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O texto se baseia na discussão sobre o lugar ocupado pela criança nos debates
educacionais de 1930. Discussões estas sobre a complexidade da rede de referências
presente nas imagens que são projetadas pelos adultos na criança.
As análises se centram em alguns indícios deixados por Cecília Meireles em suas
produções escritas, no período de junho de 1930 a janeiro de 1933, publicados no Diário
de Notícias do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, na página dedicada a Educação.
Nesse acervo encontra-se cerca de 800 artigos, que estão arquivados na Biblioteca
Nacional. 3
Em linhas gerais, pode-se dizer que no primeiro ano, a partir de junho de 1930,
Cecília Meireles teve como objetivo marcar as posições ideológicas com as quais
conduziria o trabalho. Os ideais escolanovistas foram ressaltados em quase todos os
assuntos. 4 Nesse ano percebemos, ainda, que o foco central dos textos foi a criança – tema
principal do texto que ora desenvolvemos. No segundo ano, com a vitória da Revolução de
1930, as discussões ganharam uma vertente altamente política. Estas discussões
alcançaram seu ápice com o lançamento do Manifesto dos Pioneiros, em 1932. O combate
às idéias do então Ministro, Francisco Campos, principalmente no que tange a
obrigatoriedade do ensino religioso permearam vários de seus comentários.
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Mestranda da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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O conjunto destas crônicas foi organizado por Leodegário A. de Azevedo Filho, publicado pela Editora
Nova Fronteira, em 2001, em cinco volumes. Para melhor orientar o leitor ao fazer referência às crônicas,
optamos por citar MEIRELES, Cecília, o título da crônica e a data da sua publicação.
2 Movimento que teve início na década de 1920 e que se consubstanciou nos anos de 1930 defendia, dentre
outros ideais, o publicismo, a laicidade e a co-educação.
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O sentido etimológico da palavra hermenêutica se liga ao verbo grego hermeneim, ao qual pode ser atribuído
três significados: dizer – no sentido de exprimir em voz alta, explicar e traduzir – tanto no sentido de passar
de uma língua para outra como também no de compreender historicamente. O termo se relaciona, ainda, ao
substantivo grego hermeneia – que significa interpretação. (Cf. ALBERTI, Verena, 1996). Dessa forma, pode
ser entendido como possibilidade de compreender algo incompreensível. Dizer alguma coisa sobre algo já é
interpretar. Quando falamos que: “isto que Cecília escreve é uma crônica”, já fazemos uma interpretação.
Essa interpretação deixa um sentido para além do seu enunciado, levando-nos a compreender o texto como
ação. Para o filósofo hermeneuta Ricoeur (s/d), uma ação deixa um rastro, põe sua marca quando contribui
para a emergência do curso dos tempos, que se tornam documentos da ação humana. “Ação é um fenômeno
social, não apenas porque é a obra de vários agentes, de tal modo que o papel de cada um deles não se pode
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distinguir o papel dos outros, mas também porque os nossos atos nos escapam e têm efeitos que não tínhamos
visado.”(RICOEUR, s/d, p.195)
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A questão da historicidade já não é a do conhecimento histórico concebido como método; ela designa a
maneira como o existente “está com” os existentes. A compreensão já não é a réplica das ciências do espírito
à explicação naturalista; ela diz respeito a uma maneira de ser próxima do ser, anterior ao encontro de entes
particulares. Ao mesmo tempo o poder da vida de se distanciar livremente em relação a si mesma, de se
transcender, torna-se uma estrutura do ser finito. Se o historiador pode medir-se pela própria coisa, igualar-se
ao conhecido, é porque ele e o seu objeto são ambos históricos. (RICOEUR, 1988, p. 11).
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O significado de “infância em latim é in-fans, que significa sem linguagem. No interior da tradição
ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter conhecimento, não ter racionalidade.
Nesse sentido a criança é focalizada como um ser menor, alguém a ser adestrado, a ser moralizado, a ser
educado. Alguém que na concepção de Santo Agostinho, é pecaminoso, que provém do pecado – pecado da
união dos pais – e que em si mesmo deve ser considerado pecaminoso pelos seus desejos libidinosos, pois
para Santo Agostinho, a racionalidade, como dom divino, não pertence à criança...” (GALZERANI, 2002, p.
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Relações que se estabelecem com o outro possibilitando formas outras de se estar no mundo. A criança
como enigma, conforme estudos de Larrosa (1998).
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ponte de absoluta confiança, por onde possamos ir até elas, e elas, por sua vez, sejam
capazes de vir até nós.” (MEIRELES, Cecília, Nós e as crianças. 24 de outubro de 1930).
Noutras palavras, a educadora vê a criança não como um ser que pode ser moldado, mas
como uma riqueza a preservar (MAGALDI, 2002). A nosso ver, Cecília procurava
conhecer as representações da infância, considerando as crianças concretas e não como
seres abstratos (KRAMER, 1987). Buscava-se, assim, localizá-las nas relações sociais, e
reconhecê-las como produtoras da história.
A jornalista Cecília Meireles enfatizava os perigos que uma visão de imposição de
imagens projetadas poderia causar. A respeito das possíveis conseqüências desse excesso
de tirania dos adultos, dizia já nos primeiros meses de seu trabalho a frente da Página de
Educação:
E sobre essa vida que se concentra em si mesma, preparando-se para
desabrochar, cai subitamente um dia a brusca autoridade dos homens já
desencantados. Abrem à força os tontos olhos adormecidos em que
fluíam as coisas desincorporadas, (...) reduzem a dimensão de todas as
imagens queridas; arrancam a todas elas o perfume encantado que as
imortalizava...
(MEIRELES, Cecília, A imaginação deslumbrada. 14 de junho de1930)
Para a educadora, os adultos, muitas vezes, projetam imagens nas crianças que
podem vir a confundi-las ou a marcá-las fortemente “Integramos em nós a vida que nos
rodeia quando somos pequeninos: absorvemo-la em todos os seus aspectos. E, assim,
fundamentamos a nossa personalidade, tão difícil de alterar depois, quando os elementos
perderam a sua plasticidade primitiva e adquiriram relativa consistência.” (MEIRELES,
Cecília, A Infância. 20 de dezembro de 1930). Daí a educadora estar atenta para a
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Na seqüência desta crônica, Cecília comenta sobre a incoerência dos adultos, que,
muitas vezes, não percebem o quanto questões, como as descritas, apresentam um quadro
conflituoso. Fato que leva as crianças a passarem pela infância atraídas/iludidas pelas
facilidades do mundo adulto. Sobre isso a cronista diz que:
É preciso refletir no transtorno interior dessa pobre criatura diante das
censuras que lhe fazem, e que não produzem efeito, porque ela não as
compreende (...) Como se vê é uma desorientação completa. A criança
chega à conclusão – confusamente, no mistério da sua alma – de que
seus direitos são de criança, mas os seus deveres, de adulto. Sua
liberdade, mudamente, sente-se injuriada e sofre. E o tédio dessas
incompreensões gera-lhe um vago desejo, que pouco a pouco se
consolida, de atingir a essa idade em que se pode agir com
independência, e na qual parece que todas as coisas que se fazem saem
bem feitas.
(...)E essas que assim passaram são, desgraçadamente, aquelas que,
depois de atingirem a mocidade, sentirão com maior nostalgia aquele
tempo não vivido, e compreenderão que a sua existência não tem
totalidade, porque lhe foi arrancada a parte melhor, que devia ter sido,
apenas, orientada e que, lamentavelmente, foi oprimida com tiranias,
violências e incompreensões. (Grifo nosso) (MEIRELES, Cecília,
Grandes e pequenos. 15 de outubro de 1930)
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Atentos para minúcias e/ou ocorrências residuais dos textos de Cecília, recortamos essa questão da
orientação da criança num grande número de crônicas relativas ao tema infância.
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O presente trabalho espera ter contribuído para lançar alguma luz sobre a
concepção de infância defendida por Cecília Meireles nos anos de 1930. Conforme foi
abordado no decorrer do texto, no período e nas fontes estudadas, a poeta-educadora, que
teve um espaço privilegiado para divulgar suas idéias, buscou defender uma visão de
criança que precisa ser ouvida. Decorre dessa idéia a possibilidade de ver essa criança
como um outro que se constitui através de relações alteritárias.
Para além de uma concepção rousseauniana que vê a criança como um ser
naturalmente bom, Cecília a percebe como um ser que se constitui nos conflitos. Em
muitas de suas crônicas, a autora nos faz refletir sobre a criança como um ser capaz de
criar, mudar e ser mudada pelos seus próprios pensamentos. Dessa forma, rompe com a
idéia de uma infância vista como etapa cronológica na evolução do homem. Essa ruptura
pode possibilitar compreender esse período da vida como um momento na história do ser
que se repete eternamente, e neste repetir revela o que é essencialmente humano. O desafio
que se instaura é o de buscar caminhos para nos aproximarmos da infância. Daí a
possibilidade de pensá-la como território de linguagem, uma vez que esta percepção aponta
para uma criança que se constitui como sujeito na e pela linguagem, quando ultrapassa a
língua pura transformando-a em discurso, no seu discurso. Assim, a criança deixa de ser o
simples infante – aquele que não fala -, para tornar-se aquele que luta para criar a sua
própria palavra, e através dela instituir a si mesmo e o mundo que a cerca.
Referências Bibliográficas
LÔBO, Yolanda. O ofício de ensinar. In: NEVES, Margarida S.; LÔBO, Yolanda L e
MIGNOT, Ana Chrystina V. Cecília Meireles: A poética da educação. Rio de Janeiro:
PUC/Loyola, 2001, p. 63 – 80.
MAGALDI, Ana Maria B. de Mello. Cera a modelar ou riqueza a preservar: A infância nos
debates educacionais brasileiros (anos 1920-30). In: GONDRA, José Gonçalves (Org.).
História, Infância e Escolarização. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002, p.60 - 80.