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Questão 1

Ora, se cidadão é definido como “aquele que participa de alguma magistratura da cidade”, a
diferenciação primordial entre os gêneros de regimes é dada justamente pela resposta a pergunta
“Quem participa do governo”, sendo este o primeiro critério de classificação dos regimes.
Seguindo a indicação de Francis Wolff, este critério já estava presente em Heródoto, o qual foi a
primeiro a pôr o número de governantes como critério. Ali, observamos a distinção entre três tipos
de regime: monarquia (um só governa), oligarquia (alguns governa), democracia (a massa
governa). No entanto, uma vez que o Prof. Sérgio valeu-se do Políticos de Aristóteles para
elaboração da questão, é necessário que recorramos ainda ao segundo critério posto por
Aristóteles para diferenciação dos regimes. É, afinal, este critério que marca a originalidade do
pensamento Aristotélico sobre o tema, como assinala ainda Wolf. Diferentemente do primeiro, este
segundo critério contém uma avaliação: “Em vista de quem se governa?”. Trata-se decidir sobre
os regimes que realizam a essência da cidade, ou seja, o bem comum; ou aqueles falsos regimes
políticos (não políticos, mas despóticos) cujos governantes governam em nome do interesse
particular. Cruzando ambos critérios, obtemos seis regimes possíveis. Três verdadeiros: a realeza,
a aristocracia, o regime constitucional. Três falsos (porque despóticos): a tirania, a oligarquia e a
democracia. Observemos, por fim, que Aristóteles não define uma hierarquia entre os regimes.
Obviamente, os regimes verdadeiros são melhores que os falsos. No entanto, dentre os
verdadeiros, por exemplo, não há uma especificação daquele que seria o melhor.

A verdadeira tecnologia política do texto aristótelico está na solução que ele propõe através
do “regime misto”. Aristóaristotélicoteles parte, inicialmente, das qualidades irredutíveis que
determinam fundamentalmente os cidadãos da polis: ricos e pobres. Duas qualidades que definem
dois regimes específicos: oligárquico e democrático. Não por outro motivo, dado que ricos e
pobres representam as partes fundamentais das cidades, os regimes oligárquicos e democráticos
são os mais frequentes. O objetivo de Aristóteles, como indica o Prof. Sérgio, é “encontrar o
conjunto determinado de elementos cuja ordenação permitisse realizar um bem efetivamente
comum a toda a cidade.” Estes elementos determinados são justamente os ricos e pobres. Estes
serão a matéria adequada para a ordenação da polis de modo que permita a realização desta
enquanto um todo efetivo em vista de si mesma.

Ricos e Pobres, cada qual a seu modo, conservavam uma singular “maneira pela qual
entendem legitimar suas pretensões políticas”. Os ricos priorizam a posse de bens e o aumento
do seu patrimônio. Enquanto os pobres, por sua vez, visam a preservação de sua liberdade. Ou
seja, nenhum deles, isoladamente, privilegiam o “bem viver” de todos em comunidade, ou seja, a
própria “vida política”. No entanto (e este é o movimento fundamental), Aristóteles enxerga uma
“aspiração de universalidade” em ambos regimes que pode ser efetivada a partir da integração
dos antagonismos dos regimes oligárquico e democrático. Integração esta que dará origem ao
regimes mistos que Aristóteles fundará o sob o nome de politéia, uma vez que, seguindo ainda o
Prof. Sérgio, “designado pelo nome genérico das constituições por se mostrar eminentemente
capaz de levar à realização dos fins da comunidade política.”

Assim, o regime misto é a tentativa de realizar um forma de governo baseada no equilíbrio


entre estas duas partes (pobres e ricos) a que podem ser reduzida a cidade. Para isto, é
necessário uma estrutura que garantia uma mútua influência nas decisões do governo. Afinal,
“quem governa” no regime misto são tanto os pobres quanto os ricos cuja mescla permite que o
fim visado pelo regime não seja particularista ou idealista (ex: virtude moral dos cidadão). Mescla,
neste sentido, não significa negar as pulsões de cada segmento (desejo de bens dos ricos e
desejo de independência dos pobres), mas estabelecer um campo no qual tais pulsões são
moderadas em vista do interesse geral. Não obstante, o bem é produzido pela subordinação dos
interesses particulares ao interesse superior de realização da essência da cidade. Portanto, o fim,
como afirmou o Prof. Sérgio, é a “própria efetivação da polis como comunidade ativa de todos, a
existência mesma da cidade como atividade constitucional de sua produção e conservação como
verdadeiro todo político.”

Questão 2
A depender da versão que cada pensador oferece sobre a gênese da cidade, as
repercussões destas análises genealógicas são diferentes nas definições do que significa uma
boa ordem constitucional para cada um destes pensadores: Protágoras, Platão e Políbio.

Para o pensamento de Protágoras, o mito de Prometeu é determinante. Segundo este,


quando os homens estavam sendo dizimados pelos homens porque não conseguiam formar
cidades e atuarem coletivamente, Zeus, preocupado com o futuro, ordenou que o “pudor e a
justiça” fossem distribuídos igualmente entre todos “para que todos participem deles, pois as
cidades não poderão subsistir, se o pudor e justiça forem privilégio de poucos, como se dá com as
demais artes.” Ou seja, a “técnica política” foi distribuída para todos. Não por outro motivo, Francis
Wolff assinala Protágoras como, se não o filósofo da democracia, ao menos um de seus mais
eminentes pensadores. Em vista dessa gênese pensada por Protágoras, o seu regime de governo
era democrático, baseado numa total isonomia entre os cidadãos e cujas decisões eram decididas
coletivamente nas assembléias onde todos os cidadãos, uma vez que possuíam o senso da
justiça em igual proporção, podiam participar.

Já Platão, na ocasião da República, pensa a gênese da cidade fundamentalmente a partir


da divisão do trabalho. O que ocorre é que, uma vez que as capacidades dos homens são
limitadas e por isso um só homem não é capaz de cumprir todas as funções da cidade, os homens
se unem e fundam a cidade. Os homens, portanto, são capacitados para técnicas diferentes. No
entanto, esta divisão do trabalho não permanece somente no nível das técnicas, mas evolui para
a divisão do trabalho no nível político (não estamos na “cidade das carências”, mas na “cidade dos
desejos”). A cidade será, então, dividida três grupos, os quais nutrem vínculos diretos com a
psicologia platônica fundada sobre a tripartição das almas. Em ordem de hierarquia decrescente,
as três classes funcionais são: os filósofos, os guardiões e os produtores. A justiça, neste sentido,
é definida como a permanência de cada cidadão no seu lugar de acordo com a divisão do
trabalho.

Supreendentemente, a formulação de Políbio é extremamente original. Basta notar


momentos marcantes quando, por exemplo, Políbio acusa, mesmo antes do aparecimento da
primeira forma de monarquia, acusa a formação do sentimento e da noção do dever, que ele
considera “o princípio e a finalidade da justiça”, através da super-exposição dos seres a
contingência das situações pelas quais formam-se as primeiras noções do bem e justo.

Uma vez que a falta de tempo nos impele a uma consideração de caráter mais geral, é
preciso atentar, com relação a Políbio, que a sua anacycloses passa por todas as seis formas de
governo postas pela divisão de Aristóteles que tratamos na primeira questão. Ao final do ciclo, ou
segue-se “até regredir para a animalidade total e achar novamente um senhor e autocrata
[retornando, portanto, ao início]” ou torna-se possível a elaboração de uma forma de governo que
misture elementos das formas de governos precedentes e outorgue um governo misto. Roma,
como bem sabemos, efetuou, como resultado de sua história, uma forma de governo republicada
baseada na tripartição dos poderes. É precisamente este caráter da constituição romana como
produto sua própria história que Políbio sublinha e que marca a originalidade de suas
formulações. Como disse o Prof. Sérgio, Políbio enxerga Roma “ancorada em seu passado,
conduzida por seus valores, costumes, leis e religião, humanamente constituídos ao longo de sua
história e constantemente atualizados na vida e aspirações dos cidadãos da República.” A
anacycloses de Políbio é justamente o processo pelo qual Roma fora “humanamente constituída”,
processo em que os valores foram talhadas no fogo das exigências postas pelo curso dos
acontecimentos. Se é assim, podemos dizer, sem forçar muito o pensamento de Políbio, que o
fundamento da auto-identidade do cidadão romano é a sua memória uma vez que o romano é
constituído pela consciência de uma certa continuidade no interior do tempo que determinaria o
sentido cívico do comportamento dos cidadãos romanos.

Questão 3
Foi o próprio Prof. Sérgio que nos alertava a respeito disto. Com relação ao governo misto,
“se a pauta parece permanecer a mesma, são bastante diversas, em cada caso, as maneiras de
compreender sua forma de realização.” De modo geral, o regime misto assume, em certos casos,
traços aristocráticos e, em outros, traços mais propriamente democráticos.

Nas Leis, é impossível não perceber o caráter aristocrático do governo misto platônico.
Neste texto, Platão assume uma perspectiva que poderíamos dizer mais realista, em
contraposição ao modelo lógico-normativo da República. Retornando ao primeiro critério de
definição do regime de governo analisado na primeira questão, “Quem Governa”, percebemos
que, de acordo com a caracterização platônica explicitada nas Leis, é uma determinada classe de
homens aptos a cumprir as funções de governar: os aristoi, homens de honra e virtude. Sem falar
que, com relação a confecção das leis, esta função cabia exclusivamente ao que Platão
designava como sábios legisladores. Ao povo, restavam-lhe parcos canais institucionais onde
poderiam interferir nas decisões. Como pontuou Strauss, citado pelo Prof. Sérgio, o regime misto
platônicos das Leis “é, e se quer, na verdade, uma aristocracia, reforçada e protegida pela
adjunção de institutos monárquicos e democráticos.” No limite, Platão ainda não teria se livrado
inteiramente de suas perspectivas idealistas da República, seja pelo caráter da verdade que
veiculava nas leis, seja pela finalidade visada pelo regime (excelência moral dos cidadãos), seja,
ainda, pelo caráter oligárquico e excludente do regime.

Em Aristóteles, contrariamente, são vários os meios que este mobiliza para garantir uma
maior participação de todos (isto é, pobres e ricos) nas decisões políticas. Por exemplo: punições
em dinheiro para os ricos que não participassem dos poderes colegiados e, ao contrário, incentivo
financeiro aos pobres para que pudesse deixar temporariamente seu trabalho e participar. De
modo geral, seguindo o Prof. Sérgio, “são normas como estas que parecem caracterizar esta
constituição e viabilizar a realização de seu intento integrador ou includente, a efetivação de sua
disposição essencial para o todo, para superar as formas de governo exclusivas para uma das
partes da cidade.” Aristóteles está realmente interessada no estabelecimento de “um justo meio
aceitável para todos”, como diz Aubenque, que só poderia ser alcançado pelo compromisso entre
os interesses das partes fundamentais da cidade. Para isso, é preciso evitar os excessos,
principalmente aqueles de cunho oligárquico que Platão admitia como vimos anteriormente.

Por fim, em Políbio, encontramos uma densa formulação a respeito do regime misto como
um sistema munido de um amplo controle institucional dos três poderes. O historiador grego
radicado em Roma descreve minuciosamente não somente as atribuições funcionais de um cada
dos três poderes, mas explicita o modelo utilizado para garantir que cada esfera não sobrepuje as
demais em seu exercício. No entanto, por mais que o texto polibiano teça comentários como “a
quem fixar a atenção no poder dos cônsules a constituição romana parecerá totalmente
monárquica; a quem fixá-la no Senado ela mais parecerá aristocrática, e a quem fixar o poder do
povo ela parecerá claramente democrática”, a história moderna tratou de atacar esta exposição de
Políbio. Mais do que Políbio estaria disposto a aceitar, a República Romana jamais apartou-se dos
seus traços oligárquicos profundos que sempre marcou sua história. Os traços da supremacia do
Senado são muitos: a perenidade do cargo (em contraposição a efemeridade das magistraturas),
a concentração de papéis destinadas ao Senado, o sistema censitário e a ordem da votação das
assembléias. Os historiadores modernos se esforçaram em mapear as possíveis razões para esta
leitura enviesada de Políbio. Segundo Walbank, por exemplo, fora “a doutrina da constituição
mista o cegou de modo extraordinário em relação à elaborada tessitura da vida política”. Outros
como Sebastiani, apontam as motivações ideológicas como principal elemento para a construção
dessa imagem coesa de Roma uma vez que Políbio “tornou-se cativo em Roma, o que permitiu e
facilitou a identificação de sua visão de mundo com a dos aristocratas em meio aos quais viveu e
tão bem se relacionou”. Em vista disso, devemos concordar com Maria Luiza Corassin quando ela
insiste que “ao colocar o Senado, os cônsules e o povo partilhando o poder, Políbio oferece uma
visão tendenciosa, pois ele omite o predomínio dos senadores propositalmente.”

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