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Sesc | Serviço Social do Comércio

Presidência do Conselho Nacional


Antonio Oliveira Santos

Departamento Nacional
Direção—Geral
Maron Emile Abi-Abib

Coordenadoria de Educação e Cultura


Nivaldo da Costa Pereira

CONTEÚDO
Gerência de Cultura
Gerente

Marcia Costa Rodrigues

Assessoria de Cinema
Marco Aurélio Lopes Fialho
Nadia Moreno

Texto
Marco Aurélio Lopes Fialho

PRODUÇÃO EDITORIAL
Assessoria de Comunicação
Diretor
Pedro Hammerschmidt Capeto

Supervisão editorial e edição


Fernanda Silveira

Projeto gráfico
Ana Cristina Pereira (Hannah23)

Diagramação
Claudia Duarte

Revisão de texto
Clarisse Cintra

Produção gráfica
Celso Mendonça

As imagens inseridas nesta publicação


foram retiradas dos filmes relacionados
neste catálogo.

©Sesc Departamento Nacional


Sombras que assombram : o expressionismo no Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá
cinema alemão : mostra de cinema. —— Rio de Janeiro : Rio de Janeiro — RJ
Sesc, Departamento Nacional, 2013. CEP: 22775-004
92 p. : Il. ; 27 cm.
Tel.: (21) 2136—5555
www.sesc.com.br
ISBN 978-85-8254-032-9.

Impresso em agosto de 2014. Distribuição gratuita.


1. Cinema alemão — Catálogo. |. Sesc. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de
Departamento Nacional. 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser
reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departa-
mento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias
CDD 791.43 empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográiicos,
gravação ou quaisquer outros.
SOMBRAS QUE
ASSOMBRAM

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Sesc | Serviço Social do Comércio


Departamento Naciiiii
Rio de janeiro
“EM THRNI] |]E an vE-sE [| MHNSIRHHSH,
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EXPHEIÇÃU HFEREEE INSPIRH HHRRUR E
HVERSÃH EM Eunns NÚE.”
Adoleiegler. Discurso de abertura da exposlção
expressionista Arte chcncmda, 1937
Criado e administrado há mais de 60 anos por representantes do empresariado do

comércio de bens e serviços e destinado à clientela comerciária e a seus dependentes,

o Sesc vem cumprindo com êxito seu papel como articulador do desenvolvimento e
bem-estar social ao oferecer uma gama de atividades a um público amplo, esforço que

conjuga empresários e trabalhadores em prol do progresso nacional.

Dentre suas diversificadas áreas de atuação, a cultura se caracteriza como democrático

disseminador de conhecimento, importante ferramenta para a educação e transfor-


mação da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da

itinerância de espetáculos, exposições e mostras de cinema.


Ao possibilitar o livre acesso aos movimentos culturais, seja no cinema, como também

nas artes plásticas, no teatro, na literatura ou na música, o Sesc incentiva a produção


artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações e exposições, mas,

acima de tudo, promovendo a formação e qualificação do público que habita os quatro


cantos do Brasil. A credibilidade alcançada pelo Sesc nesse âmbito faz da entidade

referência nacional, o que revela a reciprocidade entre suas ações e políticas e as atuais

necessidades de sua clientela.

Antonio Oliveira Santos


Presidente do Conselho Nacional do Sesc
O Sesc e uma entidade de prestação de serviços de caráter socioeducativo que promove

o bem-estar dentro das áreas de Saúde, Cultura, Educação e Lazer, com o objetivo de

contribuir para a melhoria das condições de vida da sua clientela e facilitar seu aprimo-

ramento cultural e prolissional. No campo da cultura, a atuação do Sesc acontece no

estímulo à produção cultural, na amplitude do conhecimento e no fortalecimento de sua

identidade nacional, condições essenciais ao desenvolvimento do pais.


Nesse cenário, a mostra de cinema Sombras que Assombram — O Expressionismo no

Cinema Alemão oferece a oportunidade de se conhecer o movimento expressionista, que

teve seu auge na Alemanha arruinada pela Primeira Guerra Mundial e se caracterizou

pelo uso de imagens fantásticas e assustadoras e ao mesmo tempo pela exposição de

uma sociedade imersa em um cenário desolador e extremamente mecanicista.

O caráter histórico e documental deste projeto viabiliza a proposta do Sesc dentro da


ação programática de cultura ao se constituir como ferramenta de enriquecimento in-

telectual dos indivíduos, propiciando-lhes uma consciência mais abrangente e aberta a


meios mais estimulantes e educativos de aquisição da cultura universal.

Maron Emile Abi-Abib


Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc
IMPULSOS IRRACIONAIS DE UMA ÉPOCA, 10
Contexto histórico para o expressionismo, 12
O cinema nos conturbados anos 1920, 13

A RELAÇÃO no FANTÁSTICO com o EXPRESSIONISMO, 15

ESTÉTICA no EXPRESSIONISMO NO CINEMA ALEMÃO, 18

RHBERI WIENE, 22
O gabinete do Dr. Caligari, 26
As mãos de Orlac, 32

PHlIl WEEENER, 36
O golem, 40

PHlIl [EM, 44
O gabinete das figuras de cera, 48
O homem que ri, 52

F.W. MHRNHIJ, 56
Fausto, 60
Nosferatu, 64
A última gargalhada, 68

FRIIZ MNE, 74
Metropolis, 78

NOTAS, 82

REFERENCIAS, 82
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Roger Cardinal, um dos mais conceituados estudiosos do expressionis-

mo nas artes, descreve sinteticamente o expressionismo como

um encontro da criatividade do artista com seus impulsos emo—

cionais e instintivos mais profundos. A expressão da obra adqui-

re então um caráter subjetivo, pois a forma artistica resulta das

angústias humanas do individuo criador.1

No inicio do século 20, o mundo assombra-se com as obras de Freud,

seus estudos complexos sobre a libidinosa psique humana e, mais


adiante, com Franz Kafka, já em 1915, que investe nos proces-

sos de aprisionamento humano, com seu sinistro e metafórico


homem—inseto em A metamorfose. Essa atmosfera cultural per-

meia e cria o estofo necessário para o desenvolvimento do expres-


sionismo na Alemanha. No plano político, a República de Weimar

rapidamente frustra a esperança de transformação social mais


profunda, após massacrar o movimento revolucionário liderado

por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, e se tornará um estorvo

às mentes mais críticas desse conturbado momento histórico.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão ll


Contexto histórico para o expressionismo
Segundo o historiador Eric Hobsbawn (1997), o século 20 foi marcado por posições
políticas extremadas e, em síntese, foi breve e intolerante. Diz ainda que o

principal acontecimento desse período foi a Primeira Guerra Mundial, “que

assinalou o colapso da civilização (ocidental) do século 19”.2

A década de 1920 marcou, antes de tudo, o ápice do modelo liberal e da ilusão de

prosperidade econômica; o auge da produção se deu graças às novas tecno-


logias desenvolvidas. Os países vencedores da Primeira Guerra Mundial im-

puseram acordos humilhantes ãs potências derrotadas, como a Alemanha e

a Itália. A decrepitude moral tornou-se parte da vida cultural desses países e

um sentimento de inferioridade contaminou a sociedade. O expressionismo

no cinema manifestou maciçamente o horror psicológico desse momento que


antecedeu a escalada nazista na Alemanha, no entanto, não pode ser reduzido

a apenas isso.

; Em momentos de crise e abalo social é comum vermos as artes se apresentarem de

modo mais contundente, interpondo como elemento crítico e participativo.


Mesmo não sendo o expressionismo cinematográfico explicitamente contra o

sistema político vigente, esse movimento conseguiu criar uma atmosfera em

seus filmes que hoje muito nos diz sobre a vida na Alemanha dos anos 1920.

A segunda metade do século 19 foi marcada por uma forte industrialização dos pa-

ises europeus — sobretudo Inglaterra — e Estados Unidos, no período conhecido

como Segunda Revolução Industrial, sendo também a era do aço, do telégrafo, do


trem e do motor à explosão, transformações que alavancariam a criação de equi-

pamentos utilizados nas artes, como o próprio Cinematógrafo. Iniciou-se então

12 Sesc | Serviço Social do Comércio


uma busca por matéria-prima e mercados entre as maiores potências
mundiais. Alemanha e Itália se uniram tardiamente, mas também se

lançaram nessa briga. O resultado desse acirramento foi a eclosão da


Primeira Guerra Mundial (1914-1919), que abalou a vida dos habitan-

tes do planeta, e o cinema, assim como as artes em geral, também


sofreu profundamente.

() cinema nos conturbados anos 1920

Em 1919, O gabinete do Dr. Caligari demonstrou que o cinema atingira a ma-


turidade artistica. Trata-se de um Hlme inaugural, que demarca um mo-

mento de clivagem. Existe o cinema antes e o cinema depois de Caligari.

O cinema alemão dá um passo estético irrevogável ao adentrar nos


meandros da psicologia humana, ao mostrar que as histórias poderiam

ir além da narração; abriam janelas para se perscrutar a interioridade

dos pensamentos e do agir humanos. O expressionismo alemão con-


tribuiu, de uma só vez, tanto como fenômeno estético quanto como

revelador da alma. Daí a necessidade de tratarmos rapidamente sobre

o cinema da década de 1910.

Na década de 1910, o norte-americano David W. Griffith mostrou ao mundo

as possibilidades de sistematização do aparato cinematográfico: por

meio de aproximações da câmera em objetos e pessoas em determinado


momento, poderia ser acentuado, por exemplo, o caráter dramático de

uma cena, contando ainda com os recursos da montagem que o aparato

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 13


então oferecia. No entanto, o experimento de Grifhth representa um
pouco mais do que isso, pois se consolida no cinema nascente a no-
ção de significado (ao reafirmar a sua capacidade de narratividade), e
vai mais além ao imbui-lo de uma faceta signihcante, isto é, deixan-

do clara a importância também de como narrar uma história. Assim,

Griffith demonstra de uma só vez que o cinema podia não só contar uma

história, mas também se constituir como uma linguagem específica.

O expressionismo no cinema situa-se em um contexto da história da lin-

guagem cinematográfica em uma encruzilhada: caminhos artísticos

os mais diversos estavam sendo experimentados, e talvez ele repre-

sentasse, devido à própria situação da Alemanha nos anos 1920, não

exatamente uma síntese estética, mas uma síntese da indefinição de


rumos, da dúvida que pairava nesse momento acerca de qual seria a
serventia do cinema para a humanidade.

Seria o cinema uma linguagem especiHca, munido de códigos próprios, inte-

resses estéticos definidos, voltado sobremaneira para despertar sen—


sações profundas eíinovadoras nos seres humanos? Ou uma mera ex-

tensão da narrativa literária e/ou teatral? Uma arma ideológica usada


pelo governo? Uma ferramenta de entretenimento? Um bem cultural

a serviço da educação? A consolidação da indústria de Hollywood e a

interferência moral do estado nos enredos dos filmes, o uso do cine-

ma pelo Terceiro Reich, o papel educativo dado pelo governo inglês e

politico-partidário dado pelo governo soviético serão respostas para


algumas dessas perguntas.

14 Sesc | Serviço Social do Comércio


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De acordo com o crítico literário Tzvetan Todorov, o fantástico pode ser entendido
como tal quando se põe em dúvida a noção de real de determinado fenôme-

no, isto é, quando não se consegue explicá—lo pela lógica, mas somente sob a
regência de outras leis que desconhecemos. Para Todorov, normalmente um

fenômeno “se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo

natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o

efeito fantástico”.3

O fantástico nasce na literatura e tem o cultuado escritor Edgar Allan Poe como ico-

; ne, mas a sua concepção é muito bem assimilada pelo cinema ainda em seus
primórdios. O ilusionista e cineasta francês Georges Méliês é considerado um

dos precursores do cinema fantástico, com o seu célebre filme Viagem à lua

(1902), momento em que o Cinematógrafo ainda era mais uma curiosidade do

que um aparelho apto a criar uma linguagem autônoma.

Mas é no cinema alemão que o fantástico surge com maior vigor, antes mesmo da

eclosão do expressionismo alemão, já nos anos 1910, com a incorporação de

escritores do gênero fantástico como roteiristas de filmes. Somente no final

da década de 1910 e inicio dos anos 1920 que o fantástico alcança uma força

incontestável no cinema, com o sucesso de O gabinete do Dr. Caligari, filme de


Robert Wiene.

Nesse filme, vem à tona todo o potencial expressionista ao revelar uma Alemanha góti-

ca, demoníaca, com seus pesadelos mais obscuros. O mais incrível na película de

Wiene é a sua capacidade de tornar o gênero fantástico, até então essencialmen-

te literãrio, totalmente palpável para o gênero cinematográãco. O viés fantásti-


co em Caligari se impõe por meio da criação de uma temática típica dos enredos

; de terror, em especial o tema da manipulação de mentes e do sonambulismo.

Desde os primórdios do cinema há registro de Hlmes de terror. No primeiro ano do


Cinematógrafo, em 1896, Georges Méliês realizou um pequeno curta-metra-

gem com a temática. As histórias de terror foram sendo filmadas nas décadas

16 Sesc | Serviço Social do Comércio


posteriores, mas somente no expressionismo alemão o terror adquiriu

uma maior presença e vigor. O golem, O gabinete do Dr. Caligari, Nosfe—

ratu, Fantasma e outros serviram de fonte para diversos filmes a partir


dos anos 1930.

Contudo, se analisarmos a incorporação do terror ao gênero cinematográfico

veremos que seu ponto de partida, de maneira mais sistematizada, é o

próprio expressionismo alemão. No expressionismo encontramos uma

exacerbação dos elementos imagéticos, eles representavam uma exte-


riorização de um estado interior, uma materialização espiritual, e a sua

potência estética vinha dessa confrºntação do externo com o interno.


O que caracterizaria então o terror expressionista seria a assimilação

expressiva de um elemento psicológico.

O período histórico do nascimento do expressionismo o localiza imediatamen-


te após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914—1919).

O gabinete do Dr. Caligari, por exemplo, foi produzido em 1919-1920.


Muitos criticos relacionam o expressionismo como uma resposta da

vanguarda alemã à atmosfera de decadência e crise moral do período

compreendido como República de Weimar (1919-1933), o prenunciador

do nazismo. Hoje essa ideia não deve ser tomada de modo absoluto,

outras questões são também apontadas como influentes, tais como o


gosto pelo medievalismo (gótico) e a tradição romântica alemã.

Segundo a professora e pesquisadora Laura Cánepa, um grande êxodo de ar-

tistas, atores e técnicos alemães dessa época, causado pela ascensão

do nazismo, difundiu uma considerável influência da “estética expres-

sionista” pelo mundo, mais precisamente nos Estados Unidos, onde a


indústria hollywoodiana avançava a passos largos. Basta assistir aos

filmes de terror dos anos 1930 e os chamados Hlme noir para saber que

isso não é exagero.4

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 17


'

EXPREEEIUNISMH NI]
EINEMH ME MÃI]
Acreditamos que sem essa contextualização bastante abrangente, uma análise
sobre o cinema na década de 1920 seria estéril e inócua. Isso se deve à
grande efervescência das artes desde o final do século 19, e em especial
a partir dos anos 1910, com as interferências modernas. Sem dúvida a
Primeira Guerra Mundial tem um peso incomensurável nesse contexto.
Ela fez renascer elementos adormecidos na alma alemã. No inicio de seu
magnifico livro sobre o expressionismo alemão, Lotte H. Eisner afirma:

Misticismo e magia — forças obscuras às quais, desde sempre, os alemães


se abandonaram com satisfação — tinham florescido em face da morte nos
campos de batalha. As hecatombes de jovens precocemente ceifados pare-
ciam alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes
tinham povoado o romantismo alemão, reanimavam-se tal como as sombras
do Hades ao beberem sangue.5

Misticismo, fantasmas, sobrevivência, sangue, morte, hecatombes de jovens e


sombras são palavras utilizadas nessa pequena citação, a qual corporifi-
ca o sentimento expressionista. Os filmes trazem inequivocamente esse
peso, como um carma que recai sobre seu destino artistico.

Na definição de Roger Cardinal o expressionismo

representa uma versão peculiarmente urgente da necessidade perene do artis-


ta de se expressar sem restrições. Seus antecedentes imediatos são as declara-
ções irracionalistas e instintuais de um Nietzsche, as transcrições poderosas
da vida intima agitada nas últimas pinturas de Van Gogh, os gestos altamente
cênicos de Strindberg. Quando Nietzsche afirma orgulhosamente que “eu sem-
pre escrevi meus trabalhos com todo o meu corpo e minha vida, não sei o que
querem dizer com problemas intelectuais”, está oferecendo, na sua maneira
mais simples, um principio exemplar do expressionismo: a confiança irrestrita
na expressão direta dos sentimentos que se originam na própria vida do cria-
dor, sem a mediação e a interferência provável da racionalidade.6

Quando o mundo objetivo não inspira confiança, o artista se utiliza da subje-


tividade, de sua expressão mais soturna, avisa ao mundo que o tempo
está nublado, que as sombras e os personagens sinistros estão em profu—
são e que algo precisa ser feito para transformar a sociedade, antes que
precisemos lhe extrair um membro.

Os filmes do periodo comumente chamado de expressionistas (1919-1927) es-

pelham demais a nebulosidade de seu tempo. Há um cruzamento consi-

derável, em especial na Alemanha derrotada no pós-guerra, entre reali-

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 19


dade sinistra e visão sinistra do artista. A distorção aflorada no olhar do
artista não deve ser descartada e, mais do que isso, deve ser sublinhada,
enfatizada, pois é dificil viver uma hecatombe social e não expressa-la.

Pensemos então em um ponto crucial para o expressionismo: a distorção. Como


falar de temas sublimes quando o que vemos ao redor não é tão inspi-
rador assim? A guerra distorceu os corpos. Os artistas viram isso, não
podiam passar incólumes. Há a degradação moral, quando a morte e a
mutilação dos corpos passam a existir em profusão, os jovens são abati-
dos e com eles o futuro de um país. Ainda há a alteração da paisagem, a
destruição de aldeias, cidades, a improdutividade do campo.

Os cenários dos filmes expressionistas, em especial das primeiras obras, tal


como O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das jiguras de cera, O golem e
Nosferatu, tendem a claustrofobia, faltam-lhes profundidade, são acacha-
pantes e tortuosos, apresentam uma estilização artificial que beira ao
grotesco. A maquiagem dos atores foi concebida de maneira exagerada,
sinistra, que os fazem parecer mortos-vivos, como se vagassem à deriva
pelo mundo. Seus corpos são pesados, com movimentos bruscos, não na-
turalizados, como se fossem impedidos de se locomover com desenvol-
tura por uma força maior. Os ngrinos também lhes pesam, dificultam o
movimento, dando-lhes uma aparência soturna.

Nosferatu e Orlac, por exemplo, são quase personagens de outro mundo, cin-
didos e alheios à vida social, imersos no seu mundo, pouco dialogam
com o exterior, vivem as suas tragédias interiores, são seres alienados,
um tanto inumanós. Não à toa os temas mórbidos perpassam os Hlmes
expressionistas, pois são comumente seres que habitam um terreno
sombrio da existência. Há uma concepção labirintica dos cenários, que
muito expressam uma vertigem, inerente também aos conflitos emocio-
nais dos personagens.

A imagem expressionista também dialoga com os personagens e com os cená-


rios predominantemente em contraste entre partes muito escuras (mais
nas bordas) e muito claras (no centro da imagem). Há ainda o resgate do
medievalismo, uma aproximação com a estética gótica, assim como uma
recuperação dos valores românticos nítidos na exacerbação dos senti-
mentos dOS personagens.

20 Sesc | Serviço Social do Comércio


Um dos alicerces que colaborou para escorar o cinema alemão dos anos 1920
foi o teatro de Max Reinhardt, escola para diversos profissionais que de-
pois migraram para o cinema, entre eles cenógrafos, atores, diretores,
figurinistas, fotógrafos. Se o teatro formou profissionais, a UFA (Univer—
sum Film Aktiengesellschaft) — produtora privada fortemente assen-
tada economicamente, composta por uma fusão de diversas produto-
ras — solidificou o cinema alemão como produto fora do pais, mercado
que antes estava em crise. A adesão da Decla Biocosp, empresa de Erich
Pommer, principal produtor alemão, foi decisiva para a UFA alçar voos
extraordinários. Em consequência, o cinema expressionista espirraria di-
retores para fora da Alemanha. Atualmente todos são nomes cultuados.
Qual amante do cinema nunca ouviu falar de Fritz Lang, Murnau, Paul
Leni, Ernst Lubitsch, Pabst e Robert Wiene?

Ressalta-se ainda a qualidade técnica dos profissionais de cinema existente na


Alemanha dos anos 1920. Do roteiro ao acabamento das imagens, o ex-
pressionismo foi pródigo de artistas. Destacam-se como roteiristas Carl
Mayer (A última gargalhada e O gabinete do Dr. Caligari), Henrik Galeen
(O gabinete dasfiguras de cera, O golem e Nosferatu) e Thea von Harbou (Me-
tropolis). Entre os diretores de arte há nomes como Robert Herlth e Walter
Rohrig (Fausto e A última gargalhada), Walter Reiman e Hermann Warm
(O gabinete do Dr. Caligari). Fotógrafos e câmeras, Fritz Arno Wagner (Nos-
feratu), Carl Hoffman (Fausto) e o magistral Karl Freund (A última garga-
lhada, Metropolis, O gabinete do Dr. Caligari e O golem). Pode-se ainda citar
os excepcionais atores Conrad Veidt (O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete
das jiguras de cera, O homem que ri, As mãos de Orlac), Emil ]annings (A
última gargalhada, Fausto e O gabinete das jíguras de cera), Werner Krauss
(O gabinete das jiguras de cera e O gabinete do Dr. Caligari) e Wilhelm Die-
terle (Fausto e O gabinete das jiguras de cera). Soma-se a esses preciosos
profissionais um organizador de peso, o já citado produtor Erich Pom-
mer, que comandou os maiores orçamentos da época e trabalhou com
os diretores e técnicos mais significativos da indústria cinematográfica
alemã a época da República de Weimar, entre eles, Murnau, Wiene, Lang,
Freund, Hoffman e Mayer. Vários desses artistas tiveram passagem por
Hollywood, em especial no período do nazismo, em que o controle ideoló-
gico dos filmes alemães passava pelo crivo do regime totalitário comanda—
do por Hitler e Goebbels.

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 21


O gabinete do Dr. Caligari
As mãos de Orlac
BIOGRAFIA

Nasceu na antiga Breslau (na época, parte da Alemanha, sendo hoje Wroclaw, na Po-
lônia), ãlho do famoso ator de teatro Carl Wiene. Seu irmão mais novo, Conrad,

também se tornou ator. Robert inicialmente estudou Direito na Universidade de


Berlim, mas desde 1908, já estava envolvido em atividades artísticas como ator

em pequenas participações no teatro. Sua primeira investida no cinema foi em

1912, com seu roteiro para Die WajTen der]ugend. Sua memorável participação no
cinema acontece como diretor de O gabinete do Dr. Caligari (1919), que veio a se

tornar um marco do expressionismo no cinema.

Depois que Hitler tomou o poder na Alemanha, Robert Wiene deixou Berlim, primei-

ramente por Budapeste, onde dirigiu One Night in Venice (1934), posteriormente

para Londres, e finalmente para Paris, onde tentou produzir com Jean Cocteau

uma reprodução sonora de O gabinete... Wiene morreu em Paris dez dias antes do
Em da produção de um filme de espiões, Ultimatum, vítima de câncer. O filme foi

terminado por seu amigo Robert Siodmak.

24 Sesc | Serviço Social do Comércio


FILMOGRAFIA

1938 | Ultimatum 1920 | Genuine (curta)


1934 | Eine Nacht in Venedig 1920 | Die drei Tãnze der Mary Wilford
1933 | Polizeiakte 909 1920 | O gabinete do Dr. Caligari
1933 | Le procureur Hallers 1919 | Ein gefahrliches Spiel (curta)
1931 | Panik in Chicago 1919 | Der Umweg zur Ehe
1931 | Der Liebesexprej's' 1919 | Der verfílhrte Heilige
1930' | DerAndere 1918 | Grãjin Kúchenfee
1928 | Unfug der Liebe 1917 | Veilchen Nr. 4 (curta)
1928 | Leontines Ehemãnner 1917 | Der standhafte Benjamin (curta)
1928 | Die Frau aufder Folter 1917 | Der Liebesbriefder Kõnigin (curta)
1928 | Die grojâe Abenteuerin 1917 | Furcht
1927 | Die berúhmte Frau 1916 | Lehmanns Brautfahrt
1927 | Der Gardeojj'izier 1916 | Der wandernde Blumentopf (curta)
1927 | Die Gelieb'te 1916 | Die Rãuberbraut (curta)
1926 | Die Kõnigin von Moulin Rouge 1916 | Das wandernde Licht
1925 | Cavalheiro das rosas 1916 | Der Sekretãr der Kõnigin
1925 | Pension Groonen 1916 | Das Leben ein Traum
1924 | As mãos de Orlac 1916 | DerMann im Spiegel
1923 | I.N.R.I. 1916 | Frau Eva
1923 | Der Puppenmacher von Kiang-Ning 1915 | Der springende Hirsch oder Die Diebe
von Gúnstersburg
1923 | Raskolnikow
1915 | Die Konservenbraut
1922 | Die hôllische Macht
1915 | Er rechts, sie links (curta)
1921 | Das Spiel mit dem Feuer
1914 | Arme Eva
1921 | Die Rache einer Frau
1913 | Die Waffen der]ugend (curta)
1920 | Die Nacht der Kõnigin Isabeau

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 25


() gabinete do
Dr. Caligari
Das Kabinet des Dr. Caligari
1919

62 min

P&B

Elenco: Werner Krauss,

Conrad Veidt, Friedrich

Feher, Lil Dagover


Analisado em uma perspectiva histórica, o Hlme é um dos mais signiâcativos, não só

no campo do cinema como no da cultura. Hoje, sem dúvida, trata-se de uma refe—

rência estética para Vários artistas das mais variadas linguagens.

Antes de tudo, Caligari é desbravador, considerado um marco do expressionismo no

cinema, criador de um estilo calcado sobretudo em seu poder imagético, mas não

só. Sua força também impregna tematicamente, abre uma janela sem igual para a

aventura do fantástico no cinema. EnHm, depois de Caligari, o cinema nunca mais

foi o mesmo.

De um ponto de vista mais abrangente, Caligari representa o próprio cinema, seja pelo

uso da hipnose, seja por assumir sua inevitável artificialidade por meio de cená-

rios falsos que denunciam & “mágica” cinematográfica e seus truques ilusionistas.

Em razão dessas concepções, o filme sublima-se, nasce então o caligarismo, o estilo

visual que expõe ao mundo distorções advindo de um extravasamento emocional.

Como bem deíine Massaud Moisés, o expressionismo filosoãcamente “propõe co—

locar de novo o homem no centro do mundo, não o indivíduo em particular, mas o

Homem como espécie”.7Essa capacidade de abordar a natureza humana traduz o

alcance de Caligari como obra universal para além de sua época. Mesmo passados

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 27


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"-
quase cem anos, o filme continua inspirando gerações (e pensar que quando reali-

zado o cinema não tinha sequer 25 anos de existência).

Surpreendentemente, apesar da exuberância de Caligari e de sua influência incon-

teste, que paira para além dos anos 1920, até hoje há dúvidas se Robert Wiene é

realmente o criador da obra. Muitos boatos foram criados em torno desse Hlme,

inclusive que a estética expressionista dos cenários não foi pensada por ele. Um

dos roteiristas chegou a se pronunciar como o autor responsável pela concepção

imagética do Hlme. Somente quando se pôde ter acesso ao roteiro Hcou comprova-

do que não havia indicações quanto a como seriam os cenários.

O filme encaixa-se no contexto histórico conturbado da Alemanha do pós-guerra, o da

República de Weimar, mas está imerso também em um passado mais distante ao

resgatar a melancolia gótica e o romantismo de outros séculos. Caligari evoca o

irracionalismo, uma critica ao método cientificista e anuncia, como uma sombra,

um porvir de pesadelo a entravar o espirito alemão.

O enredo de O gabinete do Dr. Caligari fascina por trazer elementos fantásticos. O filme

inicia com a narração de um jovem sobre um estranho acontecimento ocorrido em

sua pequena cidade natal envolvendo um médico (Caligari) que manipula as ações
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de um sonâmbulo (Cesare). O jovem conta que Caligari se inspira em uma narrativa

sueca, na qual um homem com este mesmo nome domina a mente de um sonâmbulo.
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28 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

. Os cenários artificiais expressionistas só não


aparecem quando o jovem está narrando a his—
tória. A paisagem que assistimos ao fundo é a de um quintal
arborizado do manicômio, um ambiente com predomínio da natu-
reza. Esse detalhe é pouco comentado na historiografia dedicada
ao expressionismo, pois o mundo distorcido que vemos em todo
o filme é tal e qual o vê o narrador esquizofrênico. Assim, Wiene
nos coloca à mercê, durante toda a projeção, dessa subjetividade
específica, a do louco, como se estivesse nos condenando a essa
visão de mundo.

. Será que o jovem está enclausurado no mani—


cômio por saber a verdade sobre o passado es-
cabroso dº médico Caligari, que assim controla seus
passos enquanto vive incólume apesar dos crimes passados? Essa
versão traz elementos sinistros na mensagem do filme por pres-
supor que o mundo é controlado por loucos algozes enquanto os
sãos e honestos estariam presos por saberem a verdade acerca
dos criminosos.

Sombras que assombram l O expressionismo no cinema alemão 29


:*

expressionismos

Deve—se considerar a complexidade narrativa do filme, repleta de minúcias


e referências literárias, de imbrlcações, de uma história dentro
de outra e que por sua vez é sustentada por outra
história situada na época medieval e em outro país.
São tempos diversos que se interpenetram, se confundem e assinalam ao
espectador a riqueza que pode conter uma história e que por trás de um
mero acontecimento reside, ou pode residir, uma multiplicidade temporal
e espacial. Caligari nos desperta para o quão difícil é elaborar uma análise
sobre o mundo e seus fenômenos.

A criação de um mundo fantasmagórico e artificial, com cenários pinta-


dos e acachapantes, com predomínio de ambientes repletos de sombras,
escadas e pontes, somados com as maquiagens exageradas, atuações
insinuantes dos atores, em especial de Conrad Veidt, no papel de Cesare,
fazem do filme uma angustiante visão da República de
Weimar.

O sucesso do filme se espalhou incontrolavelmente pelo mundo até os


nossos dias. A metáfora de uma sociedade produtora de
sonâmbulos permanece viva, a crítica sobre a rela-
ção entre autoridade e loucura também. o personagem
de Cesare ainda nos cria algum assombro; sua existência, mesmo quando
sabemos que se trata de uma figura pertencente ao universo fantástico,
e uma sombra a nos lembrar de que algo está deslocado.

É fascinante e marcante a cena em que Cesare corre esgueirando—se pelas


paredes dos cenários como um autêntico sonâmbulo estabanado. E não
poderia Wiene filmá—la de outra maneira, e por uma
razão: uma sombra jamais poderia gerar outra. Não e
à toa que os ambientes de sombras anunciam o terror, e terror era o que
não faltava na República de Weimar.

30 Sesc | Serviço Social do Comércio


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O médico que trabalhava em um manicômio Hca transtornado quando surge um

sonâmbulo como paciente e resolve dar vazão a seu furor cientificista, testando se

um sonâmbulo pode realmente ser manipulado a ponto de cometer atos atrozes,

inclusive assassinato, tal como lera na história sueca.

O médico e o sonâmbulo se instalam em uma feira de atrações em uma pequena

cidade alemã e instauram o pânico entre seus habitantes. Depois de alguns assas-

sinatos, chega—se à conclusão de que Cesare matava e aterrorizava, mas era regido

pela mente do médico Caligari. Wiene nos surpreende com a informação de que o

jovem narrador sofre de distúrbios mentais e que o Caligari de sua história é seu

médico no hospício.

Ao final, o lilme sugere duas perguntas: será que apenas a mente embaçada de um

louco e capaz traduzir nossa existência no mundo terrivel em que vivemos? Sere-

mos sistematicamente condenados à manipulação superior, e que pouco seriamos

além de sonâmbulos a vagar, longe de sermos individuos autônomos?

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 31


As mãos de Orlac

Orlac Hánde

1924

110 min

P&B

Elenco: Conrad Veidt, Fritz

Kortner, Alexandra Sorina


Ao assistirmos a As mãos de Orlac temos a prova de que Robert Wiene não foi um dire-

tor de apenas uma obra, a icônica O gabinete do Dr. Caligari, como muitos críticos

defendem. O iilme carrega uma força e uma beleza que não foram apagadas pelo

tempo. Inseri-lo em uma mostra sobre o expressionismo alemão dos anos 1920

serve para fazer justiça tanto ao autor quanto à obra em si.

As mãos de Orlac marca o reencontro da dupla Wiene/Veidt, diretor e ator de O gabinete

do Dr. Caligari. Trata—se de um filme deslumbrante, em vários aspectos impregnado

da estética expressionista. Wiene reafirma seu talento para o cinema fantástico,

tomado pela inquietação e a assombração humana.

Um pianista apaixonado pela esposa perde as mãos em um acidente e aceita participar

de uma experiência de transplante de mão, a fim de poder retomar sua bem-suce-

dida carreira como concertista. Tudo transcorre bem até que ele descobre que as

mãos transplantadas eram de um assassino. O pianista fica então transtornado e

passa a acreditar que está tendo os mesmos impulsos do antigo dono das mãos.

Quanto mais o personagem mergulha em dúvidas, mais o universo expressionista se

manifesta, o uso de sombras e elementos obscuros iicam latentes na tessitura do

filme. Apesar de resgatar o clima de terror de seu Hlme mais exemplar e conhecido,

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 33


Wiene se inspira muito mais em Nosferatu, de EW. Murnau, em especial na atmos-

fera gótica e na imagética predominantemente tomada pelas sombras.

O terror está presente mais no aspecto psicológico do personagem Orlac, portanto

ele é de ordem mais subjetiva, centrado no caos em que se transforma sua mente.

Desde que estava internado no hospital, ele tem visões do assassino, que surge

envolto em nuvens, dai vem o assombro, o tormento psicológico do personagem,

que em suas visões nebulosas acredita estar cometendo assassinatos apenas por

ter adquirido as mãos de um assassino. A perturbação do personagem transforma—

-se no maior protagonista do filme, mas, assim como em Caligari, ocorre uma

manipulação a ser descoberta no final.

As interpretações dos atores ainda sofrem forte influência do estilo expressionista

de atuar. O exagero nas reações e nos gestos, como a cena em que a esposa Hca

sabendo sobre o acidente do marido. O movimento acentuado dos corpos também

pode ser lembrado, já que eles verdadeiramente falam nas obras expressionistas,

e Conrad Veidt é um dos grandes mestres nessa arte de representar com 0 cor-

po. Dentre diversas cenas, como não destacar a que ele acorda no hospital com

um bilhete em seu colo denunciando que suas mãos eram de um assassino que

fora executado. Veidt interpreta com reações no rosto e no corpo inteiro, em um

movimento de separar/isolar suas mãos do restante de seu corpo. Só Veidt daria

tamanha significação a essa cena. A partir desse momento, inicia-se & exasperação

34 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

. Quando descobre que as mãos transplantadas


são de um assassino, Orlac passa a minguar
como SUÍEÍÍO e Wiene acentua seu aspecto inferiorizado con-
trastando seu corpo frágil com um cenário amplo, com um pé—di-
reito imenso, pouco uso de mobília, iluminação no centro da cena
e predomínio de sombras pelos cantos.

do personagem, perdido, enojado com suas mãos. Como tocar no corpo amado de sua

esposa e nos teclados do piano com aquelas mãos maculadas pelo crime?

O que chama atenção positivamente é o cuidado da produção. Logo no inicio do lilme &

sequência do acidente de trem é muito bem construída. Destaca-se o ritmo criado pela

montagem, com muitos cortes, cenas rápidas, uma mise-en-scêne com muitos ngrantes,

uma filmagem realizada em um misto de estúdio e locação, algumas inclusive à noite,

ângulos surpreendentes, cenários com trens retorcidos muito bem realizados e fotogra-

ãa impecável. Um desafio, sem dúvida, em 1924.

As mãos de Orlac é um típico filme do terror fantástico, sustentado por uma história impro-

vável e irreal, ainda influenciado por uma estética expressionista, assim como o é no

desenvolvimento de temas e na construção de personagens atormentados psicologica-

mente, sujeitos às visões assombrosas. Antes de tudo, uma obra fluente, bem filmada,

coerente com seu autor e com uma atuação preciosa de Conrad Veidt.

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BIOGRAFIA

Paul Wegener nasceu em 11 de dezembro de 1874 e morreu em 13 de setembro de


1948. Após fazer um pequeno papel em um filme despretencioso, Wegener foi
convidado a atuar, com apenas vinte anos de idade, na companhia teatral de Max

Reinhardt, a mais expressiva da Alemanha na época. Wegener teve importante

papel nos primórdios do cinema alemão dos anos 1910. Foi roteirista e ator da
primeira versão do Hlme O estudante de Praga e realizou em 1917 o lilme Oflautis-

ta de Hamelin, em que priorizou os acabamentos exteriores dos cenários em vez

da decoração abstrata usual nas artes desse período.

No todo, sua obra é considerada irregular, marcada por um início triunfante e arre-

batador, de grande promessa artistica, mas frustrante, já que não conseguiu

confirmar seu talento promissor tão esperado. Acabou sendo mais reconhecido
como ator que como diretor de cinema, apesar de ter realizado grandes traba-

lhos como diretor.

Sua derrocada aconteceu nos anos 1930, quando realizou trabalhos para os nazistas,

convertendo-se em um dos principais atores oficiais do regime totalitário implan-


tado por Hitler.

Morreu desacreditado em Berlim, três anos após a queda do regime nazista. Na tomada
de Berlim pelo exército soviético, em 1945, foi poupado por ser reconhecido por

um soldado, que pendurou na porta de sua residência uma placa onde se lia:

“Aqui vive Paul Wegener, o grande artista, amado e adorado em todo mundo.”

38 Sesc | Serviço Social do Comércio


FILMOGRAFIA

1936 | Augustus the Strong


1920 | The Golem: How He Came into the World
1917 | The Golem and the Dancing Girl
1915 | O golem

1913 | The Student ofPrague

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 39


Der Golem

1920

68 min

P&B

Elenco: Paul Wegener,

Albert Steinrúk,
Lyda Salmonova
Antes que qualquer análise é necessária uma breve explicação sobre o titulo do fil—

me. Golem é um ser mítico, associado à tradição do judaísmo, particularmente a

cabala, que pode ser trazido à vida por meio de um processo mágico. O filme de

Wegener inicia com um imperador de certo reino, que parece ser da Idade Média,

baixando um decreto contra os judeus que perturbavam a ordem pública com seus

rituais místicos, ordenando que eles deixassem o reino urgentemente sob pena de

serem severamente punidos. Enquanto isso, o líder espiritual judaico prevê, ao ler

a cabala e os mapas astrais, que a posição das constelações mostra que se trata de

um momento delicado para o seu povo e vê a necessidade de chamar o golem para

defendê-lo. O líder espiritual, uma espécie de rabino, concebe rapidamente o ser de

barro inanimado, e aguarda o instante favorável do alinhamento das constelações

para poder dar vida ao seu monstro de barro, ao mesmo tempo que as negociações

com o imperador não avançam.

Por meio de um ritual eles conseguem dar vida ao ser monstruoso, um servo do povo

judeu. O rabino controla o sono do golem retirando a estrela de Davi de seu peito.

O monstro passa então a circular pelas ruas, fazer compras e ajudar nas tarefas

domiciliares. Até que o rabino resolve levá—lo a uma audiência com o imperador,

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 41


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que decidirá sobre o futuro do povo judeu. Na audiência, o rabino, com seus pode-

res mágicos, causa um desastre e o castelo começa a ruir. Com a ajuda do golem, o

palácio é poupado e o decreto contra os judeus e anulado.

O golem percebe que quando a estrela de Davi é retirada de seu peito ele adormece, e

passa a protegê-la. O problema acontece quando o monstro de barro perde o con-

trole, não aceitando mais apenas seguir ordens alheias. Apesar de toda perseguição

ao monstro de barro, Wegener nos brinda com um final sutil e singelo. O diretor não

constrói seu golem com atributos de caráter, ele não é bom ou ruim, apenas irra-

cional. O golem segue a tradição romântica alemã, herdada pelos artistas dos anos

1920. ReaHrma o uso do estilo fantástico no cinema alemão, e como seu contempo-

râneo, O gabinete do Dr. Caligari, ratifica o gosto pela estética expressionista, pela

história de terror fantástica, pela interpretação exagerada e pelo uso de cenários

artiíiciais e assustadores, além de contar com a exuberante fotografia contrastada,

feita pelo célebre artista expressionista Karl Freund.

42 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

. É o próprio diretor Paul Wegener quem protago-


niza O filme, no papel do golem.

. No hebraico, a palavra golem significa “tolo",


trata-se de uma derivação da palavra gelem (matéria—prima).

. Na literatura, há diversas histórias sobre golens, e sua apari—


ção pode ser algo bom, mas carregado de pro-
blemas. As mesmas características do golem podem ser encon-
tradas no Frankenstein de Mary Shelley.

. Wegener filmou duas vezes O golem. A primeira versão data de


1914, já a segunda, foi lançada em 1920 e ficou imortalizada como
um dos marcos do cinema expressionista ale-
mão dos anos 1920.

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Sombras que assombram I 0 expressionismo no cinema alemão 43


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O gabinete das úguras de cera
O homem que ri
BIOGRAFIA

Leni tornou-se um pintor avant-garde aos 15 anos. Estudou na Academia de Belas-Artes

de Berlim e depois trabalhou como desenhista de cenários teatrais. Em 1913,


começou a trabalhar com a indústria de filmes alemã desenhando cenários e figu—
rinos para diretores como Joe May, Ernst Lubitsch, Richard Oswald e E.A. Dupont.

Durante a Primeira Guerra Mundial, começou a dirigir Hlmes como Der Feldarzt — Das

Tagebuch des Dr. Hart (1917), Patience (1920), Die Verschwõrung zu Genua (1920—21)

e Backstairs (1921). A partir de 1925 desenhou prólogos curtos para estreias de


festivais de Hlmes em cinemas de Berlim.

Em 1927, mudou-se para Hollywood, aceitando um convite de Carl Larmmle para se

tornar diretor nos estúdios da Universal. Lá, Leni estreou como diretor com The

Cat and the Canary (1927), o qual serviu como influência para filmes de terror da
Universal e foi relilmado várias vezes. No ano seguinte, dirigiu O homem que ri,

um dos Hlmes mais estilizados do período do cinema mudo, um clássico aclama-


do pelos fãs do gênero.

Paul Leni morreu devido a um envenenamento, em Los Angeles, aos 44 anos.

46 Sesc | Serviço Social do Comércio


FILMOGRAFIA

1929 | The Last Warning


1928 | O homem que ri
1927 | The Chinese Parrot
1927 | O gato e o canário
1926 | Rebus Film Nr. 4 (curta)
1926 | Rebus Film Nr. 5 (curta)
1926 | Rebus Film Nr. 6 (curta)
1926 | Rebus Film Nr. 7 (curta)
1926 | Rebus Film Nr. 8 (curta)
1925 | Rebus Film Nr. 1 (curta)
1925 | Rebus Film Nr. 2 (curta)
1925 | Rebus Film Nr. 3 (curta)
1924 | O gabinete das jiguras de cera
1921 | Hintertreppe
1921 | Die VerschWõrung zu Genua
1920 | Patience
1919 | Prinz Kuckuck — Die Hõllenfahrt eines
Wolliistlings '
1919 | Die platonische Ehe
1918 | Das Rãtsel von Bangalor
1917 | Dornrõschen
1917 | Prima Vera
1916 I Das Tagebuch des Dr. Hart

Sombras que assombram I 0 expressionismo no cinema alemão 47


O gabinete das
figuras de cera

Das Wachsjgurenkbinett

1924

83 min

P&B

Elenco: Conrad Veidt,

Wener Krauss, Wilhelm

Dieterle, Emil Jannings


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O gabinete das jiguras de cera, conforme o próprio título sugere, foi realizado ainda sob

a égide estética do caligarismo. Seu diretor constrói imensos cenários tridimensio-

nais, tipicamente expressionistas, calcados nos exageros das formas. Tal como em

O gabinete do Dr. Caligari, é em uma feira que o museu está instalado como atração;

tal feira pode ser entendida como uma metáfora do caos e da desorganização polí-

tica presentes na República de Weimar.

No Hlme, vemos um jovem sendo contratado por um museu de cera para escrever as

histórias de três de seus personagens: o califa Haroun Al-Haschid; Ivan, O Terrível;

e Jack, O Estripador. Nesse Hlme, mais uma vez o fantástico invade o cinema ale-

mão de maneira surpreendente. Paul Leni consegue reunir os três maiores atores

alemães da época (Werner Krauss, Conrad Veidt e Emil ]annings), cada um repre—

sentando uma das figuras de cera.

Os cenários tridimensionais causam uma terrível estranheza no espectador, as partes

internas do palácio são labirinticas, com escadas tortuosas e irreais que mais pa-

recem um formigueiro do que um interior palaciano. As casas, assim como seus

interiores, têm uma aparência disforme e claustrofóbica.

Enquanto a atmosfera cômica predominava no episódio do califa, a aparência sombria

e aterrorizante dá o tom no episódio dedicado & Ivan, O Terrível, interpretado por

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 49


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Conrad Veidt, que utiliza o corpo todo em sua construção do personagem. Nenhum

detalhe parece fugir de Veidt: cada andar, gesto ou olhar conduz a cena e o espectador

para onde bem entender. Demonstra ser um ator que compreende com plenitude a

estética idealizada pelos realizadores expressionistas, e por isso foi um de seus icones.

Assim como Veidt, as expressões faciais dos outros atores também são exacerbadas,

além de seus gestos nos momentos mais dramáticos da trama.

No episódio sobre Ivan, O Terrível, Paul Leni faz uso de uma temática recorrente nas obras

expressionistas, e em especial & caligarista: promover uma mistura sinistra de ciência

e misticismo, com estranhos rituais envolvendo tubos de ensaio, ampulhetas e práti—

cas de magia. O clima pesado que Leni imprime nesse episódio é salientado por um

artificialismo que beira o grotesco, com chapéus maiores do que o normal, vestuários

ornamentais, assim como a concepção dos cenários. Tais como o personagem brilhan-

temente encarnado por Veidt, todos os elementos de cena são falsos, o mal-estar se

instaura como inerente a esse episódio sobre Ivan, sua personalidade doentia parece

conferir o tom desejado pelo diretor.

Jack, O Estripador entra na trama mais como um epílogo do que como um personagem a

ter a sua história contada. Talvez Leni tenha se aproveitado de sua reconhecida imagem

assassina para realizar uma grande brincadeira com o universo onirico do cinema. Já

cansado de escrever as outras duas histórias, o personagem escritor imerge no sono e

Leni nos brinda com as imagens mais belas e enigmáticas de todo o Hlme: as imagens

50 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

. O exagero permeia a estética de O gabinete das


figuras de cera, tal e qual na maioria dos filmes expressio—
nistas alemães. A caracterização do personagem do califa é um
ótimo exemplo. A natureza obesa de Emil Jannings é aumentada
com enchimentos em sua roupa na região do abdome.

. A começar pelo cartaz do filme, são quatro vilões que


aparecem como figuras de cera, porém apenas
três foram retratados. Reza a lenda que a quarta figu-
ra, Rinaldo Rinaldini, personagem do romance do escritor alemão
Christian August Vulpius, não teve sua história contada por falta de
dinheiro para sua produção.

passam a se duplicar e o personagem de Jack adquire vida para atormenta-lo, perse-

guindo sua pretendente, a filha do dono do gabinete das ãguras de cera. As imagens

são impressionantes, com cenários repletos de formas geométricas, tais como em Ca-

ligari, numa atmosfera onirica, fantástica.

Paul Leni cria um curioso paralelo entre as histórias narradas até então no filme e o pró-

prio cinema, ambos manipuladores de emoções, e assim como a feira, uma diversão

barata, escapista e ilusória, um sonho que vale a pena ser vivido.


O homem que ri

The Man Who Laughs

1928

110 min

P&B
Elenco: Conrad Veídt, Mary
Philbin, Olga Baclanova,
Sam De Grasse
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Apesar de O homem que ri ter sido produzido nos Estados Unidos pela Universal Stu-

dios, em 1928, o filme conserva ainda traços característicos do expressionismo

alemão. Seu diretor já havia filmado na Alemanha o clássico O gabinete daspguras

de cera, e morreu um ano depois de realizar essa madura obra de arte.

O lastro expressionista já acontece na própria escolha da temática: um homem com

o rosto deformado. Apesar de não ser um filme de terror, 0 homem que ri trata em

especial da criação de um monstro. O mais impressionante no filme é o fato de a

monstruosidade não ser do monstro, mas sim de quem o deformou. Durante o lil-

me, esse personagem luta contra a própria imagem, já que um homem que parece

estar rindo o tempo todo é inevitavelmente trágico.

0 filme baseia-se na obra homônima do escritor romântico francês Victor Hugo. A es-

colha de Leni por filmar essa história de traços humanistas profundos muito revela

sobre sua atração pelos personagens marginalizados, transformados brutalmente

em monstros e tratados como se fossem restolhos pelo poder estabelecido.

Bem afeito ao estilo expressionista, o personagem deformado pelo riso, vivido por Veidt,

é acolhido por um filósofo e torna-se um artista mambembe. Veidt sobressai mais

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 53


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uma vez com seu talento para a arte da representação e tal como fez em As mãos de Orlac

e O gabinete do Dr. Caligari dá ao personagem um magnetismo surpreendente.

Aqui, o espaço da feira continua a seduzir os cineastas alemães dos anos 1920, e mais

uma vez o terror transformado tanto em espetáculo quanto em um meio de sobre-

vivência. O ambiente de feira novamente evoca o caos e simboliza & desorganização

social. Leni faz uso de câmeras em movimento, cenas com muitos úgurantes e cor-

tadas muito rapidamente para evidenciar uma atmosfera confusa, enúm, um grande

circo de horrores.
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Como grande cenógrafo, Paul Leni, aluno de Max Reinhardt, abusa na construção dos

cenários artificiais primorosos, que tinham beleza sim, apesar de não abrir mão de

seus aspectos mais sinistros, típicos da concepção expressionista, mas dispensando o

exagero estilístico marcadamente caligarista.

Há uma visível e bem-resolvida isometria estilística entre o realismo norte-americano e

o expressionismo alemão. A cena Hnal, por exemplo, está repleta de cenas típicas do

cinema de aventura de Hollywood, mas os cenários e as interpretações dos atores

não omitem sua genética expressionista. Além dessa obra, pode ser mencionado

como outro exemplo bem-sucedido dessa mistura estilística o filme Aurora (1927),

de EW. Murnau.

54 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

. A atuação de Conrad Veidt no papel do bizarro protagonista é um


dos seus trabalhos mais marcantes. Cabe mencionar que sua carac-
terização em O homem que ri impressionou de tal modo o universo
artístico que é impossível não lembrar sua visível in-
fluência na construção estética da maquiagem do
personagem Coringa, vivido por Jack Nicholson,
70 anos depois, no filme Batman, dirigido por Tim Burton.

. Esta foi uma das primeiras produções da Uni—


versal de transição do cinema silencioso para
SOl'lOl'O, trazendo como trilha sonora When Love Comes Stealing,
de Walter Hirsch, Pollack Lew e Rapee Erno.

Paul Leni dirige os atores com métodos nitidamente calcados no expressionismo: atuações

gestuais exageradas e movimentos bruscos, rostos comunicativos com olhos esbuga-

lhados cheios de angústia permeiam o úlme. Uma das características mais evidentes

em O homem que ri e a do contraste entre a aparência e a essência. O personagem de

Conrad Veidt tem uma essência bondosa, que não coincide com sua aparência mons-

truosa. Outra dicotomia construída por Paul Leni foi estabelecida entre o clima de agi-

tação da rua e a monotonia da corte. Enquanto na feira imperava a desordem, do outro

lado, dentro do palácio da rainha, predominava uma música de câmara sonolenta.

Em O homem que ri essas dicotomias são constantes, os animais assumem características

mais humanas, enquanto os homens tomam atitudes mais animalescas. O nome do

cachorro é Homo, a duquesa mais parece uma vampira à espreita de sangue, o filósofo

tem o curioso nome de Ursus. Para o espectador, tudo soa muito estranho, em especial

essas inusitadas inversões que ocorrem sistematicamente no úlme.

Ao final, como na maioria dos filmes expressionistas, o bem supera o mal, como se a

Hcção tivesse a missão redentora de salvar um mundo que está em frangalhos, e

Paul Leni não abre mão desse poderoso recurso dramatúrgico de colocar a plateia

a seu favor.

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 55


Fausto

Nosferatu

A última gargalhada
BIOGRAFIA

Friedrich Wilhelm Murnau, ou simplesmente F.W. Murnau, nascido Friedrich

Wilhelm Plumpe, foi um dos mais importantes realizadores do cinema mudo,

do cinema expressionista alemão e do estilo Kammerspiel (mais detalhes so—


bre o estilo, veja página 69).

Nosferatu, de 1922, uma adaptação pessoal da novela Drácula, de Bram Stoker,

é o tilme mais conhecido da sua obra (em boa parte perdida), juntamente
com A última gargalhada, de 1924 e Fausto, de 1926. Em 1926, emigrou para

Hollywood, onde, antes de morrer prematuramente aos 43 anos, realizaria o


aclamado Aurora, de 1927. Vários de seus filmes estão perdidos. 0 seu último

trabalho, Tabu (correalização com Robert Flaherty), foi Hlmado nos mares do

sul, longe dos grandes estúdios e estreado postumamente. Atualmente é um

Hlme cultuado, e marca uma quebra com a estética dos seus filmes anteriores.

58 Sesc | Serviço Social do Comércio


FILMOGRAFIA

1931 | Tabu
1930 I O pão nosso de cada dia [
1928 | 4Devils "
1927 | Aurora
1926 ] Fausto
1925 | Tartufo
1924 | A última gargalhada
1924 I Die Finanzen des Grojãherzogs
1923 | Die Austreibung (curta)
1922 | Phantom
1922 | Der brennende Acker
1922 | Nosferatu
1922 | Marizza, genannt die Schmuggler—Madonna
1921 | Schlojã Vogeloed
1921 | Sehnsucht
1921 | Der Gang in die Nacht
1920 | Abend —Nacht——Morgen
1920 | Derjanuskopf
1920 | Der Bucklige und die Tãnzerin
1920 | Satanas “
1919 | Der Knabe in Blau

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 59


Faust

1926

118 min

P&B
Elenco: Emil jannings,
Camilla Horn, Wilhelm

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Se Fausto for comparado a A última gargalhada, Nosferatu e Aurora, três outras obras

de Murnau, sua potência estética pode ficar abalada. Dennitivamente, Fausto não

é a obra-prima desse cineasta fantástico, que morreu prematuramente aos 42

anos, mas configura-se como característica do cinema alemão dos anos 1920 e da

sua estética expressionista, e situa—se muito acima de tantas obras realizadas em

sua época.

Fausto é um velho cientista seduzido pelo demônio, Meústófeles, interpretado por

Emil ]annings. Primeiramente, o cientista obtém poderes para curar a peste, mas

como esses poderes vinham das forças obscuras, ele não conseguia curar perante a

imagem da cruz e logo o povo o vê como encarnação do diabo e o rechaça. Depois,

Fausto é seduzido para ter de volta a sua juventude, e o diabo lhe apresenta a ima-

gem de uma linda princesa e lhe promete intervir para fazê-la ficar apaixonada por

ele. Depois de experimentar novamente a juventude, Fausto não quer mais voltar

a ser um velho e faz um pacto eterno, vendendo sua alma. Entediado, Fausto pede

ao diabo para voltar para sua aldeia, onde se apaixona pela bela Gretchen. Ao se

apaixonar por ela, Fausto perde o controle dos seus sentimentos, mata o irmão da

amada e é obrigado a fugir deixando-a grávida e desonrada em sua cidade. Toda

essa tragédia foi arquitetada pelo diabo.

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 61


Como em todo filme alemão dos anos 1920, o bem triunfa sobre o mal. Não se trata necessa-

riamente da vitória do mocinho, tal como o personiúca o cinema de Hollywood, mas sim

um sucesso do ideal sobre as pessoas. Essa distinção e fundamental, porque não existe

no cinema alemão a imagem do mocinho redentor que personifica o bem, crucial é que o

bem supere o mal. Trata-se da supremacia do bem coletivo sobre o indivíduo.

O tema do endemoninhamento é mais uma vez encarnado nos Hlmes alemães dos anos

1920. A atmosfera fantástica também domina essas histórias, inclusive com & perso-

nificação humana do diabo salientando seu aspecto mágico. Se pensarmos no filme

O sétimo selo, de Ingmar Bergman, podemos enxergar nítidas marcas da estética de

Fausto, em especial, a construção da imagem do inferno na Terra e a opção em situar a

história na Idade Medieval. Mas, evidentemente, Bergman, produzindo sua obra trin-

ta anos depois, aprofundou o tema da contradição inerente à ideia de Deus e do diabo.

Apesar de não flertar com a estética caligarista, em Fausto observa-se ainda assim uma

preservação do artificialismo da imagem. Surpreendentemente, esse Hlme se desen-

volve como uma fantasia, um delírio, e se afasta da narrativa realista de A última

gargalhada, mas aproxima-se da tragédia. Essa tragédia, em parte, está explicitada

na narrativa, na mise-en-scêne e na interpretação dos atores, mais exagerada do que

em outras obras de Murnau. Os traços medievalistas, tão tipicos das obras expressio-

nistas, encontram eco também nesse filme, no decór, nos ngrinos e na temática do

diabo influindo na vida humana.

62 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

. Murnau imprime em seu Fausto algumas imagens impressionantes.


Trabalha com a superposição de imagens, técnica muito utilizada
por ele em outros filmes, que cria no espectador um clima
vertiginoso, como se uma imagem só não bas-
tasse, e outras clamassem por estar ali. Efeitos de ventos e de
seres voadores fantásticos também são gritantes no filme.

. A fotografia de Carl Hoffmann se sustenta pelo excesso de preto,


e a atmosfera dos ambientes e sempre sinistra. O desequilí-
brio do preto é fundamental nessa obra: ele ajuda
a direcionar o olhar do espectador para elementos de cena e per-
sonagens com os tons de cinza e branco. Claro que o predomínio
do preto muito nos diz sobre o domínio do diabo em nosso mundo
terrestre, que impede uma nítida visão do todo. O cenário de Wal-
ter Rohrig e Robert Herlth também colabora para formar uma iden-
tidade imagética: o quarto do velho cientista Fausto é entulhado
de livros, assim não conseguimos distinguir com clareza o espaço,
que apenas nos parece soturno e infeliz.

Já a ideia do Kammerspiel, implementada em A última gargalhada por Murnau dois anos

antes, não foi levada em consideração em Fausto. Há muita utilização de diálogos por

meio de intertitulos e a câmera também não se movimenta tanto, apenas em poucas

cenas. O realismo também é abandonado, o universo fantasioso e fantástico predomi-

na sobremaneira.

Em Fausto, nota-se a influência do romantismo alemão do século 19, a começar pela es-

colha de Murnau por realizar uma adaptação da obra mais célebre de Goethe, escritor

icone do romantismo alemão. Essa herança do romantismo no expressionismo se faz

presente não só Hsicamente, na produção das imagens, mas também é de ordem espi-

ritual, incrustada e firme, tal como a marca inconteste de um carimbo.

Como um típico Hlme expressionista, ele explora cenários construidos, artificiais. Até a na-

tureza é concebida de maneira ornamental e reforça o artificialismo de Fausto. Tudo,

incluindo também o inferno, surge, na tela como um ambiente que nos suscita um

estranhamento. A imagem final que Hca de Fausto é a de uma experiência sensorial,

mítica, irreal e delirante.

Sombras que assombram I 0 expressionismo no cinema alemão 63


Nosferatu

1922

94 min

P&B

Elenco: Max Schreck,

Alexander Granach,

Gustav von Wangenheim,

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Em 1922, o mundo se renderia ao talento de EW. Murnau. Nosferatu tornou-se um dos

filmes mais influentes da história do cinema com uma fábula de terror baseada em

uma adaptação não autorizada da famosa obra Drácula, de Bram Stoker.

O filme narra a vida de um corretor de imóveis jovem e ambicioso que vende uma casa

abandonada ao estranho Conde Orlock, um vampiro que tem como objetivo fazer

como presa a esposa do corretor. Orlock sairá da Transilvânia para ser vizinho de-.

les e conquistar de vez a mulher pretendida. Mas, no caminho entre a Transilvânia

e a grande casa adquirida, o Conde Orlock deixa um rastro de destruição e morte,

o que faz todos pensarem que se trata de uma nova peste que assola a região.

Mumau é um dos primeiros diretores a se desgarrar dessa obsessão pelos cenários, mas

o apego à faceta sinistra e mórbida dos enredos expressionistas ele ainda mantém

nesse poderoso filme, que o alça entre os grandes criadores do cinema alemão.

Sem dúvida, a atmosfera fantástica de Nosferatu o aproximaria à concepção espiritual

do expressionismo, em detalhes expressivos como o apreço decadentista medieval

na figura diabólica do Conde Orlock, no abuso fotográfico das sombras e na inter-

pretação hiperbólica dos atores.

O papel da maquiagem é fundamental na construção imagética do filme, já que con-

fere expressividade na atuação dos atores. Max Schreck, o intérprete do Conde

Sombras que assombram I 0 expressionismo no cinema alemão 65


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Orlock, muito faz valer dessa maquiagem para salientar seu aspecto sinistro. O olhar

também se configura como um poderoso recurso cênico: olhos esbugalhados, típicos

da estética expressionista, realçam & atmosfera lúgubre da história.

Apesar de o elemento mórbido ser muito acentuado, Murnau consegue extrair de sua

mise-en-scéne momentos poéticos e belos. Com uma simples, rápida e singela imagem

de um galo cantando, ele nos revela o nascer do dia e a impossibilidade da fuga de

Orlock, por exemplo. Para Murnau, até as criaturas mais sinistras se perdem por amor.

Inebriado por seu sentimento pela bela moça, Orlock esquece o nascer do dia e ao

olhar para os raios solares evapora como fumaça no ar.

. Mesmo trabalhando em locações em vez de cenários, a obra de Murnau ainda guarda

E algumas características do período caligarista, mas o parentesco pode ser admitido

. mais no espírito do que na parte visual do filme. Talvez as semelhanças físicas que

mais nos saltam aos olhos sejam a atuação de Max Schreck como Nosferatu e o uso de

sombras como artificio cênico.

Esse impressionante Nosferatu de Murnau serviu de inspiração a diversos filmes de hor-

ror, em especial os de vampiros e de outros monstros fantásticos, que se tornaram

um ãlão significativo na indústria do cinema em todo o mundo, em especial na de

Hollywood. Mais de 50 anos depois, em 1979, um dos maiores representantes do novo

cinema alemão, Werner Werzog, realizou uma pródiga homenagem ao imortal gênio

de Murnau, com uma reúlmagem desse memorável clássico.

66 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

Apesar de a história do filme ser descaradamente inspirada na obra


de Bram Stoker, a produção não tinha os direitos para a filmagem,
portanto não o credita. Mas para quem assiste ao filme não resta
dúvida, não há referências ou inspiração, mas sim adaptação
ao pé da letra do famoso Conde Drácula, de
Stoker.

O trabalho corporal de Max Schreck também funciona na composi-


ção do personagem. Gestos lentos, passos curtos e corpo curvado
fazem parte do escopo do personagem, além dos braços colados ao
corpo, como se ainda estivessem presos ao caixão. Nosferatu tem
uma aparência frágil, esquelética, mas O seu poder vem da
hipnose, por isso também um enfoque necessá-
rio nos olhos, parte do corpo onde se localiza o
exercício de seu poder.

Sombras que assombram I 0 expressionismo no cinema alemão 67


A última
gargalhada

The Last Laugh


1924

91 min

P&B

Elenco: Emil Jannings


A última gargalhada talvez seja uma das mais sublimes e impecáveis obras de Murnau.

Com esse filme, o diretor alemão afasta-se mais substancialmente da estética cali-

garista e reafirma a tendência do Kammerspiel, com a utilização de mais locações .

do que de cenários, enredos mais realistas do que fantásticos, poucos intertitulos e

movimentos de câmera ousados e bem mais rebuscados, aprofundando o estilo já

apontado em Nosferatu, dois anos antes.

Com Murnau o expressionismo dilata-se ao libertar o cinema alemão do esteticismo

do caligarismo, desviando-se para uma vertente mais realista, mas sem abrir mão

do uso da metáfora social e humana, típica da verve expressionista. Foi o que acon-

teceu com este filme. Do roteiro à montagem, A última gargalhada vai deixando

para trás o caligarismo. A começar pelo excepcional roteiro de Carl Mayer, 0 mais

expressivo escritor alemão para cinema dos anos 1920. Logo na primeira sequên—

cia, somos tomados por uma profunda admiração pelo velho porteiro, interpretado

por Emil Jannings, que apesar da chuva torrencial, dedica—se como um novato a

recolher as bagagens dos clientes que chegam ao hotel, mas após carregar um

enorme e pesado baú senta para descansar um pouco. O gerente do hotel vê a cena

e resolve que ele não tem mais condições de trabalhar na função, transferindo-o

para a função de servente do banheiro masculino.

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 69


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Murnau elege o elegante uniforme do porteiro, em especial o seu pesado casaco,

como o objeto a simbolizar sua autoestima. Existe todo um cuidado ao filmar

essa peça do vestuário, de modo & relacionar a decadência profissional com o

seu uniforme.

Lotte H. Eisner, a maior especialista em Hlmes alemães dos anos 1920, escreveu com seu

conhecimento apurado que

Mayer e Murnau se empenham nessa tragicomédia que é o destino de um por—


teiro de hotel, orgulhoso de sua libré engalanada, admirado pela família e pelos
vizinhos do pátio interno como se fosse um general. Tendo ficado muito velho
para carregar bagagens pesadas, ele é removido e encarregado dos lavatórios
dos homens; precisa, pois, trocar sua roupa de gala por um simples avental
branco. A familia sente-se desonrada, ele se torna motivo de escárnio dos vizi—
nhos, que descontam assim a adulação que prodigalizaram outrora. Trata-se de
uma tragédia alemã por excelência, que não se compreende senão na Alemanha,
onde o uniforme é rei, é Deus. Um espirito latino tem grande diúculdade em
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conceber seu alcance trágico.9


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A estruturação do roteiro é fundamental no Hlme. Sem utilizar intertitulos, Carl Mayer


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constrói sequências bem delinidas, com ideias claras. Primeiro, a relação do persona—
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gem com o trabalho. Depois, com os vizinhos e a família. No dia seguinte, ele volta ao
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trabalho e recebe o comunicado da perda da função e que exercerá outra. Sequência

a sequência, a decadência do porteiro vai se tornando um fato indissolúvel; o roteiro

vai esmiuçando a dor e a tristeza desse homem.

70 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos
. Uma das sequências mais criativas e surpreendentes de A última
gargalhada é a do casamento da filha do porteiro, que acontece no
mesmo dia de sua mudança de função no hotel. Com um misto de
felicidade e tristeza, mas ainda mantendo o uso do uniforme para
os vizinhos e familiares após roubá-Io no hotel, o personagem de
Emil Jannings bebe demais e dorme sentado. Murnau então pene-
tra nos desejos mais profundos do personagem, reconstruindo em
sonho seu trabalho como porteiro, a levantar baús pesadíssimos
como se fossem plumas, jogando-os para o alto, fazendo malaba—
rismos impressionantes e sendo aplaudido por uma multidão que
reconhece seu incrível talento como porteiro. Murnau nos mostra
nessa sequência uma beleza onírica e a intimidade desse perso-
nagem que só queria ser reconhecido profissionalmente. Mas o
mais incrível nessa cena é a sua construção. Por um breve
momento Murnau deixa que os sonhos do por-
teiro nos guiem a uma atmosfera surreal, levan-
do-nos aos seus pensamentos mais recônditos.
Murnau faz a câmera de Freund realizar um bailado inebriante e
nos conduz ao inconsciente desse homem simples e cheio de vida
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Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 71


Um dos pontos mais fascinantes do filme é justamente o trabalho do ator Emil ]annings,

preciso da primeira à última cena. A direção de Murnau aposta todas as suas fichas

no trabalho de ]annings, que enfrenta a tarefa com muito talento, explorando cada

olhar e gesto que lhe cabe. ]annings consegue atuar com todo o seu corpo, cativan—

do e atraindo a atenção do espectador. Quando veste novamente o garboso uni-

forme de porteiro e tenta demover o gerente de sua decisão, entretanto, ele soma

mais uma derrota. Depois, enquanto um funcionário começa a tirar seu uniforme,

a face de Jannings nos diz tudo, parece que estão extraindo sua pele, e, de tabela,

sua alma e a dignidade. Está tudo ali, representado no corpo de Jannings.

No decorrer do filme, o andar do ex-porteiro ralenta e o seu corpo se curva. A fotogra—

fia de Karl Freund também acompanha essa degradação do personagem: de inicio

radiosa, fulgurante, depois, há predominância das sombras, & luz Hca progressiva-

mente mais rarefeita. Uma cena a qual vale mencionar é quando o novo uniforme

lhe é dado e ele se dirige lentamente da luz para a escuridão do subterrâneo ba-

nheiro masculino. Freund constrói essa cena magnificamente, e Murnau só & corta

quando ]annings mergulha em delinitivo nas trevas do seu futuro inferno.

72 Sesc | Serviço Social do Comércio


O espetáculo visual ofertado por Murnau continua na sequência posterior, quando

vemos o porteiro indo para o trabalho e o contraste entre a sua visão do mundo

distorcida pela bebida com a nossa de espectador, nítida. Essa cena é totalmente

inspirada no expressionismo, em que prevalece não só o olhar fantasmagórico do

personagem, mas o situa como indivíduo em mundo demoníaco e trágico.

A última gargalhada se constitui em uma obra máxima do cinema, de um diretor que

como poucos conseguiu dignificar o cinema como arte. E o resultado imediato foi

o convite recebido por Murnau para Hlmar em Hollywood. E o resultado foi outra

obra-prima, Aurora.
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Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 73


fRITZ
Metropolis
BIOGRAFIA

Considerado um dos mais famosos nomes da escola do expressionismo alemão, Fritz

Lang nasceu em Viena, na Áustria, filho de um engenheiro civil, que desejava que

ele seguisse a mesma carreira. Aos 21 anos mudou-se para Munique (1911), onde

estudou pintura e escultura.

Participou na Primeira Guerra Mundial e foi gravemente ferido em um dos olhos. No

hospital, onde permaneceu por longo tempo, começou a escrever roteiros para

Joe May, os quais eram dotados de um forte grahsmo, no campo do fantástico e


do demoníaco.

A efervescência cultural, politica e social da Berlim do pós-guerra se reflete nas suas pri-

meiras obras. Em 1919, estreou na direção com um filme chamado Halbblut, que

hoje se perdeu e acerca do qual se sabe muito pouco. Alcançou o primeiro sucesso
com Os espiões, do mesmo ano.

Em 1921, casou-se com a roteirista Thea Von Harbou, que escreveu os argumentos de

quase todos os lilmes da primeira fase de sua carreira. As peliculas que Lang
dirigiu ainda na fase do cinema mudo ficariam para a história como alguns dos

maiores expoentes do expressionismo alemão.

A crítica, que unanimemente tinha enaltecido os seus filmes alemães, era agora tam—

bém quase unânime a subvalorizar as obras que realizava nos Estados Unidos,

argumentando que Lang teria se subjugado aos produtores norte-americanos,

desperdiçando talento em filmes comerciais. Só na década de 1950 se percebeu

a injustiça, quando uma boa parte dessa critica começou a reconhecer a grande

qualidade da maioria dos filmes dirigidos pelo cineasta alemão em Hollywood.


Ele foi um dos primeiros cineastas a dirigir Marilyn Monroe no Hlme Só a mulher

peca, de 1952. Atuou ainda no filme O desprezo (1963), de Jean-Luc Godard. Logo
voltaria para os Estados Unidos, onde morreu.

76 Sesc | Serviço Social do Comércio


FILMOGRAFIA

1960 | A jornada para a cidade perdida 1943 | Os carrascos também morrem


1960 | Os mil olhos do Dr. Mabuse 1941 | O homem que quis matar Hitler
1959 | Osepulcro indiano 1941 | Conquistadores
1959 | 0 tigre da Índia 1940 | A volta de Frankjames
1956 | Suplício de uma alma 1938 | Casamento proibido
1956 | No silêncio de uma cidade 1937 | Vive—se uma só vez
1955 | O tesouro de Barba Rubro 1936 | Fúria
1954 | Desejo humano 1933 |, O testamento do Dr. Mabuse
1953 | Os corruptos 1931 | M, o vampiro de Dusseldorf
1952 | Só a mulher peca 1928 | Os espiões
1952 | 0 diabofeito mulher 1927 | Metropolis
1947 | O segredo da porta fechada 1924 | A vingança de Kriemhilde
1946 | O grande segredo 1924 | Os Nibelungos — A morte de Siegfried
1945 | Almas perversas 1922 | Dr. Mabuse, der Spieler — Ein Bild der Zeit
1944 | Um retrato de mulher 1921 | A morte cansada
1944 | Quando desceram as trevas 1921 | Corações em luta

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 77


Metropolis

1927

124 min

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Elenco: Rudolf Klein-Rogge,


Brigitte Helm, Gustav
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Metropolis é sempre lembrado como um Hlme conciliador, uma obra que busca um

mundo harmônico entre empregados e patrões. Apesar dessa critica ainda ser

coerente, o que mais marcou esse trabalho Visionário e ousado de Fritz Lang foi

o seu apuro visual, traço típico da estética expressionista.

A magnitude visual de Metropolis, produzido em 1927, é assustadora, até para os

olhos do século 21. Fritz Lang havia visitado Nova York e Hcara impressionado

com o cosmopolitismo e os prédios modernos e altos. A maquiagem também

merece destaque, as faces dos ricos destacam-se pela limpidez e retidão, as dos

operários salienta a dureza de suas Vidas. Por sua vez, o cientista, com seu cabe—

lo desgrenhado, explicita sua personalidade volúvel, pronto a ser seduzido pelo

poderoso dono da cidade.

A fotografia do mestre Karl Freund colabora na concepção de Lang desse mundo belo

na superfície, mas triste em suas profundezas. Freund lança mão de tomadas de

cenas realizadas em mosaico, com a projeção de Vários olhos, rostos e elementos

da modernidade que tão bem espelham a sensação vertiginosa impressa na nar-

ração de Lang, efeito que também utilizou em A última gargalhada, de Murnau.

Em alguns momentos do filme, & alucinação das imagens parece dar a imprecisão

necessária para a sequência continuar.

Sombras que assombram I O expressionismo no cinema alemão 79


A história se passa no século 21, numa grande cidade governada com mão de ferro por

um poderoso empresário. Seus colaboradores são de classe alta e vivem em um lindo

jardim, tal como Freder, único herdeiro do líder de Metropolis. Já os trabalhadores são

escravizados pelas máquinas, e condenados a trabalhar e viver em galerias no subsolo

da cidade. Entre os operários, destaca-se a jovem Maria, que conclama os trabalhadores

a reivindicar seus direitos. Metropolis demonstra uma preocupação crítica com a meca-

nização da vida industrial nos grandes centros urbanos, questionando a importância do

sentimento humano, perdido no processo. Como pano de fundo, a valorização da cultu—

ra, expressa no iilme pela tecnologia e, principalmente, pela arquitetura.

Em Metropolis há uma opção clara de Lang pelo espetáculo, antes de tudo, um espetáculo

visual, incontestavelmente imagético. O Hlme não se sustenta propriamente no de-

senvolvimento dos personagens. Mas, o que está realmente em jogo é o desequilíbrio

entre as classes. Lang prefere assumir um discurso social, coletivo. O diretor vê o

mundo como um lugar de extremos inconciliáveis: patrão contra operários; a huma—

nização contrastada ã robotização; o patrão humano e o desumano; solo e subsolo; o

pai e o filho; Maria humana e Maria robô.

Apesar desses deslizes ideológicos, Metropolis se alirma ainda hoje como uma obra visual-

mente muito bem-acabada, uma produção ousada e que ratiãcou o nome de Fritz Lang

como um cineasta importante para os estudiosos do cinema. Poucos anos depois, Lang

viria a realizar M, o vampiro de Dusseldorf, uma obra magnifica, que muitos apontam

como premonitória do nazismo, que já estava batendo à porta da Alemanha.

80 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos

. Metropolis carrega consigo uma marca registrada do expressio-


nismo, em especial do caligarismo, que pode ser visto no arti-
ficialismo dos cenários. Apesar disso, em Metropolis não
acontece a distorção dos cenários, mas sim o
predomínio das linhas retas e um exagerado ar-
tificialismo modernista. Tudo nele é construído. Há uma
ambiência característica do fantástico, uma preocupação em in-
corporar intervenções e criações científicas no enredo, tais como o
robô construído à imagem e semelhança da líder operária Maria.

. A interpretação dos atores é típica da estética expressionista, ºS


gestos bruscos e a encenação, quando o corpo
todo do ator é colocado a disposição do diretor
em busca do sentido almejado. OS movimentos cor-
porais do dono da cidade expressam a dureza e a frieza de sua
inflexibilidade, já os movimentos rápidos de seu filho espelham
sua angústia em direção a uma maior harmonia entre os homens,
assim como o seu urgente senso de justiça.

. Ao conceber sua história no futuro, Fritz Lang e Thea Von Harbou


instauram uma profecia sombria de uma mecanização social exa-
cerbada, de um mundo dividido, rachado, onde poucos se diver—
tem, fazem esportes, enquanto a maioria trabalha insone, como
máquina, para sustentar os poucos privilegiados. No final do fil-
me, Lang promove a necessária união entre as
classes antagônicas e aceita a possibilidade da
confraternização, sendo chamado pejorativamente de “con-
ciliador" por vários críticos e artistas.

. Hitler admirava tanto Lang que o convidou para


ser o cineasta oficial do nazismo. De imediato,
o cineasta arrumou suas malas e partiu para
Hollywood, onde faria uma bela carreira. Sua esposa, a ro-
teirista Thea Von Harbou, preferiu ficar e aderir ao projeto mega-
lômano de Hitler.

Sombras que assombram I º expressionismo no cinema alemão 81


Notas

1 Cardinal (1988).

ª Hobsbawn (1997, p. 16).


3 Todorov (2008. p. 31).
4 Canepa (2008).
5 Eisner (2002, p. 17).

6 Cardinal (1988, p. 25).

7 Moises (2004, p. 181).

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Sombras que assombram ! O expressionismo no cinema alemão 83


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Este catálogo foi produzido com as fontes Granda BT, Bahiana


e HVD Bodedo. Capa em papel duodesign 250 g, miolo em
papel couche matte 150 g.
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