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Neste ponto importa lembrar que, como cristãos, ousamos divergir da leitura histórica à
nossa volta. Das Sagradas Escrituras aprendemos a perceber a mão divina a guiar o
desenrolar dos fatos, ainda que ela nem sempre seja plenamente perceptível. Todavia, o
povo de Deus sempre ousou ler sinais da intervenção divina em nossa história. Israel, um
povinho à margem da história, aprendeu a ver a mão forte do Senhor quando foi resgatado
da escravidão no Egito. O punhado de discípulos também percebeu a mão divina quando da
majestosa ressurreição de Jesus. Por isso a historiografia bíblica é tão diferente das crônicas
do seu tempo. Ela não conta a história dos grandes, mas a dos pequeninos. Fala de
andarilhos e peregrinos guiados por Deus em uma história com rumo e destino — a história
da salvação.
Nessa perspectiva, não precisamos negar os condicionamentos históricos que influíram nos
acontecimentos que o povo de Deus viveu. Mas ousamos afirmar que condicionamentos
passados e a lei de causa e efeito não bastam para explicar o processo histórico. Este não é
o resultado da mera evolução dos fatos históricos precedentes. Assim, cremos que a história
do nosso mundo é primordialmente condicionada pelo futuro que Deus, em sua graça e
bondade, lhe quer conceder.
É nesta perspectiva que convido você, caro leitor, a olhar para a Reforma Luterana. Sem
querer menosprezar o estudo pormenorizado da conjuntura da época, aventuro-me a ver
nela uma visível manifestação da intervenção de Deus na história. Nela, antes de mais nada,
o Senhor corrige e reorienta o rumo da caminhada do seu povo, da cristandade.
Ao iniciar-se a Reforma do Século XVI, ao final da Idade Média, o cenário europeu era
marcado pela implementação do comércio, que fortaleceu as cidades e a burguesia. Os
camponeses estavam profundamente insatisfeitos com a condição de semi-escravatura à
qual estavam sujeitos há séculos. Os investimentos ousados na navegação transcontinental
sinalizavam a emergência dos estados nacionais. E, nas universidades, o humanismo
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Em seu tratado contra a prática das indulgências, Lutero expôs o que Deus lhe ensinara nos
anos anteriores. Em meio a muitas angústias e tormentos, ele tornara-se um aprendiz das
Sagradas Escrituras. Ainda que somente três anos mais tarde, em 1520, o reformador
escreveria seus livros mais conhecidos (Da Liberdade Cristã, Do Cativeiro Babilônico da
Igreja e À Nobreza Cristã), suas 95 teses já delineavam claramente a redescoberta do
evangelho com que Deus o agraciara: “Jesus Cristo é o cabeça da igreja a quem os cristãos
devem seguir com alegria através de punição, morte e inferno” (tese 94). Por meio dele
recebemos “o verdadeiro tesouro da igreja, o santíssimo evangelho da glória e da graça de
Deus” (tese 62). Por meio da fé neste evangelho da graça “qualquer cristão que em verdade
experimentou arrependimento tem direito à remissão total de punição e culpa” (tese 36).
A mensagem da justificação do pecador por Cristo somente, isto é somente pela graça,
somente pela fé e somente amparada pelo testemunho da Escritura correu a Alemanha e a
Europa. Ela tirou a fé e a vida cristã do domínio eclesiástico. O clero e os conventos
deixaram de ser o ideal de vivência da fé.
Isto não quer dizer que a Reforma Luterana foi um mar de rosas nem que Martinho Lutero
foi um servo de Deus sem pecado. Do parâmetro bíblico, sabemos que as pessoas que Deus
usou para intervir na história, até mesmo o “homem segundo o coração de Deus” (o rei
Davi), eram falíveis e carentes da graça. Da mesma maneira, a misericordiosa intervenção
de Deus na história pela Reforma Luterana é acompanhada pela sombra da fragilidade
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humana, que se evidenciou, por exemplo, na Guerra dos Camponeses (1524-1525). Nela o
conflito teológico com a ala radical da Reforma veio a mesclar-se com as crueldades desta
guerra sangrenta, praticadas tanto pelos exércitos da nobreza como pelas hordas
camponesas.
Se a Reforma Luterana fosse obra humana, certamente ela teria sucumbido. Se a palavra de
Lutero tivesse sido palavra sua, ela teria caído em esquecimento. Mas este movimento de
reforma não foi obra humana. Não resultou dos condicionamentos históricos da época. Foi,
isto sim, um despertamento que Deus gerou para reconduzir os seus amados à sua graça
inefável. Como interpretação fiel do testemunho das Sagradas Escrituras, o falar do seu
servo Lutero continua chegando a nós. Disso o seu cântico vigoroso que ecoa pelas igrejas
evangélicas de todo o mundo dá testemunho: