outras criações oitocentistas.
Embora a obra de Adília recrie o cristianismo, abrindo espaço, por exemplo,
para o prazer individual e a paixão pela vida terrena, não previstos pelo verdadeiro
cristianismo — trabalho, aliás, começado por Sophia —, ela toca valores cristãos
que não podemos deixar de ver como ideais. Ao tirar de cena a beleza como
possibilidade de salvação, Adília não deixa vazio o lugar do ideal. Preenche-o
com a bondade.
jornada, as diferenças nos saltam aos olhos. Acreditávamos também que a obra de
Sophia representava uma superação possível do abismo entre a arte e a ética
criado pela modernidade (e nisso era seguida por Adília). Hoje, não duvidamos da
existência de uma relação entre a arte e a ética, mas parece-nos que alguma coisa
se perde quando se adotam as soluções adotadas por elas. A tentativa de fazer do
ético e do estético “as duas faces de uma mesma moeda” é uma inquietação da
poesia das duas autoras, um problema que não se resolve. Em muitos momentos
há recuos, concessões, sacrifício de uma dimensão mais libertadora da obra de
arte. De certo modo, esta tese é de algum modo a história de um fracasso. O
fracasso da tentativa de superar um abismo. Mas ela é também e sobretudo a
história de uma herança.
6.
Referências bibliográficas
6.1.
Obras de Sophia de Mello Breyner Andresen
6.1.1.
Poesia
Poesia. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho,
2003. Col. Obra poética. [1.ed. Coimbra: Edição da Autora, 1944.]
Dia do mar. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho,
2003. Col. Obra poética. [1.ed. Lisboa: Ática, 1947.]
Coral. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2003.
Col. Obra poética. [1.ed. Porto: Livraria Simões Lopes, 1950.]
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6.1.2.
Prosa
6.1.3.
Ensaios
6.1.4.
Correspondência
6.1.5.
Entrevistas
6.2.
Obras de Adília Lopes
122
6.2.1.
Poesia
1997; Sete rios entre campos. Lisboa: & etc., 1999; Florbela Espanca
espanca. Lisboa: Black Sun, 1999; Irmã barata, irmã batata.
Braga/Coimbra: Angelus Novus, 2000.]
A mulher-a-dias. Lisboa: & etc., 2002.
César a César. Lisboa: & etc., 2003.
Poemas novos. Lisboa: & etc., 2004.
Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006.
6.2.2.
Antologias de poesia
6.2.3.
Prosa
6.2.4.
Entrevistas
6.3.
Sobre Sophia de Mello Breyner Andresen
124
6.4.
Sobre Adília Lopes
p. 190-204.
LOURENÇO, J. F. O poeta de Pondichéry. Expresso, 22 nov. 1986.
LUDOVICO, S. Do fim do mundo e da sua continuação: práticas intertextuais
em Nuno Bragança e Adília Lopes. Dissertação de mestrado apresentada à
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa,
Lisboa, ago. 2004.
MÃE, V. H. Quem quer casar com a poetisa? Um intromissão na vida afectiva de
Adília Lopes. In: ———. (org.) Quem quer casar com a poetisa? Vila
Nova de Famalicão: Quase, 2001, p. 171-192.
MAFFEI, L. Camões em Adília Lopes. Mimeo.
MARTELO, R. M. Recensão crítica a Obra. Colóquio-Letras, n. 157/158, jul.-
dez. 2000, p. 398-401.
———. Adília Lopes: ironista. Scripta. v. 8, n. 15. Belo Horizonte, segundo
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6.5.
Geral
1945.
MARTELO, R. M. Em parte incerta: ensaios sobre poesia portuguesa moderna e
contemporânea. Porto: Campo das Letras, 2004.
———. Reencontrar o leitor. Relâmpago: Revista de Poesia. n. 12, abr. 2003.
Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava. p. 39-52.
MAULPOIX, J.-M. Lyrisme et identité. Cadernos de Literatura Comparada, n.
8/9, dez. 2003. p. 77-89.
MELO NETO, J. C. “Poesia e composição”. In: Prosa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.
———. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
———. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
MORAES, E. J. Limites do moderno: o pensamento estético de Mário de
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1987.
POUND, E. ABC da literatura. Organização e apresentação da edição brasileira
por Augusto de Campos. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 5.ed.
São Paulo: Cultrix, 1986.
REIS, C. (org.) Textos teóricos do neo-realismo português. Lisboa:
Comunicação/Seara Nova, 1981.
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Paulo: Iluminuras, 1991.
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São Paulo: Iluminuras, 1999.
SILVA, V. M. A. Teoria da literatura. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1979.
134
VERDE, C. O livro de Cesário Verde. Com pref. de Silva Pinto. In: Obra
completa de Cesário Verde. Org. Joel Serrão. 3.ed. revista. Lisboa:
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TORRES, A. P. O movimento neo-realista em Portugal na sua primeira fase.
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Paulo: Companhia das Letras, 1999.
WOOLF, V. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2004.
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135
7.
Anexos
7.1.
Poesia e realidade*
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se ponho antes das minhas palavras esta frase de Pascoaes não é porque ela
desminta tudo quanto se possa dizer e tudo quanto eu possa dizer sobre poesia,
mas sim porque ela afirma que toda a definição de poesia que eu possa encontrar
está assente num limite.
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Eu sei que nunca se dirá tudo o que a poesia é. Nenhuma análise, nenhuma
teoria explicará o que a torna tão necessária a alguns homens e o que a torna tão
indiferente a outros.
Aquele que tem o sentido da poesia reconhece-a imediatamente, como
aquele que tem sede reconhece a água. Sem necessidade de análise, de conceitos
ou de teorias.
Mas aquele que não tem o sentido da poesia não a reconhece nunca, por
maior que seja a sua cultura e por mais vasta que seja a sua informação.
Nenhum sistema de filosofia, nenhum tratado de estética pode ensinar a
distinguir um poema verdadeiro dum falso poema.
———
Sabemos da poesia que ela é uma necessidade, mas que não é uma
necessidade geral.
Como necessidade, sabemos que ela é uma necessidade elementar e vital e
não uma necessidade secundária.
De facto, um homem que precisa de poesia precisa dela, não para
ornamentar a sua vida, mas sim para viver.
Precisa dela como precisa de comer ou de beber. Precisa dela como
condição de vida, sem a qual tudo é apenas acidente marginal e cinza morta.
———
*
Colóquio – Revista de Artes e Letras, n. 8, 1960, p. 53-54.
136
A Poesia
como a beleza já existia antes de o homem ali ter chegado, assim também a Poesia
de Saturno é anterior às viagens no espaço, às fotografias dos observatórios e até
ao facto de sabermos que Saturno existe e tem anéis.
Pois a Poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira,
independente daquele que a conhece.
Porque não somos nós que criamos o mundo.
Se o poeta procura tanto a solidão, não é só para fugir ao rumor e à agitação,
mas também para ver as coisas, quando elas estão sozinhas. A emoção que
sentimos ao entrar numa casa deserta ou num jardim abandonado, é a emoção de
vermos como as coisas sem nós existem, na sua própria realidade, em si. É com
esse em si que o poeta quer entrar em relação.
A poesia
1
Novalis diz: “A poesia é o autêntico real absoluto”, mas a palavra absoluto dá à sua frase um
sentido idealista a que não adire. [Conforme o original, embora o tempo verbal pareça
equivocado.]
137
O poeta é aquele que vive com as coisas, que está atento ao Real, que sabe
que as coisas existem2.
Pascoaes diz:
(trad. de P. Quintela)
2
É preciso aqui citar as palavras de Rimbaud: “J’ai une vision merveilleuse”. E também as
palavras de M. H. Vieira da Silva: “Os meus quadros têm sempre um ponto de partida real. É
preciso não esquecer que o pintor se habitua a olhar para as coisas e sabe realmente como elas são,
enquanto que os não-pintores só vêem por fórmulas”.
O não-pintor, o não-poeta, vê por fórmulas e a sua visão é preconcebida e morta. A visão
do poeta é original, limpa de intermediários, pura, viva e descobridora.
138
(trad. de P. Quintela)
Hölderlin diz-nos que achou “a estrada para os Deuses”. Essa estrada ele a
seguirá para além do poema e para além da loucura, quebrando o seu espírito na
busca do encontro total.
O poema
7.2.
Hölderlin ou o lugar do poeta*
Sophia de Mello Breyner Andresen
No entanto para Hölderlin não houve, no tempo em que viveu, um lugar. Ele
rola como uma pedra solta. A sua profissão é preceptor de crianças de famílias
ricas e numa carta a sua mãe escreve: “Um preceptor... é por toda a parte a quinta
roda dum carro”.
A quinta roda dum carro isto é: a roda da qual o carro não precisa para
andar. Entre Hölderlin poeta do sagrado e a sociedade burguesa não existia
nenhuma necessidade, nenhum nexo. As humilhações sofridas foram tantas que
no tempo da sua loucura ele assinava:
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Submissamente
Scardanelli
No entanto sabemos bem que, naquela consciência das coisas e do ser que
vem de Homero aos nossos dias, Hölderlin é um dos testemunhos mais luminosos,
mais perfeitos, mais puros. E também sabemos bem que, nos seus fundamentos, a
Alemanha é essencialmente aquele país natal onde se ergueu o canto e a busca
deste poeta.
Do não ser necessário, da solidão, do abandono Hölderlin tem aquele
profundo conhecimento que se exprime na pergunta do poema “O pão e o vinho”:
*
Jornal do Comércio, 30-31 de dezembro de 1967, suplemento Letras Artes Actualidades, p. 1 e
p. 11.
141
Hölderlin, por seu lado, cantava o ponto mais fundo da concepção grega do mundo:
a ideia da afinidade entre natureza, homens, heróis e deuses. Os helenos
representavam para ele a ideia da nossa interior comunidade de ser com a natureza.
É no meio deste mundo de fúria estéril que Hölderlin busca o seu caminho.
Regressando ao ponto de partida dos Gregos ele dá ao terrestre uma atenção
religiosa. Ele é o poeta salvador do terrestre, aquele que busca o encontro com o
divino no plano da criação.
Por isso no seu poema “A Hölderlin” Rilke escreve:
Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós desconfiamos ainda do terrestre?
Fazer com que o terrestre não se perverta em mundano é esta uma das
tarefas essenciais do poeta. Por isso ele busca o encontro inteiro, livre e criador
com as coisas.
É esse o encontro que Hölderlin canta quando no “Arquipélago” diz:
***
Como o Kouros é belo para propiciar os deuses também o poeta é puro para
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Para o poeta, pureza e beleza estão ligadas. Pois a beleza mostra a ordem, o
acerto do universo, a verdade que nos seres e nas coisas se manifesta. Na beleza
lemos algo que responde ao nosso destino, a significação do nosso estar na terra.
A beleza que está na estrutura duma flor, a beleza que está na estrutura do corpo
humano, a beleza que está na concha que apanhamos na praia afirmam o gesto
criador donde emergem. A missão do poeta é decifrar, revelar, mostrar e invocar
essa ordem.
Hölderlin foi esse decifrador, esse revelador, que nos ensina a dar a todas as
coisas uma atenção sagrada pois que em todas elas está comprometida a nossa
salvação.
A sua poesia parte da imanência, mas essa imanência está aberta à plenitude
da transcendência.
143
***
A Alemanha romântica é um estio maravilhoso do tempo. Mas este estio
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7.3.
Luís de Camões: ensombramento e descobrimento*
Sophia de Mello Breyner Andresen
*
ANDRESEN, S. M. B. Poemas escolhidos. Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 149-164.
(Primeira publicação: Cadernos de Literatura, n. 5, Coimbra, 1980.)
145
Mas se não aceito que Camões seja tratado como instituição, que seja
tratado abstractamente como poeta oficial, é porque nele amo e busco o poeta real.
E desse poeta real poderemos dizer, parafraseando Fernando Pessoa, que ele
foi
das próprias fronteiras, e indagar tudo, ver tudo. Somos a gente do estar duplo.
Gente que tem uma pátria, mas vai a caminho.
Camões celebra o surgir, o aparecer, aquilo a que os gregos chamaram
“aletheia”. Celebra os homens que buscam a desocultação, o emergir do
fenómeno, a escrita da terra.
Celebra sem mentir, em pura verdade, a coragem e a perícia do povo a que
pertence: uma coragem prática que ele viu. Canta uma arte de enfrentar o abismo:
Os Descobrimentos não são apenas uma obra cultural, mas um acto cultural.
Camões sabe, por isso, que traz uma poética nova, que a fonte da sua inspiração
não está no mito nem no oculto, nem num outro mundo, mas sim no exposto e no
actual e no mundo em que estamos. Nos Lusíadas, o lugar do poema é o vivido.
150
*
Na edição da Poesia completa de Cecília Meireles publicada pela Nova Fronteira, o poema tem
diferenças em relação à transcrição feita por Sophia. Sophia elimina parte da pontuação, altera a
divisão dos versos, não observa o uso de letras maiúsculas e substitui o adjetivo “dolorosa”, na
segunda estrofe, por “duvidosa”. Transcrevemos aqui o “Epigrama no 2” tal como aparece na
edição consultada: “És precária e veloz, Felicidade./ Custas a vir, e, quando vens, não te demoras./
151
E a voz de Camões, com seu tumulto rouco, sua paixão e sua veemência
ecoa neste poema de Jorge de Sena:
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,/ e, para te medir, se inventaram as horas.//
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa./ Fizeste para sempre a vida ficar triste:/ porque um dia se
vê que as horas todas passam, / e um tempo, despovoado e profundo, persiste.” (MEIRELES, C.
Poesia completa. V. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 8.)
152
Abril 1980
7.4.
Como se faz um poema?*
Adília Lopes
Apanhei o cabelo
em rabo de cavalo
agora a minha solidão
vê-se melhor
vê-se tão bem
como a minha face
E a minha face
é desassombrada
as sombras
não são minhas
*
Relâmpago. n. 14, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, abril de 2004, p. 29-30.
154
7.5.
Entrevista com Adília Lopes
Fátima. Ainda hoje tenho uma cópia dessa redacção. Foi o meu primeiro grande
sucesso literário. Em casa, a minha avó materna copiou a redacção para dar a
pessoas de família e conhecidas. Talvez não abone muito a meu favor, mas só
comecei a reparar nos meus textos depois de as professoras os terem elogiado.
Voltei a ter muito sucesso aos dez anos.
Entre os meus sete e os meus dez anos, dá-se um eclipse. Sou má aluna,
detesto o Colégio, fico em casa a desenhar para a minha mãe. Os desenhos, sim!,
davam-me prazer. Escrever não me dava prazer. E só aos nove anos percebi que
podia ler livros. Como não tinha contacto com outras crianças, havia (há) coisas
em que estava muito atrasada.
A minha mãe e a minha avó materna liam-me os Cinco da Enid Blyton
sempre que eu queria. E os livros da Condessa de Ségur. Queria ler os livros da
Condessa de Ségur que eram da biblioteca da minha mãe, que eram livros velhos.
Assim ouvi ler muitas vezes: Os desastres de Sofia, As meninas exemplares, As
férias e Os dois patetas. Só estes quatro livros chegaram às minhas mãos. Da Enid
Blyton, detestava os Sete, que achava uma traição aos Cinco. Quanto à Condessa
de Ségur, queria a companhia da Sofia, da Madalena, da Camila, etc., se aparecia
outra galeria de personagens, rejeitava o livro, mas tolerava Os dois patetas,
talvez por ser cómico.
Aos nove anos, em 1969, passei uma semana ou duas com duas primas
minhas, pela minha idade. Foi a minha prima Vera, um ano e meio mais velha do
156
que eu, que me deu a ler o primeiro livro que li: A princesinha. Eu li-o
mecanicamente, com os olhos, mas li-o assim todo, percebendo muito pouco do
que lia. Devo dizer que, mais tarde, li muitas vezes assim livros inteiros por serem
difíceis, por estarem em outras línguas. Não faz sentido, é estúpido, mas
tranquiliza. Mot à mot também se lê alguma coisa.
São os três muito fortes. Sophia é a minha mestra, o meu modelo de bem escrever
português.
8. Quais são seus personagens de ficção favoritos? Apontaria algum motivo por
que Marianna Alcoforado esteja presente tantas vezes na sua obra?
Gosto da Sofia de Réan d’Os desastres de Sofia. Gosto do patinho feio de
Andersen.
Marianna Alcoforado é uma mulher apaixonada, não parece ser
correspondida e o namorado está longe (está longe por estar longe e porque não
está apaixonado por ela). Acho que fui uma mulher assim.
12. Identifica-se com os poetas da sua geração? E, neste caso, com qual ou quais?
Não me identifico com os poetas da minha geração.
*
Em carta de 28 de agosto de 2006, Adília faz a seguinte observação: “Em relação à pergunta 16,
devo dizer-lhe que o meu quadro favorito, pensando bem, é Le couple, de Arpad Szenes. Guernica
foi o quadro que, visto sem ser em reprodução, estando perto do original, me causou mais
emoção.”
159
A crueldade premeditada.
32. Gostaria de fazer um breve comentário sobre os títulos de seus livros? E uma
pergunta: que relação há entre O marquês de Chamilly e Kabale und Liebe, que
lhe dá o subtítulo?
Um jogo bastante perigoso evocava os títulos da colecção Vampiro,
colecção de romances policiais. O Marquês de Chamilly (Kabale und Liebe) — o
título em alemão lembra-me que, quando escrevi este livro, estava na Faculdade
de Letras de Lisboa a estudar o romantismo alemão. Gostava da tradução
portuguesa Intriga e amor. Gostava das palavras em alemão: Kabale por causa de
*
“Quanto à pergunta 31, sei agora qual é o meu principal traço de carácter: gostar muito de
animais.” (Carta de 28 de agosto de 2006.)
160
33. Alguns dos seus livros em que é mais visível uma seqüência narrativa entre os
poemas são escritos a partir de outras obras, como é o caso de O poeta de
Pondichéry e de A continuação do fim do mundo. Foi também este o caso de
Maria Cristina Martins?
Não.
36. Acredita que a obra de arte possa ser, de algum modo, um ajuste de contas?
Como?
Não é um ajuste de contas. Não pode ser só isso. Não é isso. A obra de arte
é positiva, não é vingativa e não quer fazer justiça. Vejo mais a obra de arte como
o jantar que Babette prepara na Festa de Babette: reúne, vivifica, constrói, e sara
feridas.
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