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A Reforma Luterana como despertamento

Martin Weingaertner, casado, cinco filhos, é pastor luterano e capelão no Tribunal de


Justiça do Paraná, autor de comentários bíblicos sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, da série Em
Diálogo com a Bíblia, e editor do devocionário Orando em Família, da Encontro
Publicações e União Cristã

Quando nossos livros de história descrevem acontecimentos passados, eles procuram


estabelecer uma conexão de causa e efeito entre os fatos. Muitos autores modernos seguem
o modelo de interpretação proposto pelo filósofo alemão Hegel. Ele entendia o mover da
história como a sucessão de tese, antítese e síntese. Em sua visão, o consenso alcançado na
síntese de um processo histórico é o ponto de partida de um novo conflito. Mais cedo ou
mais tarde, uma configuração histórica gera forças que lhe fazem oposição até se
acomodarem em uma nova síntese. Assim, a espiral da história humana se repete em
constantes revoluções e, lentamente, se move pelo tempo. Por meio de tais encadeamentos
dos fatos, o historiador tenta compreender e interpretar o passado.

Neste ponto importa lembrar que, como cristãos, ousamos divergir da leitura histórica à
nossa volta. Das Sagradas Escrituras aprendemos a perceber a mão divina a guiar o
desenrolar dos fatos, ainda que ela nem sempre seja plenamente perceptível. Todavia, o
povo de Deus sempre ousou ler sinais da intervenção divina em nossa história. Israel, um
povinho à margem da história, aprendeu a ver a mão forte do Senhor quando foi resgatado
da escravidão no Egito. O punhado de discípulos também percebeu a mão divina quando da
majestosa ressurreição de Jesus. Por isso a historiografia bíblica é tão diferente das crônicas
do seu tempo. Ela não conta a história dos grandes, mas a dos pequeninos. Fala de
andarilhos e peregrinos guiados por Deus em uma história com rumo e destino — a história
da salvação.

Nessa perspectiva, não precisamos negar os condicionamentos históricos que influíram nos
acontecimentos que o povo de Deus viveu. Mas ousamos afirmar que condicionamentos
passados e a lei de causa e efeito não bastam para explicar o processo histórico. Este não é
o resultado da mera evolução dos fatos históricos precedentes. Assim, cremos que a história
do nosso mundo é primordialmente condicionada pelo futuro que Deus, em sua graça e
bondade, lhe quer conceder.

É nesta perspectiva que convido você, caro leitor, a olhar para a Reforma Luterana. Sem
querer menosprezar o estudo pormenorizado da conjuntura da época, aventuro-me a ver
nela uma visível manifestação da intervenção de Deus na história. Nela, antes de mais nada,
o Senhor corrige e reorienta o rumo da caminhada do seu povo, da cristandade.

Ao iniciar-se a Reforma do Século XVI, ao final da Idade Média, o cenário europeu era
marcado pela implementação do comércio, que fortaleceu as cidades e a burguesia. Os
camponeses estavam profundamente insatisfeitos com a condição de semi-escravatura à
qual estavam sujeitos há séculos. Os investimentos ousados na navegação transcontinental
sinalizavam a emergência dos estados nacionais. E, nas universidades, o humanismo
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renascentista gerava espaço para um pensamento independente da dominação eclesiástica.


Inserida de maneira multiforme neste ambiente, a Igreja Ocidental, sob o comando de
papado romano, vivia um momento de opulência decadente. Para poder erguer as
magníficas edificações que adornam o Vaticano, os papas da época viviam mais
preocupados com o levantamento de fundos do que com a vida espiritual da igreja. Assim,
o cenário histórico do início do século XVI assemelhava-se a tambor de combustível.
Bastaria uma faísca para provocar uma explosão.

Foi o que aconteceu na remota cidadezinha de Wittemberg, na Alemanha. Em 31 de


outubro de 1517, na minúscula universidade, um professor da Bíblia, o monge Martinho
Lutero, afixou na porta da Igreja do Castelo uma folha com teses para um debate. Tratava-
se de um expediente acadêmico da época, cujo processo de formação rotineiramente incluía
debates públicos. Mas as 95 teses do Debate para o Esclarecimento do Valor das
Indulgências não ficaram restritas a isto. Multiplicadas aos milhares pela imprensa recém-
aperfeiçoada por Gutemberg, elas foram divulgadas por toda a Europa em poucas semanas,
inclusive na distante Espanha. Quem ficou mais abismado com esta repercussão foi o
próprio monge Lutero. Anos mais tarde ele diria que, se soubesse em que Deus o estava
envolvendo, jamais teria ousado vir a público com sua opinião.

Em seu tratado contra a prática das indulgências, Lutero expôs o que Deus lhe ensinara nos
anos anteriores. Em meio a muitas angústias e tormentos, ele tornara-se um aprendiz das
Sagradas Escrituras. Ainda que somente três anos mais tarde, em 1520, o reformador
escreveria seus livros mais conhecidos (Da Liberdade Cristã, Do Cativeiro Babilônico da
Igreja e À Nobreza Cristã), suas 95 teses já delineavam claramente a redescoberta do
evangelho com que Deus o agraciara: “Jesus Cristo é o cabeça da igreja a quem os cristãos
devem seguir com alegria através de punição, morte e inferno” (tese 94). Por meio dele
recebemos “o verdadeiro tesouro da igreja, o santíssimo evangelho da glória e da graça de
Deus” (tese 62). Por meio da fé neste evangelho da graça “qualquer cristão que em verdade
experimentou arrependimento tem direito à remissão total de punição e culpa” (tese 36).

A mensagem da justificação do pecador por Cristo somente, isto é somente pela graça,
somente pela fé e somente amparada pelo testemunho da Escritura correu a Alemanha e a
Europa. Ela tirou a fé e a vida cristã do domínio eclesiástico. O clero e os conventos
deixaram de ser o ideal de vivência da fé.

A vida cotidiana no lar e na sociedade se tornariam lugar de adoração e vivência cristã,


lugar de ministério do sacerdócio geral de todos os crentes. Os escritos e sermões de
Lutero, apesar de proibidos e excomungados, eram lidos em segredo até em conventos.
Despertadas e animadas pelo poder do evangelho em toda parte da Europa, pessoas,
comunidades, cidades e até regiões inteiras atreviam-se a sair do cativeiro babilônico da
igreja e a ensaiar passos da liberdade cristã.

Isto não quer dizer que a Reforma Luterana foi um mar de rosas nem que Martinho Lutero
foi um servo de Deus sem pecado. Do parâmetro bíblico, sabemos que as pessoas que Deus
usou para intervir na história, até mesmo o “homem segundo o coração de Deus” (o rei
Davi), eram falíveis e carentes da graça. Da mesma maneira, a misericordiosa intervenção
de Deus na história pela Reforma Luterana é acompanhada pela sombra da fragilidade
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humana, que se evidenciou, por exemplo, na Guerra dos Camponeses (1524-1525). Nela o
conflito teológico com a ala radical da Reforma veio a mesclar-se com as crueldades desta
guerra sangrenta, praticadas tanto pelos exércitos da nobreza como pelas hordas
camponesas.

Mais tarde, os evangélicos enfrentaram corajosamente o imperador Carlos V na reunião do


parlamento das nações alemãs com a Confissão de Augsburgo (1530). Ainda assim a
aliança de príncipes evangélicos foi derrotada, anos mais tarde, pelo rei da Espanha. Como
sinal de seu triunfo, ele cavalgou para dentro da igreja de Wittemberg. Seguiu-se um século
de conflitos, guerras e perseguições até que, na Paz da Westfália, os evangélicos
asseguraram o seu direito de culto no império alemão.

Se a Reforma Luterana fosse obra humana, certamente ela teria sucumbido. Se a palavra de
Lutero tivesse sido palavra sua, ela teria caído em esquecimento. Mas este movimento de
reforma não foi obra humana. Não resultou dos condicionamentos históricos da época. Foi,
isto sim, um despertamento que Deus gerou para reconduzir os seus amados à sua graça
inefável. Como interpretação fiel do testemunho das Sagradas Escrituras, o falar do seu
servo Lutero continua chegando a nós. Disso o seu cântico vigoroso que ecoa pelas igrejas
evangélicas de todo o mundo dá testemunho:

Deus é castelo forte e bom, defesa e armamento;


Assiste-nos com sua mão, na dor e no tormento.
O rei infernal das trevas, do mal, com todo o poder
e astúcia quer vencer: igual não há na terra.
A minha força nada faz, sozinho estou perdido.
Um homem a vitória traz, por Deus foi escolhido.
Quem trouxe esta luz? Foi Cristo Jesus, o eterno Senhor,
outro não tem vigor; triunfará na luta.

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