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Celeste
Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 51-71.
“pelo quadro Guernica, Sartre nutre a maior admiração; em música e pintura ele poderia
ser acusado facilmente de simpatias formalistas.” (ADORNO, T. Engagement. In:
______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1991, p. 52)
“Seu [de Sartre] conceito de engagement ele reserva à literatura, por sua essência
conceitual: ‘o escritor... lida com significações’. Certo, mas não unicamente. Nenhuma
palavra que é inserida numa obra literária desvincula-se completamente das
significações que possui no discurso significativo, mas também em obra alguma, nem
mesmo no romance tradicional, essa significação conserva inalterada aquela mesma que
a palavra tinha fora do texto. Já o simples ‘war’ (‘era’), num relatório de algo que não
foi, ganha uma nova qualidade figurativa pelo fato de não ter sido. Isso prossegue nos
níveis de significação mais elevados de uma composição literária, até atingir o que um
dia serviu como sua ideia. Da posição especial que Sartre concede à literatura terá que |
duvidar também aquele que não coordena os gêneros da arte incondicionalmente sob
aquele cabeçalho genérico. Os rudimentos das significações externas nas composições
literárias são o inevitavelmente desartístico da arte. Não é neles que devemos ler sua lei
formal, e sim na dialética dos dois momentos. Essa lei impera naquilo em que se
transformam as significações. A distinção entre poeta e literato é tênue, mas o objeto de
uma filosofia da arte, como Sartre também a intenciona, não é seu aspecto publicístico.”
(ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste
Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 52-53)
“Com muita razão diz Sartre em seu ensaio ‘por que escrever?’: ‘ninguém deveria crer
um momento sequer que se poderia escrever um bom romance em louvor do anti-
semitismo’. Mas também nenhum em louvor dos processos moscovitas, mesmo quando
antes eram subvencionados, quando Stalin fez matar Sinowjev e Bucharin. A inverdade
política mancha a configuração estética.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______.
Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1991, p. 61)
“O que seus [de Brecht] clássicos ainda denunciaram como parvoíce da vida campestre,
a consciência mutilada de famintos e subjugados, torna-se para ele, como um filósofo da
ontologia existencial, a velha grande verdade. Sua obra completa é um esforço de Sísifo
para equilibrar alguma vez seu gosto cultivado e diferenciado com as exigências
heteronômicas tolas que ele tomou a si desesperadamente.” (ADORNO, T. Engagement.
In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1991, p. 64)
“Eu não procuraria desculpar a frase: escrever-se lírica depois de Ausschwitz [sic] é
bárbaro; aí está negativamente confessado o impulso que anima a poesia engajada. a
pergunta de alguém em ‘Morts sans Sépultures’: há sentido viver quando existem
homens que batem até que os ossos se quebram no corpo, é ao mesmo tempo a pergunta
se a arte em sua ainda pode existir, se uma regressão do intelecto no conceito de
literatura engajada não é sujeitada pela regressão da sociedade mesma. Mas também
continua válida a aproximação contrária de Enzensberger: a poesia precisa resistir a esse
veredicto; ser portanto de tal modo que não tome a si pela sua simples existência depois
de Ausschwitz [sic], o cinismo. Sua própria situação já é paradoxal; e não apenas o
modo de comportamento frente a ela. O excesso de sofrimento real não permite
esquecimento; a palavra teológica de Pascal ‘on ne doit plus dormir’ deve-se
secularizar. Mas aquele sofrimento, segundo Hegel a consciência de misérias, requer
também a permanência da arte que proíbe. Não há quase outro lugar em que o
sofrimento encontre sua própria voz, o consolo, sem que este o atraiçoe imediatamente.
Os mais significativos artistas da época seguiram-no. O radicalismo sem concessões de
suas obras, justamente as proscritas por formalistas, empresta-lhe a força assombrosa
que se escoa de poesias sem esperança, para suas vítimas. Mas mesmo o ‘sobrevivente
de Warschau’ fica aprisionado na aporia a que ele, configuração autônoma da
heteronomia que se tornou maldição, se entrega sem reservas. Há uma dor que se
associa à composição de Schönberg. E não é absolutamente aquilo que aborrece o
alemão, porque não permite reprimir o que se quer afastas a qualquer preço. Mas ao ser
feita imagem metafórica, apesar de toda a crueza e incompatibilidade, é como | se a
vergonha frente às vítimas fosse ferida. Dessas vítimas prepara-se algo, obras de arte,
lançadas à antropofagia do mundo que as matou. A chamada configuração artística da
crua dor corporal dos castigados com coronhas contém, mesmo que de muito longe, o
potencial de espremendo-se escorrer prazer. A moral que coage a arte a não esquecer
isso um segundo, escorrega para o abismo da anti-moral. Pelo princípio de estilização
estética e até pela prece solene do coro, o destino imponderável se apresenta como se
tivesse tido algum sentido algum dia; é sublimado, e tira-se um pouco do seu horror.
Basta isso para fazer-se injustiça às vítimas, quando, entretanto, perante a justiça
nenhuma arte que evitasse o caminho delas resistiria. O tom de desespero paga também
seu tributo à afirmação infame. Obras de nível inferior àquelas exponenciais são
portanto também deglutidas com prazer, um pouco de renovação do passado. No
momento em que, na literatura engajada, o assassínio generalizado (do povo) torna-se
bem cultural, fica mais fácil colaborar-se com a cultura que fez nascer o assassínio.
Quase infalível é uma característica dessa literatura: que ela, propositalmente ou não,
deixa perceber-se que mesmo nas chamadas situações extremas, e justamente nelas,
floresce o humano; às vezes surge de uma metafísica baça que reafirma ser possível o
horror levado à situação-limite, a ponto de nele deixar revelar-se a peculiaridade do
HOMEM. No clima existencial acolhedor, desfaz-se a diferença entre carascos e
vítimas,porque ambos são igualmente lançados na possibilidade do nada, que se dúvida
é geralmente mais apropriada aos carrascos.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______.
Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1991, p. 64-65)
“Os discípulos daquela metafísica que a essa altura descambou para um simples jogo
intelectual, trovejam como antes de 1933 contra o desfeiamento, distorção, perversão
artística da vida, como se os autores tivessem culpa naquilo contra que se entesam, indo
o que eles escrevem igualar-se àquele horrendo. [...] Também obras de arte autônomas,
como esse quadro [Guernica], negam com certeza a realidade empírica, destroem a
destruidora, aquilo que aí está simplesmente e como mero existente repete infinitamente
a | culpa. Ninguém senão Sartre reconheceu o relacionamento entre a autonomia da obra
e um querer, que nãoé imprimido à obra, mas que é seu próprio gestus [gesto que revela
um ato do pensamento] frente à realidade. ‘A obra de arte’, escreveu ele, ‘não tem
objetivo algum, nisso concordamos com Kant. Ela é, porém um objetivo. A formulação
kantiana ignora o apelo que fala de cada quadro, de cada estátua, de cada livro’. A isso
ter-se-ia apenas que acrescentar que esse apelo não está em nenhuma relação intacta
com o engajamento temático da poesia. A autonomia brutal das obras, que se furta à
submissão ao mercado e ao consumo, torna-se involuntariamente um ataque. Este
porém não é abstrato, não é um comportamento invariável de todas as obras de arte para
com o mundo que não lhes perdoa não se adaptarem totalmente a ele. O distanciamento
das obras para com a realidade empírica é antes ao mesmo tempo intermediado por esta.
A imaginação do artista não é nenhuma creatio ex nihilo; apenas diletantes e sutis
imaginam-na assim. Ao oporem-se à empiria, as obras de arte estão a obedecer às forças
dessa empiria, que ao mesmo tempo renegam o espiritual da obra, deixam-no ao dispor
de si mesmo. Não há um conteúdo objetivo, nem uma categoria formal da poesia, por
mais irreconhecivelmente transformado e às escondidas de si mesmo, que não proceda
da realidade empírica a que se furta. Com isso e com o reagrupamento dos diferentes
aspectos graças a suas leis formais, a poesia condiciona seu comportamento para com a
realidade. Mesmo a abstração vanguardista, frente à qual o burguês se desarma, e que
não tem nada em comum com a conceitual e mental, é o reflexo sobre a abstração da
lei.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad.
Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 65-66)
“Todo engajamento em favor do mundo deve dar seu aviso prévio, para que se faça
justiça à ideia de uma obra de arte engajada, ao distanciamento polêmico que o teórico
Brecht pensou, e que praticou tanto menos quanto mais se inscreveu na causa humana.
Esse paradoxo, que provoca o protesto dos sutis, apoia-se sem mais filosofia, na mais
simples experiência: a prosa de Kafka, as peças de Beckett, ou o verdadeiramente
terrível romance ‘Der Namenlose’ (O Sem Nome) provocam uma reação frente à qual as
obras oficialmente engajadas desbancam-se como brinquedos; provocam o medo que o
existencialismo apenas persuade. Como desmontagem da aparência, fazem explodir a
arte por dentro, que o engagement proclamado submete por fora, e por isso só
aparentemente. Sua irrecorribilidade obriga àquela mudança de comportamento que as
obras engajadas apenas anseiam. Aquele a quem as rodas de Kafka atropelaram um dia,
para ele a paz com o mundo está tão perdida como a possibilidade de acomodar-se com
a sentença de que o giro do mundo é ruim: o aspecto confirmativo inerente à
comprovação resignada da supremacia do real é corroído. Entretanto quanto maior a
pretensão, tanto maior a chance do naufrágio e insucesso. O que em pintura e música se
observou como perda da tensão — nas composições que se afastavam da reprodução
objetiva e da coerência conteudística captável — comunica-se de vários modos à
literatura, segundo um mau costume da língua vulgarmente chamada de textos. Ela
chega à margem da indiferença, degenera imperceptivelmente para artesanato, para o
jogo de repetições de fórmulas percebido em outros gêneros, para padronagens de
tapeçaria. Isso dá direito muitas vezes à fomentação grosseira do engagement.
Composições que exigem a mentirosa positividade do sentido, recaem facilmente num
despropósito de outra espécie, a promoção positivista, o vaidoso jogo estocástico com
os elementos. Com isso sucumbem ao círculo de que se querem desviar. Caso limite é o
da literatura que se troca adialeticamente com ciência, e em vão sintoniza-se com a
cibernética. Os extremos se tocam: o que corta a última comunicação se torna presa de
teoria da comunicação. Nenhum critério rijo traça o limite entre a negação decidida e a
má positividade do sem-sentido,| como de um continuar fluente, fluindo a seu próprio
bem. Nesse último caso, um tal limite seria a invocação do humano, e a maldição da
mecanização. As obras de arte que com sua existência abraçam o partido das vítimas da
racionalidade que submete a natureza, estiveram no protesto — já por sua própria
natureza — sempre envolvidas no processo de racionalização. Se pretendessem renegá-
lo, estariam estética e socialmente incapacitadas: uma gleba mais elevada. O princípio
organizador, o princípio que promove a unidade de cada obra de arte, é justamente
tomado da racionalidade, a cuja pretensão totalitária ele quer por termo.” (ADORNO, T.
Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 67-68)
“Uma literatura que como a engajada, mas também como os filisteus éticos a querem,
existe para o homem, acaba por traí-lo, traindo a causa que o poderia auxiliar se não
gesticulasse arremedos como se estivesse a ajudá-lo. O que, porém, tirasse daí a
consequência de se pôr a si mesmo absolutamente, de só existir por causa de si mesmo,
chegaria, do mesmo modo, à ideologia. Ela não pode ultrapassar as sombras da
irracionalidade, a saber, que a arte deve fechar os olhos e os ouvidos para o fato de,
mesmo em sua oposição, constituir um momento da sociedade. Mas se ela mesma
recorre a isso, se freia arbitrariamente o pensamento de seu condicionamento, e disso se
deduz sua raison d’être, ela falsifica a maldição que paira sobre si, sob a forma de sua
teodiceia. Mesmo na obra de arte mais sublimada, abriga-se um ‘deve ser de outro
modo’; e mesmo onde ela só se igualasse a si mesma, como em sua pura elaboração
tornada científica, estaria ainda aí descambando no mau, literalmente no pré-artístico.
Fica transmitido porém, o aspecto do querer, exclusivamente pela configuração da obra,
cuja cristalização se torna metáfora de algo diverso, que deve vir a ser. Como algo
meramente feito, fabricado, as obras de arte, também as literárias, são regras de
orientação para a práxis a que se furtam: a fabricação da vida propriamente dita. Essa
mediação não é um meio caminho entre engagement e autonomia, não é uma mistura
qualquer de elementos formais avançados e de um valor espiritual visando a uma
política progressiva (concreta ou supostamente). O valor das obras não é absolutamente
o que lhe foi incutido de espiritual, antes o contrário. A ênfase ao trabalho autônomo,
entretanto, é por si mesma de essência sócio-política. A deformação da política
verdadeira aqui e hoje, o enrijecimento das relações que não se dispõem a degelar em
parte alguma, obriga o espírito a tomar um rumo em que ele não precise se acanalhar.
Enquanto atualmente tudo o | que há de cultural mesmo as composições íntegras,
ameaça sufocar-se no palavrório da cultura, ao mesmo tempo encarrega-se às obras de
arte que suportem caladamente o que é interdito à política. O próprio Sartre expressou
isso num trecho que honra sua integridade [Cf. Jean-Paul Sartre. L’existentialisme est
um humanisme, Paris, 1946, p. 105.]. Não estão em época as obras de arte políticas, mas
a política imiscuiu-se nas autônomas, e mais amplamente onde se mostram
politicamente mortas, como na parábola de Kafka das armas de crianças, onde se funde
a ideia de impotência com a consciência crepuscular da paralização [sic] em riste da
política. Paul Klee que se insere na discussão sobre arte engajada e arte autônoma
porque sua obra — écriture par excellence — teve suas raízes literárias e seria tão fraca
se não as tivesse tido, como se não as tivesse consumido — Paul Klee desenhou durante
a primeira guerra ou pouco depois caricaturas contra o Imperador Guilherme como
desumano devorador de ferro. Delas surgiu — creio que se poderia comprovar com
precisão — no ano de 1920 o Angelus Novus, o anjo da máquina, que não traz mais
nenhuma [sic] emblema claro de caricatura e engajamento, mas envolve amplamente
com suas asas. Com olhar enigmático, o anjo da máquina força o contemplador a se
perguntar se ele anuncia a desgraça consumada ou a salvação aí mascarada. É, porém,
segundo as palavras de Walter Benjamin, que possuía a ilustração, o anjo que não traz,
mas toma.” (ADORNO, T. Engagement. In: ______. Notas de literatura, III. 2. ed. Trad.
Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 70-71)