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Cuidar de si não é uma

tarefa simples
O problema central do cuidado de si é: que tipo de relação
você mantém consigo?
24/08/2018 - 21h00minAtualizada em 24/08/2018 - 21h00min
CHRISTIAN DUNKER




Alcebíades é um dos mais valorosos guerreiros e atletas gregos do século 5 a.c. Bonito e bem educado, rico

e reconhecido, ele procura seu antigo mestre de juventude, Sócrates. Agora, ele se sente realizado e sua

ambição é entrar para a política. Seu destino é mandar e, para isso, ele precisa de um bom conselheiro. Mas

quando ele pergunta para o velho sábio, afinal, como deve agir aquele que ambiciona o poder, recebe como

resposta algo inesperado: cuida da tua alma.

Cuidar de si tornou-se, assim, assunto filosófico antes que alma fosse tratada como tema religioso ou

teológico. Cuidar de si não é uma tarefa simples, e o maior erro é imaginar que cada qual pode ser ensinado

para isso. Cuidar de si não é seguir cegamente um conjunto de regras, nem mesmo praticar exercícios ou

fazer dieta. Isso tudo pode ser feito, mas o problema central do cuidado de si é: que tipo de relação você

mantém consigo? A mesma que um general tem para com suas tropas? A que um juiz tem com o réu?

Talvez a que o pai tem com o filho? Nada disso, porque, em todos os casos anteriores, trata-se de exercer

uma espécie de poder sobre si. Aquele que tem uma relação de submissão ou dominação para consigo

tende a reproduzir essa mesma relação com o outro, logo, é a pessoa menos indicada para se tornar um

político, um chefe ou um líder de qualquer tipo.

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Sofrimento e produtividade

O consumo de medicações psicoativas tornou-se parte de nossa infelicidade
ordinária

O que os gregos chamavam de cuidado de si não é o mesmo que o conhece-te a si mesmo. Não é uma

prática de introspecção nem um teste autodiagnóstico, mas envolve uma prática dialogal com o outro e

consigo. Cuidar de si começa pela possibilidade de escutar-se. Daí que as práticas de cuidado de si

envolvessem exercícios como: análise das próprias ideias, convicções e valores, ver as coisas de perto e vê-

las de longe (observar estrelas, por exemplo), meditar sobre a morte, meditar sobre o futuro, examinar o

passado, interpretar seus sonhos e, antes de tudo, refletir sobre como nos colocamos nas relações de poder

e nosso persistente desejo de servidão. O contrário do cuidar de si é a nossa demanda de amparo, de ser

cuidado e, logo, de ser guiado pelo outro. Por isso, o cuidado de si é uma prática ética para dizer bem o que

se quer, para descobrir caminhos e ponderar sobre nossas escolhas e desejos. A psicanálise, bem como uma

parte das psicoterapias, descende das práticas helenísticas de cuidado de si. Observemos que tais práticas

não são nem políticas nem educativas, mas interferem e condicionam nossa relação com o saber e com o

poder. São como aquelas pessoas que mudam de religião a cada verão, como que a esperar que uma hora

encontrarão o bom mestre.

Quando se fala em temas éticos transversais nas escolas, quando se valoriza a empatia e a formação

cultural, o cultivo dos talentos e das potencialidades, muitas vezes no contexto do “capital humano”, do

desenvolvimento humano e da empregabilidade, nem sempre levamos em conta que tais práticas nunca

poderiam ser dissociadas da estrutura ética na qual elas acontecem. E o maior paradoxo é que, quase

sempre, elas se transformam em disciplinas e regras de ação ou de controle consigo mesmo. Apesar de

bem intencionadas, quando a estrutura ética do cuidado é substituída pelo poder sobre si, geralmente

encontramos resultados contrários e estranhos.

É assim que as cirurgias estéticas se tornam um fim em si mesmo, que nunca alcançam o resultado

esperado, porque a relação sobre si é de poder, e não de cuidado. É assim que o ex-fumante passa a odiar

cheiro de fumaça. É por isso, também, que tantas vezes os regimes alimentares evoluem para anorexias e

bulimias. Quando dá certo, dá errado. Isso acontece porque a relação como o poder não mudou, e a relação

consigo permanece a mesma.


O mais difícil, portanto, é criar uma espécie de conversão para o cuidado, sem confundir nem reduzir o

cuidado à educação e ou as fórmulas de obediência. Em tempos de eleição, seria possível e desejável

observar quais candidatos recolheram a lição de Sócrates e quais deles apenas ainda falam a linguagem da

ordem ou da administração de si e dos outros.

Sofrimento e
produtividade
Revertemos o sofrimento como algo a ser evitado para nossa
aceitação tácita de que é preciso fazer sofrer
10/08/2018 - 17h00minAtualizada em 10/08/2018 - 17h00min
CHRISTIAN DUNKER




A Constituição de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde, dois anos depois, representaram um

esforço do Brasil para criar uma forma de vida em confronto ativo com o mal-estar. A criação do SUS,

depois a reforma psiquiátrica e depois ainda o Sistema Único de Assistência Social (Suas) generalizam a

cobertura de saúde, antes restrita aos que trabalham. Ela incorporou a mutação do conceito de saúde, do

silêncio dos órgãos e da ausência de doença para o, assim definido pela Organização Mundial de Saúde,

“mais completo estado de bem estar bio-psico-social”. A ideia de levar saúde de forma universal, integral e

equitativa para todos, em um país de natureza federativa como o nosso, não tem muitos paralelos no

mundo. Ainda mais quando se considera que este projeto ambicioso convive com patamares de

financiamento que vão dos 3% aos 5% do PIB, quando países europeus chegam a 20% e a média africana

é de 9%.

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O consumo de medicações psicoativas tornou-se parte de nossa infelicidade
ordinária
Contudo, quero chamar a atenção para o momento no qual este projeto acontece e para outra mutação,

talvez inesperada, que o acompanha. O Estado de Bem-Estar Social surge no pós-guerra, no contexto do

programa liberal de proteção do trabalhador. Ele responde à ancestral preocupação do Estado com as

epidemias que ameaçam a soberania nacional e o adoecimento dos trabalhadores que prejudica a

produtividade empresas. Por isso, é preciso proteger a população do sofrimento, pois ele diminui o

engajamento, aumenta o absenteísmo, altera imprevistamente a ocupação de postos ou pode manter

pessoas envelhecidas indefinidamente em suas funções. Um ano depois de abolirmos a escravidão,

Bismarck criava a aposentadoria. Vinte anos depois do “verão na praia”, símbolo da realização do estado

de bem-estar social, nós criamos o SUS.

Entre uma coisa e outra, infiltrou-se uma mudança inesperada. Em 1974, Myrdal, epígono da teoria liberal,

dividia o prêmio Nobel com Hayeck, teórico do neoliberalismo. Implantado pela primeira vez no Chile de

Pinochet, no contexto do golpe de 1973, o neoliberalismo não é apenas a defesa da diminuição do Estado,

ele traz consigo uma nova política para o sofrimento. Por que, em vez de proteger contra o sofrimento, não

estimulamos o sofrimento como motor do aumento de produtividade? Por que não demitir 10% dos

empregados de uma empresa anualmente, apenas para criar um clima paranoico, de reality show, e, com

isso, fazer as pessoas se engajarem mais em suas tarefas? Por que não praticar uma política esquizoide que

faz os diferentes departamentos de uma empresa competirem entre si, de modo a criar uma pressão para

aumentar o valor agregado de cada unidade e a redução de custos? Por que não valorizar os trabalhadores

maníacos que se dedicam permanentemente com sangue nos olhos e imunidade (natural ou artificial) ao

cansaço? Por que não dar mais trabalho do que a pessoa pode aguentar fazer, para aproveitar-se de seu

sentimento de culpa, inadequação e insuficiência para extrair um extra de foco e dedicação? Por que não

criar trabalhos em regime precário ou intermitente, como o dos operadores de telemarketing ou dos

caminhoneiros, de tal maneira que a métrica comparativa, a humilhação e a agressividade contida de cada

um possa se verter em mais resultados, ainda que com o efeito colateral epidêmico em termos de depressão

e suicídio?

Ou seja, o desmanche do SUS, sua asfixia planejada, não é só parte de uma época de “vacas magras”, mas

depende desta reversão do sofrimento como algo a ser evitado para nossa aceitação tácita de que é preciso

fazer sofrer, desenvolver técnicas de sofrimento em estrutura de gestão, para poder extrair mais e melhor
resultados produtivos. A ironia maior é que aqueles que hoje defendem a máquina de moer carne serão os

mesmos que amanhã se queixarão por ter virado bagaço de cana.

O consumo de
medicações psicoativas
tornou-se parte de nossa
infelicidade ordinária
Nada contra super-heróis e seus superpoderes, mas
modulações químicas continuadas criam uma versão de nós
mesmos mais além dos recursos disponíveis e desejáveis
27/07/2018 - 17h00minAtualizada em 27/07/2018 - 17h00min
CHRISTIAN DUNKER




Nos anos 1990, uma nova geração de medicações antidepressivas tornou-se rapidamente popular. As

pílulas da felicidade anunciavam a morte de Freud e a aposentadoria compulsória da psicanálise. Trinta

anos depois, o consumo de medicações psicoativas tornou-se parte de nossa infelicidade ordinária. A maior

parte destas substâncias não é receitada por psiquiatras, mas por cardiologistas, ginecologistas ou clínicos

gerais, e repostas sem acompanhamento por anos. Cada consumidor aprendeu a manejar sua própria

alquimia observando sintomas, aumentando ou diminuindo dosagens ao sabor dos dissabores da vida.

Há certos percursos típicos. Aos sete anos, o metilfenidato compensava aquele atraso de aprendizagem.

Aos 15, os moduladores de humor reduziam a irritação e os acessos de raiva. A depressão que

acompanhou a entrada da faculdade somou três medicações nas costas, fora o benzodiazepínico no bolso
para esquecer ataques de pânico. Com o trabalho e suas preocupações, veio o indutor de sono. Enquanto

investigamos bipolaridade ou personalidade borderline, tentamos o lítio.

A mesma trajetória tem outra versão. Logo no início, um empurrão “químico” para ser aceito na escola

mais concorrida. A adolescência ótima, depois do acolchoamento de conflitos e da vantagem competitiva

com foco no desempenho. Vida sexual acima da média contando com a “azulzinha” preventiva. No

trabalho e na universidade, muita extroversão, proatividade e voracidade. Tudo isso graças à combinação

de estimulantes, para aumentar a “pegada”, e acolchoamento antidepressivo, contra quedas narcísicas. Até

que, inesperadamente, entrou em um túnel de sofrimento, falta de sentido e ideação suicida.

Adicionalmente, cresce o uso “automedicativo” de drogas ilícitas. Pessoas tratando depressões com

cocaína, ansiedade com maconha, inibição com anfetaminas, situações sociais de vulnerabilidade com

regimes químicos de modulação da paisagem subjetiva, ademais sendo criminalizadas por isso.

Há uma diferença crucial, apesar de difícil discernimento prático, entre usar medicação para suprir o que

não se consegue fazer e usar a mesma medicação como doping para acrescentar poderes que você não

possui. Seja como caso incurável de “diabetes” psíquica ou como caso crônico de sucesso “aditivado”, é

preciso considerar seriamente se estamos em um uso compensatório ou dopante de medicação psicoativa.

Nada contra super-heróis e seus superpoderes, mas modulações químicas continuadas criam uma versão de

nós mesmos mais além dos recursos disponíveis e desejáveis. Evitar conflitos crônicos, reduzir

machucados da alma, mitigar a dor criada pelas quinas da vida ou diminuir o peso do mundo são

benefícios preciosos das medicações psicoativas, mas cedo ou tarde o real retorna ao lugar de onde ele foi

suprimido, e é melhor estar preparado para isso com o tamanho justo do ego, com o volume preciso do seu

mundo, senão é só doping e autoengano.

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