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vladimir safatle

É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve


às sextas.

A emergência do infinito
12/05/2017 02h50
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"Toda nossa época, quer seja pela lógica ou pela epistemologia, quer
seja por meio de Marx ou de Nietzsche, tenta escapar de Hegel (...) Mas
realmente escapar de Hegel supõe apreciar de maneira exata quanto
custa se desvincular dele; supõe saber até onde Hegel, talvez de
maneira insidiosa, aproximou-se de nós; supõe saber o que é ainda
hegeliano naquilo que nos permite pensar contra Hegel e medir em que
nosso recurso contra ele é ainda uma astúcia que ele mesmo nos opõe e
ao final da qual ele mesmo nos espera, imóvel".

É difícil não lembrar destas afirmações de Michel Foucault


quando se quer resenhar, em 2017, a primeira tradução
completa em português de um dos mais importantes livros
de Hegel, a saber, o primeiro volume de "A Ciência da
Lógica" (Vozes, 461 páginas). Fruto do trabalho coletivo e
cuidadoso de Christian Iber, Marloren Miranda, Federico
Orsini e Agemir Bavaresco, a obra encontra-se agora
acessível em português, mesmo que apenas depois de mais
de 200 anos de sua publicação.

Este atraso talvez não deva ser creditado simplesmente à complexidade


inegável do texto. Como dizia Foucault, há algo em nossa época que
procura escapar de Hegel. Como se fosse o caso de, por meio da
resistência a seguir o movimento de seu pensamento, evitar pensar
algo que preferiríamos simplesmente continuar sem saber como
pensar. Como se a experiência filosófica hegeliana implicasse uma
metamorfose categorial estranha a "nossa época".

Pois "uma época" não é apenas um momento histórico marcado por


certas formas de organização social, de instituições e sistemas
econômicos. "Uma época" é um forma de pensar que se impõe de
forma hegemônica produzindo modos específicos de existência e
figuras historicamente determinadas da razão. E isto talvez nos
explique porque Hegel começa seu livro dizendo: "A transformação
completa que o modo de pensar filosófico tem sofrido entre nós (...)
teve até agora ainda pouca influência na configuração da lógica".
Marcelo Cipis/Folhapress

Se a ciência da lógica começa desta forma, lembrando como havia uma


transformação que parecia não alcançar estas "leis puras do
pensamento" que chamamos de "lógica", leis que, aparentemente,
seriam ahistóricas, atemporais e cuja validade não estaria vinculada à
gênese alguma, é para lembrar que a filosofia como crítica só poderia
de fato começar quando este pretenso solo estável desmoronasse.

Para tanto, era necessário, primeiro, lembrar que tais leis puras do
pensamento não são metafisicamente neutras. Elas são a expressão de
toda uma metafísica que, de maneira insidiosa, se faz passar por forma
natural de pensar. Como se Hegel adiantasse em décadas a intuição de
Nietzsche, para quem: "Nunca nos desvencilharemos de Deus
enquanto acreditarmos na gramática". Pois a gramática define um
modo de ser, ela nos diz, por exemplo, que para todo predicado deve
haver um sujeito, para todo efeito deve haver uma causa. Ela cria
mundos, como Deus.

Assim, a verdadeira filosofia só poderia ser uma crítica das


pressuposições que se naturalizaram em nossa forma de pensar.
Pressuposições que definem como evidentes distinções entre, por
exemplo: forma e conteúdo, essência e aparência, ser e nada, finito e
infinito, fundamento e fundado. Mas também pressuposições que se
expressam nos princípios de não-contradição, do terceiro excluído, de
identidade.

O leitor da Ciência da lógica é, assim, convidado a acompanhar um


movimento por meio do qual todas as categorias centrais da metafísica
e da lógica se dissolvem, o ser passa no nada, a qualidade passa na
quantidade, o finito descobre-se como momento do infinito. Um
movimento que, para Hegel, necessariamente nos retira de "nossa
época" por abalar a forma de pensar que a sustenta.

Mas notemos como esta dissolução não é simplesmente negativa. Se


exposição de conceitos da metafísica e crítica da metafísica estão juntas
no projeto hegeliano é para que o pensamento possa, por meio da
apreensão do movimento que denuncia a limitação de conceitos que
até então pareciam sólidos, ver uma metamorfose categorial que Hegel
chamará de "dialética". Esta metamorfose será, no entanto, o modo de
emergência de uma experiência que estará impulsionando o horizonte
de toda a Ciência da Lógica, a saber, a experiência de um conceito
renovado de infinito. Conceito impossível de ser pensado nas formas
tradicionais do progresso ao infinito, do infinito quantitativo, do sem
medida: todas categorias que se dissolverão no decorrer da exposição
do pensamento hegeliano. Um conceito de infinito (e este talvez seja o
verdadeiro desafio da Ciência da Lógica) a respeito do qual o
pensamento contemporâneo ainda necessita se medir.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2017/05/1883080-a-
emergencia-do-infinito.shtml

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