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um cotidiano da periferiade um ndcleo urbane da dimen- 340 da capital paulista, mar- cado pela caréncia e dificuldade de acesso a bens de consumo coletivo, qual a posiggo ocupada pelas ques- tes da saticle? Ediisso que trata este texto: a partir de uma pesquisa domiciliar, e enfeti- zando ndo 0 poder piblico, mas os atores sociais - consumidores. vitimas eparticipes da propria formulacdo das politicas de satide - buscando deslin- dara logica dos servigos de sade, 0 imaginatio e a medicalizagao no pré- prio consumo desses servigos €amo- bilizacao por sade, Trata-se, portanto, de um texto que. dialoga permanentemente em varios preceitos jé estabelecidosnosetor, na medida em que os confronta com a realidade cotidiana clesses atores so- ciais da Otica da sua transformagao em sujeitos sociais. {i BE524 Se €DITORA Cohn Nunes + Jacobi « Karsch A SAUDE COMODIREITOE COMO SERVICO AMELIA COHN EDISON NUNES PEDRO R. JACOBI URSULA S. KARSCH ~~~ ‘ se texto busca desvolar a questto da ‘stile a partir do coticiano das clas ten populacer sediadas no ail pedk fico da cidade de Sio Paulo. Embors sus preocepagio central consists nos desatios para J conguists da sade como uum dizeito, ma me- ida em que os interlocutores sio os préprios sujelzos que demandam os servicos, este esi dda nia foge 4 eegen: © ponto de partida passa ser adochga, ov sintomas's deseonforton que, incerpretados como tal, motivam a procura de tum_stendimento, : TE necessirio, no entanto, um alets ao lator a trajetiria percorrda envolve, de um lado, umn objetivo expecitico — reconhecer ax Iagicat Sontiadisias da dinimica da compbsigio da esta de servigos que as classes populates compoem ~ mas de outro, 20 assim procedes, ‘la acaba por envolver quest®es complesas por comprcender distintos niveis de entendimento. Dentre estes o mais evidente & a pedpria diversidade dos dados. Aqucles relativos 8 condicdes sécio-econdmicas associam-se futeos, igualmente objetivos, mas que dizem respeito 4 represertag20 social dos agentes sobre saide-doenca, dreto A sadde e avaiagio do pripeio atendinnento ‘Mio te teats, poreanto, de wm texto tedzico, mas de uma articulagio analitica dos dados obtidos ostentada pela perspectiva maior da consolidagio da democracia no pals. Conseatientemente, prevalece a dtica da sade como um dirsito set constitnlds, eontrapoata A concepsio deise direito como seesso a uma assisténcla médica, no caso em questo, no sgeral de baixa qualidade, Trata-se, sim, de um texto que busca recuperar 0s sujeitos sociais, objetivo privilegiado das paliticas de saéde — © 20 mesmo tempo de cesta Forma wilimas =, a sua relagio cotidians com oF proprios servigos A SAUDE ‘ COMO DIREITO E COMO SERVIC . e004 5 9 8 Registro: 004598 Dados Internacionais de Catatogagao na Publicagao (GIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) [A Sada como direito€ coma serign / liso Nunes, Pasko Foca Unga §. Katsch ; Amilia Codn, — 2, ed — Sto Pale: Cores, 1999 Dibliografia ISDN 85-249.0912-9 1. Pott médicx — past — Sao Paulo (SP) 2, Sade publica = Piaejamento — Brasil — Administagao— Bras Pedro, IL Karseh, Ur TV. Cohn, Ama V-Series CDD-362.10981611 Indices para catélogo sistematico: 1. Sho Paso « Cidade + Monejamento de soide + Bem-cter social ‘a2. 10981611 wlo= Cilade: Pola de ilo: Cilade : Servigos de de Bem-esar social 362 de : Denes socal AMELIA COHN ‘ EDISON NUNES PEDRO R. JACOBI ‘ URSUILA S. KARSCH A SAUDE COMO DIREITO E COMO SERVICO 2 edigéio cesec A SAUDE COMO DIREITO E COMO SERVIC Amélia Cohn, Edison Nunes, Pedro Jagobi e Ursula S, Karsch Caper: Carlos Clémen Proparador de originats: Vicente Chel Rerisao: Méccia Lopes Bitencourt, Maria de Lourdes de Almeida Conposicaa: Dany Baitora Lida. Coordenagio editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorizagao expressa dos autores ¢ do editor © 1991 by Amores Direitos para esta edigao CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 387 — Perdizes (05009-000 — Sio Paulo- SP ‘Tel.: (O11) 864-0111 Fax: (011) 864-4290 E-mail: cortez@cortezeditora.com br Impresse no Rrsit — agosto de 1990 Sumario Prefiicio a segunda edigiio, 5 Introdusio, 7 1 — As herangas da satide: da politiea da desigualdade & proposta de equidade, 13 Tl — A regionalizagiio das caréncias: retrato de duas areas periféricas, 29 TI] — 0 acesso em discussic: vies da racionalidade ¢ viés da caréncia, 67 IV — A medializacao e 0 imagind sade, 95 jo no consumo de servigos de V— Saiide: da caréncia dos servigos a reivindicagio dos direitos, 133 Consideracoes Finais, 161 Bibliografta, 163 Prefacio a segunda edicdo A reedigao deste livro, mais de uma década depois da realizagio da pesquisa que fornece as informagies e os dados aqui expostos, faz sentido? Seré que esses dados nao perderam a atualidade? Nav, nfio perderam a atu- tulidade, Uma releitura curdadosa do texto, em 1999, permite afirmar cat goricamente que os dados e a anilise aqui realizadas continuam atuais: F isso iio 563 porque se tata de uun texto informado a partir de com Portamentos de consumo de servigos de saiide e representagdes sociais por parte daqueles segmentos sociais objeto preferencial das politicas de satide populagio das regides periféricas, portanto até certo ponto mais pauperizadas, das dteas periléricas do municipio de Sio Paulo, mas sobretu- do porque a andlise realizada suseita questées até hoje centrais e ainda nao superadas no debate e no embate das politicas de saride no Brasil, Seguem alguns exemplos. A primeira clessas questées diz respeito, por exemplo, 8 atualmente nda persistente polarizagiio entre Estado minimo ¢ maximo, seja Io que venha a ser isto, para insistir no destocamento do debate para a relacio Esta dofsociedade. A segunda delas diz respeito ao Fato de os dados sobre 0 coti- diano daqueles segmentos sociais na prétiea do consumo de servigos de sati- dee a andlise aqui preseates apontarem, inequivocamente, para a impossibi= Jidade da existéncia de uma concorréncia perfeita de mereada entre os seto- res estatal e privado de satide presentes em nossa realidacde, sobretudo le= vyando-se em conta as brulais desigualdades sociais que fraturam nossa soci- edade, E a terceira delas quanto a trazer 8 tona elementos que permitam analisar a questo ando-se asua dimensio politica na cons: Uuugtio da cidadania, ¢ que certamente nao se restringe a0 tamanho do Esta do na produgio dos servigns de safide, mas na qualidade ~ mais ou menos a saiide priviley 5 democratica—desse Estado. Associado a isso, ¢ em conseqiiéneia, sea ques- io da savide continua insistindo, através de pesquisas desta natureza, em se reyelar na sua dimensiio politica, eno somente quantitativa quer em termos geograficas (extensiio da cobertura) quer em termos da eqiiidade no acesso (sem divvida elementos fundamentais, mas que no esgotam a sua complex dade), a mesma ética de andlise deve ser empregada para se avaliar hoje as cexperiéncias das novas formas de gestao np setor, genericamente denomi- nadas de “pubblico nfo estatal”, Particularmente neste dltimo aspecto formagdes servem de valioso aporte da perspectiva dos usudrios-consumi dores dos servigos, para iluminar « debate e aanalise das novas racionalidades emergentes nessas inovagdes que, na busca de uma nova equagio custal beneficio na produgiio dos servigosTestatais, podem na pritiea estar signil cando a intredugao pura e simples da racionalidade privada na produgao dos servigos pelo setor piblico estatal. Exemplos nao faltam, dentre os quais talvez 0 mais expressivo deles pola sua radicalidade venha a ser a experién cig paulistana do PAS (Plano de Atendimento & Saiide), que tambem esta tendo um estudo publicado por esta Editora, Ametia Cohn Junho de 1999 Introducgao Dentre as politicas setoriais no Brasil, a satide ganha destaque pela sua acentuada politizagio e forte presenca de grupos de pressfio dados os interesses af envolvidos. Em conseqiéncia, ao debate politico assovia-se um actimulo de estudos e anélises marcados por essa carac- teristica, Nao obstante, inversamente ao senso comum, a ciéncia social 6 avessa As visdes maniqueistas, acs slogans ¢ As panacéias, mesmo Aquelas que sirvam & necesséria articulaedo de Interesses no campo da politica, E, muito embora compartilhe valores e posicdes presentes na sociedade, com inequivoco reflexo sobre 0 seu trabalho, o cientista social recusa, por profisséo, qualquer relagio mecanica ¢ imediata entre as suas preferéncias valorativas, os resultados de suas investiga- Ges © posturas pragmiiticss que delas derivem, Assim, as respostas desse profissional diferem daquclas dadas pelo politico as questées do seu tempo, tanto em termos qualitativos como por viverem tempo- ralidades distintas, Do cientista social deve-se, portanto, esperar menos referencias para # ago do que clemenos para a reflexdo, devendo ele preferir a incerteza ¢ a perplexidade a tranqitilidade des soluedes que, quer por incoeréneia ou contrafatualidade, eabe que so Iacunares, ou ainda inadequadas efou tendenciosas, Dessa forma, se parte impor- tante da tarefa do cientista é duvidar, com freqiiéncia a fonte dos guestionamentos é @ pesquisa empirica que, ao abordar uma realidade complexa, plural © heterogénea, nao permite a sua redugao a formulas simples e, no geral, resiste # anslises e marcos teéricos ji estabelecidos. % Recomenda-se, portanto, ao leitor deste fivro, de autoria de cien- Uistas socials de distin formagao, que abandone a expectativa de nele encontrar respostas priticas para a questo da satide nos setores mais pauperizados de um gronde conto urbana industriel, como é 0 caso da cidade de S20 Paulo. O que se enconira aqui ¢ um esforgo no sentido de desvelar esta questio a partir do cotidiano das classes populares sediadas no anel periférico do municipio, um dos tantos Circulos de sofrimento humane evidvel que cercam as grandes cidades deste pais. Os dados que fundam a anilise teimosamente contrariarao entendimentos correntes e criarfo questdes outras. Estaréo, em certo sentida, Iutando contra o seu tempo, de transformagdes extensas profundas, que, paradoxalmentg, t1az consigo 0 estabelecimento de conviegdes erescentemente arraigadas. Pertence com destaque 20 conjunto das mais importantes dessas conviegdes 0 receituirio de inspiragio neoliberal, parametrado pelos ideais de mercado livre © Estado minimo. Nao falta hoje quem os defenda, inclusive quando se defronta com a pobreza nas sociedades latino-americanas, presumindo a eficiGncia e a eficéeia desse bindmio come soluggo para que se superem as distorgdes.apresentadas. pelo setor satide nos distintos paises. E, em que pese o fato de ndo ser este ‘9 momento de se diseutir a validade das premissas neoliberais em termes conceituais, os resultados desta pesquisa confrontam-se com clas ja partir da constatacao elementar das profundas desigualdades soeiais que marcam a vida da nagio. Perle ponderdvel da amostra aqui estudada encontre-se afastada de qualquer solugéo de mercado para as suas caréncias de satide ¢, neste sentido, vése preterida no atual quadro de desvalorizagao efetiva — © nio no discurso — das politicas 19 dos sociais, confrontade ademais com a proposta de universalizag: direitos sociais. Nesse lagao das localidades estudadas utilizar-se. preferencialmente de ser- vigas particulares reflete © gosto pela liberdade de opeia da economia privada om contrapesigio i compulsoriedade do servigo ptiblico. Cla- ramente a “cesta basica” de servigas do setor que a populagdo compoe quando os utiliza esté determinada mais pela ratureza da oferta do que pelas preferéncias da demands. Iss0 aponta para a inexisténeia da concorréncia perfeita entre esses dois setores de tal mereado, utopia ddos defensores do modelo neoliberal para a saude. Eloquente, ainda, a constatagao de que onde hé uma maior oferta absoluta de equipamentos piiblicos. estes tendem a ser procurados entido, notese que sequer 0 fato de a maioria da popu 8 ' relativamente com maior intensidade. E, se a este fayo se associa a precariedade orcamentiria das familias, que faz com que a liberdade na procura de servigos de satide na realidade nao exista, mesmo quando se trata de utilizélos independentemente do seguro piblico, ngo menos clogiiente se revela a utilizagao da palavra direito deno- tando gratuidade, quando utilizada em relagio aos equipamentos de satide, Neste sentido, também os convénios médicos © modalidades afins limitam a gama de escolhas quando nao € 0 beneficiério aquele quem contrata 0 servigo, mas sim, por exemplo, a empresa na qual trabalha, ou quando, evidentemente, seus recursos obrigam-no a afastar a sua escolha daquele servico que julga ser methor Seo mercado no soluciona, minimamente que seja, as desigual- dades sociais ¢ as diferencas — no sentido agora literal do termo — das oportunidades de vida, a agao do Estado revela-se também incom. potente. O préprio fato de a populagdo tomar dircito por geatuidade aponta caminhos que incontormam os resultados desta anélise quanto 20 perfil das politicas puiblicas de swvide adotadas no Hrasil. Atendo-se apenas ao ponto mais relevante, tal nogéo desconhece a necesséria fundagao dos direitos sociais no status de cidadania, E nao s: deve ereditar tal desacerto & ignorancia dos “setores carentes”, que de resto apresentam uma percepgao bastante adequada dos servigos de sade disponiveis. O que este fato faz ¢ retratar, uma vez mais, a precatie- dade mesma do sistema de cidadania no pais. de indefinigdes politicas gerais ¢ setoriais, cuja sorte soprada pelos ventos das conjunturas, na auséncia de um enraizamento popular efetivo. As conclusées deste estudo, uma vez mais, chamam & polémica: aiscordam daqueles que tendem a considerar as politices puiblicas como agentes maiores de exclusia social no pats, afirmando paradoxalmente a sua cficécia. Eficécia multilinear em seus efeitos, nem plenamente compensatoria das desigualdades, nem somente reprodutora destas, mas sobretudo incompleta. Normalizagio institucional contraditéria ‘mas potente, submetendo a sua clientela ace seus padroee de “medi- calizagao”, mas 2o mesmo tempo construindo obstéculos & sua univer salizacao. Assim, a questao que se coloea para a satide, enquanto parte de uum desejado proceso de consolidacao de unia cidadania democritica, €¢ continuaré sondo politica. E, apesar dos preceitos de cumho autori- tari ou tecnocrético, os dados ¢ andlises aqui apresentados sugerem que tais problemas s6 encontrarao equacionamento adequado no en- contro da legitimidade das reformas eoneretas que respondam as expec 9 tasivas ¢ nocessidades da populagio. Sem estreitas relagdes com os setores populares, as melhores conquistas para o setor correm o risco de se perderem antes de fecundarem a vida social Dessa forma, a questo nuclear aqui presente afasta-se da pola- rizaco entie Estado minimo versus estatizagio, ¢ se concentra na propria relaydo entre Estado c sociedad. A continua interpelagiio dos seiores populares enquamto “carentes”, no bojo das politicas sociais, € nfo enquanto participes da cidadania, torna o que deveria ser direito, em dédiva, justificando a ineficiéncia, a baixa qualidade © a pouca priorldade que ocupam nas decisoes de governo. E, por meio da ret6- rica politica ¢ do autoritarismo que medeia as relacdes entre as nossas lites ¢ a scciedade, 0 pobre éisempre reiterado como carente, “des- camisado”, como dizia 0 velho Perén © como diz 0 jovem presidente Collor, fazendo ressurgir. na arena politica, a inigiidade na redistei- buigio por via da politica social: com camisa, som vor. E néo faltam aqueles que relvindicam este sefor por se considererem os portadores daquela voz, revelando-se essa interpelagao, quando canfrantada com 05 dados aqui presentes, algo bestante préximo da pura ideologia, pois simplesmente nao se encontra este “setor” onde ele deveria estar, Se & populacdo nao entende o direito de cidadania na satide para além do servico, isso nao significa que ela nao porte critétios claros, segundo os quais revela cxigéneias para uma politica de satide legitima, & yer dade que o sett “saber” & incompleto ¢ deformado pela experiéncia da oferta institucional de que disp6e, mas seguramente suficiente para estabelecer um proceso comunicativo que busque novas definigoes para o setor. Nao se trata, portanto, de um texto tedrico, mas de uma articula 80 analitica dos dados obtidos orientada pela’ perspectiva maior da consolidacio da democracia no pais. Conseqtientemente, prevalece a Stic da sade como um direito a ser constituido, contraposta & con- cepgiio desse direito como acesso a uma assisténcia médica, no caso em questo, no geral de baixa qualidade, Trata-se, sim, de um texto que busca tecuperar os sujeitos sociais, objeto privilegiado das pol ticas de satide — ¢ 20 mesmo tempo de certa forma vitimas — na stia relacdo cotidiana com os préprios servigos Com esse objetivo, o trabalho esté organizado em cinco capitu- los, precedidos desta introdugio e seguidos de consideragdes finai Em seqiiéncia, os capitulos tratam da sade como direito frente & questéo da desigualdede, de wma caracterizacao sécio-econdmica das fireas periférieas do municipio de Séo Paulo, do acesso ¢ da disponi 10 bilidade dos servigos nessas ércas, do imagindrio © da medicalizagtio no consumo de servigo de satide, ¢ finalmente da reivindicacio dos direitos por parte dos sujeitos saciais frente A caréncia dos servigos. Fruto de um trabalho eoletivo — em todas as etaphs — de seus autores, viabilizado pelo apoio da Finep, os dados aqui presentes foram obtides a partir de ume pesquisa domiciliar, realizada nos anos de 1985 e 1980, por amostra aleatdria nas regides sul ¢ leste do muni- cipio, compreendendo no seu interior ‘reas colidantes, que no obi decem aos critérios das administragGes regionais ou mesmo de saiide. ceritério que prevaleceu foi o recorte geografico pela légica da atuagao diferenciada do Estado em ambas as freas e, sobretudo, pela existéncia ou néo de movimentos populares por satide, Como se verd, as diferencas nao sao tao grandes entre essas regiées, 0 que certa- mente remete A [igica maior do modelo de repradugio social do pais, que da dtica da saiide institui esses segmentos sociais como ca- rentes, e nao como cidadaos. Finalmente, justificase, pelo exposto, o proprio Utulo: a satide como direito € como servigo, elementos contrapostos na nossa reali- ‘do come direito no nivel a cotidiana da implemen- dade e que, por assim ser, 0 que é institu institucional acaba sendo negado pela préi tagao das politicas de savide. Os Autores u Capitulo I As herangas da satide; da politica da desigualdade 4 proposta da equidade No Brasil, o fato de a atencao médica estar intrinsecamente asso- ciada & previdéncia social imprime uma especificidade, com profundas raizes histéricas, & atual quesido da busca da equidade no direite dos cidadios & sauide, Nao s6 esse [ato remete o direito & satide marcado pela distingao original de insercio dos trabalhadores no mercado de trabalho, como convive com as medidas implementadas pela satide piblica, que ante- cedem a propria instituigao da previdencla social no pais. Caracteri zada pela responsabilidade das acdes de carter coletivo de natureza preventiva no controle de endemias © programiticas na atengio a grupos selecionados da populagio — materno-infantil, tuberculosos, hansenianos ¢ outros — a satide publica no decorrer da tempo convive de forma tensamente complementar com a assisténeia médica indi dual filanuépica © previdencidria, € posteriormente da rede publica, sendo crescentemente pressionada a buscar nova identidade sem perder # sua especificidede. Essa complementaridade tensa taduz exatamiente a questéo do coletivo contraposta ao individual, a do eurativo con- traposta ao preventivo, Nesse sentido, o alual texto constitucional significa um indiseutt- vel ayanco no que diz respeiio a uma concep¢io mais abrangente de seguridade social por contraposigao aqucla até entao prevalecente, En: quanto este — entendida como um seguro social — se restringe a formas de beneficios e presiagées de servigos hastante especifi aquela abrange um conjunto integrado de agdes visindo assegurar 0 direito a sade e A previdéncia e assistencia sociais, abolindo 0 cardter estritamente contratualista até entao vigente, € reafirmando esses di- reitos como universais, Nio obstante esse inegavel avango, e exatamente por isso, impde- se agora superar tradicionais ¢ histéricas dicotomias, no setor sade, entre o universal 0 particular, 0 publico ¢ o privado, o preventivo € 0 curativo, 0 rural e 0 urbano, 0 carente @ 0 nao-carente, a assisténcia mnédica previdenciéria © @ néo-previdencidria, ¢ entre o discurso © a pratica das politicas de saude. ‘A indagagéo de fundo que;se voloca na atual conjuntura, ¢ que encontra suporte nos dados aqui presentes, consiste em questionar até que ponto os diferentes setores sociais, sobretuda os segmentos. mais, desfavorecidos e espoliados da nossa sociedade, alcangam a real am- plitude e até radicalidade do artigo 196 da Constituicao — “A satide 6 direito de todos e dever do Fstado” — ou Fazem uma outra leitura do texto entendendo — ¢ reduzindo — sadde como mera assisténcia médica, Como decorréncia, impoe-se repensat 0 que se conyencionou denominar de reforma sanitdria brasileira em termos dos limites ¢ po- tencialidades dos movimentos sociais ¢ politicos cnvelvidos nesse processo. Nesse caso, 0 passo subseqtiente consiste em deslindar a especi- ficidade da satide e da previdéncia social frente as demais politicas sociait ¢ politicas piblicas, a arigem e rafzes soctais das propostas que acabaram por vigorar no atual texto constitucional, bem como pro- blemas e impasses que se colocam da perspectiva de constituigio, no Brasil, da cidadania de uma ordem democritica Retrospecto hist6rico das dicotomias A intervengio do Estado na Grea do seguro social para assala- riados urbanos do setor privado data de 1919, com o seguro de aci: dentes do trabalho, sendo da década de 20 a criagio das Caixas de Aposentadorias © Pensées (CAP). O decreto-lei n.° 4682/23 otin a primeira CAP, dos ferrovidrios, tendo-se este modelo de seguro social rapidamente multiplicado nos anos subseatientes, As CAPs, entidades pablicas com larga autonomia com relagtio a0 Estado, so instituidas como um contrato compulsério, organizadas 4 por empresas, geridas através do representagéo diveta de empregados © cmpregadores, tendo finalidade puramente assistential: benef{cios em peciinia e prestagao de servigos. Seus recursos tém origem tripar- tite: contribuigéo compulséria de empregados © empregadores (3,0% do salévio © 1,0% da renda bruta da empresa) © da Unido (1,5% das taritas dos servigos). O Estado institut, em tese financia em parte, e rormatiza essa modalidade de seguro social, mas no participa direta- mente do seu gerenciamento. A partir de entéo inicia-se uma primeira dicotomia no interior da satide: 0 enfoque eminentemenie curativo frente ao enfoque emi- nentemente preventivo, Os preceitos da satide priblica respondem as medidas de caréter coletivo, em particular as campanhas sanitérias — combate & febre amarela e variola, por exemplo — que tanta eeleuma provacam desde o infcio do século. J4 as classes assalatiadas urbanas, até entio assistidas pelas mutualidades © pela filantropia (como de resto a populagao em geral), de longa tradigao entre nés, passam a ser destinados servicos de atencao médica individual, prestados pelas CAPs, que por sua vez compravam servigos médicos do setor privado avés do mecanismo de credenciamento médico. Institulse, assim, uma divisio de responsabilidades relativas 20 setor na qual ao Estado ficam reservadas as medidas coletivas de saiide, particularmente as de controle daquelas endemias que se con. figuram como sério obstéculo para 0 florescimento das atividades econdmicas agroexportadoras. E, enquanto os recursos para tais me- didas tém origem na arrecadagao orgamentiivia, @ assisténcia médica individual, sob responsabilidade do seguro social em sua quase totali dade, & financiada por recursos advindos das contribuig6es. E € a partir desse momento, também, que tem origem uma caracteristica crucial da satide em nosso pais: a concepcio da assis: \éneia médica, muito mais restrita que sadde, como pertinente & esfera privada ¢ nao a publica, Nao se constitui, portanto, satide como um direito do cidadao e muito menos dever do Estado, mas sim a assisténeia médica como um servigo a0 qual se tem acesso a partir da clivagem inicial da insercao no mercado de trabalho formal © para a qual se tem que contribuir com um percentual do. salério, sempre por meio de um contrato compulsério, A década de 30 assiste & formagdo dos IAPs — Institutos de Aposentadorias © Pensbes — que institucionalizam o seguro social fragmentando as classes assalariadas urbanas por insercdo nos setares da atividade econdmica: maritimos, baneévios, comerciirios, indus ttiérios © outros, Agora transformados em aularqulas, os institutos passam a ser geridos pelo Estado, continuando a contar com recursos financeitos de origem tripartite, com a diferenga marcante do a con: twibuigdo patronal ser agora calculada, como a dos empregados, sobre © saldrlo pago. ‘A estrutura dos IAPs, convivendo einds por décadas com a estru- ura das CAPS remanescentes em varias empresas, perma: 1966, quando entio € unificado todo o sistema previden Instituto Nacional de Previdéncia Social — INPS. No entanto, acom- panhando as profundes tansformagoes da sociedade brasileira nesse periodo, sobretude os processos ide acelerada industrializagao e urba. nizagio, os servigos previdencidrios de sadde véo progtessivamente sendo pressionados pela demanda dos trabalhadores assalariados urba- ros, sem outro servico médico alternativo, quer estatal, quer privado, 3 excegiio de uma rede de estabelecimentos de natureza filanttdpica ¢ de uma rarefeita rede piblica hospitalar, ambulatorial ¢ de atengao primétia © apogeu do modelo desenvolvimentista, na segunda metade da cada de 50, marca o inicio de um processo acelerado de aprofunda- mento das dicotomias entre atengao médica curative © medidas pre- ventivas de caréter coletivo, acompanhada da dicotomia entre setvigos piiblicos ¢ privados de satide. Sedimentam-se, até a década de 10, essas dicotomias, numa clare divistio de tarefas e elientelas, quando entio, partir da sua segunda metade, @ rede publica de servigos de sade passa a assumir crescentemente também a assisténcia médica indi- vidual © Sistema Nacional de Saide — lei 6229/75 — sela essa dico- tomia ao estabelecer, reafirmando, ss especialidades preferenciais das tarefas a cargo da Previdéncia Social © do Ministétio da Satide, ao mesmo tempo que referenda a situagéo de fato de os servigos vin- ciilados ao Ministério da Satide estarem agora contemplande também a assisténeia médica individual. Dadas, porém, a importdacia da pre- senga da previdencia social nos servigos de satide, ¢ sua opedo pela compra dos servigos privados — seja sob a forma de credenciamento ‘ou s0b a forma de convénios — associada a um decrescente gasto do orgamento da Unido com o setor, cristaliza-se nessa mesma década o setor privado de prestagio de servigos médicos. Mais do que se ctis- telizar, esse setor floresce © se capitaliza és custas da intervengio cstatal nao na érea propriamente da saside mas da previdénie social, 16 Em contrapotigio, a redo publica de servigos passa a gofrer um acen- tuado processo de sucateamento, fruto da sua naio-pridtidade no inte rior das politicas de sadide, ¢ destes no interior das direttizes politices gerais do pais. _ Estahelece-se, entdo, a par de uma divisao social do trabalho entre os ministérics da Previdéncia ¢ Assisténcia Social (eriado em 1974) © da Sade (que data de 1955), uma seletividade da clientela de ambes pars os sens respectivas servicas de satide. O primeiro destina-se & populagao mais difetenciada, dades as carscteristices sociais do nosso pais, por esiar formalmente inserida no mercado de wabalho, © os servigos ptiblicos vinculados a0 outro ministério, as populagdes de mais baixa ronda, excluidas do setor formal da economia, Tal fato imprime uma terceira dicotomia, que consolida a assis. téncla médica como um diceito contratwal, compulsério © contributivo, coniraposta a assisténcia médica — publica e filantrépica — para a populagio earente Em decorréncia, estabelece-se uma aguda diferenciagdo entre os setores urbano isponibilidade de equipamentos médicos, associada a una generalizada diferenciagao © estigmatizacio da clientele. Esta manifestase em termos de tm grande mateo divisdrio entre carentes — orientados para o setor puiblico ¢ filantrépico — ¢ assalariados — orientades, por intermédio da previ déncia social, para o setor privado (que também os diferencia em termos de qualificagio e status ocupacional), ¢ s6 mais recentemente crientados também para v setor paiblico de servigos © rural em lermas de acesse & E, se do um lado o process de desenvolvimento econdmico do pafs gera um perfil de demanda dos servigos de satide que faz com que 0s servigos piblicos assumam, a partir dos anos 80, @ assisiéncia médica individual, de outro, esse mesmo proceso, paradoxalmente. imprime alteragdes na I6gica da relacdo entre servicos puiblicos e pri- vados da satide De fato, a logica do favorecimento do setor privado da assisténcia médica atraxés da politica previdenciéria prevalece de forma explicita até os anos 80, Neste periodo estabelece-se uma clara divisio de tra- balho e clientelas entre os setores piiblico ¢ privado de satide, apresen- tando este distintas modalidades de organizagao, Corresponde a esse periodo 0 apogeu das empresas médicas, conhecidas como mellicina de grupo, dos hospitais privados (que Linham em grande parte a sua construgio viabilizada com financiamento federal do Fundo de Apoio 7 ao Desenvolvimento Social (FAS) criado em 74), e das cooperativas médicas. Essas distintas modalidades do sotor privado contaram com uma clientela cativa — previdenciéria — através da compra de seus servigos, quer sob a forma de convénios ou de credenciamentos, fir- mada pelo INPS © posteriormente polo Inamps. Esse processo de privatizagao da esfera piblica, nfo exclusive da satide, tem como consegtiéncia o prevalecimento da ldgica do lucro e da capitalizacio nos investimentos do setor, Em decorréncia, consta- tase hoje uma distribuigao fortemente desigual dos equipamentos de satide no pafs quando se consideram as dimensoes regional, urbano- rural, eda rede urbana, Assim, as regides Sul e Sudeste do pats con. centram o maior volume proportional dos equipamentos de sade, 0 que ocorre mais intensamente apenas naquelas cidades que se conti- guram como importantes pélos regionais. Por sua vez, no interior dessas cidades essa mesma légica prevalece quando se evidencia a maior concentragao desses recursos nas areas mais centrais e ricas. E, no que diz respeito 4 dimensfo urbano-rural, a reéente incorporacio dos trabalhadores rurais ao sistema previdencifrio, datada da década de 00, ¢ até entao assistidos pelas instituigdes filantrépicas sem vinculo com a previdéncia social, muito pouco representou na superagio dessas disparidades, no caso bastante mais acentuadas, A outra face da Igica da capitatizagao ¢ da lucratividade que rege as politicas de satide, sobretudo nessas uiltimas décadss, manifesta-se num modelo de assisténcia médica de alta densidade teenoldgics, parti- cularmente nes procedimentos diagnésticos ¢ terapéuticos, Em decor réneia, @ divisdo de trabalho entre os setores privado e ptiblico acaba por reservar para este exatamente aqueles atos que por serem mais complexos, ¢ portanto de clevado custo, nao respondem & rentabilidade do setor privado. Acompanha ainda esse processo, como decorréncia da Wgica privatisia que o rege, # incorporagao da assisténcia médica individual, néo hospitalar pelo setor piiblico, na medida exata do desinteresse, de variada natureza, por parte do setor privado, Mas, se tal fato implica uma superagao na divisio de trabalho classica entre 05 setores privado e piiblico, na medida em que este, além das medidas de carter coletivo, também assume a assisténcia médica individal eminentemente curativa, esta € ctescentemente corporada através de programas seementados, prética tradicional da savide publica (ao lado do programa materno-infantil, por cxcmplo, institui-se 0 programa de adultos, os programas recentemente criados 18 de atengéo & mulher de saiide do trabalhador), © nao gtravés de polt- ticas integradas por um novo modelo de atencao & sade, sem 2 contra. posigo entre praticas curativas © preventivas. Nesse sentido, a crescente incorporagio da assisténcia médica individual pelo setor piblico questiona e desafia os modelos de aten- go médica eté entao prevalecentes, formulados seja pela sade pi blica, seja pela medicina, Em decorréneia, essa incorporagio acaba por imprimir, © reafirmar, na sua prética cotidiana, a reprodugfio de prozedimentos orientados por aqueles modelos, sem impactar a sua reformulago no interior da nova légica que deveria reger essa prética ica, voltada para a busea da cquidade no dircite & sade Gonealves!, em estudo recente, aponta a existéncia de dois mo- delos tecnolégicos no interior da medicina: 0 da medicina clinica © o da satide publica, O primeira recorta 0 seu objeto de trabalho a cada ato médico, “nas alteragdes morfofuncionais do corpo humano bioldgico individual”, que por sua “ variagzo ‘anormal’ definigéo quan- Utativamente os pélos mutuamente excludentes, apenas no limite, do normal’ e do patolégico”, numa relagao do causalidade mecéniea que exclui qualquer varidvel ndo-biolégica, O segundo recorta o objeto simaltaneamente num “espaco cartesiano triaxial em que ‘populacio’, espago geogrifico’ ¢ ‘tempo’ definem-no no movimento de ‘taxas', relagGes mateméticas entre ‘doentes” (definidos exatamente pelos mes- mos critérios clinicos operacionalizaveis, até mesmo por ctitérios total- ‘mente subjetivos ou parcialmente objetivados, mas 3 em nivel de eo: munidade de atributos ‘experimentalmente’ supostos como eficientes) © coentes em potencial”, E, neste caso, os conceitos de ‘normal’ e ‘patolégico’ assumem uma dimensio qualitativa na definigao da con junco de eventos considerados indesejavets, possibilitando assim que o gue se considera normal contenha a ocorréneia da doenca, sempre em termos probabilisticos, podendo qualquer varidvel explicativa ser possivel, desde que coerente tcoricamente ¢ quantificével sob a forma de atributos dos individuos ou subgrupos de uma populagao. Assim sendo, conclui © autor 1. Gongalves, R, B. M. Proceso de Trabalho em Saide Coletiva. Sko Paulo, Cortez, no prelo, Do mesmo autor: Organizacdo Teenoldgiea do Processo de Trabatho em Sade Piblica no Estado de Sio Paulo, XIV Encontw Anal fda Anpoes, Aguat de Sio Pedro, Sio Paulo, GT: Process de Trehalha © Reivindieagbes Socials, 1988, Fonte das citagden 19 “E Sbyio que 0 provesso diagndstico da ‘medicine clinica’ era que se efetuar individualmente, a cada vez de novo; ao mesmo tempo, © diagndstico em Satide Pablica, salvo situagées clara mente diferentes da norme (como epidemis, por exemplo), $6 poderd ser realizado através de amplos, dispendiosos ¢ complexos inguéritos populacionais, apds os quais se ineorpora ao conheci- mento consagtado sob a forma de ‘saber’, tendendo para & buro: ceratizagao no plano do processo de trabalho.” © agente de saiide publica, médico ou n&o, constituise como parte de um trabalhedor imediatamente coletivo, no ambito do Estado, Constituidas as matrizes desses ois modelos, ‘a partir dos tés mo. mentos — agentes, objetos € instrumentos do trabalho — totalidade parcial integreda a outra ainda mais ampla, dialética das relagdes entre trabalho e necessidades a que correspondem, 0 autor parte para © universo empirico — centros de satide da cidade de Sé0 Paulo — a partir do pressuposto tedrico de que @s praticas de trabalho ai insti- luidas esto marcadas, na sua dinamica principal, pelo que denominoa de conflito de jurisdigdo entre os recortes de um novo modelo que 9 buscava implantar — a incorporagao sistemiética da assisténcia médica individual no interior da racionalidade epidemiolégica — e agentes estabelecidos pela pritica tradicional do modelo tecnolégico da medi- cina clinica, “que, com os médicos, entrava triunfante pela porta da frente dos centros de savide” Associa-se a esse fenémeno do conflito de jurisdicde nas pratices de trabstho do seter piiblieo de primeira linha a incorporego da assisténcia médica individual, marcadamente a partir de 1985, com es Agbes Integraas de Satide (AIS). Estas acabam por aumentar a com- plexidade da tarefa de construgio de um novo modelo teenolégico da medicine © da superego da diferenciagao ¢ estigmetizagio da clientela entre carentes e nao-carentes, ow seja, entre trabathadores formalmente inseridos no mereado de trabalho ¢ deste exclufdos Vale dizer, a inexisténcia de uma politica integrada de sovide compondo o modelo altamente excludente do desenvolvimento econé mico das dltimas décadas em nosso pals, acaba por gerar no setor uma pritica aventuadamente diferenciada para os distintos segmentos da soviedads. A Idgica da “pobreza de recursos cuidando da caxéncia”, traduyaio da auséneia de prioridade para investimentos péblicos no setor, por parte do Estado nas tris esferas de poder, associa-se o aten- dimento diferenciado da populagio previdenciaria, Com © aumento 20 significativo de recursos da previdéncia social, que acompanha a curva da economia formal, ¢ com a diferencia¢do que ele gera no interior do setor privado através das distintas medalidades de compra dos seus servigos por parte do INPS — posteriormente Inamps —4e, portanto, dos tipos de atos médicos aos quais essa populacdo pode recorrer, vai: se consolidando a concepgio do direito a satide como possibilidade de acesso a uma precéria assisténcia médica de eficiéncia duvidosa. Concomitantemente, vei-se gerando uma concepgio densamente medicalizada da atengao & satide: desconfortes, dotes ¢ sintomas — reais ou imaginérios — devem ser resalvidos recorrendo-s> a um mé: dico, que por sua vez teré avaliada a sua competéncia por parte da clientela pela receita que prescreverd. E, se de um lado os servigos médicos privacos comparades pelos drgaos publicos através do meca- nrismo de credenciamento (pagamento por servicos prestados), que a0 contrério dos convenios médicos incentiva a sua utilizagéo, de outro 4 seletividade da clientela cde procedimentos médicos efetuada pelo setor privedo, quando tomada em seu conjunte, acaba por sobrecarre- gar 0 setor pliblico de servigos. 1380 porque este passa a ser buscado pela populagao sem cobertura previdencidria e por largos segmentos desta, descartades pelo setor privado através de distintos mecanismos: Exemplo desse fendmeno ¢ a peregrinacdo de pacientes pelos hospitals privados em busca de vagas, no geral encontranda como witimo reduto um hospital pablico. Eo chamado “repique”, que sobrecarrega os rvigos pibblicos de satide, que além de insuficientes encontram-se em tado de sucateamento, fruto da politica estaial de Favorecimento do setor privedo, através da compra de seus servigos ou de financiamento para investimenios de infraestrutura Em decorréncia, as politicas de satide no pais, que sempre con taram com um suporte financeiro bastante fragil, vao cristalizando um acesso extremamente desigual da populago aos servigos de sade, a0 mesmo tempo que estigmatizante. Flas instituem, de um lado, 4 con- cepsfio — ¢ seu reverso, 0 comportamento — da clientela como ca rente, ¢ de outro, uma diferenciagéo entre os assalariados por niveis de renda ¢ padrdes de insergao nos setores da economia, Em ambos os casos © marco comum & x concepgao do direito como um privilégio vinculado A contribuigio previdencidria e/ou de seguros satide priva- dos. Reverter esse processo, isto € perseguir a equidade, significa nfo apenas climiner privilégios de grupos e pessoas, mas também con- templar a discriminagio positiva, a fim de garantir ‘mais’ direitos a 2 quem (ver ‘mais! necessidades”, dada a propria especificidade da satide, em que doengas iguais nao significam doentes com necessidades ipusis Actesce-se a isso 0 cardter altamente centralizado no ambito do Executive das formulagées e implementacdes dessas politicas, mesmo no que diz respeito as propostas da sua descentralizagéo. De Lato, © em que pesem os avancos conquistados sobretudo na década de 80 no setor, estes acorreram tendo como traga a impermeabilidade rela- tivamente grande do Legislative, dos pariidos politicos, dos setores organizados da sociedade, dentre outros, & mobilizagio pelas questoes da catide, E um dado de realidage que # mobilizagao dessas cistintas Forgas socials, particularmente vitivel quanto da Assembléia Nacional, Constituinte, teve importincia nas recentes conquistas do setor, mas também 0 60 fato de a suia énfase excessiva nos aspectos do arcabou- 0 institucional da organizagio do setor revelar uma fragilidade do enraizamento social das Ivtas que possibililaram esses conquisias.* Em busea da equidade As décadas de 70 e 80 sao fecundas em estudos diagnésticos, analiticos ¢ propositivos sobre as questées da satide no Brasil, Inques- tionavelmente o movimento da reiorma sanitéria conta com a Tideranca dos intelectuais da area da satide coletiva, congregando estudiosos da satide publica ¢ da medicina social, e de profissionais do setor pablico dos servigos de sade, Mas, se tal fato imprime uma marca na larga produgio da érea — textos militantes com forte teor de denincia — por outro lado redunda na formulagio de propestas para o setor que buscam viabi- lizac a constituigao da satide como um dircito do cidadao brasileiro. E em que pese 0 leque de perspectivas de anélise que inepicam 08 estudos a respeito, nilo sendo 0 caso acui de desenvolver uma re- construgao critica dos mesmos, nfo resta davida de que a diversidade de estratégias propostas apresente a cidadania como elemento comum. 2, Vianng, $. M. Equidade nos Servigos de Saiide, texto para discussao, no 24, IPEA/IPLAN, DP, dez. de 1989, p. 4. 5. A respeito dessa tess, yeja-se Cobn, A. *Ceminhos da Reforma Saniiria Lua Nove, Cedee, Sio Paulo, n.° 19, nov. de 1989, pp. 12540. 22 Essas proposigdes aucleares a0 movimento repousam seus princi pios articuladores na esiatizagdo dos servigos de satide, ha constituigio do Sistema Unico de Setide, na deseentralizagdo, na universalizagio & na equidade do direito & satide, em que pesem, sempre, as distintas interpretagGes sobre cada um desses aspectos. Esses prineipios, formulados jé na segunda metade da década de 70, vao-se traduzindo, ¢ aperfeicoando, em medidas concretas na dé- cada posterior, produto do intrincado jogo de forcas entre as setares: progressistas — articulados em torno das teses reformistas — ¢ conser- vadores, Exemplos disso sto as Agdes Integradas de Satide (AIS), que fém os seus primeiros convénios assinados com os Estados em 1985, 0s Sistemas Unificados ¢ Descentralizados de Sadide (SUDS), que tm seus primeiros convéntos firmados em 1987, ¢ 0 texto constituctonal, promulgado em outubro de 1988 Nesse sentido constata-se hoje um real avango na reorganizacio do setor satide no pais, contando agora com 0 pré-requisito indispen savel dos dispositivos constitucionais. Nao obstante, esses avangos ins- Litueionais contrastam ndo s6 com a gravidade do quadro sanitério brasileiro, mes com o impacto das recentes transformagses da enge- stharia institucional do setor frente & nova conceprao de direito & satide como algo bastante mais abrangente do que a simples assisténeia médica curativa e preventiva. Mas, se a concepcio de satide que se vai forjando no interior do movimento sanitério cxtrapola de 08 limites do saber © du pritica médicas, trazendo para o interior mesmo do entendimento da producio social da satide e da doenga os processes sociais, isso no logrou até 0 momento mudangas significativas no préprio setor. Mais que isso, esté ainda por se construir um novo modelo de atencao 8 satide superando os pélos saiide ptiblica/assisténcia médica indi- vidual (ou prevengao/cura), programas de satide/modelos integeados de atencao & satide, universalidade/produtividade, rural/urbano, ete., buscando-se @ nova qualidade de atendimento que deve acompanhar © atualizar esse novo conceito ¢ satide. tivament Da mesma forma, porém, que esse processo exige a construgio de um novo saber — te6rico e pritico — exige também que a questo da satide seja resgatads, sem preconceitos, pela politica, Nao se trata aqui de contrapor a téonica (ou a cigncia) & politica, prética tio co- mum dos “mandarins da saiide”, mas de enfrentar as dificuldades que as questdes da satide antepdem, dada a sua especificidade, para o seu entendimento e para que conquiste o status pertinente no interior das questdes sociais, Isso implica, inclusive, a sua essungéo como prioridade por parte das diferentes forcas sociais e canais politico- institucionais. Em conseqtiéncia, tem-se ndo s6 a preméncia de estudos © pes- quisas de carter propositivo para o setor, saminhando para além da prevcupayao diagnéstica © de oposicao ao que af estd, como também do reconhecimento ¢ explicitacio das foreas politicas em jogo e do perfil da clientela, entendida como piblico alvo prioritério da politica de satde. E, para tanto, no basta pensar nos macroprocesses politi- 0s, sociais ¢ institucionais, mas a eles temse de associer a preocupa- gio com o desvelamento do cottdiane dos sujeitos envolvidos B, se os dados aqui presentes nfo respondem diretamente, por cxemplo, & indagagao de até que ponto a populagéo em geral, sobre: tudo os segmentos de mais baixe renda, apreende o verdadeiro aleance do significado do diteito a satide (e nfo a assisténcia médica simples- mente), cles certamente trazem subsidios importantes para se avallar a distancia entre a representacdo da satide compartilhada por largos segmentos da populagio e aqueles preceitos defendidos pelo Movimen- to da Reforma Sanitéria. © mesmo ovorre, ainda, com os preceitos da descontralizagio, com © Sistema Unico de Sade com comando dnico em cada esfera de poder, ¢ 0 desconhecimento, por parte da populagao de baixa renda, quanto a0 imbito estadual ou municipal do servigo « que recorre, Por outro lado, se estudos sobre 0 padre de consumo de servi- ges de sade por parte da populaggo Indicam o que os dados dessa pesquisa confirmam, vale dizer, que a populacdo elabora uma compo- sigdio peculiar dos servigos de satide que utiliza, « maren de oposigéo que caracteriza esses mesmos estudos faz com que cles reafirmem determinados preceitos que nao encontram respaldo nos dados aqui apresentados, Um deles diz respeito, par exemplo, a0 estigma da clien tela quanto 4 medicalizagéo a que foi submetida. Nao sé a automedi- cagao € quase inexistente como quando ela ocorre € no sentido mt mais radical: nfo s estados mérbidos requerem a imediata procera de um médico, & excegao daqucles cpisédios corriqueiros assim cnten- didos por rices ¢ pobres, como a autcmedicagio no geral se restringe a rewtilizacao de receitas anteriormente prescritas por médicos. Por outro lado, como se vera, embora as condigées de vida, marcadas pela ccattneia, estejam nuclearmente presentes nos motivos que levaram a 24 procura de um serviga de atengao médica, estes ndo traduzem, de ma- neira imediata, a candigao de medicalizacdo a que dsses segmentos estariam submetidos, tal como no seu entendimento cléssico de « aten. cao médica — e consequentes prescrigées — estar substituindo a pre- cariedade da sua situagio de vide. ' Constatagdes como essas obrigam uma nova reflexio sobre as matizes que até 0 momento nortearam as propostas de reorganizagio do setor, a0 mesmo tempo que refletem a trajet6ria intelectual © poli tica do Movimento da Reforma Sanitéria no pais, Noutros termos trazem consigo a necessidade de se repensar a equidade e 0 diteito satide contrapondo # dimenstio do dircito positive as desigualdades sociais da sociedade brasileira e &s representagoes desses segmentos So ciais sobre a satide, a doenga, os servigos de satide em termos nao sé da qualidade mas do acesso € disponibilidade. Ilustra esse tipo de questionamente, por exemplo, 0 contraste brutal entre 0 diagnéstico de especialistas do setor sobre 0 baixo im: pacto dos servigos médicos, sobre os indicadores de satide ¢ o relati vamente baixo grau de insalistagio da populagdo com os préprios ser vicos, Ou, ainda, o que a populagao entende por facilidade ou dificul dade no acesso a0 servigo: aquela bastante referida ao tempo gasto nit procura do servigo, © que remete & disponibilidade © eficiéneis organizacional, ¢ esta referida 20 seu contrdrio, a demora no atendi mento ou & inseguranca de ser ow nao atendide. Mas, se tais elementos implicam na necessidade de se aprofundar 4 dimenséo normative dos direitos sociais nas relagies do Estado com 98 cidadaos, cles remetem igualmemte para a especificidade da sadde como demanda ou como servico, no interior da qual ganha destaque © seu catéter didfano, E, em que pese a ameaga da dor e da morte ela remete & stia parca visibilidade politica e, portanto, & dificuldads de, no geral, partidas © organizagGes sociais incerporarem-na como algo prioritério. Constituir, portento, a sade “um direito de todos e dever do Estado” implica enfrentar questGes tais como a de a populagao buscar @ utilizagio dos servigos publicos de saide tendo por referencia a sua proximidade, enquanto para os servicos privados 2 referéncia princi: pal consiste em “ter direito”, Da mesma forma, e cxatamente porque essas quesides remetem Wadicao brasileira de direitos socials vin- culados a um contrato computlssrio de carter contributivo, contr postos @ medidas assistencialistas aos carentes, a equidade na univer 25

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