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ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO EM ANGOLA: OS DESAFIOS DE UM

PERCURSO *

1– INTRODUÇÃO

Corresponder à expectativa gerada pela Faculdade de Direito da UAN ao


convidar-me para abordar um tema neste Seminário Internacional sobre
"ANGOLA: DIREITO, DEMOCRACIA, PAZ E DESENVOLVIMENTO", só pode
ser uma "tentativa impossível".

Sempre valerá, contudo e no mínimo, sem ser excessivamente problematizante


e fugindo ao discurso teórico, suscitar as questões que possam contribuir,
modestamente embora, para a captação dos elementos caracterizadores e a
apreciação dos desafios de um percurso construtivo de um projecto de Estado
que se proclama e pretende ser Democrático de Direito.

Óbviamente, vão pressupostos na análise, o Estado, o processo de construção


democrática e o direito caracterizadores do regime político que brota do
suporte normativo concretamente existente em Angola, independentemente de
qualquer juízo de valor teorético sobre a sua adequação à realidade do país.

Limitar-nos-emos ao lado jurídico, jurídico-político e cívico de quem fala em


nome de uma organização da sociedade civil, deixando que os académicos
aprofundem os aspectos dogmáticos e que as ciências humanas e sociais
como a politologia, a história, a antropologia, a sociologia, e as etnociências
olhem o problema atentos à natureza muticultural e multiétnica da realidade
subjacente.

2– A ESTRATÉGIA DE REFORMA DO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL

2.1. – A PRIMEIRA ORDEM CONSTITUCIONAL

O Estado angolano foi formalmente constitucionalizado com o surgimento da


independência nacional em 1975, tendo-se operado, ao longo de vários anos,
várias alterações à Lei Constitucional, sem que fosse posta em causa a
continuidade do sistema.

Foram cerca de 15 anos de regime constitucional monolítico e de concepção


monista do poder, com méritos e deméritos mas que, no geral, se veio a revelar
desajustado da realidade histórica, social e cultural e da idiossincrasia dos
angolanos.

Nos fins da década de 80 já não era, substancialmente, perfeitamente


compatível com os interesses, aspirações e valores da comunidade e, em rigor,
a constituição vigente "deslegitimou-se".
2.2. – PACIFICAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO: DOIS PROCESSOS
SIMULTÂNEOS MAS AUTÓNOMOS

Múltiplos factores externos e internos conduziram ao início dos processos de


pacificação e democratização do país.

Em consequência, operou-se a celebração do Acordo de Paz de Bicesse, de 1


de Maio de 1991.

Ao mesmo tempo, no quadro de uma profunda reforma do sistema político, as


instituições competentes decidiram realizar uma reforma constitucional
faseada, conducente à democratização, sem vazios de poder.

Embora simultâneos, interactuantes e reciprocamente condicionados, os


processos de pacificação e de democratização "diferenciam-se pela sua
natureza, pelos seus principais protagonistas… pelo seu conteúdo concreto" e
lógicas próprias.

A estratégia adoptada para a reforma faseada do ordenamento constitucional


englobava três momentos distintos:

A primeira revisão constitucional parcial;

A segunda revisão constitucional parcial;

A aprovação de uma nova constituição pelo poder constituinte pós-


eleitoral.

2.2.1. A CONSTITUIÇÃO DOS 100 ARTIGOS

O primeiro instrumento de concretização desse propósito político foi a


"Constituição dos 100", assim já designada pelo n.º de artigos que comporta,
aprovada em Março pela Lei de Revisão Constitucional n.º 12/91.

Trata-se de uma revisão preliminar, realizada por iniciativa, protagonismo e


responsabilidade exclusiva do poder político, com o objectivo essencial de
permitir o pluralismo político-partidário e abrir espaço à participação de outros
partidos políticos já existentes ou em emergência e constituir-se no acto
preparatório de um complexo processo político-constitucional de devolução ao
povo da sua soberania, na base dos valores da democracia.

O novo texto foi bastante inovador, caracterizando-se por eleger o "Estado


Democrático de Direito" a princípio fundamental, reconhecer e conferir espaço
constitucional aos direitos fundamentais e às liberdades individuais
consonantes com a dignidade da pessoa humana, admitir o pluralismo de
expressão política e partidária, consagrar o princípio da separação de poderes
(ainda que transitoriamente mitigado ), afirmar princípios como o da autonomia
local, a eleição do Presidente da República por sufrágio universal, a submissão
do Estado à Lei, a responsabilidade civil e criminal dos titulares de cargos
públicos pelas acções e omissões praticadas no exercício das funções,
consagrar a independência da função juridiscional e a natureza apartidária das
forças armadas e alterar a constituição económica.

A reforma política constitucional exigiu, igualmente, uma intensa produção


legiferante reguladora de princípios e direitos fundamentais.

Embora formalmente parcial, esta revisão traduziu uma verdadeira ruptura com
a ordem essencial de valores positivada na anterior constituição, traduzindo,
desse modo, uma verdadeira revisão total em sentido material.

Ainda assim, essa revisão não alterou o sistema do governo nem adaptou os
mecanismos e procedimentos de organização e funcionamento do Estado aos
novos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito.

Consequentemente, o texto constitucional passou a reflectir uma evidente


incoerência intrínseca, mostrando-se a parte sobre os princípios, direitos,
liberdades e garantias fundamentais desarmónica e contraditória relativamente
à parte sobre as estruturas organizatórias do poder político.

2.2.2. A TRANSIÇÃO/TRANSACÇÃO

A segunda fase da revisão contitucional verificou-se em 1992 , visando a


organização da transição constitucional democrática.

Desta vez, a reforma estava "virada essencialmente para a clarificação do


sistema político, separação de funções e interdependência dos órgaos de
soberania, bem como para a explicitação do estatuto e garantias da
Constituição, em conformidade com os princípios já consagrados de edificação
em Angola de um estado democrático de direito", conforme resulta do
preâmbulo do texto constitucional.

Apesar de designada "ampla e profunda", a revisão limitou-se a completar e


desenvolver a Constituição vigente, traduzindo, desse modo, uma evolução e
continuidade constitucional.

Desta vez, foi uma nova Constituição formal sem alteração da Constituição
material que, no essencial, clarificou e desenvolveu os princípios estruturantes
do Estado, designadamente o do estado de direito, da soberania popular e da
representação política democrática e ainda da democracia económica, social e
cultural.

Por outro lado, ampliou a "Bill of Rights", sendo de realçar a eliminação da


pena capital, reforçou as garantias dos direitos fundamentais e acolheu os
principais instrumentos internacionais protectores dos direitos humanos.

Acresce que esta revisão constitucional assegurou a legitimação democrática


do poder político mediante o sufrágio universal directo e secreto para uma
Assembleia representativa unicamaral eleita segundo o sistema da
representação proporcional e para um Chefe de Estado eleito de acordo com o
sistema maioritário.
Acentuou-se o princípio da separação de poderes e da interdependência dos
órgãos de soberania e consagrou-se um sistema político de governo semi-
presidencial.

Foram criados novos órgãos constutucionais como o Conselho da República, o


Tribunal Constitucional, o Provedor de Justiça, os Conselhos Superiores das
Magistraturas Judicial e do Ministério Público e o Conselho de Defesa
Nacional.

Adoptou-se uma nova organização judiciária, introduziu-se o controlo


juridiscional da constitucionalidade e acentuou-se a independência da função
juridiscional.

A nova Lei Constitucional adoptou ainda o modelo de organização territorial do


Estado que, a nível local, combina a desconcentração administrativa com a
existência de autarquias.

E afirma o mandato constituinte do Parlamento a eleger.

Esta reforma constitucional fez-se, igualmente, acompanhar de abundante e


importante produção legislativa de natureza complementar à Constituição,
essencialmente com o objectivo de tornar possível o processo eleitoral.

A transição político-constitucional viabilizada pela reforma de 1992 foi


apreciada e aprovada com a participação de todos os partidos políticos
existentes ou em processo de constituição, na época, o que lhe confere a
natureza de uma transição transaccionada.

3 – ANGOLA: ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO?

O Estado que constitui referente da constituição vigente é um Estado


Constitucional Democrático de Direito.

Estado que, além da limitação jurídica do poder político, postula a legitimação


do título e do exercício desse poder mediante o princípio da soberania popular
garantístico do direito à igual participação na formação democrática da vontade
popular.

Com efeito, de uma maneira geral, dos preceitos constitucionais resultantes da


última revisão, decorrem os princípios estruturantes do Estado de Direito (a
juridicidade, constitucionalidade e o sistema de direitos fundamentais, a divisão
de poderes e a garantia da administração autónoma local) e do Estado
Democrático (concretizado mediante os princípios da soberania e da
representação popular).

Princípios que permitem que se encare a democracia como um processo


dinâmico e inerente a uma sociedade aberta e activa que gradualmente se
transforma e adquire cada vez mais liberdade e justiça social.
Princípios e valores que, reconhecidamente, incorporam a arquitectónica de um
Estado baseado no modelo paradigmático da cultura ocidental, dotado de uma
tecnologia jurídico-política susceptível de contribuir para a estruturação de uma
convivência humana segura, justa e pacífica mas que não pode obliterar a ideia
de que a refundação dos Estados africanos, se quisermos ultrapassar o lado
formal e eufemístico de sistemas plurais, pressupõe uma cultura, uma política e
um ambiente jurídico- cultural forjados através de mais ou menos longos
processos de socialização e permanente aprendizagem conducentes à criação
e funcionamento efectivo de novas instituições, à normal e livre aceitação de
modos democráticos de legitimação do poder e ao enraizamento de novos
valores na consciência jurídica geral.
Pretendendo constituir-se num instrumento da transição, a Constituição a que
nos reportamos foi concebida para vigorar até que o órgão legislativo,
resultante das eleições, aprovasse a futura Constituição, definitiva, o que
consubstanciaria a terceira fase da estratégia.

Foi essa constituição que, sob o signo da provisoriedade, alicerçou o processo


eleitoral mas…perdura até hoje, decorridos que foram cerca de dez anos.

4 – O CONFLITO E OS SEUS EFEITOS

É que, como é consabido, as eleições que, em 29 e 30 de Setembro de 1992,


conferiram legitimidade democrática ao poder político, deram lugar ao eclodir
da guerra com, pelo menos, dois efeitos:

a)por um lado, a violenta interrupção do processo de pacificação por quem


perdeu as eleições; e

b)por outro, a interrupção da normalidade da transição constitucional para a


democracia.

A partir daí, o processo de democratização é seriamente afectado, tornando-se


impossível concluir o processo eleitoral, dificultando-se o funcionamento do
parlamento, inviabilizando-se a imediata aprovação da futura Constituição e
condicionando-se a vida democrática da sociedade.

A ausência de paz trouxe o adiamento da transição e a grave e sistemática


violação dos direitos e liberdades fundamentais.

Por outras palavras, "o que sucedeu em Angola não foi o colapso da
democracia e da transição constitucional, mas sim o frascasso de um processo
de pacificação, que vem influir na dinâmica e vitalidade da transição
democrática e não no seu mérito e continuidade".

Essa circunstância influi dificultando o funcionamento das instituições e o seu


âmbito territorial de acção e comprimindo o grau de expressão democrática da
sociedade.

Nesse qudro, a dicotomia segurança nacional/segurança jurídica, interesses da


defesa nacional/liberdades individuais, gera dilemáticas zonas cinzentas e
dificuldades interpretativas e de ponderação dos interesses- todos
merecedores de tutela constitucional- e de gestão política e mesmo de
actuação administrativa por parte das autoridades e, até, das próprias
organizações e cidadãos, receosos de que o exercício dos seus direitos possa
ser interpretado como acto de favorecimento de quem atenta contra as
instituições.

Os valores do Estado Democrático de Direito conflituam, amiúde, com a


imperatividade dos fins, com a "raison d’etat" e as situações de necessidade,
ganhando relevância os "interesses do Estado" ou as "ordens superiores", em
detrimento da constituição, da Lei e da salvaguarda do Direito, dos direitos
individuais, da segurança e estabilidade jurídica dos cidadãos.

Desse modo, aumentam as dificuldades de neutralidade e imparcialidade


institucional, originando excessos no exercício da autoridade e a interferência
indevida e discricionária em espaços de autonomia privada, com a
consequente insegurança dos destinatários das leis e todos os efeitos
negativos para a credibilidade das instituições.

5 – O PERCURSO DA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA

5.1. OS INCIDENTES DO PERCURSO

Sempre valerá a pena a mera enunciação de algumas das mais importantes


dessas ocorrências, desse quadro decorrentes, quais "incidentes de percurso"
com relevância jurídica e influência na concretização do projecto de transição
democrática.

Desde logo, a eventual inconstitucionalidade de algumas das cláusulas do


"Protocolo de Lusaka" , em nome da supremacia da "partilha do poder" e com o
fim de fazer face à conflitualidade político-militar e atingir a paz e a
reconciliação nacional.

Inconstitucionalidade é, também, o epíteto que alguns atribuem à omissão


temporária de nomeação do Primeiro Ministro (ainda que ao abrigo da
denominada "clausula de plenos poderes" e tomando em consideração a sua
qualidade de coadjuvante do Presidente da República na sua veste de Chefe
do Governo), verificando-se, tão-só, para outros, o risco de ferir a Constituição
se a omissão se mantiver e deixar de ser proporcional à anormalidade
constitucional que a justificou..

A conformidade com a constituição suscita-se, ainda, a propósito da pretensão


de suspensão do mandato de deputados, alegadamente por indícios de graves
crimes públicos, precedida da (cautelosa e bem intencionada mas de não
menos duvidosa constitucionalidade) pretensão de solicitação de parecer,
sobre a matéria, ao Tribunal Supremo.

Do mesmo modo que se suscitam plúrimas interrogações sobre a entidade


constitucionalmente competente para dirimir os litígios e controvérsias
inerentes à legalidade e legitimidade de muitas das lideranças partidárias
sobreponíveis e que se esgrimem dentro da mesma instância partidária,
caricaturando o sistema de partidos e o seu palco de intervenção.

Inconstitucionalidades e ilegalidades em matérias conexas com o exercício de


direitos, liberdades e garantias fundamentais têm sido igualmente invocadas.

Desde logo, a propósito da liberdade de imprensa e da associada questão da


prova da verdade dos factos e da exceptio veritatis

O mesmo ocorre com o direito de manifestação que, nos termos da respectiva


lei, não carece de autorização prévia mas de mera comunicação (conceitos
distintos e inconfundíveis), sem prejuízo da possibilidade de proibições, pelas
autoridades competentes e com base em imperativos legais bem
determinados.

Merece referência, também, o direito de associação (que, no plano constitutivo


e para a aquisição de personalidade jurídica, se basta com o depósito dos
estatutos, cabendo à Procuradoria o ónus da promoção da sua extinção
judicial) e a diferenciação entre as associações privadas com fins político-
cívicos, permitidas pela nossa ordem jurídica e que se contradistinguem das
associações políticas especiais que os partidos políticos são.

Ou ainda as questões interpretativas relacionadas com o pluralismo sindical e o


direito à greve.

Para não falar já do clima de suspeição que paira sobre a administração


pública, a insuficiente responsabilização política dos titulares de cargos
públicos e a timidez do recurso aos meios graciosos e contenciosos de
impugnação dos actos administrativos, quer pelos défices de cultura
democrática prevalecentes quer pela insuficiente credibilidade das instituições
judiciárias.

5.2. SINTOMAS DE EVOLUÇÃO

Tais ocorrências, algumas isoladas e fugazes e outras verificáveis com alguma


persistência, não põem em causa nem a continuidade nem o aprofundamento
do processo e do sistema democrático.

Bem podem ser vistos como sinais de dolorosa convivência e aprendizagem


democrática dentro de um quadro que vem revelando sintomas de evolução
positiva, tanto no plano da existência e do funcionamento das instituições como
no do exercício dos direitos e da cultura cívica.

As próprias eleições (apesar de não terem conduzido à pacificação) produziram


efeitos não desprezíveis no plano da democratização da sociedade.

Viabilizaram a existência e funcionamento de instituições democráticas (a


Assembleia Nacional eleita, a continuição das funções presidenciais e um
governo baseado na maioria parlamentar e integrando representantes de
outras forças políticas) e da oposição política.
Outrossim, permitiram, no Parlamento, a maior coabitação política desde
sempre verificada em Angola e contribuiram para criar na consciência colectiva
a ideia de que o sufrágio é um meio idóneo de exercício da soberania popular e
de acesso e legitimação do poder político.

O sistema jurídico-constitucional revelou possuir suficientes "válvulas de


escape" susceptíveis de evitar vazios de poder relativamente ao Parlamento
Nacional e ao Presidente da República e ao exercício provisório de funções do
Tribunal Constitucional pelo Tribunal Supremo, do Provedor de Justiça pelo
Procurador Geral da República, dos Conselhos Superiores da Magistratura
Judicial pelo Plenário do Tribunal Supremo e da Magistratura do Ministério
Público pela PGR.

A propósito, não faltam vozes compreensivelmente interrogativas embora com


grandes dificuldades de demonstração da falta de legitimidade das instituições
perante as referidas "válvulas de escape" e o evidente estado de necessidade
constitucional que a situação de prolongada crise pós-eleitoral traduz.

O sistema de partidos viu aumentar vertiginosamente o número de


organizações partidárias inscritas no Tribunal Supremo que de 17 partidos e
uma coligação concorrentes às eleições ultrapassou, hoje, a centena.

Surgiram algumas das instituições garantísticas do sistema democrático e dos


direitos como o Conselho da República, enquanto órgão consultivo do
Presidente da República, os Conselhos Superiores das Magistraturas, órgãos
de defesa e legitimação da independência externa das magistraturas
relativamente aos outros poderes e, muito recentemente, o Tribunal de Contas,
com a sua função fiscalizadora preventiva e sucessiva da gestão das contas
públicas.

A despeito das dificuldades de gestão política a que se aludiu, perante uma


situação de anormalidade constitucional justificativa da postura extrema de
providências legais contra a existência de um partido armado, não podemos
deixar de registar, como um dado de assaz relevância político-jurídica, a
circunstância de nunca ter sido decretado qualquer estado de excepção,
limitativo dos direitos e liberdades, antes se optando pelo esforço de
democratização.

Anote-se, ainda, a verificação, no debate das grandes questões do processo de


transição democrática, do recurso cada vez maior à argumentação legal e
jurídica bem assim como o crescente recurso aos tribunais e a consciência da
idoneidade dessa via para a solução dos conflitos jurídicos ainda que de raíz
política ou mesmo político-jurídicos.

A esse respeito, limitamo-nos a uma breve referência ao recurso ao Tribunal


Supremo, enquanto Tribunal Constitucional, feita pelo Presidente da República
para a clarificação do sistema de governo e a definição da sua chefia.
Cabe aqui apontar, igualmente, os sintomas de independência dos tribunais
face aos outros órgãos de soberania, em matérias sensíveis como a decisão do
Plenário do Tribunal Supremo, na sua função de Tribunal Constitucional que,
em processo de fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade, retirou
poderes aos tribunais militares, conferidos por lei do Parlamento Nacional
promulgada pelo Presidente da República.

A questão contitucional pode e deve ser o cerne do debate político sobre a


pacificação, a reforma política e a democratização da sociedade.

Por isso, outro aspecto digno de menção positiva é o impulso da elaboração da


nova Constituição, a criação de uma Comissão Eventual da Assembleia
Nacional, para o efeito, e o facto de, apesar das diferenças prevalecentes, os
trinta e dois princípios que constituem o travejamento essencial da futura
Constituição, terem sido aprovados por unanimidade, em consequência de
negociações longas, tensas, mas democráticas.

Finalmente, aponto o surgimento de uma sociedade civil com cada vez maior
capacidade (ou, pelo menos, cada vez mais interessada) em influenciar as
políticas públicas e a ampliação do espaço da cidadania.

O debate político e a intervenção cívica de organizações e redes de


organizações são uma realidade crescente, com a conquista do exercício cada
vez mais livre e responsável dos direitos, liberdades e garantias individuais dos
cidadãos.

5.3. OS DESAFIOS DA ACTUALIDADE

Apesar dos referidos incidentes e sinais de evolução do caminho para a


democracia, não são poucos os desafios com que, na actualidade, nos
confrontamos.

O primeiro é o da conquista da paz, pressuposto para o términus do projecto de


transição democrática com a realização de eleições gerais livres e a criação da
estabilidade necessária ao funcionamento das estruturas democráticas e à
afirmação dos direitos fundamentais.

Completar as instituições previstas na Constituição (Primeiro Ministro, Provedor


de Justiça e Tribunal Constitucional) é outra prioridade.

E lançar as bases políticas e jurídicas para a consolidação do Estado


Democrático de Direito com a prossecução do processo constitucional e a
aprovação de uma nova Constituição que, além do mais:

Amplie a carta de direitos humanos e as respectivas garantias jurídicas;

Estabeleça a divisão e o equilíbrio entre os poderes ;


Assegure uma descentralização administrativa coerente com o já
adoptado princípio do estado unitário e criando um poder local que não tema a
"municipalização do país";

Reforme profundamente o sistema judiciário na esteira da sua eficácia e


humanização;

Garanta a democratização do acesso à Justiça;

E repense o sistema de fiscalização da constitucionalidade.

É necessário todo o empenhamento possível para a preservação e gradual


construção do Estado, condição para haver Estado de Direito, e o exercício da
autoridade com rigorosos critérios de legalidade contrários à dicricionariedade
e ao improviso.

Importa assegurar a existência de uma administração pública que se estenda a


todo o território nacional, que se caracterize pela isenção e "despolitização" e
sem a opacidade administrativa que ainda se verifica.

É preciso tomar em consideração que o fenómeno da corrupção não é uma


ficção mas uma realidade que se apresenta endémica e sistémica, com
profunda relevância e efeitos, designadamente políticos, jurídicos, sociais,
económicos e éticos, reclamando a constitucionalização de uma autoridade
que, sem colidir com as funções das entidades inspectivas, de investigação e
as funções do Ministério Público, da PGR e dos Tribunais, seja capaz de
promover a mudança, mediante a formulação de estratégias adequadas, e de
concorrer para o fortalecimento da vontade política necessária à alteração da
cultura de inversão de valores predominante.

A natureza dos incidentes atrás enunciados, mostra bem que, além de garante
da paz social, o sistema judicial repercute ou contraria a acção política,
amplifica ou minimiza as frustrações e as esperanças colectivas e é
indispensável para a estabilidade do sistema político e a transição democrática,
constitui parâmetro do desempenho dos órgãos de soberania e condição
essencial da legitimação do próprio Estado de Direito.

"Os tribunais não são uma instituição moderna nem uma invenção da
democracia.Todavia ocupam uma posição central e singular no moderno
Estado de Direito Democrático, definida pela necessidade de assegurar a sua
"neutralização" política e a sua isenção perante as partes em litígio.É isto que
justifica a caracterização do poder judicial como órgão de soberania e o que
postula a sua rigorosa independência."

Daí a nossa eleição da independência real dos tribunais como um dos maiores
desafios do percurso democrático.

E que advoguemos que um diagnóstico abrangente e profundo do sistema


judicial e judiciário, não apenas no aspecto normativo mas também no jus-
sociológico, não apenas numa perspectiva estática mas igualmente dinâmica,
seja o ponto de partida para enfrentar as actuais disfuncionalidades da
administração da Justiça.

Imprescindível é, ainda, promover a intervenção social e cívica da sociedade


civil e um clima de parceria estratégica com os poderes públicos de modo a
assegurar o debate público e promover os valores da tolerância em relação às
diferenças e a intolerância perante a indiferença e as violações da legalidade,
bem como os valores do Direito, da Justiça e da solidariedade social.

As relações entre o Estado e a sociedade civil nem sempre são pacíficas e


lineares, apresentando-se, amíude, tensas, procurando as organizações
sociais conquistar a sua autonomia e independência em relação ao Estado e
tentando o Estado apropriar-se da sociedade civil através das suas
organizações.

O recentemente publicado Decreto do Conselho de Ministros sobre as


Associações e outras instituições de utilidade pública parece reflectir essa
tensão.

O parecer sobre o projecto de diploma legal elaborado por todas as


organizações representativas das profissões liberais foi, no essencial, ignorado
e, em contrapartida da atribuição de direitos praticamente inexistentes,
estabelece a possibilidade de um considerável grau de intervenção e controlo
governamental sobre as associações declaradas de utilidade pública bem
como as associações de direito público, numa excessiva e ingerente tutela
inspectiva que, traduzirá, certamente, a mais recente inconstitucionalidade do
nosso percurso democrático.

Por isso, não podemos deixar de, nesta ocasião, em nome da Ordem dos
Advogados de Angola, enquanto associação de direito público preocupada com
os princípios e valores do Estado Democrático de Direito e a defesa de um
associativismo e parcerias sérios e responsáveis, declarar que renunciamos
aos direitos que essa lei nos quer oferecer porque rejeitamos as limitações a
que, objectivamente, nos quer sujeitar.
6 - CONCLUSÃO

Diremos, a concluir, que Angola tem, relativamente ao mundo, desníveis no


plano do desenvolvimento que se traduzem na situação de sobrevivência do
seu povo.

E é nesta terra, que quotidianamente sangra, que se luta para preservar o


Estado, alicerçado no Direito, e construir a Democracia, convictos de que,
condicionada por ela, também é condição para a conquista da Paz.

Vivemos sob o signo da incerteza.

Cito Karl Popper: "Só podemos ser optimistas sobre o presente, não sobre o
futuro…Podemos fazer alguma coisa para influenciar o futuro. Mas o futuro
nunca será seguro. Nem certo".

Para os angolanos, só é certo que temos um futuro incerto.


Mas mantemos permanentemente acesa a esperança no amanhã.
Muito obrigado.
NOVA CONSTITUIÇÃO PODE DISSOLVER PARLAMENTO

Há um pormenor a considerar nesta Assembleia Constituinte: quando


aprovarem a Lei Mãe, os deputados poderão ditar o fim do seu mandato
Conhecida a proposta advogada pelo Presidente José Eduardo dos Santos
para as eleições presidenciais a constar na nova Constituição, foram várias as
vozes que se fizeram ouvir, traçando os mais diversos cenários e algumas
opondo-se simplesmente.

Ora, os dois maiores partidos angolanos defendem o presidencialismo como


sistema de governo, a Nova Democracia, a menor representação no
Parlamento, também. Posto isso, fica claro que há uma corrente de políticos
muito forte a dizer que não quer o sistema que actualmente vigora, é preciso
mudar. Se o que se pretende é o sistema presidencialista (com algumas
diferenças nas propostas), então a nova Constituição ditará que o actual
parlamento e o actual executivo estão a prazo, ou seja, os angolanos não
voltarão a eleger os seus representantes nos pressupostos com que o fizeram
em mil novecentos e noventa e dois e em dois mil e oito. Se a opção for por um
sistema presidencialista deixaremos de ter um Primeiro-ministro.

Na verdade, o actual Primeiro-ministro (a figura) não é eleito de forma directa,


nem se apresenta às eleições como cabeça de lista, os eleitores não sabem
quem irá para o cargo, não coordena o Conselho de Ministros, nem é o
responsável último pela acção do governo. A ideia advogada pelo Presidente
levanta outras questões. Se ficar plasmada na Constituição e se a Constituição
for aprovada em dois mil e dez, no primeiro semestre, isso pode significar que
até ao final daquele ano deverão ocorrer eleições.

O Parlamento será dissolvido e quem encabeçar as listas dos partidos ou


movimentos de cidadãos (caso a Constituição o permita) na próxima eleição
estará a ser candidato para o cargo de chefe de Estado. Este chefe de Estado
estará fortemente comprometido com o programa do partido que ganhar.

O Presidente tem de ser do partido que governa

No actual cenário, se se realizarem eleições antes da nova Constituição entrar


em vigor, como algumas pessoas defendem, e sabendo que o Presidente da
República é o chefe do governo, imagine-se um filme em que ganhe o
candidato do MPLA (José Eduardo dos Santos seria o candidato, nada indica
contra), o país entraria teoricamente num problema.

Se José Eduardo dos Santos ganhasse as eleições antes da entrada em vigor


da nova Constituição, quando esta fosse aprovada criaria um descompasso
entre o Presidente e o governo. O Presidente teria quatro ou cinco anos de
mandato para cumprir e o governo apenas dois (as próximas legislativas
deverão ocorrer em dois mil e doze), ou o governo e o Parlamento teriam de
ganhar mais dois anos de borla, sem eleições, para acertar o passo com o
Presidente.
Veja-se agora num caso em que Isaías Samakuva ganhe as presidenciais:
Como lideraria um governo saído de outro partido? Como governaria com um
programa que não subscreve e que critica? Que respeito lhe teriam os
membros de um governo apoiado por um partido com maioria qualificada no
parlamento, tendo o partido do Presidente apenas dezasseis deputados em
duzentos e vinte?

Portanto, em tal cenário, a saída seria o Presidente dissolver o Parlamento


(criando, ou procurando resolver uma crise institucional) e convocar novas
eleições legislativas. E se o MPLA voltasse a ganhar? O presidente demitir-se-
ia? Não lhe restaria outra saída.

Um outro cenário, ainda, é o de se prolongar o debate sobre a Constituição e


fazer com que as próximas eleições se realizem apenas em dois mil e doze.
Aqui poderíamos ter o problema da confiança dos angolanos nas instituições. A
ideia que existe é que o debate esteja pronto em dois mil e dez e, ademais, o
próprio parlamento se auto-impôs um prazo para aprovar a Constituição.

Descompasso temporal

Um quadro apontado por alguns analistas, se a proposta do Presidente José


Eduardo dos Santos vingar na Constituição nova, é o da possibilidade de o
actual Presidente se fazer legitimar num novo mandato via Parlamento, tendo
sido cabeça de lista do partido que ganhou as eleições e evitar submeter-se a
novo sufrágio (validando o sufrágio a que se sujeitou em dois mil e oito com o
MPLA).

Neste caso voltaríamos ao descompasso. Se o Parlamento elegesse José


Eduardo dos Santos como Presidente da República, eventualmente à luz da
nova Constituição, e se isso ocorresse em dois mil e dez ou em dois mil e
onze, quanto tempo mais teria o Parlamento de vigência e, ou, quanto tempo
teria o Presidente de mandato até às novas eleições para se ter um governo
num sistema presidencialista? A aprovação da nova Constituição ditará uma
espécie de resert na nossa política.

Irá recomeçar tudo do zero, ou perto disso, e aí, a única saída, para já, é a
dissolução do Parlamento, a “queda” do governo e ir toda a gente a votos outra
vez. A questão é saber se o MPLA terá até lá mantido o apoio popular que lhe
permite estar agora com praticamente todo o Parlamento com a sua camisola.

Maturidade democrática

Seria um sinal de maturidade democrática, a interrupção da actual legislatura


para se recomeçar com um sistema presidencialista, se for este o sistema
previsto pela nova Constituição. Não há mal absolutamente nenhum numa
eventual dissolução do Parlamento.

Seria mesmo uma imposição da razão, o acerto com a Lei magna. Em vez de
sinal de instabilidade das instituições, os angolanos veriam na dissolução do
Parlamento (neste caso da entrada em vigor da nova Constituição) um virar de
página e a entrada numa nova fase de estabilidade e o sinal de cumprimento
do passo que falta para que o país possa dizer-se verdadeiramente
democrático e com as instituições legitimadas, todas elas, pela vontade do
povo.

Num último caso, seria sempre uma forma de exercício do direito de eleger os
representantes do povo, uma forma mais de se voltar a discutir o país e as
propostas apresentadas pelos diversos actores políticos. O mundo está cheio
de exemplos de parlamentos dissolvidos a meio da legislatura sem que isso
significasse algum drama. No futuro de Angola nada exclui a possibilidade de
por uma ou outra razão se vir a impor a necessidade de eleições antecipadas.

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