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A influência do pensamento liberal de

Benjamin Constant na formação do Estado


Imperial Brasileiro

Cleber Francisco Alves

Sumário
1. Introdução. 2. As conquistas do pensa-
mento político liberal. 3. Retrospectiva histórica
da formação do Estado Imperial Brasileiro. 4.
Influência do pensamento de Benjamin Constant
no constitucionalismo do Brasil Império. 4.1. A
criação do poder moderador. 4.2. Outras ques-
tões constitucionais que revelam influência das
idéias de Benjamin Constant. 5. Conclusão.

1. Introdução
Os acontecimentos que marcaram a his-
tória da França, e de toda a humanidade, no
final do século XVIII suscitaram inúmeras
reflexões e debates acerca dos caminhos
concretos em que se deveriam lançar as
políticas para contornar os antagonismos e
mazelas que atemorizavam a sociedade da
época. As vicissitudes do Antigo Regime,
ainda não completamente exorcizadas, e o
ímpeto dos revolucionários, que, invocan-
do uma investidura e representatividade de
soberania popular ilimitada, cometeram as
mais abomináveis atrocidades e violências,
assustavam os espíritos mais equilibra-
Cleber Francisco Alves é Doutor em Direito dos que aspiravam a construção de uma
Constitucional pela Pontifícia Universidade sociedade política harmônica e pacífica,
Católica – RJ. Graduado em Direito pela Univer-
em que se pudesse realmente alcançar o
sidade Católica de Petrópolis. Professor do Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito (Mestrado
bem-comum.
e Doutorado) da Universidade Gama Filho e da Nesse contexto, destaca-se o pensamento
graduação em Direito na Universidade Católica de Benjamin Constant, célebre autor liberal
de Petrópolis. Defensor Público do Estado do suíço-francês que pretendeu conciliar o an-
Rio de Janeiro. seio de expansão das esferas de liberdades
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individuais sem perder de vista os valores ção jurídica da organização estatal do Brasil
provenientes da tradição cultural e política recém-emancipado de Portugal.
que assegurariam a necessária estabilidade
do Estado e do Poder Político. Exatamente
2. As conquistas do pensamento
por isso, foi muito incompreendido pelos
que estudaram sua obra1. político liberal
Neste trabalho, pretendemos desen- As idéias liberais modernas têm suas
volver algumas reflexões, sem pretensão raízes nas guerras religiosas ocorridas na
de ineditismo, com o objetivo de resgatar Europa do século XVII, em que se procla-
a influência exercida pelo pensamento de mava o direito de liberdade religiosa, tendo
Benjamin Constant na formação do Estado sido acolhidas especialmente na Inglaterra,
Imperial Brasileiro, no início do século XIX. para fundamentar as pretensões de maior
Após tecer considerações visando recordar liberdade econômica, e limitação do Poder
as conquistas do pensamento político libe- Real, sobretudo no que se refere aos direitos
ral, seguiremos contextualizando historica- de propriedade e à tributação, bandeiras es-
mente os acontecimentos desse período na sas empunhadas pela burguesia mercantil
realidade brasileira e, por fim, traçaremos e industrial ascendente.
um paralelo entre as instituições políticas A contribuição teórica do inglês John Lo-
implantadas pela Constituição do Império cke, em especial no seu “Segundo Tratado
do Brasil e sua correlação com as propostas sobre o Governo” (1690), e, posteriormente,
teorizadas por Benjamin Constant. do Barão de Montesquieu, com seu célebre
Em suma, ainda que de forma perfunc- “Do Espírito das Leis”, fizeram solidificar
tória, poderemos perceber a significativa na Inglaterra essa ideologia política, com
contribuição haurida pelo Direito Consti- reflexos para toda a Europa, abalando os
tucional Brasileiro proveniente da obra de regimes monárquicos absolutistas que
Constant, que tornou o Estatuto Político do vigoravam na maioria dos países do Velho
Brasil Imperial como verdadeira referência Mundo. Locke inspirou-se no pensamento
no concerto geral das Constituições da pri- de Thomas Hobbes, ao fundamentar seu
meira metade do século XIX. A instituição pensamento político, partindo da distinção
do Poder Moderador, o caráter híbrido de do estágio primitivo de natureza, pré-
rigidez e flexibilidade, a questão da respon- estatal, quando os homens essencialmente
sabilidade dos ministros, entre outras, são iguais e livres resolvem firmar um pacto
características peculiares da Constituição social, constituindo o Estado, no intuito de
de 1824, que refletem toda essa contribuição melhor resguardarem seus interesses e sua
teórica de Benjamin Constant na positiva- segurança. Porém, entendia, diversamente
de Hobbes, que esse poder estatal soberano
1
A respeito dessa incompreensão do pensamento não era ilimitado, mas estava submetido
político benjaminiano, o Prof. José Ribas Vieira (1989,
p. 49) procura resgatar seu verdadeiro posicionamen- aos postulados do direito natural, que
to, quando ensina que: “ao contrário de imaginar um poderia ser racionalmente conhecido pelo
autor muito vinculado aos interesses políticos do homem.
momento, há um outro quadro mais nítido de pen- O liberalismo lockeano tem um cunho
samento de Constant. Apesar de suas insconstâncias
de posição política, esse estudioso francês esteve eminentemente individualista, sendo que a
intimamente ligado à crítica a todas as formas de ma- propriedade é o instrumento fundamental
tizes de despotismo, desde o denominado período do de defesa das liberdades individuais. O
terror revolucionário francês (1793/94), passando pelo Poder Político, assim, ficava concentrado
militarismo napoleônico e ao retrocesso conservador
da Restauração. Para ele, era fundamental diante dos nas mãos dos proprietários, mantendo-se,
governos despóticos preservar o que era mais caro ao destarte, uma dimensão aristocrática na
indivíduo: a liberdade.” estrutura orgânico-política da sociedade.

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Mais adiante, já na segunda metade pensamento político liberal podem ser
do século XVIII, e sob a nítida influência enumeradas como sendo: a proclamação
desses pensadores do século anterior, dos direitos e garantias individuais em face
surgem as obras dos iluministas franceses, do poder estatal, a separação e limitação
com destaque para Jean Jacques Rousseau, dos Poderes do Estado, a representação
que consagra definitivamente a teoria do da vontade popular na elaboração das leis
contrato social, estabelecendo a doutrina e fixação dos tributos e o Constituciona-
da soberania absoluta do corpo político lismo.
resultante desse pacto social, soberania essa
que se manifesta na chamada “vontade ge- 3. Retrospectiva histórica da formação
ral”. Aqui percebe-se a introdução de uma
do Estado Imperial Brasileiro
dimensão democrática, visto que o con-
texto histórico e social da França no século Os ideais liberais chegaram ao Brasil
XVIII era de uma sociedade extremamente no século XVIII, dando origem a diversos
aristocrática, marcada por privilégios e movimentos emancipacionistas que ten-
distorções no exercício do poder político diam expressamente para a formação de
que destoavam da realidade alcançada na um Estado nacional inspirado na experi-
vizinha Inglaterra. ência republicana estadunidense. Assim
Paralelamente, o processo de emancipa- foi a Inconfidência Mineira, cujos líderes
ção das colônias inglesas na América, situ- receberam grande influência dos patriarcas
ando-se num contexto social e histórico bas- de Filadélfia, sendo que, nesse período,
tante distinto daquele experimentado nas a luta pela Independência confundia-se
sociedades européias, mas sem se afastar­ com uma mentalidade antimonárquica.
das influências teóricas dos pensadores Entretanto, a transferência da Família Real
ingleses e franceses, trouxe uma importante Portuguesa para o Brasil, em 1808, alterou
contribuição prática, que, ao final, tornou- profundamente o curso da história. Os
se característica intrínseca do liberalismo movimentos separatistas praticamente
político. Trata-se da adoção de Constituição se dissiparam enquanto o Rio de Janeiro
escrita, como estatuto político fundamental permaneceu como sede da Monarquia lusa.
e inaugural de uma nova modalidade de Com a elevação formal do Brasil ao status
Estado, que se convencionou chamar de de Reino Unido ao de Portugal, em 1815,
Estado Moderno. Tem-se aí o fenômeno um significativo passo foi dado na direção
político denominado “Constitucionalismo”, da emancipação política da antiga colônia,
que se alastrou por toda a Europa e chegou que teria caráter irreversível. O Brasil já
à América Latina, onde se deflagrava, nesse ganhara uma efetiva infra­estrutura admi-
período, o processo de separação política nistrativa, desde a transferência da Corte
das metrópoles européias. metropolitana para cá, e a expectativa dos
De se notar, outrossim, que o libera- brasileiros era a de que o Rei não mais retor-
lismo que chegou à América Latina, e, nasse a Portugal, governando daqui todo
portanto, ao Brasil, assumiu contornos o seu Reino. Todavia, Dom João VI viu-se
distintos daquele vigente na Europa, posto na contingência de retornar a Lisboa, para
que aqui se pretendia, acima do propósito acompanhar mais de perto a elaboração da
de alcançar as liberdades individuais e eli- Constituição que vinha sendo reclamada
minar os entraves da Monarquia absoluta, pelo povo português. E aqui deixou, como
viabilizar a própria fundação da persona- Príncipe Regente, seu filho Dom Pedro de
lidade nacional. Alcântara, preparando, destarte, a futura
Concluindo, podemos afirmar, em sín- separação do Brasil de Portugal, que acabou
tese, que as grandes contribuições desse por se consumar em 1822. Dom Pedro era

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adepto das idéias do constitucionalismo mos capazes, aquela liberdade que
liberal e, tão logo foi aclamado Imperador, faz a felicidade do Estado e não a
comprometeu-se a convocar uma As- liberdade que dura momentos e que
sembléia Constituinte. Todos esses fatos é sempre a causa e fim de terríveis
explicam, pois, a peculiar característica da desordens. Que quadro nos apre-
formação do Estado Brasileiro sob a forma senta a desgraçada América! Há
monárquica, diferentemente dos demais 14 anos que se dilaceram os povos
países latino-americanos. que, tendo saído de um governo
Com efeito, as elites brasileiras do início monárquico, pretendem estabelecer
do século XIX, mesmo aqueles que tiveram uma licenciosa liberdade e, depois
oportunidade de se aprofundar no estudo de terem nadado em sangue, não são
dos mais destacados pensadores políticos mais do que vítimas da desordem,
daquela época, refutavam o modelo liberal da pobreza e da miséria. Que temos
rousseauniano francês, assim como os ideais visto na Europa, todas as vezes que
republicanos da América do Norte, pois homens alucinados por princípios
consideravam que o regime monárquico metafísicos e sem conhecimento da
era realmente fundamental para assegurar o natureza humana quiseram criar
futuro da nação recém-emancipada de Por- poderes impossíveis de sustentar?
tugal. Preferiam filiar-se ao modelo liberal Vimos os horrores da França; as suas
inglês, inspirando-se também na experiência Constituições apenas feitas e logo
continental pós-napoleônica, quando as pro- destruídas, e por fim Bourbon, que
postas teóricas de Benjamin Constant alcan- os franceses tinham execrado, trazer-
çaram significativo destaque na tentativa da lhes a paz e a concórdia...”
sociedade francesa de superar os fracassos e Pode-se concluir, portanto, que a opção
mazelas na esfera político­-institucional que pela monarquia constitucional representa-
tanto afligiam seu povo, nos anos iniciais tiva, como forma de governo adotada pelo
Brasil, traduziu uma opção pela estabili-
que se seguiram à Revolução Francesa.
dade e unidade do novo país, ideais que
Aliás, o grande temor era exatamente
foram a tônica fundamental do pensamento
o de que nos assemelhássemos às colônias
de Benjamin Constant.
hispano-americanas, que se fragmenta-
É importante assinalar a preocupação
ram ao alcançarem sua independência
marcante desses primeiros momentos do
da Espanha, mergulhando em sangrentas
Brasil Independente no sentido de dotar
lutas intestinas que retardaram em muito
o país de uma Constituição. O Imperador
o processo de pacificação e unificação
Dom Pedro I tinha verdadeira obsessão
nacional, necessário para a consolidação pela constitucionalização do Império,
de sua autonomia. A propósito, o discurso revelando-se partidário das idéias liberais
proferido por José Bonifácio (Apud MELO que dominavam a Europa nessa época3.
FRANCO, 1957, p. 231-323) em Sessão da
Assembléia Constituinte de 1823, no dia 5 Política” (no 2), sob o título “Da liberdade dos antigos
de maio, explicita tal pensamento. Eis o que comparada à dos modernos”.
disse o “Patriarca da Independência”: 3
Esse propósito fica patente no discurso do Impe-
rador, na abertura da Assembléia Constituinte, em 3
“Queremos uma Constituição que de maio de 1823, em cujas palavras se nota claramente
nos dê aquela liberdade2 de que so- a influência desse pensamento liberal europeu, verbis:
“Ratifico hoje mui solenemente perante vós esta
2
A respeito dessa noção de liberdade aspirada promessa e espero que me ajudeis a desempenhá-la,
por José Bonifácio, é também inequívoca a influência fazendo uma Constituição sábia, justa, adequada e
de Benjamin Constant, que tratou dessa matéria no executável, ditada pela razão e não pelo capricho,
célebre discurso proferido no Ateneu Real de Paris, que tenha em vista tão-somente a felicidade geral,
em 1818, cujo texto está publicado na Revista “Filosofia que nunca pode ser grande, sem que esta Constituição

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Contudo, seu temperamento arrebatado órgão local de controle do Poder Executivo
e voluntarioso, e os preconceitos de sua e ainda atos oficiais mais triviais, como a
formação dinástica absolutista faziam la- denominação de logradouros públicos6.
tentes em sua personalidade alguns traços Mas seus vestígios absolutistas também se
antiliberais que afloravam muito freqüen- fizeram presentes nas diversas proclama-
temente. Isso preocupava as lideranças ções dirigidas à Assembléia Constituinte,
políticas nacionais, tendo causado inúme- quando condicionava a aceitação da Carta
ros conflitos, que somente cessaram com a Política a que fosse considerada digna
Abdicação ao Trono, ocorrida em 1831. de si. Essa postura do Imperador gerou
Inúmeras iniciativas e atos governamen- descontentamento entre os Constituintes,
tais de Dom Pedro, ainda como Príncipe acirrando as animosidades, que acabaram
Regente, ressaltaram a dimensão liberal por desaguar na dissolução da Assembléia,
de sua personalidade. No seu “Curso de acontecimento esse que representou inequí-
Direito Constitucional Brasileiro”, o Prof. voco retrocesso na fase de consolidação do
Afonso Arinos de Melo Franco (1960) Estado liberal brasileiro.
menciona vários fatos que confirmam essa Imediatamente após dissolvida a Cons-
assertiva, como, por exemplo, os Decretos tituinte, e a fim de evitar um agravamento
que fixavam garantias à liberdade pessoal4, da crise, e, ainda, no intuito de dar tes-
à propriedade privada5, o que criava um temunho de sua postura constitucional,
Dom Pedro criou um Conselho de Estado
tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos – composto de dez membros entre os quais
tenha mostrado que são as verdadeiras para darem
uma justa liberdade aos povos... uma Constituição
sete haviam sido constituintes – e conferiu
em que os três poderes sejam bem divididos, de a esse órgão a atribuição de elaborar o pro-
forma que não possam arrogar direitos que lhes não jeto da futura Constituição. Desse grupo,
compitam, mas que sejam de tal modo organizados destacavam-se Maciel da Costa (Marquês
e harmonizados que lhes torne impossível, ainda
pelo decurso do tempo, fazerem­-se inimigos, e cada
de Queluz), que tinha sido o Presidente da
vez mais concorram de mãos dadas para a felicidade Assembléia dissolvida, e a figura de Car-
geral do Estado. Afinal, uma Constituição que, pondo neiro de Campos (Marquês de Caravelas),
barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer jurista de escol, a quem coube a tarefa de
aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia e
plante a árvore daquela liberdade a cuja sombra deva
redigir o texto constitucional. O Projeto
crescer a união, a tranqüilidade e independência deste elaborado pelo Conselho de Estado, que
Império, que será o sombro do mundo novo e velho”. mantinha em muito as contribuições do
Não há como negar, nesse contexto, a expressiva in-
fluência das idéias de Benjamin Constant. pretexto de necessidades do Estado e Real Fazenda,
4
Assim dispunha o Decreto datado de 23 de efeitos particulares, contra a vontade destes e muitas
maio de 1821: “nenhuma pessoa livre no Brasil pode vezes se locupletarem aqueles que mandam violenta-
jamais ser presa sem ordem, por escrito, do juiz ou mente tomar... determino que, da data deste em diante,
magistrado criminal”, salvo caso de “flagrante delito”, a ninguém possa tomar-se, contra sua vontade, coisa
e que nenhum juiz poderia expedir tal ordem “sem alguma de que for possuidor ou proprietário... sem
preceder a culpa formada pela inquirição sumária de que primeiro, de comum acordo, se ajuste o preço que
três testemunhas” (MELO FRANCO, 1960, p. 37). lhe deve pela Real Fazenda ser pago no momento da
5
A propriedade era, na época, “o símbolo da liber- entrega” (MELO FRANCO, 1960, p. 36).
dade individual, porque representava um limite sério 6
Dom Pedro, em 2 de março de 1821, alterou a
ao arbítrio da Monarquia Absoluta”. Daí a significação denominação do largo do Rocio, no Rio de Janeiro,
importantíssima do Decreto datado de 21 de maio determinando que passasse a se chamar “Praça da
de 1821, em que o Príncipe Regente deixa clara essa Constituição”. Em visita a Minas Gerais, exige que lhe
perspectiva liberal, vedando que o Estado se apode- reconheçam a autoridade de ‘regente constitucional’,
rasse arbitrariamente da propriedade do súdito, verbis: sendo que, ao entrar na capital mineira, expede uma
“sendo uma das principais bases do pacto social entre proclamação que diz ao povo: “Sois livres. Sois cons-
os homens a segurança de seus bens; e constando-me titucionais. Uni-vos comigo e marchareis constitucio-
que, com horrenda infração do sagrado direito de nalmente...”. Outros exemplos podem ser recolhidos
propriedade se cometem os atentados de tomar-se, a na obra citada do Prof. Melo Franco.

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Projeto anterior da Assembléia Constituin- Esse modelo revelava-se sobremaneira
te, foi submetido ao Parecer das Câmaras conveniente para a realidade brasileira,
Municipais, que se manifestaram, em sua em que, como visto acima, a presença da
maioria, favoravelmente à imediata adoção Família Real Portuguesa evitou que os
desse texto, o que foi feito pelo Imperador movimentos emancipacionistas nacionais
em 25 de março de 1824. Estava, pois, juri- partissem para alternativas mais radicais
dicamente consolidado o Estado Brasileiro, de ruptura com o passado monárquico da
com uma Constituição que, apesar do vício metrópole, proporcionando uma gradual e
de origem, revelava-se bastante avançada orgânica construção do Estado sobre bases
para os padrões da época, cuja importância já assentadas pela Monarquia Lusa.
fica patente pelo fato de ter sido o Estatu- Daí que a influência teórica de Benja-
to Político que permaneceu vigendo por min Constant tornou-se muito importante,
maior tempo na história constitucional do posto que seu pensamento correspondia
país até a presente data. perfeitamente à realidade histórica que se
processava no Brasil. Com efeito, como nos
lembra Afonso Arinos, o prestígio intelec-
4. Influência do pensamento
tual de Constant entre os membros da As-
de Benjamin Constant no sembléia Constituinte de 1823 se manifesta
constitucionalismo do Brasil Império em diversas páginas dos “Anais” daquelas
O Pensamento de Benjamin Constant reuniões e também em outros documentos,
situa-se numa perspectiva de crítica aos valendo citar a declaração do deputado
excessos da Revolução Francesa, espe- Cruz Gouveia ao divergir do Projeto ela-
cialmente ao período do Terror. Mas borado por Antônio Carlos de Andrada e
nem por isso admite ele que se dispense Silva, quando afirma: “Eu sigo a opinião
a contribuição das propostas reformistas do célebre Benjamin Constant, publicista
de 1789, na direção da construção de uma muito elogiado pelos mais ilustres deputa-
nova sociedade. Partindo de um método dos desta Assembléia” (MELO FRANCO,
comparativo, espelhando-se especialmente 1960, p. 57). Essa passagem, por si só, é
nas instituições inglesas e na experiência suficiente para revelar a importância do
e tradição da França pré-revolucionária, pensamento constantino nesses primeiros
Constant assume uma postura que se afasta atos de formulação jurídico-constitucional
dos postulados racionalistas e iluministas do Estado Imperial Brasileiro.
de seus predecessores, adotando uma pers- Mas, passemos desde logo ao cerne
pectiva historicista e experimentalista na desta exposição, em que procuraremos
formulação de seus princípios políticos. destacar concretamente os pontos de mais
Procura, assim, conciliar as conquis- expressiva co-relação entre as propostas te-
tas revolucionárias ligadas às liberdades óricas de Benjamin Constant e os institutos
individuais, e à afirmação da cidadania e jurídico-­políticos da Constituição Brasileira
da representação política na formação dos de 1824.
governos, sem contudo dispensar o modelo
4.1. A criação do Poder Moderador
monárquico, num processo de acomodação
das instituições políticas e sociais que a A contribuição mais relevante do pen-
história havia colocado em rivalidade. Fica samento de Benjamin Constant para as
patente a influência da experiência inglesa, instituições políticas do Brasil Império foi
em que a evolução das instituições políticas a idéia de previsão constitucional de um
ocorreu de forma muito menos abrupta Poder Moderador, que na dicção do autor
comparativamente à situação vivenciada francês era chamado de Poder Real. Ali-
na França. ás, como alerta Afonso Arinos, o próprio
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Constant reconhece que a originalidade da Políticos Constitucionais” (título adotado
propositura desse instituto não lhe perten- na edição vernácula editada pela Ed. Liber
cia; ele se inspirara nos escritos de Clermont Juris, do Rio de Janeiro, em 1989), com os
Tannerre, deputado aos Estados-Gerais, ensinamentos de Benjamin Constant (1989)
que fora morto no período revolucionário sobre o Poder Real, para depois confrontar
francês (MELO FRANCO, 1960, p. 56). com os dispositivos constantes da Carta
O Poder Moderador traduziu-se em im- Política do Império. Senão, vejamos:
portante inovação que se veio acrescentar à “ O poder real (refiro-me ao do chefe
clássica tripartição dos poderes como fora de Estado, qualquer que seja seu títu-
proposta por Montesquieu, tendo decor- lo) é poder neutro e o dos ministros
rido da observação do funcionamento da é um poder ativo. (...) O poder real
monarquia parlamentar inglesa. Igualmen- precisa estar situado acima dos fatos,
te, há quem afirme que esse Poder Real ou e que, sob certo aspecto, seja neutro, a
Moderador tenha recebido inspiração tam- fim de que sua ação se estenda a todos
bém do modelo norte-americano, no que os pontos que se necessite e o faça com
se refere ao papel exercido pela Suprema um critério preservador, reparador,
Corte do Estados Unidos, especialmente não hostil. A monarquia constitucio-
quando Benjamin Constant ensina que esse nal tem esse poder neutro na pessoa
poder seria uma espécie de Poder Judiciário do Chefe do Estado. O verdadeiro
entre os demais Poderes. Mais uma vez, fica interesse deste poder é evitar que um
explícito o cunho historicista e experimen- dos poderes destrua o outro, e permitir
talista das doutrinas de Constant, que, a que todos se apóiem, compreendam-
partir da análise das instituições já existen- se e que atinem comumente”.
tes, teorizava os princípios constitucionais “O caráter neutro e puramente pre-
objeto de sua obra política. servador do poder real é indiscutí-
Vale notar que esse Poder Moderador vel. Comparando o poder real e o
ou Real proposto por Constant, apesar de ministerial, é evidente que somente
já ter-se revelado presente na prática consti- o segundo é ativo, já que, se não
tucional inglesa e nas entrelinhas da Cons- quisesse fazer o primeiro, não encon-
tituição francesa de 1814, não chegara a ser traria nenhum meio de obrigá-lo, mas
previsto expressamente em nenhuma outra também nenhuma possibilidade de
Constituição escrita anterior. Na Inglaterra, atuar sem ele”.
isso sequer era cogitado, em razão de sua “Essa posição do poder real só tem
Constituição de caráter consuetudinário. vantagens e nunca inconvenientes,
Na França, essa doutrina foi implicitamente porque, do mesmo modo que o Rei
adotada, na medida em que a Constitui- da Inglaterra encontraria na negativa
ção estabeleceu as responsabilidades dos de seu governo um obstáculo intrans-
ministros, afirmando a inviolabilidade do ponível para propor leis contrárias ao
monarca; daí concluiu Benjamin Constant espírito do século e à liberdade reli-
que o poder ministerial, ainda que emanas- giosa, a oposição ministerial, da mes-
se do poder real, tinha, não obstante, uma ma forma, seria impotente se quisesse
existência verdadeiramente independente. impedir o poder real de propor leis
Portanto, coube à Constituição Brasileira de acordo com o espírito do século e
de 1824 a iniciativa pioneira de implantar favoráveis à liberdade religiosa. Ao
expressamente essa inovação haurida no rei lhe bastaria trocar de ministros;
pensamento Benjaminiano. mas ninguém se apresentaria para
Trazemos à colação, neste momento, desafiar a opinião e enfrentar aberta-
algumas passagens da obra “Princípios mente as ‘luzes’, apareceriam muitos

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para tomar as medidas populares do os ministros se desincumbem
que a nação subscrevesse com sua dignamente da missão que lhes foi
aprovação e concordância”. confiada; compete-lhes, enfim, a
(...) distribuição de graças, favores, re-
“Muitas coisas que admiramos e que compensas, a prerrogativa de pagar
nos pareciam significativas em ou- com um olhar ou com uma palavra
tras épocas são agora inadmissíveis. os serviços prestados ao Estado, prer-
Representemos os Reis da França rogativa essa que dá à monarquia um
fazendo justiça ao pé de uma colina. tesouro inesgotável, de tal forma que
Emocionar-nos-á esse espetáculo e re- faz de cada vaidoso um servidor e de
verenciaremos esse exercício augusto cada ambicioso um devedor”7.
e simples de uma autoridade paterna. Para deixar patente a influência do pen-
Mas, hoje, o que nos pareceria um ju- samento de Constant na gênese jurídico-
ízo celebrado por um rei sem a ajuda política de nossas instituições imperiais,
dos tribunais? A violação de todos os basta confrontar esses trechos acima
princípios, a confusão de todos os po- transcritos com o teor dos Arts. 99, 101, 132
deres, a destruição da independência e 135, da Constituição de 1824, que assim
judicial tão energicamente desejada dispunham:
por todas as classes. Não se faz uma “Art. 99. A pessoa do Imperador é in-
monarquia constitucional com recor- violável e sagrada: ele não está sujeito
dações e poesia”. a responsabilidade alguma.
“Numa Constituição livre, ficam para (...)
os monarcas nobres, formosas e su- Art. 101. 0 Imperador exerce o poder
blimes prerrogativas. Compete-lhes moderador:
o direito de conceder graça, direito 1o Nomeando os senadores na forma
de uma natureza quase divina, que do Art. 43.
repara os erros da justiça humana ou 2o Convocando a assembléia geral
seus rigores demasiado inflexíveis, extraordinária nos intervalos das
que também são erros; compete-lhes sessões, quando assim o pede o bem
o direito de investidura, elevando do Império.
cidadãos distintos e de ilustração 3o Sancionando os decretos e resolu-
duradoura à magistratura hereditá- ções da assembléia geral, para que
ria que reúne o brilho do passado e tenham força de lei.
a solenidade das mais altas funções 4o Aprovando e suspendendo interi-
políticas; compete-lhes o direito de namente as resoluções dos conselhos
criar os órgãos legislativos e de as- provinciais.
segurar o gozo da ordem pública e a 5o Prorrogando ou adiando a assem-
segurança; compete-lhes o direito de bléia geral e dissolvendo a Câmara
criar os órgãos legislativos e de asse- dos Deputados, nos casos em que o
gurar à sociedade o gozo da ordem exigir a salvação do Estado; convo-
pública e a inocência da segurança; cando imediatamente outra que a
compete-lhes o direito de dissolver substitua.
as assembléias representativas e pre- 6o Nomeando e demitindo livremente
servar, assim, a nação dos desvios de os ministros de Estado.
seus mandatários, convocando novas 7o Suspendendo os magistrados nos
eleições; compete-lhes a nomeação casos do Art. 154.
dos ministros, o que proporciona ao
monarca a gratidão nacional quan- 7
Trechos extraídos do capítulo 2.

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8o Perdoando ou moderando as penas uma Constituição, nem toda matéria devia
impostas aos réus condenados por ser considerada juridicamente constitucio-
sentença. nal. Daí se seguia, logicamente, que certos
9 o Concedendo anistia em caso capítulos ou artigos da Constituição exi-
urgente, e que assim aconselhem a giam cautelas especiais para sua reforma,
humanidade e o bem do Estado. enquanto outros não (MELLO FRANCO,
(...) 1960, p. 105). Assim dispunha o Art. 178
Art. 132. Os ministros de Estado refe- da Constituição Imperial de 1824:
rendarão ou assinarão todos os atos “Só é constitucional o que diz respeito
do poder Executivo, sem o qual não aos limites e atribuições específicas
poderão ter execução. dos poderes políticos, e aos direitos
(...) políticos e individuais dos cidadãos;
Art. 135. Não salva aos ministros de tudo o que não é constitucional pode
responsabilidade, a ordem do Impe- ser alterado, sem as formalidades refe-
rador, vocal ou por escrito.” ridas, pelas legislaturas ordinárias.”
Enfim, utilizou-se textualmente no Art. Também a questão do voto censitário,
98 da Constituição de 1824 uma expressão introduzida na Constituição Imperial,
que era tradução literal daquela adotada guarda certa coerência com o pensamento
por Benjamin Constant para definir o Po- de Benjamin Constant, na medida em que
der Real: “O Poder Moderador é a chave esse pensador entendia que a propriedade
de toda organização política...”, que cor- era condição para o exercício dos direitos
responde, na expressão em francês, a: “la políticos. É o que se vê na sua obra, sob co-
clef de toute orgarnisation politique” mentário, quando diz que: “nas sociedades
(MELLO FRANCO, 1960, p.56). atuais, o nascimento no país e a maturidade
A temática da extensão e dos limites do não bastam para o exercício dos direitos de
Poder Moderador foi a principal questão cidadania. Aqueles a quem a indigência
jurídico-constitucional debatida durante mantém numa eterna dependência e con-
todo o período monárquico, sendo célebres dena a trabalhos diários não têm maior in-
os posicionamentos antagônicos de dois formação que as crianças sobre os assuntos
eminentes juristas que externaram seu pen- públicos, nem têm maior interesse do que
samento em obras que se tornaram clássicas os estrangeiros na prosperidade nacional,
no Direito Constitucional pátrio.8 cujos elementos não conhecem e de cujos
benefícios só participam indiretamente”.
(...) “Somente a propriedade assegura o
4.2. Outras questões constitucionais ócio necessário à capacitação do homem
que revelam influência das idéias de para o exercício dos direitos políticos”
Benjamin Constant (CONSTANT, 1989, cap. 6).
Uma outra característica marcante da Também parece-nos possível traçar um
Constituição do Império, também resul- paralelo de sintonia entre o pensamento
tante de expressiva influência de Benjamin de Benjamin Constant (1989, cap. 12) e
Constant, foi sua natureza semi-rígida. a questão da atribuição de uma esfera
Esse pensador entendia que, no texto de de poder no âmbito local, que o consti-
tucionalista suíço-francês considerava
8
Trata-se das seguintes obras, que são conside- essencial, valendo transcrever a seguinte
radas clássicas no pensamento político-jurídico do lição: “Os municípios, por sua vez, têm
Brasil Imperial: GOIS E VASCONCELOS, Zacarias de.
Da Natureza e dos Limites do Poder Moderador (1862) e
interesses que somente os afetam e outros
PIMENTA BUENO (Marquês de São Vicente), Direito que poderão ser comuns a um distrito. Os
Público Brasileiro (1857). primeiros serão de competência puramente

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municipal; os segundos, da competência quadas para a problemática enfrentada no
distrital e assim sucessivamente, até che- período pós-revolucionário. Alguém que
gar aos interesses gerais, comuns a cada compreendeu profundamente o valor da
um dos indivíduos que formam o milhão liberdade e que percebeu a necessidade de
de pessoas que integram a população”.9 trilhar caminhos menos tormentosos de
Aqui cabe reportarmos, ainda uma vez, à modo a assegurar um mínimo de convivên-
Constituição Imperial, quando confirma a cia pacífica entre os membros da sociedade
autonomia das Câmaras Municipais, nos política.
arts. 167-169, e quando garante “o direito” Talvez tenha sido exatamente essa capa-
de intervir todo o cidadão nos negócios de cidade de compreender o mundo e escapar
sua Província, e que são imediatamente de uma perspectiva meramente romântica
relativos a seus interesses peculiares” (Art. e idealista para buscar a concretização dos
71). Esses dispositivos, ao lado da divisão anseios que se revelavam efetivamente
do território em Províncias “na forma em possíveis e realizáveis no contexto histórico
que atualmente se acha, as quais poderão em que vivia que fizeram de Benjamin Con-
ser subdivididas, como pedir o bem do tant um pensador tão admirado cá entre
Estado” (Art. 2o), se bem interpretados, nós, chegando mesmo a ter suas doutrinas
poderiam ter-se tornado a senda de um transportadas do campo das idéias para a
federalismo orgânico que teria feito muito vida real, na construção e positivação jurí-
bem ao futuro da nação. Porém, se muitas dica das normas fundamentais da Império
das instituições concebidas pela Constitui- recém-fundado neste vasto Continente
ção Imperial lograram contínuo aperfeiçoa- Americano.
mento e adequação às mudanças ocorridas
na realidade política, social e econômica
do século XIX, tal êxito não foi alcançado
Referências
quanto a esse desejado federalismo, o que
representou importante fator na decadência BARRETO, Vicente. Primórdios do liberalismo e o li-
do regime monárquico. beralismo e representação política: o período imperial.
In: Curso de introdução ao pensamento político brasileiro.
Unidades 1 e 2. Brasília: Editora UnB, 1982.
5. Conclusão
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo:
A partir do enfoque específico da rea- Brasiliense, 1995.
lidade histórica brasileira, cremos ter sido BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História
possível, com este trabalho, apontar algu- constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra,
mas contribuições do liberalismo europeu 1991.
para a consolidação do Estado Nacional CONSTANT de Rebecque, Henri Benjamin. Princípios
Brasileiro, especialmente no que se refere políticos constitucionais. Organizado por Aurélio Wan-
às influências provenientes do pensamento der Bastos. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989.
de Benjamin Canstant. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. n.18. São
Esse autor, que já foi estigmatizado por Paulo: Abril, 1973. Coleção Os Pensadores.
muitos estudiosos da ciência política, deve
MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Estudos de direito
ser resgatado na sua verdadeira perspectiva constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1957.
de um homem marcado pelas contradições
______. Curso de direito constitucional brasileiro. v.2. Rio
de seu tempo, que soube dar respostas ade-
de Janeiro: Forense, 1960.

De se notar que o Distrito, na França, corresponde


9 PAIM, Antônio. A discussão do poder moderador
a uma fração territorial que abrange vários municípios, no segundo império. In: Curso de introdução ao pensa-
diferentemente do Brasil, em que os Distritos são mento político brasileiro. Unidades 3 e 4. Brasília: Ed.
subdivisões dos municípios. UnB, 1982.

74 Revista de Informação Legislativa


VIEIRA, José Ribas. Introdução. In: CONSTANT, GOES E VASCONCELLOS, Zacarias de. Da natureza
Benjamin. Princípios políticos constitucionais. Tradu- e limites do poder moderador. Brasília: Senado Federal,
ção de Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber 1978.
Juris, 1989.

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