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Ética e Filosofia Política - Prof.

Sérgio Cardozo
Rodrigo Sá Leitão de Abreu Pinto (Turno: Tarde)

Finalmente, lidamos com Aristóteles. Em um curso cujo objetivo é


percorrer o imbróglio político desde o surgimento dos ideais democráticos até
o Republicanismo, a célebre classificação dos regimes políticos de Aristóteles
é um destes momentos tão necessários quanto óbvios. Dada por Aristóteles no
capítulo VII do texto em questão, no entanto, esta já não é capaz de nos
impressionar decisivamente. Ao menos, não à primeira vista. Visto que
discutimos, em sala de aula, a República de Platão, sabemos bem como a
divisão dos regimes já estava posta naquele momento (na verdade, mesmo
anteriormente, em Heródoto, já encontramos uma divisão dos regimes). O mais
inquieto dos alunos de Platão parece não ter sido tão original em sua
formulação: ao escrever um tratado político, seria necessário citar a tal
classificação ainda que sem inovações substanciais. Se fosse este o caso, não
haveriam razões para as ressonâncias históricas deste célebre texto que até
hoje nos alcança (como aquela velha história do estudante que entrou na
filosofia porque leu “O Mundo de Sofia ” e depois descobriu que o abismo era
mais profundo). Na verdade, seguindo uma orientação do nosso antigo
professor Francis Wolf, se quisermos ser fiéis a radicalidade inventiva deste
escrito aristótelico, é preciso levar em conta os critérios utilizados por
Aristóteles para realizar sua classificação pois, o segundo deles, será
determinantes para marcar a peculiaridade da divisão aristotélica.

Isto porque, o primeiro critério - posto pela pergunta “quem governa?” -


não é suficiente para marcar este texto com o selo da originalidade: fora
justamente este critério que guiou as formulações de Heródoto e,
principalmente Platão. No entanto, já neste ponto, Aristóteles dá um passo
além de Platão quando deduz estas classificações da própria definição de
politeia. Sendo esta definida enquanto a “organização de diversas
magistraturas e sobretudo daquela que é soberana entre todas… o governo da
cidade”, esta insistência em um poder político central, com o qual se
relacionariam os demais orgãos políticos de decisão, é de onde decorre a
classificação de acordo com quem são aqueles que compõe este centro: “Uma
vez que governo e constituição significam a mesma coisa, e um governo é
aquilo que é soberano nas cidade, é necessário que seja soberano quer um só
indivíduo, quer um grande número de pessoas.”

Por mais que tenhamos insistido no passo além dado por Aristóteles, ainda
estaríamos muito próximo dos regimes propostos por Platão. Como insistia
alguém como Werner Jaeger, Aristóteles pareceria nunca ter se livrado
totalmente dos seus vinte anos como membro da Academia de Platão. Fazendo
coro à G.E.L. Owen, que sempre criticava tal posição de Jaeger, Wolf nos
lembraria que é cedo demais para postular esta paridade. Para além do suposto
convencionalismo do primeiro critério, é o segundo critério posto por
Aristóteles que constitui a dimensão fundamental de sua originalidade. Para
além da pergunta “quem governa?”, é preciso indagar: “qual a finalidade da
comunidade política e da forma específica de poder que lhe corresponde ?”. As
respostas estão vinculadas a existência de regimes “que visam a vantagem
comum” ou que “visam apenas o interesse dos governantes ”. Esta dualidade
traça uma linha demarcatória entre os regimes verdadeiramente políticos, uma
vez que realizam a essência da cidade (isto é, visar a felicidade dos seus
membros), e os falsos regimes políticos (vocacionados ao despotismo). Esta
entificação entre “verdadeiro” e “falso” indica, sobretudo, uma avaliação que é
efetuada pelo segundo critério. Enquanto o primeiro (número dos governantes)
não executa esta decantação, o segundo realiza a partir do critério da justiça:
os regimes verdadeiros são “formas retas segundo o justo no sentido absoluto”.
Deste modo, a justiça depende menos da maneira pela qual o poder é
distribuído do que do fim com vistas ao qual ele é exercicido (no melhor dos
casos: o interesse geral). Como reconheceu Wolf: “a “justiça absoluta” de um
regime não depende do primeiro critério (da resposta à pergunta: “quem
governa?”), mas do segundo (da resposta à pergunta: “com vistas a quem, ou a
quê, se governa?”).”

O cruzamento entre os dois critério resulta na classificação dos seis


regimes propostas por Aristóteles. Três são ditos “normais”: a realiza, a
aristocracia e o regime constitucional. Os demais, “anormais”: tirania,
oligarquia, democracia. A exigência desta clivagem entre ambos é posta pela
análise prévia que Aristóteles realiza quando investiga o que seria, em sua
dimensão fundamental, uma cidade, um cidadão, um regime, etc (as perguntas
tão caras à maiêutica socrática que há muito tiram o sono dos atenientes: “o
que é uma cidade?”, “o que é um cidadão?”, “o que é um regime?”). A partir
destas considerações, realizadas na primeira parte deste mesmo Livro III, o
Estarigita alcança a “finalidade”, a verdadeira essência de todo regime
verdadeiramente político.

Wolf costuma sublinhar este ponto pois, uma vez que perseveremos nele
enquanto a peculiaridade maior do pensamento políticos de Arisóteles, é
possível afirmar que “a política aristótelicas é “democrata”, bem como o
pensamento da democracia aristotélica, independentemente daquilo que o
próprio Aristóteles (o aluno de Platão e o mestre de Alexandre) pudesse pensar
a respeito.” No fundo, Wolf compreende aquilo que Kant certa vez enunciara:
“Não raro acontece, tanto na conversa corrente como em escritos,
compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou
sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não
determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou até
pensou contra sua própria intenção.” Neste sentido, vergar o texto aristótelico
significa voltâ-lo contra o seu próprio autor. Contorcê-lo até o ponto em que ele
revela sua força insurrecta “independente daquilo que o próprio Aristóteles
pudesse pensar a respeito.”

Por isto, insistir em determinadas regiões do texto aristótelico significa


perscrutar nos pontos nelvrágicos em que o projeto do seu sistema filosófico é
traído pelo próprio encadeamento implacável do conceito que insiste em abrir
novas difereções. Estranhamente, as verdadeiras filosofias acontecem
justamente no momento em que o autor parece haver pensado contra as sua
próprias intenções. É isto que Wolf nos sugere quando lemos Aristóteles.

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