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ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad.

Celeste
Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 51-71.

“Desde o ensaio de Sartre Qu’est-ce que la littérature?, há teoricamente menos


desentendimento sobre literatura engajada e literatura autônoma. Mas a controvérsia
continua tão crucial como hoje só pode ser algo que diga respeito ao espírito, não
diretamente à sobrevivência dos homens. Sartre foi impelido ao manifesto porque via,
certamente não como pioneiro, as obras de arte expostas lado a lado num panteão de
constituição arbitrariamente descompromissada degradadas a bens culturais. Pela
coexistência incompatibilizam-se reciprocamente. Se uma ou outra se pretende
excepcional, sem que o autor tivesse tido obrigatoriamente essa intenção, nenhuma
certamente suporta a rivalidade ao seu lado. Tal intolerância sadia vale não somente
para composições isoladas, mas também para ‘tipos’ como os diversos comportamentos
da arte, a que a controvérsia semiesquecida se referia. São duas ‘atitudes frente à
objetividade’: elas se combatem mesmo quando a intelectualidade as expõe em paz
fictícia. A obra de arte engajada desencanta o que só pretende estar aí como fetiche,
como jogo ocioso daqueles que silenciaram de bom grado a avalanche ameaçadora,
como um apolítico sabiamente politizado. Diz-se que desvia da luta dos interesses reais.
Que o conflito dos dois grandes blocos não poupa mais ninguém. Que dele depende a
própria viabilidade do espírito e tanto que somente cegueira vai bater-se por um direito
que amanhã pode ser destruído. Para as obras autônomas, porém, tais considerações e a
concepção de arte que as sustenta são já a catástrofe contra a qual as obras engajadas
advertem o espírito. Se ele desiste da tarefa e da liberdade de sua pura objetivação, ele
teria renunciado a si mesmo. o que então ainda se transforma em obra, identifica-se com
simples existência, que se combate, tão efêmera para os engajados, que | já no primeiro
dia é tema de seminários em que inevitavelmente morre. O clímax ameaçador da
antítese adverte quão dúbio se apresenta o problema da arte hoje em dia. Cada uma das
duas alternativas nega, ao negar a outra, também a si própria: a arte engajada porque,
como arte necessariamente distinta da realidade abole essa distinção; a da arte pela arte
porque, pela sua absolutização, nega também aquele relacionamento irrecorrível para
com a realidade, que no processo dinâmico de sua independentização do real, entende-
se como seu a priori polêmico. Entre os dois polos dilui-se a tensão de que a arte tem
vivido até as mais novas eras.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de
literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991,
p. 51-52)

“Os bodes de Sartre, os carneiros de Valéry, não se podem separar. Um engagement


desses, mesmo quando político, permanece politicamente multi-significativo, enquanto
não se reduza a propaganda, cuja configuração complacente escarnece todo
engajamento do sujeito. O oposto porém, que no índex soviético vem relacionado como
formalismo, não é contestado apenas pelos administradores públicos de lá, e nem pelo
existencialismo libertário: falta de ira, de agressividade social, são críticas comuns aos
chamados textos abstratos feitas inclusive por alguns ‘avançados’.” (ADORNO, T.
Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 52)

“pelo quadro Guernica, Sartre nutre a maior admiração; em música e pintura ele poderia
ser acusado facilmente de simpatias formalistas.” (ADORNO, T. Engagement. In:
______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1991, p. 52)
“Seu [de Sartre] conceito de engagement ele reserva à literatura, por sua essência
conceitual: ‘o escritor... lida com significações’. Certo, mas não unicamente. Nenhuma
palavra que é inserida numa obra literária desvincula-se completamente das
significações que possui no discurso significativo, mas também em obra alguma, nem
mesmo no romance tradicional, essa significação conserva inalterada aquela mesma que
a palavra tinha fora do texto. Já o simples ‘war’ (‘era’), num relatório de algo que não
foi, ganha uma nova qualidade figurativa pelo fato de não ter sido. Isso prossegue nos
níveis de significação mais elevados de uma composição literária, até atingir o que um
dia serviu como sua ideia. Da posição especial que Sartre concede à literatura terá que |
duvidar também aquele que não coordena os gêneros da arte incondicionalmente sob
aquele cabeçalho genérico. Os rudimentos das significações externas nas composições
literárias são o inevitavelmente desartístico da arte. Não é neles que devemos ler sua lei
formal, e sim na dialética dos dois momentos. Essa lei impera naquilo em que se
transformam as significações. A distinção entre poeta e literato é tênue, mas o objeto de
uma filosofia da arte, como Sartre também a intenciona, não é seu aspecto publicístico.”
(ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste
Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 52-53)

“Debate-se incomodamente entre o que um artista quer de ser produto, e o mandamento


de um sentido metafísico testemunhando-se objetivamente. Por aqui esse é em geral o
ser incomumente praticável. A função social do tema engagement tornou-se até certo
ponto confusa. Quem, com espírito cultural conservador, exige da obra de arte que ela
diga algo, está aliando-se contra a obra de arte desligada de finalidade, hermética, e com
a contraposição política. Economistas do compromisso preferirão considerar o ‘Huis
clos’ de Sartre como profundo, do que dedicarem-se a ouvir pacientemente um texto em
que a linguagem abala a significação e através de seu distanciamento semântico rebela-
se inventiva e bandeirante contra a categórica submissão do sentido, enquanto para o
ateísta Sartre, o sentimento conceitual da criação poética permanece o pressuposto do
engajamento. Obras contra as quais no Leste o agente policial intervém, são ao mesmo
tempo denunciadas demagogicamente pelos defensores do testemunho-verdade
autêntico, porque pretensamente testemunham o que absolutamente não testemunham.
O ódio contra o chamado durante a República de Weimar de bolchevismo cultural
ultrapassou o tempo de Hitler, em que foi institucionalizado. Hoje ainda, como há 40
anos, ele inflama-se com produtos da mesma essência, entre os quais também aqueles
que nesse ínterim, pelo seu aparecimento, estão bem afastados no tempo, e cuja
comparticipação com aspectos tradicionais é evidente. Em jornais e revistas radicais de
direita brada-se indignação contra o que é considerado anti-natural, superintelectual,
não-sadio, decadente: eles sabem para quem estão escrevendo. Isso corresponde às
observações da psicologia social quanto ao caráter do afeito à autoridade. Dentre tais
comportamentos existenciais contam-se o convencionalismo, o respeito pela fachada
coisificada de opinião e sociedade, a defesa contra | emoções que se descontrolam com
isso, ou que encontram no inconsciente do preso à autoridade algo que lhe é peculiar e
que este de modo algum se confessa. Com essa atitude ostensiva a tudo que é estranho
ou que venha a causar estranheza é muito mais compatível o realismo literário de
qualquer procedência, quer se considere ele mesmo crítico ou socialista, do que obras
que, sem se fazerem jurar a demagogias políticas, por sua simples presença põem fora
de ação o sistema de coordenadas rígido do preso a autoridades, em que aquelas outras
formações se fixam tão mais encarniçadamente quanto menos elas são capazes da
experiência viva de um não-iniciado. O desejo de destruir Brecht da jogada ajusta-se a
uma camada relativamente exterior da consciência política; além disso não foi tão
violento, senão se teria manifestado depois de 13 de agosto [De 13 a 14 de agosto de
1956 agrava-se o estado de saúde de Brecht, que acaba morrendo à meia-noite de 14,
em Berlim.] muito mais crasso. Onde por outro lado o contrato social com a realidade é
desfeito, as obras literárias não mais falando como se noticiassem um real, os cabelos
arrepiam-se. Não é das melhores falhas das discussões sobre ‘engajamento’ eu ele nada
reflita sobre o efeito desempenhado por obras cuja própria lei formal não leva em
consideração os contextos de atuação. Enquanto não se confunde o que é comunicado
no embate com o incompreensível, toda luta se assemelha a uma luta de sombras.
Perplexidades no julgamento do problema não o modificam, mas provocam a reflexão
da alternativa.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed.
Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 53-54)

“Teoricamente ter-se-ia que distinguir engajamento de tendenciosismo. A arte engajada


no seu estilo conciso não intenta instituir medidas, atos legislativos, cerimônias práticas,
como antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o parágrafo do aborto, ou as
casas de educação correcional, mas esforça-se por uma atitude: Sartre, por exemplo,
pela decisão, como condição do existir frente à neutralidade espectadora. A inovação
artística do engajamento, porém, frente ao veredicto tendencioso, torna o conteúdo em
favor do qual o artista se engaja, plurissignificativo, ambíguo. A categoria da decisão,
originariamente de Kierkegaard, acresce-se em Sartre da herança cristã do: quem não
está comigo, está contra mim, porém sem o conteúdo concreto teológico. Remanescente
dele é apenas a autoridade abstrata da opção recomendada, indiferente a que a | própria
possibilidade de opção dependa do que está para ser escolhido. A forma prescrita da
alternativa, com a qual Sartre quer provar o não desaparecimento da liberdade, invalida-
a. Dentro do realmente predeterminado, ela degenera em afirmação gratuita: Herbert
Marcuse deu o nome devido ao nonsense filosófico de que se pode ainda intimamente
aceitar o martírio ou recusá-lo. É justamente isso, porém, que deve ressaltar das
situações dramáticas de Sartre. Por isso elas servem tão mal como organogramas de seu
próprio existencialismo, porque contêm em si, em nome da verdade, todo o mundo
controlado que aquele existencialismo ignora; através delas, aprende-se a não-liberdade.
Seu teatro de ideias acaba por sabotar aquilo para que ele urdiu as categorias. Mas isso
não é uma insuficiência individual de suas peças. Arte não significa aguçar alternativa, e
sim, através simplesmente de sua configuração, resistir à roda viva que sempre de novo
está a mirar o peito dos homens. Tão logo, entretanto, as obras de arte engajadas
ocasionem decisões e as transformem em seu critério de valoração, essas decisões
tornam-se substituíveis. Sartre deixou francamente claro como consequências dessa
polissemia, que não espera nenhuma real transformação do mundo através da literatura;
seu ceticismo testemunha alterações históricas da sociedade como também da função
prática da literatura desde Voltaire. O engajamento resvala para a mente do escritor,
segundo o extremo subjetivismo da filosofia de Sartre em que ecoa, apesar de todos os
semi-tons materialistas, a especulação alemã. Para ele a obra de arte torna-se
convocação de sujeitos, porque não é outra coisa senão o manifesto do sujeito, de sua
decisão ou não-decisão. Ele não quer afirmar que toda obra de arte, já simplesmente por
sua concepção, confronta o escritor, por mais livre que este seja, também com
exigências objetivas, como se deve acrescentar. Frente a essas exigências, seu propósito
reduz-se a mero propósito. A questão sartreana ‘por que escrever?’ e sua orientação para
uma ‘escolha mais profunda’ é falha, porque, para o escrito, o produto literário, as
motivações do autor são irrelevantes. Sartre não se distancia muito, em suas
ponderações, da ideia de que o nível das obras, como Hegel já sabia, eleva-se quanto
menos elas fiquem presas à pessoa empírica que as produz. Quando ele chama, na
linguagem de Durkheim, a obra literária como um ‘fait social’, está citando sem querer
a ideia da objetividade mais intimamente coletiva da obra, intranspo|nível pela simples
intenção subjetiva do autor. Daí que ele não liga o engagement àquela intenção do
escritor, e sim a seu ser-homem. Esse destino, porém, é tão generalizado, que o
engagement se ressente de cada uma das particularidades de quaisquer obras e
comportamentos humanos. Trata-se de que o escritor se engaja no presente, dans le
présent; ao presente, porém, ele não pode sem mais razões fugir, e por isso não se pode
daí concluir pura e simplesmente nenhuma programação. A obrigação que o escritor
contrai é muito mais precisa: não é uma imposição da decisão, mas da própria coisa.
Enquanto Sartre fala de dialética, seu subjetivismo registra tão pouco o ‘outro’ definido,
para o qual o sujeito se externou e através do qual ele chega a ser sujeito, que cada
objetivação literária sua é suspeita como inflexibilidade. Mas porque a pura imediatez e
espontaneidade que ele espera salvar não se deixa determinar por nenhuma
contraproposta, ela se deforma numa segunda coisificação. Para produzir drama e
romance sobre a mera mensagem — o modelo ideal seria para ele o grito de dor do
torturado — ele tem que procurar apoio numa objetividade plana, subtraída da dialética
da obra configurada e da expressão, na comunicação de sua própria filosofia. Ela se
pretende a substância da criação literária como somente em Schiller; segundo a medida
da obra criada, porém, o comunicado, por mais sublime que seja, é quase nada mais que
um assunto. As peças de Sartre são veículo daquilo que o autor quer dizer, atrasadas em
relação à evolução das formas estéticas. Elas operam com intriga tradicional e
ressaltam-na com uma confiança inabalável-e-cega em significações que se teriam que
transportar da arte para a realidade. Entretanto as teses ilustradas ou se possíveis
confessas abusam da emoção cuja expressão a própria obra dramática de Sartre
desencadeia, como exemplo, e desconfessam com isso a si próprias. Quando, no fim de
uma de suas peças mais famosas, surge a frase: ‘o inferno são os outros’, ela soa como
uma citação de ‘L’être et le Néant’; além do mais, poderia ser igualmente ‘o inferno
somos nós mesmos’. A complexidad do enredo seguro e da igualmente segura e
destilável ideia, deu a Sartre o grande sucesso e fez | dele, sem dúvida alguma contra
sua vontade íntegra, aceitável para a indústria cultural. O alto nível de abstração de suas
peças-tese permitiu-lhe levar alguns de seus melhores trabalhos, o filme ‘Les jeux Sont
Fait’ [sic] ou o drama ‘Les Mains Sales’, a desempenhar um papel proeminente na
política e não apenas entre as vítimas obscuras: de modo semelhante, porém, a ideologia
corrente, odiada por Sartre, confunde ação e sofrimento das revistas-em-quadrinhos com
o caráter objetivo da história. Fica tecido no véu da personalização que homens
dirigentes decidem, e não a maquinária autônoma, e que nos comandos sociais há vida;
os à-boca-da-morte em Beckett divulgam então a palavra oficial. O ponto de partida de
Sartre impede-o de reconhecer o inferno, contra o qual se revolta. Muitos de seus
slogans poderiam tornar-se os chavões de seus inimigos mortais. Que se trata em si da
decisão, seria equiparável até mesmo ao ‘somente a vítima nos liberta’ do nacional-
socialismo; no fascismo da Itália, o dinamismo absoluto de Gentile também profetiza
algo semelhante filosoficamente. A fraqueza na concepção do engajamento acomete
justamente no a-favor-de-que Sartre se engaja.” (ADORNO, T. Engagement. In:
______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1991, p. 54-57)

“Com muita razão diz Sartre em seu ensaio ‘por que escrever?’: ‘ninguém deveria crer
um momento sequer que se poderia escrever um bom romance em louvor do anti-
semitismo’. Mas também nenhum em louvor dos processos moscovitas, mesmo quando
antes eram subvencionados, quando Stalin fez matar Sinowjev e Bucharin. A inverdade
política mancha a configuração estética.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______.
Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1991, p. 61)

“O que seus [de Brecht] clássicos ainda denunciaram como parvoíce da vida campestre,
a consciência mutilada de famintos e subjugados, torna-se para ele, como um filósofo da
ontologia existencial, a velha grande verdade. Sua obra completa é um esforço de Sísifo
para equilibrar alguma vez seu gosto cultivado e diferenciado com as exigências
heteronômicas tolas que ele tomou a si desesperadamente.” (ADORNO, T. Engagement.
In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1991, p. 64)

“Eu não procuraria desculpar a frase: escrever-se lírica depois de Ausschwitz [sic] é
bárbaro; aí está negativamente confessado o impulso que anima a poesia engajada. a
pergunta de alguém em ‘Morts sans Sépultures’: há sentido viver quando existem
homens que batem até que os ossos se quebram no corpo, é ao mesmo tempo a pergunta
se a arte em sua ainda pode existir, se uma regressão do intelecto no conceito de
literatura engajada não é sujeitada pela regressão da sociedade mesma. Mas também
continua válida a aproximação contrária de Enzensberger: a poesia precisa resistir a esse
veredicto; ser portanto de tal modo que não tome a si pela sua simples existência depois
de Ausschwitz [sic], o cinismo. Sua própria situação já é paradoxal; e não apenas o
modo de comportamento frente a ela. O excesso de sofrimento real não permite
esquecimento; a palavra teológica de Pascal ‘on ne doit plus dormir’ deve-se
secularizar. Mas aquele sofrimento, segundo Hegel a consciência de misérias, requer
também a permanência da arte que proíbe. Não há quase outro lugar em que o
sofrimento encontre sua própria voz, o consolo, sem que este o atraiçoe imediatamente.
Os mais significativos artistas da época seguiram-no. O radicalismo sem concessões de
suas obras, justamente as proscritas por formalistas, empresta-lhe a força assombrosa
que se escoa de poesias sem esperança, para suas vítimas. Mas mesmo o ‘sobrevivente
de Warschau’ fica aprisionado na aporia a que ele, configuração autônoma da
heteronomia que se tornou maldição, se entrega sem reservas. Há uma dor que se
associa à composição de Schönberg. E não é absolutamente aquilo que aborrece o
alemão, porque não permite reprimir o que se quer afastas a qualquer preço. Mas ao ser
feita imagem metafórica, apesar de toda a crueza e incompatibilidade, é como | se a
vergonha frente às vítimas fosse ferida. Dessas vítimas prepara-se algo, obras de arte,
lançadas à antropofagia do mundo que as matou. A chamada configuração artística da
crua dor corporal dos castigados com coronhas contém, mesmo que de muito longe, o
potencial de espremendo-se escorrer prazer. A moral que coage a arte a não esquecer
isso um segundo, escorrega para o abismo da anti-moral. Pelo princípio de estilização
estética e até pela prece solene do coro, o destino imponderável se apresenta como se
tivesse tido algum sentido algum dia; é sublimado, e tira-se um pouco do seu horror.
Basta isso para fazer-se injustiça às vítimas, quando, entretanto, perante a justiça
nenhuma arte que evitasse o caminho delas resistiria. O tom de desespero paga também
seu tributo à afirmação infame. Obras de nível inferior àquelas exponenciais são
portanto também deglutidas com prazer, um pouco de renovação do passado. No
momento em que, na literatura engajada, o assassínio generalizado (do povo) torna-se
bem cultural, fica mais fácil colaborar-se com a cultura que fez nascer o assassínio.
Quase infalível é uma característica dessa literatura: que ela, propositalmente ou não,
deixa perceber-se que mesmo nas chamadas situações extremas, e justamente nelas,
floresce o humano; às vezes surge de uma metafísica baça que reafirma ser possível o
horror levado à situação-limite, a ponto de nele deixar revelar-se a peculiaridade do
HOMEM. No clima existencial acolhedor, desfaz-se a diferença entre carascos e
vítimas,porque ambos são igualmente lançados na possibilidade do nada, que se dúvida
é geralmente mais apropriada aos carrascos.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______.
Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1991, p. 64-65)

“Os discípulos daquela metafísica que a essa altura descambou para um simples jogo
intelectual, trovejam como antes de 1933 contra o desfeiamento, distorção, perversão
artística da vida, como se os autores tivessem culpa naquilo contra que se entesam, indo
o que eles escrevem igualar-se àquele horrendo. [...] Também obras de arte autônomas,
como esse quadro [Guernica], negam com certeza a realidade empírica, destroem a
destruidora, aquilo que aí está simplesmente e como mero existente repete infinitamente
a | culpa. Ninguém senão Sartre reconheceu o relacionamento entre a autonomia da obra
e um querer, que nãoé imprimido à obra, mas que é seu próprio gestus [gesto que revela
um ato do pensamento] frente à realidade. ‘A obra de arte’, escreveu ele, ‘não tem
objetivo algum, nisso concordamos com Kant. Ela é, porém um objetivo. A formulação
kantiana ignora o apelo que fala de cada quadro, de cada estátua, de cada livro’. A isso
ter-se-ia apenas que acrescentar que esse apelo não está em nenhuma relação intacta
com o engajamento temático da poesia. A autonomia brutal das obras, que se furta à
submissão ao mercado e ao consumo, torna-se involuntariamente um ataque. Este
porém não é abstrato, não é um comportamento invariável de todas as obras de arte para
com o mundo que não lhes perdoa não se adaptarem totalmente a ele. O distanciamento
das obras para com a realidade empírica é antes ao mesmo tempo intermediado por esta.
A imaginação do artista não é nenhuma creatio ex nihilo; apenas diletantes e sutis
imaginam-na assim. Ao oporem-se à empiria, as obras de arte estão a obedecer às forças
dessa empiria, que ao mesmo tempo renegam o espiritual da obra, deixam-no ao dispor
de si mesmo. Não há um conteúdo objetivo, nem uma categoria formal da poesia, por
mais irreconhecivelmente transformado e às escondidas de si mesmo, que não proceda
da realidade empírica a que se furta. Com isso e com o reagrupamento dos diferentes
aspectos graças a suas leis formais, a poesia condiciona seu comportamento para com a
realidade. Mesmo a abstração vanguardista, frente à qual o burguês se desarma, e que
não tem nada em comum com a conceitual e mental, é o reflexo sobre a abstração da
lei.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad.
Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 65-66)

“Todo engajamento em favor do mundo deve dar seu aviso prévio, para que se faça
justiça à ideia de uma obra de arte engajada, ao distanciamento polêmico que o teórico
Brecht pensou, e que praticou tanto menos quanto mais se inscreveu na causa humana.
Esse paradoxo, que provoca o protesto dos sutis, apoia-se sem mais filosofia, na mais
simples experiência: a prosa de Kafka, as peças de Beckett, ou o verdadeiramente
terrível romance ‘Der Namenlose’ (O Sem Nome) provocam uma reação frente à qual as
obras oficialmente engajadas desbancam-se como brinquedos; provocam o medo que o
existencialismo apenas persuade. Como desmontagem da aparência, fazem explodir a
arte por dentro, que o engagement proclamado submete por fora, e por isso só
aparentemente. Sua irrecorribilidade obriga àquela mudança de comportamento que as
obras engajadas apenas anseiam. Aquele a quem as rodas de Kafka atropelaram um dia,
para ele a paz com o mundo está tão perdida como a possibilidade de acomodar-se com
a sentença de que o giro do mundo é ruim: o aspecto confirmativo inerente à
comprovação resignada da supremacia do real é corroído. Entretanto quanto maior a
pretensão, tanto maior a chance do naufrágio e insucesso. O que em pintura e música se
observou como perda da tensão — nas composições que se afastavam da reprodução
objetiva e da coerência conteudística captável — comunica-se de vários modos à
literatura, segundo um mau costume da língua vulgarmente chamada de textos. Ela
chega à margem da indiferença, degenera imperceptivelmente para artesanato, para o
jogo de repetições de fórmulas percebido em outros gêneros, para padronagens de
tapeçaria. Isso dá direito muitas vezes à fomentação grosseira do engagement.
Composições que exigem a mentirosa positividade do sentido, recaem facilmente num
despropósito de outra espécie, a promoção positivista, o vaidoso jogo estocástico com
os elementos. Com isso sucumbem ao círculo de que se querem desviar. Caso limite é o
da literatura que se troca adialeticamente com ciência, e em vão sintoniza-se com a
cibernética. Os extremos se tocam: o que corta a última comunicação se torna presa de
teoria da comunicação. Nenhum critério rijo traça o limite entre a negação decidida e a
má positividade do sem-sentido,| como de um continuar fluente, fluindo a seu próprio
bem. Nesse último caso, um tal limite seria a invocação do humano, e a maldição da
mecanização. As obras de arte que com sua existência abraçam o partido das vítimas da
racionalidade que submete a natureza, estiveram no protesto — já por sua própria
natureza — sempre envolvidas no processo de racionalização. Se pretendessem renegá-
lo, estariam estética e socialmente incapacitadas: uma gleba mais elevada. O princípio
organizador, o princípio que promove a unidade de cada obra de arte, é justamente
tomado da racionalidade, a cuja pretensão totalitária ele quer por termo.” (ADORNO, T.
Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 67-68)

“Na história da consciência francesa e alemã, a questão do engagement apresenta-se


diferentemente. Na França, domina esteticamente, de modo aberto ou oculto, o princípio
de l’art pour l’art, conjurado com tendências acadêmicas e reacionárias. Isso explica a
revolta adversária. Mesmo obras extremamente vanguardistas têm na França um toque
do decorativo agradável. Por isso o apelo de existência e engajamento soou lá como
revolucionário.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed.
Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 68)

“Na Alemanha o engagement recai reiteradamente em balido, no que todos dizem, ou ao


menos no que latentemente todos gostariam de ouvir. No conceito da ‘message’, da
mensagem da arte mesma, mesmo da politicamente radical, esconde-se já o aspecto
mundano. No Gestus de recitar um acordo secreto com aqueles a quem nos dirigimos,
que somente assim poderiam ser arrancados da cegueira de compactuar tal acordo.”
(ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste
Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 70)

“Uma literatura que como a engajada, mas também como os filisteus éticos a querem,
existe para o homem, acaba por traí-lo, traindo a causa que o poderia auxiliar se não
gesticulasse arremedos como se estivesse a ajudá-lo. O que, porém, tirasse daí a
consequência de se pôr a si mesmo absolutamente, de só existir por causa de si mesmo,
chegaria, do mesmo modo, à ideologia. Ela não pode ultrapassar as sombras da
irracionalidade, a saber, que a arte deve fechar os olhos e os ouvidos para o fato de,
mesmo em sua oposição, constituir um momento da sociedade. Mas se ela mesma
recorre a isso, se freia arbitrariamente o pensamento de seu condicionamento, e disso se
deduz sua raison d’être, ela falsifica a maldição que paira sobre si, sob a forma de sua
teodiceia. Mesmo na obra de arte mais sublimada, abriga-se um ‘deve ser de outro
modo’; e mesmo onde ela só se igualasse a si mesma, como em sua pura elaboração
tornada científica, estaria ainda aí descambando no mau, literalmente no pré-artístico.
Fica transmitido porém, o aspecto do querer, exclusivamente pela configuração da obra,
cuja cristalização se torna metáfora de algo diverso, que deve vir a ser. Como algo
meramente feito, fabricado, as obras de arte, também as literárias, são regras de
orientação para a práxis a que se furtam: a fabricação da vida propriamente dita. Essa
mediação não é um meio caminho entre engagement e autonomia, não é uma mistura
qualquer de elementos formais avançados e de um valor espiritual visando a uma
política progressiva (concreta ou supostamente). O valor das obras não é absolutamente
o que lhe foi incutido de espiritual, antes o contrário. A ênfase ao trabalho autônomo,
entretanto, é por si mesma de essência sócio-política. A deformação da política
verdadeira aqui e hoje, o enrijecimento das relações que não se dispõem a degelar em
parte alguma, obriga o espírito a tomar um rumo em que ele não precise se acanalhar.
Enquanto atualmente tudo o | que há de cultural mesmo as composições íntegras,
ameaça sufocar-se no palavrório da cultura, ao mesmo tempo encarrega-se às obras de
arte que suportem caladamente o que é interdito à política. O próprio Sartre expressou
isso num trecho que honra sua integridade [Cf. Jean-Paul Sartre. L’existentialisme est
um humanisme, Paris, 1946, p. 105.]. Não estão em época as obras de arte políticas, mas
a política imiscuiu-se nas autônomas, e mais amplamente onde se mostram
politicamente mortas, como na parábola de Kafka das armas de crianças, onde se funde
a ideia de impotência com a consciência crepuscular da paralização [sic] em riste da
política. Paul Klee que se insere na discussão sobre arte engajada e arte autônoma
porque sua obra — écriture par excellence — teve suas raízes literárias e seria tão fraca
se não as tivesse tido, como se não as tivesse consumido — Paul Klee desenhou durante
a primeira guerra ou pouco depois caricaturas contra o Imperador Guilherme como
desumano devorador de ferro. Delas surgiu — creio que se poderia comprovar com
precisão — no ano de 1920 o Angelus Novus, o anjo da máquina, que não traz mais
nenhuma [sic] emblema claro de caricatura e engajamento, mas envolve amplamente
com suas asas. Com olhar enigmático, o anjo da máquina força o contemplador a se
perguntar se ele anuncia a desgraça consumada ou a salvação aí mascarada. É, porém,
segundo as palavras de Walter Benjamin, que possuía a ilustração, o anjo que não traz,
mas toma.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad.
Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 70-71)

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