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EUROPEU NÃO SIGNIFICA UNIVERSAL. BRASILEIRO NÃO SIGNIFICA


NACIONAL

(Acerca da expressão “filosofar desde”)

Ensaio publicado originalmente em Nabuco –


Revista Brasileira de Humanidades, nº 2, novembro
de 2014 / janeiro e fevereiro de 2015, ISBN 978-85-
68289-01-3, www.revistanabuco.com.br. Proibida a
reprodução deste texto sem autorização expressa de
Edições Nabuco.

Sutiã:

Não é por falta de competência nem por falta de domínio da tradição filosófica
europeia que os filósofos e estudantes brasileiros não participam dos debates
supostamente “universais”, mas por razões políticas que nada têm de estritamente
filosóficas. E mesmo a posição europeia é tão condicionada historicamente, tão
relativizável quanto qualquer outra

Olho:

A depreciação, de fundo racial, das possibilidades intelectuais de pensamentos não-


europeus não ficou, infelizmente, no século XIX. É este, precisamente, um dos temas
mais estudados pelo pensamento latino-americano: a passagem das situações concretas
de colonialismo — que acabaram, de fato, ao longo do século XX — para a criação de
uma matriz colonial — a colonialidade
2

Julio Cabrera

(Doutor em Filosofia. Investiga nas áreas de filosofia da linguagem, linguagens do


cinema, éticas negativas e filosofia latino-americana. Autor de cerca de 15 livros, entre
os quais: Projeto de ética negativa, Crítica de la moral afirmativa, Margens das
filosofias da linguagem, O cinema pensa, Inferências lexicais e interpretação de redes
de predicados, Análisis y Existencia, Diário de um filósofo no Brasil e Diálogo/Cinema,
este último em coautoria com Márcia Tiburi).

I. Axiomas comunitários: o Acervo T. Primeira rodada de argumentos contra o


Acervo T: universalidades situadas

Introdução

Gostaria de abordar a questão da filosofia no Brasil com olhos de lógico,


atentando aos argumentos em jogo. Sempre que começamos uma discussão filosófica
— seja qual for o assunto — está em questão a própria natureza da mesma, seu próprio
caráter argumentativo. O problema inicial é que cada um de nós, participantes, já traz
para a discussão um conjunto de definições, pressupostos, prevenções, temores e uma
profunda necessidade de exprimir-se. Até que ponto a discussão filosófica faz com que
uma postura seja alterada, ou, ao contrário, faz com que seja reforçada?

A respeito de filosofia no Brasil, muitos dos que tomam parte em discussões


estão totalmente convictos de que a produção filosófica europeia representa pura e
simplesmente o pensamento universal, enquanto colombianos, brasileiros ou africanos,
quando pensam os problemas que surgem de suas realidades, refletem a partir de suas
procedências nacionais e não fazem autêntica filosofia universal. Pensam que quando
alguém fala em “idealismo alemão” refere-se a algo destinado à humanidade, mas que
quando alguém fala em “filosofia brasileira” não expressa nada que tenha sentido. Esses
pensamentos são tão controversos, tão insatisfatoriamente pensados e tão
apressadamente formulados, que não vale a pena discutir com alguém que esteja tão
convicto dessas ideias a ponto de não mais estar disposto a colocá-las em discussão,
escutar contra-argumentos e, se for o caso, mudar de postura. Se alguém me perguntasse
3

por que eu não mudo de postura, responderia que já mudei: durante várias décadas
ensinei a meus alunos que a filosofia europeia é universal e que não tem nenhum
sentido falar de uma filosofia desde o Brasil ou desde a América Latina. Neste texto,
quero explicar por que mudei de postura.

Uma das questões mais curiosas que me são propostas nas discussões sobre
filosofia no Brasil é a de que a minha abordagem é “marcadamente política” 1, como se
fosse eu quem introduz a política no corpo asséptico e incontaminado da “filosofia
pura”, como se as questões que expus numa entrevista2, e em meu livro Diário de um
filósofo no Brasil, não fossem estritamente conceituais (como, digamos, uma discussão
sobre o sujeito transcendental kantiano), mas apenas questões ligadas ao poder.
Gostaria de dizer desde já que as ideias de que a filosofia europeia é filosofia universal
e de que os pensamentos nascidos na América Latina ou na África são nacionais são
políticas de ponta a ponta, que fazem parte de uma política que, ao ter sido instaurada e
vigorar de maneira hegemônica, esconde seus próprios traços ideológicos,
apresentando-se como se fosse tão somente a verdade absoluta e objetiva 3. Em nenhum
momento escondo ou disfarço o caráter político das minhas reflexões sobre a filosofia
no Brasil, mas trata-se de uma postura política que tenta enfrentar outras posturas
políticas, e não uma “realidade objetiva” que teria surgido do mundo mesmo “tal como
ele é”4.

1
Ferreira 2014.

2
Cabrera 2014.

3
Esta é a situação usual: a ideologia hegemônica nunca sente a si mesma como ideológica, mas como “a
realidade mesma”, enquanto que os dissidentes, os que não conseguem adaptar-se aos valores do sistema,
veem claramente o caráter ideológico do vigente. A noção de “vigência” — que ainda deveria ser
devidamente estudada — significa precisamente isso: os valores que “vigoram” tomam de assalto a
realidade e passam a representá-la como se fosse “a coisa mesma”. O que vigora tranquiliza, naturaliza,
apoia, fortalece e transforma em “meramente político” tudo aquilo que ousa desafiá-lo.

4
Por outro lado, e se ainda quisermos preservar uma distinção entre política e filosofia, as questões
políticas se mostrarão necessárias para abrir espaços a questões mais propriamente filosóficas, as quais
continuariam sendo ignoradas sem a pressão de uma ação política. Veremos isto melhor ao longo do
artigo.
4

Apresentação do Acervo T

O que pensamos não surge no ar, mas responde a processos históricos e


genealogias. Atualmente, na comunidade filosófica brasileira, existe um acervo de
ideias e teses que todo mundo aceita e que não se coloca mais em discussão, teses que
despertam a adesão imediata de qualquer público, mas cuja adequada genealogia
haveria ainda que ser feita, pois trata-se de devires que, por algum motivo histórico, as
pessoas abraçaram com paixão, mas que sempre poderemos desconstruir e mudar se nos
parecer conveniente ou se — como me parece ser o caso — tais ideias vigentes estejam
hoje cerceando centenas de jovens vocações filosóficas e burocratizando a filosofia.
Precisamente, as tremendas dificuldades de entendimento da noção de um “filosofar
desde” o Brasil, noção central do presente artigo5, provêm, fundamentalmente, da
manutenção desse conjunto de convicções inabaláveis que passo agora a discutir. Essas
teses são, numa formulação possível, as seguintes:

(1) A filosofia é universal; ela fala desde, e com, a universalidade da razão. Os


problemas filosóficos surgem do próprio exercício da razão e atingem qualquer
ser humano em qualquer lugar do planeta, justamente pela sua natureza racional,
que fala ao humano enquanto tal, com independência de nacionalidades ou
idiossincrasias regionais.

(2) A história da filosofia europeia mostra de maneira exemplar e modelar esse


exercício universal da razão.

(3) As filosofias de outros países, entre eles os latino-americanos, não conseguiram,


até hoje, atingir esse nível universal da razão; uma boa parcela do que se escreve
fora de Europa (por exemplo, na América Latina) refere-se a motivos nacionais
(ou mesmo nacionalistas), mais de interesse para uma história das ideias do que
algo de interesse genuinamente universal. É por isso que não existem grandes
pensadores brasileiros, colombianos ou africanos sendo discutidos atualmente
pelo mundo.

5
Apresentada pela primeira vez em meu Diário de um filósofo no Brasil, pp. 28-30.
5

(4) Ao falar-se numa filosofia a partir de certa parte do planeta (por exemplo, desde
o Brasil, ou desde os Estados Unidos ou desde a Bélgica), alude- se
ilegitimamente a uma origem “nacional” do filosofar, o que contradiz
frontalmente a natureza universal da filosofia. Estes projetos “nacionais” não
fazem o menor sentido e devem ser abandonados por não serem universais e,
portanto, não serem filosóficos. Seriam coisa tão absurda quanto falar de uma
física ou de uma matemática brasileiras ou norte-americanas. As alegações
“nacionais” são mais políticas do que estritamente filosóficas.

(5) Quando essas filosofias nacionais se insurgem contra a filosofia universal


europeia, elas mesmas já têm que utilizá-la inclusive para dirigir suas críticas;
estamos formados por categorias europeias de pensamento, de maneira que
rebelar-se contra elas representa um gesto impossível e contraditório; o que
prova que, pelo menos por enquanto, só existe filosofia europeia, ao ser ela
indispensável mesmo para criticar sua natureza e seus limites.

(6) Conhecer filosofia é, fundamentalmente, adquirir sólidos conhecimentos sobre


história da filosofia europeia, que, como vimos, representa o que há de mais
universal do saber filosófico, para, a partir daí, estar devidamente capacitado a
elaborar exegeses bem fundamentadas, ou interpretações e estudos
comparativos, que só podem ser efetuados a partir de um sólido conhecimento
dessa história, visando preencher as condições de oferecer alguma futura
contribuição significativa para a filosofia universal.

(7) Qualquer “filosofar autoral”, que assim se pretenda, pressupõe, como condição
necessária, que se conheça solidamente esse acervo de conhecimentos
filosóficos universais; qualquer tentativa de “filosofar autônomo” — ou, pior
ainda, de “filosofar independente” — que prescinda desses conhecimentos corre
o lamentável risco de repetir o que já foi dito e de incorrer em todo tipo de
ingenuidades.
6

Denominarei “Acervo T” ao conjunto (1)-(7) de convicções inabaláveis (mesmo


que se discorde neste ou naquele termo da sua formulação6) da comunidade filosófica
brasileira (e, em grande medida, de uma boa parcela da comunidade filosófica
internacional7).

Se o leitor pensa que as teses do Acervo T são evidentemente verdadeiras e não


têm qualquer sentido contestá-las, a discussão acaba por aqui, ou melhor, nem sequer
começa. O presente texto fará algum sentido se for lido por alguém que está disposto a
tornar problemático o Acervo T e a responder às objeções que me proponho a lhe
apresentar aqui, para, em todo caso, continuar a defendê-lo, mas tendo enfrentado e
respondido as objeções. Se não for assim, não faz qualquer sentido que continue lendo
o texto nem que eu continue a escrevê-lo. Tampouco a discussão terá sentido se o leitor
já pressupõe que qualquer objeção ao acervo T deve forçosamente estar mal colocada
ou conter falácias, as quais poderão ser desmontadas automaticamente sem que se pense
demasiado no assunto. As objeções contra o Acervo T têm de ser levadas a sério, assim
como o presente texto leva a sério o Acervo T. Não creio que as teses do Acervo T
sejam obviamente falsas; creio que são incorretas e, em certo sentido, fatais para as
aspirações filosóficas latino-americanas e brasileiras em particular; mas a sua incorreção
não é evidente e deve ser mostrada de maneira cuidadosa e ponderada. Estas são
questões mínimas de ética da discussão filosófica que os dois lados deveriam observar.

6
Por exemplo, na ideia (1), estão compreendidas filosofias que põem o acento em sentimentos (como
podem ser as teorias éticas e estéticas da filosofia escocesa); “racional” refere-se à natureza
eminentemente argumentativa da filosofia, mesmo numa filosofia dos sentimentos. Com isto quero dizer
que a formulação de (1)-(7) poderia aprimorar-se, mas que as ideias básicas são essas.

7
A diferença entre os países latino-americanos a esse respeito reside em que, em alguns deles, como o
Brasil, as atividades filosóficas se identificam exaustivamente com o filosofar norteado pelas ideias do
Acervo T, enquanto em outros países latino-americanos, como a Colômbia, por exemplo, uma parte da
filosofia responde ao Acervo T, mas ainda são praticadas atividades filosóficas alternativas que são
acompanhadas e respeitadas por boa parte da comunidade filosófica. (Ver Pachón Soto Damián, Estudios
sobre el pensamiento colombiano. Volumen I, pp. 125-129). A diferença é, pois, de ênfase e
diversificação, mas o Acervo T enquanto tal implantou-se no mundo todo durante a segunda metade do
século XX.
7

Apresentarei uma primeira rodada de observações críticas acerca do Acervo T,


referindo-me a cada um de seus sete itens. Posteriormente, num viés mais positivo,
tentarei caracterizar mais precisamente a noção de “filosofar desde”, que, como se verá,
equidista tanto do universalismo abstrato atualmente assumido pelas comunidades de
professores de filosofia quanto de um particularismo meramente “nacional”.

Primeira rodada de argumentos contra o Acervo T

(1ª) Como primeira aproximação à questão da universalidade da filosofia, o argumento


que apresento aqui é basicamente o seguinte: a universalidade da filosofia não será
negada (como o fazem pós-modernos franceses e neo-pragmatistas norte-americanos,
por exemplo). Pode-se aceitar que os pensamentos filosóficos sejam universais no
sentido de ser de interesse para seres humanos de qualquer ponto do planeta; podemos
decidir não nos ocuparmos, pelo menos por enquanto, com as muitas dificuldades dessa
noção8. Entretanto, se não quisermos formular essa universalidade em termos
metafísicos ou transcendentais, teremos que concebê-la como o resultado de um
processo histórico, com uma procedência, uma circunstância e uma perspectiva, o que
não lesa a universalidade do pensado (seu interesse para a humanidade toda), mas a
situa. O que se nega é a ideia de que os pensamentos filosóficos possam surgir de
maneira direta da razão humana, de uma visão de lugar nenhum. A universalidade dos
pensamentos não os dispensa de ter uma origem, não meramente externa, mas vinculada
a seus conteúdos. (Isto deveria ser algo bastante óbvio, mas é preciso formulá-lo
claramente por amor ao argumento).

Para exprimir isto melhor, proponho utilizar os termos “referente” e “aferente”:


o referente diz respeito ao conteúdo dos pensamentos, enquanto o aferente refere-se à
procedência ou perspectiva dos mesmos ou a seu sujeito de enunciação. Assim, quando
escutamos uma manifestação filosófica como, por exemplo, “o trabalho humano

8
A ideia de universalidade é muito problemática e se poderia perfeitamente abrir uma discussão acerca da
mesma; a minha estratégia argumentativa aqui será não mexer com essa noção e aceitar, de início, que a
filosofia é uma empreitada universal, no sentido bastante óbvio de afetar a todo ser humano enquanto tal,
sem diferenças nacionais ou regionais.
8

transforma o meio ambiente e pode torná-lo hostil ao próprio homem”, temos que
atentar não apenas à referência dessa expressão (com seu conteúdo de verdade), mas
também ao seu aferente (a procedência da alocução), porque ela poderá ter influência no
valor de verdade do referente; essa “mesma” frase terá diferentes valores de verdade
(além de diferentes tons e nuanças conceituais) se proferida por Hesíodo, por
Aristóteles, por Locke, por Marx ou por Oswald de Andrade em sua etapa marxista. A
procedência poderá afetar o valor de verdade do conteúdo enunciado, na medida em que
esses pensadores possuíam informações diferentes, metodologias diferentes de
abordagem, linguagens diferentes; dirigiam-se a diferentes audiências, tinham diferentes
propósitos etc. Assim, embora as ideias sejam universais (no sentido de interesse para a
humanidade), a sua universalidade está situada historicamente (podem significar coisas
diferentes ou podem não significar coisa alguma).

Outra maneira de dizê-lo: os pensamentos filosóficos nascem dentro de redes


holísticas de proposições, crenças, propostas, valores vigentes etc. e ganham certa
configuração (ou certa Gestalt, poderíamos dizer) dentro delas, configuração essa que é
produzida por uma perspectiva e por uma circunstância; dependendo da procedência do
pensamento, predomina uma configuração ou outra. Nego, pois, que uma proposição
transmita uma ideia universal com independência de sua procedência pensante; se se
pretender uma universalidade baseada na ideia de que a mesma pertence internamente
aos pensamentos, sem uma mediação circunstancial e perspectiva, negarei essa
universalidade da filosofia; a verdade universal dos pensamentos é sempre
historicamente constituída.

Além do mais, essa constituição nunca é “puramente filosófica”. Ela não


pertence a um âmbito de sentido “próprio da filosofia”, incontaminado pelo resto do que
os humanos fazem, mas está inserida numa rede de referências que levam ao estado da
cultura em dado momento e lugar; assim, por exemplo, uma imensa parte do
pensamento prático alemão contemporâneo do pós-guerra está diretamente motivada
pelo horror dos campos de concentração e pela necessidade de evitar a sua repetição; tal
horror é parte do “desde” reflexivo desse pensamento; saber isso não é irrelevante para
entender e avaliar esses pensamentos, pois pode ajudar a entender certas formulações de
problemas éticos que não poderiam ter surgido antes da guerra com essa força e nesses
termos específicos. Conhecer essa perspectiva circunstanciada dos pensamentos
9

filosóficos pode ser também relevante na medida em que esses pensamentos (cuja
universalidade não é negada) podem não ser os mais interessantes para pensar a
filosofia prática desde nossa própria circunstância pensante (desde a qual, talvez, o
horror dos campos de concentração não seja o tema prioritário; talvez na circunstância
brasileira existam outros horrores mais prementes. Retomarei estas questões mais
adiante).

Neste sentido, a universalidade não é um “fato da razão” que surgiria


diretamente e sem mediações, mas uma criação histórica feita desde alguma
perspectiva. Problemas filosóficos que, de uma maneira ou outra, atingem a todos
(como a morte, a finitude, as relações com os outros, o acesso ao mundo, a expressão
artística, o sentimento do sagrado etc.) têm uma procedência e atingem as pessoas de
acordo com suas circunstâncias existenciais e pensantes. Há, pois, universalidade, mas
ela não surge da “razão pura”, e sim de razões plurais e situadas; e tampouco ela atinge
a toda a humanidade da mesma maneira e com igual intensidade.

Essa é apenas uma primeira aproximação à questão do “desde” do pensamento


filosófico. Precisarei melhor essa ideia na próxima rodada de arguições9.

9
Existe no Brasil um profundo desconhecimento das fontes latino-americanas de pensamento filosófico
(felizmente, essa situação está, lentamente, começando a mudar, como veremos depois). Isso faz com
que, quando citamos pensadores latino-americanos, não sejamos levados a sério pelos nossos colegas,
alguns dos quais pensam que a expressão “pensador latino-americano” é como “quadrado redondo”. Mais
adiante neste artigo falarei mais sobre essas fontes, mas neste momento já é oportuno trazer à tona a ideia
de universalidade da filosofia formulada pelo filósofo argentino do século XIX Juan Bautista Alberdi,
considerado o primeiro pensador latino-americano a colocar claramente a questão de um pensar desde as
nossas circunstâncias. Em seu texto “Ideas para presidir la confección del curso de filosofia
contemporânea en el Colegio de Humanidades de Montevideo” (1840), Alberdi escrevia: “Não há, pois,
uma filosofia universal, porque não há uma solução universal das questões de fundo que a constituem.
Cada país, cada época, cada filósofo tem tido a sua filosofia peculiar, que se difundiu ou durou mais ou
menos tempo, porque cada país, cada época e cada escola tem dado soluções distintas dos problemas do
espírito humano” (Alberdi 1996, pp. 94-95. Destaque meu e tradução do espanhol minha, pois não existe
nem existirá tradução portuguesa dos escritos deste importante pensador latino-americano). Parece claro
que Alberdi não queria negar a universalidade de problemas filosóficos que nos atingem enquanto
humanos; quando ele afirma que “não há filosofia universal”, significa que não há nenhum problema
universal que não seja visto desde a perspectiva de um país, uma época ou um filósofo.
10

(2ª) Se aceitarmos o que acabo de expor, ou seja, que toda universalidade filosófica é
constituída historicamente a partir de circunstâncias e perspectivas, resulta pelo menos
enigmática a ideia de que a história da filosofia europeia possa ser detentora exclusiva
da universalidade da filosofia; o máximo que se poderia dizer é que ela seria apenas
uma das criadoras e cultoras de universalidade filosófica ao lado de outras pensadas a
partir da África, da Ásia, da América Latina e do Caribe, surgidas de outras
circunstâncias pensantes (como veremos, o ponto geográfico é parte da circunstância
pensante, mas não se identifica com ela). Assim, quando se diz, por exemplo, que os
mecanismos transcendentais do conhecimento tais como apresentados por Kant e
filósofos pós-kantianos são universais, no sentido de se aplicarem aos seres humanos de
qualquer latitude, isto deve ser visto como uma pretensão que não forçosamente se
cumpre (poderia haver grupos humanos, como certas tribos indígenas, cuja mente não
funciona segundo o aparato transcendental kantiano)10; mas, ainda que se aceite que
esses mecanismos se apliquem a todos os seres humanos, isso não dispensa a pergunta
acerca de onde surgiu a ideia da necessidade de um aparato transcendental e de por que
Kant sentiu-se impelido a responder a essa questão, quando pensadores cem anos
anteriores a ele sequer a visualizaram. Essa ideia tem um aferente e uma circunstância
pensante que não é externa ao pensamento, no sentido de ela ser um componente do
adequado entendimento do mesmo.

Como mostrado, entre outros, pelo pensador argentino Enrique Dussel — ainda
pouco conhecido no Brasil —, mas também por outros pensadores, como Walter
Mignolo e Eduardo Rabossi, a centralidade cultural da Europa é muito recente (150
anos), e decorre de uma construção geopolítica; não é um “fato objetivo”11. Portanto,
mesmo que seja fato inconteste que o pensamento europeu gerou pensamentos
universais, em primeiro lugar ele o fez desde a sua própria circunstância e perspectiva
— como é inevitável — e, em segundo lugar, não foi o único setor do planeta que
conseguiu fazê-lo. (Que a filosofia universal coincide com a o pensamento europeu é,
pois, ideologia, não “fato”).

10
Günther 2004.

11
As melhores fontes são: Dussel, 1994; Mignolo 2007; Rabossi, 2008.
11

(3ª) Se for assim, seria falso dizer que os pensadores latino-americanos, e


especificamente brasileiros, tenham desenvolvido apenas problemas de interesse
“nacional” pelo fato de haver pensado questões a partir das suas circunstâncias de
pensamento. Isto pode ser verdade de alguns setores específicos do pensamento latino-
americano (por exemplo, tudo que se refere ao pensamento constitucional na obra de em
Juan Bautista Alberdi, à problemática do povoamento ou à questão do castilhismo no
Brasil etc. foram problemas profundamente ligados a circunstâncias sul-americanas da
época, mas nem por isso isentas de reflexões universais). Se “universalidade” significa
algo “que interessa e envolve a toda a humanidade”, sem importar a sua procedência
nacional, então faz muito tempo que pensadores brasileiros abordam, já desde os
primórdios de seu pensamento no século XVI — desde o padre Vieira até Vilém
Flusser12 —, questões universais nesse sentido. Por exemplo, Vieira tratou da questão
das diferenças entre fala e imagem na eficácia da pregação; das relações entre estilo
retórico e conteúdos sagrados; e de questões existenciais vinculadas à atitude diante da
morte, ao problema do olhar, às relações com o próximo, aos fundamentos da esperança
etc., todas elas questões universais. De maneira semelhante, Matias Aires abordou o
tema da vaidade humana (que também fora tratado por Hume mais ou menos na mesma
época), Tobias Barreto as questões do fim da metafísica, da crítica ao positivismo e à
sociologia, da situação da mulher, das relações entre natureza e cultura e do fundamento
do direito de punir; todos eles também problemas universais. O mesmo pode ser dito de
pensadores brasileiros do século XX como Vicente Ferreira da Silva, que se debruçou
sobre os problemas do reconhecimento e da solidão, sobre o conceito de humano, a

12
Precisamente porque a procedência reflexiva de um pensamento não é — como veremos — meramente
nacional, é totalmente irrelevante que Vieira tenha nascido em Portugal e Flusser na Tchecoslováquia;
pelo que fizeram histórico-existencialmente, estão permanentemente filiados ao pensamento brasileiro.
Isto torna igualmente brasileiro um pensador como Matias Aires, que nasceu no Brasil mas foi levado
ainda criança para a Europa e nunca mais voltou; não são essas vicissitudes biográficas e nacionais as que
determinam a perspectiva de um pensamento, mas a sua densidade reflexiva numa circunstância pensante.
(Do contrário, teríamos que considerar Julio Cortázar um escritor belga). É com esse critério que o
professor Paulo Margutti inclui, em sua recente História da Filosofia do Brasil (2013) [livro resenhado na
Nabuco nº 1, agosto / setembro / outubro de 2014], não apenas autores portugueses como Pedro da
Fonseca, Francisco Sanches e Vieira, mas até espanhóis como Luis de Molina e Francisco Suárez e
italianos como Antonio Genovesi.
12

crítica ao antropocentrismo etc. A universalidade desses pensamentos não pode ser


posta em dúvida, pois eram, em muitos casos, os mesmos pensamentos estudados na
Europa (e cuja universalidade era reconhecida lá).

(4ª) Sendo assim, pode ser falso afirmar que as ideias filosóficas geradas por pensadores
brasileiros não são discutidas no âmbito europeu pelo fato de não serem universais; os
motivos da exclusão ou indiferença devem ser buscados noutro lugar, dado que esses
pensamentos são genuinamente universais. A resposta mais usual a isso consiste em
dizer que, embora as questões tratadas por pensadores brasileiros sejam mesmo
universais, o tratamento carece de “qualidade” suficiente (ou de “excelência” e
“originalidade”), e, metodologicamente, do “rigor” necessário a um trabalho filosófico
de interesse internacional. Neste ponto, torna-se fundamental um estudo conceitual, de
filosofia da linguagem, acerca dos modos de uso destes termos cruciais — “qualidade”,
“excelência”, “originalidade”, “rigor” — que vêm qualificar, de alguma forma, a
universalidade do pensamento não-europeu, universalidade que não parece suficiente.

Deveria ser desnecessário responder à “objeção”, que monotonamente aparece


nas discussões, de que falar em “filosofia brasileira” seria tão absurdo quanto falar de
uma matemática ou de uma física brasileira. Eu fico pasmo toda vez que isto surge e
creio realmente que deveríamos fazer um esforço conjunto para elevar o nível das
argumentações; um estudante de graduação que cursou um mês de uma disciplina de
Lógica sabe o que é uma falácia de falsa analogia. É óbvio que ciências como a Física e
a Matemática se formulam e desenvolvem segundo dinâmicas muito diferentes da de
pensamentos filosóficos, sendo muito mais independentes de suas procedências e de
questões sociais e políticas do que questões filosóficas (embora não totalmente, como
Kuhn e Feyerabend mostraram). De maneira que dizer que, se as operações aritméticas
não têm conexão com suas procedências sociais, os pensamentos filosóficos tampouco
devem tê-la, é simplesmente um argumento que não se pode levar a sério; seria melhor
arquivá-lo de uma vez por todas e passar a discutir os argumentos e contra-argumentos
relevantes e bem elaborados. As analogias são importantes recursos argumentativos e
são fartamente utilizadas na ciência e na filosofia, mas respondem a técnicas
sofisticadas que é preciso conhecer, para que se possa usá-las com propriedade.
13

(5ª) Muitas vezes, em discussões sobre o tema, após eu ter sustentado que deveríamos
incluir literatura latino-americana em nossas bibliografias em lugar de concentrarmo-
nos exclusivamente em fontes europeias, surge alguém do público alegando que “é
totalmente impossível prescindir da filosofia europeia”. Essas pessoas, de maneira
persistente, e como se tivessem apresentado uma grande objeção, me atribuem o
seguinte sequitur: “Devemos incluir fontes latino-americanas em nossas bibliografias;
portanto, devemos parar de ler autores europeus”. Essas pessoas precisam também
urgentemente voltar a fazer cursos de lógica elementar. É claro que vamos utilizar
fontes europeias entre outras. E seu uso, por outro lado, nada tem de “contraditório”,
mesmo que utilizemos fontes europeias para contestar a atual hegemonia do filosofar
europeu; pois o que está sendo contestado não é a Europa, mas o eurocentrismo (isso já
foi dito, inutilmente ao que parece, milhares e milhares de vezes). As fontes europeias
podem e devem ser perfeitamente utilizadas se conjugadas a outras fontes de
pensamento (africanas, asiáticas e sul-americanas), e se utilizadas de maneiras
apropriadoras, criativas e críticas.

Com efeito, além da indispensável diversificação das fontes, é também crucial


ver de que maneira as fontes europeias aparecerão em nossos textos; habitualmente,
elas aparecem meramente “comentadas” ou repetidas em exegeses e interpretações,
dentro de um contexto de mero “estudo” (sempre “interessante”); mas essas fontes
podem aparecer de muitas outras maneiras, podem ser utilizadas em proveito dos
próprios objetivos do investigador (como Kant aparece num texto de Heidegger ou
Heidegger num texto de Dussel), e inclusive utilizadas contra os próprios pensadores
europeus que as geraram (por exemplo, mostrando o déficit de espírito iluminista em
Kant ou, por meio de categorias hegelianas, a incongruência do desprezo de Hegel pela
América etc.). Então a questão não é utilizar ou não utilizar fontes europeias em nossos
textos, mas a maneira como serão utilizadas, de forma exclusivista e meramente
expositiva ou de forma plural e contestadora. Portanto, não há qualquer “contradição”
na menção e utilização de pensadores europeus dentro de uma contestação da
hegemonia europeia (como triunfalmente se proclama em algumas discussões) nem
14

“circularidade” ou vício de metodologia algum em utilizar fontes europeias em nossas


análises contra o eurocentrismo13.

(6ª) Mas talvez a ideia norteadora inabalável mais problemática de todo o Acervo T seja
a (6), a ideia de que o filosofar autoral tem como condição necessária e incontornável o
sólido conhecimento da história da filosofia europeia. Pelo que já foi falado, o que
deveria ser exigido, em todo caso, seriam sólidos conhecimentos de história da filosofia
mundial, e não apenas de história da filosofia europeia. Isto seria uma genuína situação
universal. (Que tipo de “universalidade” é esta que se concentra exclusivamente na
produção filosófica de um setor do planeta? Eis uma questão que eu gostaria muito de
ver respondida pelos “universalistas”). Mas o problemático é que nem sequer um
conhecimento sólido e exaustivo de filosofia mundial é estritamente “necessário” num
sentido absoluto, mas apenas num sentido relativo a dois parâmetros: dependerá do tipo
de trabalho filosófico que se quiser fazer e dependerá do tipo de pensador que cada um
for. Aqui eu estabeleceria algumas gradações: (a) Quanto mais exegético e histórico for
o tipo de trabalho que se pretende fazer, quanto mais se debruçar sobre autores e
temáticas específicos, mais estudo de história das ideias será preciso fazer; (b) Quanto
mais criativo e imaginativo um pensador for, quanto mais talentoso e hábil em leituras e
escritas, menos precisará de profusos estudos de história das ideias em seu trabalho.
Estas são, claro, verdadeiras heresias para os adeptos incondicionais do Acervo T; de
acordo com a ideologia vigente, todo mundo que estuda filosofia tem que conhecer,
forçosamente, e de maneira sólida, a história do pensamento europeu, com
independência do que se queira fazer e com independência do tipo de pensador que
formos. Trata-se de um treinamento anônimo e impessoal, espécie de dispositivo cego
ou pedagogia absoluta, de “cultura filosófica geral” obrigatória que passa por cima de
idiossincrasias, características, vocações e projetos.

Esclarecendo ainda este tópico: se quisermos fazer uma reflexão filosófica


sobre a Amazônia, trabalhando interativamente com sociólogos e antropólogos,
querendo averiguar, por exemplo, quais são os pressupostos éticos e pragmáticos da

13
Pensadores europeus como Hegel e Heidegger nos ensinaram que, para ultrapassar um pensamento, é
preciso introduzir-se nele e criticá-lo “desde dentro”, que uma “superação” nunca pode ser um processo
externo. Nada impede fazermos o mesmo com os próprios textos de Hegel e de Heidegger.
15

questão da depredação da natureza, é possível que algumas leituras sobre éticas


utilitaristas e deontológicas nos sejam úteis; mas não precisaremos estudar a Teodiceia
de Leibniz nem a procissão plotiniana do Uno nem as provas da existência de Deus de
Anselmo nem a aposta de Pascal. Isto não significa que, se eu conheço por acaso estas
fontes, não possa vir a utilizá-las com proveito em minhas pesquisas; apenas estou
dizendo que essas fontes não são condição prévia indispensável para esse tipo de
trabalho, salvo prova em contrário. Existe a ideia de que estudos dessa natureza, mesmo
sem ter atinência direta ao que se está pesquisando, proporcionam uma espécie de
“exercício” preliminar de pensamento, útil para “disciplinar” o trabalho filosófico.
Poder-se-ia discutir a fundo essa ideia, nada evidente por si mesma, mas podemos
aceitá-la. Ela poderia ser implementada durante, digamos, um par de anos ou durante os
anos de formação; mas não parece razoável prolongar esse “exercício disciplinar” por
mais de 10 ou 20 anos, como costuma acontecer no Brasil (a ideia de sermos “eternos
aprendizes” tem um fundo de verdade; mas aprender não é sinônimo de ler e estudar;
aprender inclui também escrever e pensar de maneira autoral). O que não pode
acontecer é amarrar toda a nossa investigação a uma agenda interminável de leituras;
temos que apreender a operar uma severa seleção do material que nos interessa —
sobretudo nesta época de excesso assustador de informações — para o que nos
propomos pensar. (Ora, se não tivermos nada para pensar, tenderemos a prolongar
indefinidamente a etapa do “exercício disciplinar”, como um atleta que treina durante
décadas para uma luta que jamais acontece).

(7ª) Isto se liga também ao tipo de pesquisador em questão: se formos menos


imaginativos e capazes de tomar decisões intelectuais expressivas, vamos precisar de
mais apoios bibliográficos do que outros investigadores. O que quero dizer é que o
estudo de história da filosofia (só europeia ou mesmo mundial) não é “necessário” num
sentido absoluto, mas sempre num sentido relativo. Os tipos, quantidades e maneiras de
leitura não são as mesmas para qualquer tipo de aluno (esse deveria ser um dado
elementar de qualquer pedagogia filosófica emancipada e emancipadora); nem temos
por que pensar que existem “textos básicos” que ninguém pode desconhecer e pelos
quais todo mundo tem obrigatoriamente de passar (outra ideia com a qual a esmagadora
maioria da comunidade está totalmente de acordo: “não se pode sair de um curso de
filosofia sem ter lido isto ou aquilo”). Segundo a ideologia predominante, os estudantes
16

de filosofia são todos iguais e incapazes de caminhar sozinhos, todo mundo precisa da
mesma quantidade e do mesmo tipo de estudos, e não existe, na massa de estudantes,
um sequer que seja capaz de pensamento competente e criativo sem as muletas
bibliográficas administradas massivamente.

Por outro lado, e ainda com referência aos importantes tópicos (6) e (7) do
Acervo T, creio ser equívoca a afirmação de que as filosofias dos pensadores europeus
decorreram da erudição histórica prévia que possuíam e que só dessa forma suas
filosofias se tornaram possíveis. Isso não é nada evidente, e deveria ser aberta uma
investigação historiográfica para apurar este tópico. Na verdade, os chamados “grandes
filósofos europeus” — que, por outro lado, também apresentam enormes fraquezas e
insuficiências — fizeram leituras bem estratégicas e oportunistas dos autores anteriores,
às vezes muito sumárias e inclusive com erros gritantes (veja o Platão de Aristóteles, o
Descartes de Spinoza, o Spinoza de Nietzsche ou o Kant de Heidegger; todos eles
dariam arrepios a um especialista nesses filósofos). Os “grandes filósofos” abordaram,
sim, um problema apresentado na sua própria circunstância pensante, mas estiveram
longe de conhecer profundamente o status quaestionis dos problemas filosóficos sobre
os que se debruçaram; eles tiveram dos pensadores anteriores não um conhecimento
sólido, erudito e confiável, como hoje se recomenda, mas apenas lhes arrancaram pistas
para formular seus próprios pensamentos14.

Não vejo, pois, as filosofias de Descartes, Leibniz, Kant, Hegel ou Wittgenstein


como eruditas decorrências de uma série de estudos prévios, cuidadosos e completos, de
um acervo de “sólidos conhecimentos” da história da filosofia anterior, tal como
recomendado pelo Acervo T (e Heidegger, o mais erudito dos filósofos do século XX, é
talvez quem mais deturpa tudo o que lê em função do próprio pensamento)15. Isso não
quer dizer que os pensamentos desses filósofos, uma vez realizados, não fiquem
inseridos, de maneira profunda, na época e circunstância em que foram pensados

14
Em seu “Ensaio de autocrítica”, em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche se acusa de ter tentado
exprimir seus próprios pensamentos usando categorias de Schopenhauer, em lugar de ter criado as suas
próprias.
15
Karl Löwith fala do “peculiar monólogo de Heidegger com a tradição filosófica ocidental” (Löwith
2006, p. 159). Diz ainda: “A asserção arrancada dos textos mais diversos é sempre uma e a mesma e
também a do próprio Heidegger” (Id, p. 245, tradução do espanhol minha).
17

(precisamente, em seu “desde” reflexivo). A questão é que o próprio pensador não tem
por que se preocupar com isso; alguma outra pessoa poderá escrever um artigo sobre
essa inserção; o que sustento é que os próprios pensadores não precisam escrever esse
artigo nem ter os conhecimentos sólidos que seu comentador deverá ter. Os pensadores
estão demasiado ocupados perseguindo o fio de seus próprios pensamentos,
profundamente inseridos em sua época de uma maneira que eles mesmos não precisam
compreender16.

O caso de Vilém Flusser — como já o relatei em meu Diário — é sintomático da


situação da filosofia no Brasil. Flusser é exatamente um exemplo de leitura ousada e
apropriadora de autores; ele se baseia, sim, na tradição europeia — que é a sua —;
conhecia várias línguas, era razoavelmente erudito, mas, quando escrevia seus livros —
veja-se Língua e Realidade, Pós-história, A dúvida ou A história do diabo —, seu estilo
fluía livremente e suas referências a autores eram rápidas, sumárias e oportunistas,
funcionais ao próprio pensamento. O resultado não podia ser outro: já na época da sua
longa residência em São Paulo, muitos acadêmicos não o consideraram um filósofo
sério17, e atualmente muitos ainda concordam com isso. Entretanto, Flusser é (junto a
Newton da Costa) um dos únicos filósofos brasileiros (ou quase brasileiro, no seu caso)
hoje discutidos e comentados na Europa, e precisamente um filósofo que não seguiu o
molde do sistema e que, ao contrário, foi rejeitado pelo sistema como não sendo
filósofo. Os casos de Rodolfo Kusch na Argentina ou de Octavio Paz no México podem
ser comparáveis, em estilo, a Vilém Flusser no Brasil18.

16
Num momento de seu artigo, Gabriel Ferreira parece conceder isso ao referir-se a autores
particularmente geniais: “No entanto, o produto da sua sorte ou sua genialidade será julgado ou aferido
pelos leitores justamente em relação àquele depósito que o autor, ele próprio, desconhece” (Ferreira, op.
cit.).
17
“Flusser se recusava a mencionar outros autores, a criar notas de rodapé; também tinha o hábito de
desenvolver uma linha de argumento completamente nova em cada artigo que escrevia. Isso o
desqualificava como acadêmico. Muitos críticos apontavam a abundância de hipóteses e o caráter
especulativo da filosofia de Flusser; enquanto alguns se fascinavam, para outros, isto parecia ser a prova
da falta de seriedade de Flusser” (Andréas Ströhl, “Flusser como pensador europeu”, citado em Cabrera
2013, p. 236, n. 23).
18
Por outro lado, pode ser ilustrativo comparar Flusser, Kusch ou Paz com um pensador tão
perfeitamente enquadrado no Acervo T como Vladimir Safatle. Octavio Paz começa El labirinto de la
18

Além de tudo isso que se pode alegar contra a ideia de um conhecimento


exaustivo como condição necessária — num sentido absoluto — para um filosofar
autoral, o problema é que o sistema atualmente hegemônico — apoiado fortemente nos
pontos (6) e (7) do Acervo T - não investe quase nada naquilo que seria condição
suficiente desse filosofar. Pois, se mesmo os adeptos incondicionais do Acervo T
admitem que o conhecimento da história da filosofia não é suficiente, que ele é apenas
uma etapa prévia e indispensável ao filosofar, por que apostar num interminável preparo
em lugar de propiciar rapidamente as condições suficientes de um filosofar autoral?
Poderiam, por exemplo, ser instaladas nas universidades disciplinas de laboratório de
texto, sem ementa fixa, e outros recursos pedagógicos livres, para que os estudantes
pudessem ter a oportunidade de exercitar seus próprios talentos, tirá-los da timidez
quase doentia em que atualmente se encontram e dar-lhes mais coragem para pensarem
com as próprias cabeças.

soledad assim: “A todos, en algún momento, se nos ha revelado nuestra existencia como algo particular,
intransferible y precioso”. Rodolfo Kusch começa seu clássico América profunda desta forma: “La más
tremenda e inflexible de las formas de opresión es aquella que ejercen las leyes de la naturaleza,
obligándonos a transcurrir en un mundo aparentemente clausurado a las potencias sagradas”. Vilém
Flusser começa seu livro Natural:mente assim: “Duas experiências estão confluindo para formarem o
redemoinho das reflexões a serem relatadas em seguida. A primeira é a última passagem do autor pelo
passo de Fuorn...”. Já Vladimir Safatle começa seu livro Grande Hotel Abismo assim: “‘Poder-se-ia dizer
que o conceito de ‘jogo’ é um conceito de contornos pouco nítidos (vershwommenen Rändern). Mas um
conceito pouco nítido é ainda um conceito? Um retrato difuso (unscharfe) é ainda a imagem de um
homem? Pode-se sempre substituir com vantagem uma imagem difusa por uma imagem nítida? Não é
muitas vezes a difusa aquela de que nós precisamos?’ De certa forma, este livro gostaria de ser
compreendido como uma longa resposta a tais perguntas enunciadas por Wittgenstein”. Enquanto Paz fala
em solidão, Kusch do sagrado e Flusser sobre viagens, Safatle fala sobre Wittgenstein. O que o norteia
em sua reflexão são uma questão wittgensteiniana (retomada nas conclusões) e certas ideias seminais de
Hegel, num exercício de “pensar junto com o autor”. (Ver meu texto “Melancholia: a Filosofia no Brasil
entre a extinção e a nova Alexandria”, em Cabrera 2013, pp. 225-231). Esta é uma das maneiras
hegemônicas e muito celebradas de fazer filosofia no Brasil nos dias de hoje e constitui, sem dúvida, uma
maneira legítima de fazê-la (um estilo que eu chamo de “comentário horizontal”), um tipo de texto
imponente e que fascina. Mas não deveria ser a única forma admitida de desenvolver pensamentos
filosóficos. Deveríamos habitar uma comunidade filosófica onde professores e estudantes pudessem
escolher escrever como Safatle ou Flusser, Kusch ou Octavio Paz.
19

Estas reflexões nos conduzem, aos poucos, à ideia de que a ausência de filósofos
autorais no Brasil e em outros países não é uma contingência, mas um produto
necessário do mecanismo que guia hoje a produção e consumo de conhecimentos
filosóficos. Se essas reflexões estiverem corretas, seria uma miragem esperar por
filósofos a partir de um sistema cujo funcionamento exitoso pressupõe que eles não
podem existir, mas que, ao mesmo tempo, mantém uma falsa expectativa de que eles
poderão surgir precisamente da situação que os bloqueia. É por isso que essa situação é
tão grave: o que importa é livrar os jovens estudantes de um mecanismo que
sistematicamente atua contra si mesmo, mas que propõe em paralelo um discurso que
promete um futuro impossível nos termos do funcionamento do próprio sistema que
implanta essa expectativa.

Talvez fosse melhor admitir abertamente que os departamentos de filosofia não


estão realmente interessados em criar filosofia autoral, mas sim em criar técnicos
competentes transmissores e re-elaboradores de conhecimento filosófico europeu, tarefa
na qual é possível obter grande prestigio e poder. Esta declaração seria perfeitamente
honesta e corresponde ao que de fato acontece19. A vida de um professor de
universidade se transformou em algo extremadamente burocrático e proletarizado, vida
em que ficamos muito ocupados entre aulas, reuniões, comissões e em observar as cada
vez mais numerosas exigências do Ministério da Educação20. Damos nossos cursos a

19
“Quem tem faro poderá afirmar que já sente no ar o repentino despertar de uma filosofia brasileira.
Apenas é muito pouco provável que um tal despertar ocorra nas faculdades de Filosofia (que surgem
quais cogumelos depois da chuva em inúmeras e improváveis cidades), já que lá, como aliás no resto do
mundo, apenas um número crescente de papéis eruditamente impressos enche gavetas. E lá, se surgir e
quando surgir uma verdadeira Filosofia no Brasil, esta será profissionalmente combatida, como cumpre a
toda academia no mundo inteiro” (Flusser 1998, p. 143).
20
“Além das atividades de docência e pesquisa, hoje se exige do pesquisador que faça estágios frequentes
no exterior, organize eventos, participe de congressos e colóquios, profira conferências e ministre cursos
em outras instituições, integre bancas examinadoras, seja agente de divulgação do conhecimento, assuma
cargos administrativos, preste consultoria e assessoria científica, numa palavra, cumpra uma lista
infindável de tarefas as mais diversas. Ao assumir cargos e encargos, ele se vê forçado a desempenhar
múltiplos papéis; e a maioria deles nada tem a ver com o trabalho propriamente intelectual (...) Em face
da premência em atender ao que lhe impõem, o pesquisador não dispõe de tempo e, por vezes, sequer de
desejo, de dedicar-se... à pesquisa” (Marton 2004, p. 147). Também os comentários cáusticos de
20

toda velocidade, os semestres são curtos, os cursos são cada vez mais velozes e
sumários, os alunos se queixam de sair do curso sem saber filosofia, apesar de terem
conseguido, com relativa facilidade, atender aos muitos mecanismos de avaliação.
Muitas vezes se debocha do autodidata que estuda filosofia em casa, mas talvez este
tenha mais tempo e concentração para estudar, refletir e criar, do que os nossos alunos
na universidade submetidos a um “faz-de-conta” burocrático, que não produz muita
coisa além de uma habilitação formal que reproduzirá o mesmo modelo vazio. Afinal de
contas, o aluno sente, acerca da pouca filosofia que conseguirá fazer, que a fará em sua
própria casa e não nas salas de aula ou tomado pela mão de um orientador exausto.

II. O “desde” como circunstância reflexiva, não como mera nação (Segundas
reflexões)

Na seção anterior foram apresentadas algumas reflexões acerca da questão do


“universal”, as quais eram importantes para aplainar o terreno do entendimento da
difícil noção de “pensar desde”. Posso resumi-las assim: mesmo sendo universais, os
pensamentos filosóficos têm uma procedência que os situa; a sua universalidade não é
lesada por isso, mas referenciada a circunstâncias pensantes; se aceitarmos a razão
como historicamente situada, não é absurdo falar em “filosofia alemã” ou “filosofia
brasileira”, se por tal entendermos pensamentos pensados a partir de circunstâncias e
perspectivas (que poderiam ser nomeadas de outras maneiras que não com nomes de
nações); a equação entre o universal e o europeu não faz nenhum sentido na medida em
que o europeu é tão situado quanto o brasileiro ou o etíope; dentro de um ambiente
pluralista, o fato de usarmos autores europeus não mostra que eles sejam os únicos
genuinamente universais, porque os usamos (ou deveríamos usá-los) em meio a outras
fontes e sempre de maneira apropriadora, nunca meramente repetitiva; os pensadores
brasileiros já pensaram universalmente e, se eles não recebem reconhecimento
internacional, isso se deve mais a questões de política cultural do que de estrito mérito
filosófico; e a universalidade, a qualidade e o rigor filosóficos não dependem de

Schopenhauer sobre a filosofia alemã paga pelo Estado (“filosofia ministerial”) conservam ainda bastante
do seu vigor.
21

maneira absoluta, mas relativa, do conhecimento histórico adquirido (e muito menos do


conhecimento só de fontes filosóficas europeias).

Nesta segunda rodada de arguições, pretendo enfatizar mais o outro lado da


questão: não mais a universalidade das ideias filosóficas (nunca negada, ao menos como
pretensão), mas o que antes chamei de procedência dos pensamentos filosóficos ou seus
aferentes, tentando mostrar como esta procedência não se reduz ao “nacional”, embora
mantenha relações históricas inevitáveis com o local onde se nasce. É neste ponto que
nos deparamos com as maiores incompreensões. Como ilustração disto, posso lembrar o
começo do comentário à minha entrevista feito por Gabriel Ferreira: “De fato, também
não foi a primeira vez que travei contato com seu trabalho [o meu] de longa data acerca
de uma ‘filosofia brasileira’ ou ‘desde o Brasil’” (grifo meu). Resulta desanimador que
se contabilizem como sinônimas duas expressões cuja tentativa de distinção me custou
várias páginas do Diário. A minha reflexão começa na página 28 desse livro, com uma
distinção tripla entre “filosofia brasileira”, “filosofia no Brasil” e “filosofia desde o
Brasil”, e a explicação das diferenças chega até a página 30. Precisamente eu nego que
tenha sentido falar de algo como “filosofia brasileira” e defendo a ideia de um “pensar
desde o Brasil”. Mas, se o que escrevemos não será sequer lido, e se será tratada como
uma só e mesma coisa aquilo que se tenta distinguir, as discussões filosóficas não
avançam.

Mas incompreensões mútuas podem ajudar a entender o andar de um debate, e


por isso pretendo utilizar nesta segunda seção outras afirmações de Gabriel Ferreira,
porque nelas aparecem praticamente todas as características do Acervo T; de maneira
que a tentativa de respondê-las servirá para esclarecer melhor os pontos centrais. Seu
texto está escrito num tom ao mesmo tempo polêmico e cooperativo que deveria ser
corriqueiro em discussões filosóficas; entretanto, esse tom cordial, que o leva a elogiar
algumas das minhas críticas, oculta divergências profundas: apesar das aparências, não
nos incomodam as mesmas coisas nem estamos fazendo as mesmas reivindicações.
Tentarei mostrar isso com o mesmo tom cordial e respeitoso, embora, por vezes,
irônico.

Algumas das perplexidades acerca da noção de “pensar desde” sentidas pelo


convicto do Acervo T são bastante usuais e aparecem claramente no texto de Ferreira:
22

“(...) qual seja o significado de uma agenda filosófica estritamente brasileira


ou latino-americana não fica claro na fala de Cabrera. A meu ver, a
dificuldade em definir o significado de uma agenda filosófica ‘a partir’ do
Brasil ou da América Latina advém do fato de que mesmo o significado de
uma agenda filosófica ‘a partir’ da Alemanha, da França ou da Grécia
também não é fácil de encontrar (...)”.

Falando em filósofos europeus como Leibniz, Kant ou Hegel:

“Por mais que possamos dizer que todos eles atualizam uma agenda
‘eurocêntrica’, seria difícil, senão impossível, pretender dizer, por exemplo,
que Kant, com a sua dedução transcendental das categorias, não estivesse
intentando afirmar algo acerca de qualquer sujeito cognoscente
independentemente da nacionalidade ou que Sartre não pretendesse
igualmente expor uma estrutura de abertura existencial predicável a toda e
qualquer instância existente, sem maiores determinações”.

Acredito ter fornecido, na seção anterior, numerosos elementos argumentativos


que respondem a grande parte destas perplexidades, e eu esperaria, neste ponto da
arguição, que o adepto do Acervo T tentasse responder ao que coloquei anteriormente
ponto por ponto. É assim que uma discussão filosófica se torna produtiva. De todo
modo, proponho-me aqui, nesta segunda rodada, a acrescentar mais elementos de juízo
para entender adequadamente a noção de um “filosofar desde” como remissão aos
aferentes de afirmações filosóficas.

Parece-me que uma dificuldade inicial da comunicação reside em que se parte já


da noção perfeitamente definida e restrita de “filosofia” aceita hoje nas universidades e
programas de pesquisa: “reflexão de caráter teórico acerca de problemas definidos
dentro da tradição ocidental e expostos de maneira argumentativa”. Isto exclui questões
de política prática, deixa de lado outras tradições de pensamento e proíbe estilos
narrativos. A “definição de trabalho” proposta por Ferreira em seu comentário transita
pelas mesmas veredas: “Um filósofo é alguém que foi pelo menos capaz de identificar
um problema filosófico e situar o seu próprio tratamento, análise ou resposta frente
ao status quæstionis desse mesmo problema”. A primeira parte desta definição parece
circular (dizer que um filósofo é alguém capaz de identificar problemas filosóficos
23

utiliza na definição o conceito que não entendemos; se alguém não sabe o que seja
numismático, de pouco servirá defini-lo dizendo que se trata de alguém que foi pelo
menos capaz de identificar um problema numismático). A segunda parte da definição
pressupõe a existência de problemas filosóficos objetivos e universais (todos de origem
europeia), que já estão sendo discutidos pelos estudiosos do mundo todo e que se
encontram num certo status questionis no qual nós deveríamos tentar nos inserir por
meio de “contribuições”.

É claro que, assumindo essa “definição de trabalho”, a discussão sobre filosofia


desde o Brasil nem sequer começa, já que obriga a aceitar de início e sem discussão
precisamente uma boa porção do que está sendo posto em dúvida. Essa definição nunca
se pergunta pela origem genealógica desses problemas, de onde eles surgiram, de onde e
como adquiriram a sua universalidade etc., ou seja, torna impossível colocar sequer a
questão do “desde” reflexivo ou pensante. Tudo isto tem pouco a ver com a noção de
filosofia com a qual trabalho na minha reflexão sobre filosofia no Brasil21. De fato,
minha atitude geral diante da questão do que seja filosofia é profundamente contrária ao
Acervo T, que prefere definir filosofia de maneira muito específica, e que teme muito
que filosofia passe a significar “qualquer coisa”. (Este é um dos receios mais típicos do
professor universitário brasileiro.) Pelo contrário, tento deixar a filosofia com a menor
quantidade de definição possível, baseando-me no fato de que os próprios filósofos
europeus (e não apenas eles) produziram, com o nome de filosofia, todo tipo de texto,
desde os rigorosos e impessoais artigos de Rudolf Carnap até as peças literárias e
autobiográficas de Sören Kierkegaard. Essa história é rica em estilos expositivos
diversos, desde o poema filosófico e o diálogo até o aforismo, o tratado, o ensaio e o
panfleto. Se definirmos filosofia como o que Kierkegaard fez, deixaremos de fora

21
Cf. Cabrera 2013, pp. 20-27. Em virtude da minha atual concepção da argumentação filosófica, que
retomarei no final deste trabalho, a única coisa que temos em filosofia são posturas que podem ser
justificadas de diferentes maneiras, e não, em absoluto, posturas que refutam e eliminam outras. Essas
posturas incluem definições de termos cruciais. Não estou reivindicando a minha definição de filosofia
como a única correta (e gostaria que meus adversários tampouco o reivindicassem para suas próprias
concepções), mas apenas apresentando-a como razoável e como geradora de frutíferas consequências; ao
mesmo tempo, mostro os perigos das outras definições, mas sem negar-lhes seu direito de serem
colocadas na discussão. (Cf. Cabrera 2009, Parte IV).
24

Carnap e vice-versa. Parece melhor deixar o termo operando em sua máxima e mais
exuberante amplitude.

Como a noção acadêmica de “filosofia” exclui qualquer forma de práxis política


(fato curioso, porque Marx e Engels são admitidos nas histórias oficiais da filosofia), ao
conceber as atividades filosóficas como teóricas e especulativas, sem qualquer
obrigação ou tarefa social22, os “universalistas” adeptos ao Acervo T acabam fazendo
diagnósticos ingênuos sobre algumas questões cruciais sobre filosofia no Brasil. A
negligência das mediações políticas, ligada à crença na existência de um patamar
“estritamente filosófico” incontaminado de política, liga-se, por exemplo, ao
diagnóstico acerca da “comunidade de comentadores” no Brasil. Gabriel Ferreira nega
importância à minha disjunção entre grandes comentadores e pequenos filósofos23
alegando que mais importante seria notar que no Brasil nem sequer temos grandes
comentadores. Aqui há uma discordância factual. Na minha percepção, o Brasil já
atingiu um excelente nível acadêmico no que se refere a exegese, comentário e
interpretação do acervo filosófico europeu, dentro de um sistema de pós-graduação que,
se não me engano, é o melhor da América Latina, tanto no que se refere à organização
quanto à quantidade de trabalhos de alta qualidade desse tipo. Análises das obras de
Kant, Spinoza, Wittgenstein, dos clássicos gregos, de Nietzsche, Heidegger, filosofia
francesa contemporânea, para nomear uns poucos, atingiram, em minha apreciação, um
alto nível de qualidade em períodos amplos e de forma constante. Os Cadernos
Nietzsche de São Paulo podem ser um belo exemplo, entre muitos outros, da excelência
e continuidade deste tipo de trabalho. Assistindo aos encontros Anpof, em nenhuma das
sessões escutaremos trabalhos mal feitos, mal estruturados ou mal fundamentados em
suas respectivas literaturas especializadas, lidas criteriosamente em suas línguas

22
É curioso observar que, no Brasil, é bastante frequente que professores de filosofia apareçam na TV ou
nos jornais defendendo alguma causa social ou política (sobre saúde, educação etc.); mas isso é uma
atividade “não estritamente filosófica” no sentido deles; quando lemos os textos desses professores, eles
são comedidamente teóricos e eruditos. “Não é a própria filosofia que ocupa o espaço público, mas
pessoas que, ao discutir assuntos diversos, os temperam no molho da filosofia e, assim, conseguem ter
uma determinada audiência. (...) Como Marilena Chauí, Paulo Arantes, Bento Prado Jr. Eles são
intelectuais que têm importância não pela filosofia que fazem, mas por participar de um certo debate
cultural e político” (José Arthur Gianotti em Nobre e Rego 2000, p. 99).
23
Cf. Cabrera 2013, pp. 79-91.
25

originais. Podemos discordar desta ou daquela interpretação, mas surpreende, em todo


caso, a sofisticação, profundidade e cuidado formal dos trabalhos apresentados. Posso
pecar por otimismo, mas não creio que existam no Brasil, no momento atual, “pequenos
comentadores”. Mesmo os estudantes que apresentam trabalhos, embora dentro de suas
compreensíveis limitações, se preocupam em construir trabalhos bem articulados e bem
documentados.

De onde vem então a ideia de que os comentadores brasileiros não atingiram


ainda um alto nível de excelência? Ferreira explica assim:

“(...) nossa universidade não conseguiu cumprir com excelência nem mesmo
a tarefa de “produção” dessa massa de comentadores hábeis em outros
idiomas, com penetração e participação ativa no debate internacional junto
a outros comentadores (...) O que aqui me interessa ressaltar é o fenômeno
da incipiência, em grande parte das vezes, dos nossos comentadores (que,
dado o rigor e a cobrança do “sistema”, deveriam estar entre os melhores,
quiçá, do mundo)”.

Ele baseia seu diagnóstico no fato de os comentadores brasileiros não serem


chamados a participar das grandes discussões internacionais; ele vê isso como uma pura
questão de “qualidade”: os trabalhos de pesquisadores brasileiros não participam das
discussões internacionais porque ainda não atingiram um nível adequado de
“excelência”; esses pesquisadores, portanto, precisam continuar estudando para algum
dia participar delas. Se for correta a minha ideia de que o Brasil já atingiu há muito
tempo um alto nível de excelência no que se refere a comentário e interpretação de
autores e temáticas europeias, o fato de eles não estarem participando das discussões
internacionais sobre Kant, Wittgenstein etc., de não serem citados, comentados etc., não
se explicaria pela sua pretensa “falta de qualidade”, mas, precisamente, pelos motivos
políticos que a comunidade se recusa a detectar, especialmente na base do item (4) do
Acervo T. (Uma coisa é politizar totalmente a filosofia — como fizeram e fazem alguns
marxismos e “teologias da libertação” —, mas outro extremo igualmente criticável é
despojar totalmente a filosofia de qualquer dimensão política).

Como as mediações sociais e políticas não são consideradas na análise de


fenômenos como o não-reconhecimento da excelência dos comentadores brasileiros nas
26

discussões internacionais, a explicação que resta é que essa “excelência”, na verdade,


ainda não foi atingida. Mas essa “explicação” pode renovar-se indefinidamente: qual é o
ponto objetivo em que poderemos dizer: “já atingi o nível suficiente de excelência”? Na
Lógica informal, isso é conhecido como a falácia self-sealer (de selamento), que
consiste num argumento que se “sela” a si mesmo sem poder mais ser refutado; é o caso
do argumento que diz: “não somos reconhecidos porque não atingimos ainda o grau
suficiente de qualidade”. Quando alguém replica: “mas X já tem qualidade e não é
aceito internacionalmente”, pretendendo ter derrubado o argumento, a resposta falaciosa
é: “acontece que X ainda não atingiu o nível de qualidade para ser reconhecido”; e isso
se pode reiterar em qualquer ponto do interminável processo de melhoramento.

Se o acúmulo de conhecimentos for, como está estabelecido, condição


absolutamente necessária para fazer filosofia autoral, mas se aquele acúmulo não for
ainda suficiente no momento t (seja qual for t), consegue-se com isso adiar de maneira
indefinida o momento (talvez traumático?) em que, dadas todas as condições de
“excelência” do bom comentário, teríamos, sem mais desculpas nem delongas, que
filosofar com nossas cabeças. Gabriel Ferreira é representativo da comunidade quando
se mostra pouco preocupado pelas demoras desse adiamento (“Se esse ‘momento de
preparação’ é feito em cinco ou em 50 anos, pouco importa”). É claro que, para quem
está confortavelmente instalado na aquisição de conhecimentos como condição
necessária da difícil filosofia autoral, não importará adiar esse momento para quando
todos já estivermos mortos. Esse preparo interminável, que os professores não têm
qualquer pressa em concluir (pelo contrário), é atormentador para o jovem filósofo que
gostaria rapidamente de concluir seus estudos mínimos e passar a escrever seus próprios
textos, aqueles que os departamentos de filosofia, em geral, desestimulam24.

24
Outro ponto em que essa atitude de assepsia política é evidente é a questão das línguas. A escolha do
inglês como simples “língua científica universal” é vista como ato inocente, apenas pragmaticamente útil;
isso supõe que as linguagens são apenas veículos neutros e inertes de comunicação. Mas, quando falamos
e escrevemos em inglês, não estamos apenas lançando mão de um recurso inofensivo de comunicação;
também estamos sendo imersos numa maneira de articular conceitos e perspectivas sobre o mundo. (Cf.
Flusser 2004, onde o autor desenvolve a ideia das línguas abrirem mundos diferentes). Línguas diversas
mostram diferentes possibilidades conceituais: o filósofo ganiano Kwasi Wiredu “afirma que na cultura e
língua Akan, do Gana, não é possível traduzir o preceito cartesiano ‘cogito ergo sum’. (...) A razão é que
não há palavras para exprimir tal ideia” (Santos, op.cit, p. 62). O filósofo kenyano Dismas Masolo refere-
27

Neste ponto da reflexão, deve ficar claro que a questão do “desde”, vivida por
outros países apenas como a sua circunstância existencial e pensante, constitui, pelo
contrário, uma premente reivindicação em setores do planeta cujo trabalho filosófico
não está sendo considerado, como acontece com os pensadores latino-americanos
(mesmo com os que se dedicam com afinco a comentar e a difundir a filosofia
europeia)25. Trata-se de uma tarefa política talvez indesejável, mas que os excluídos nos
vemos obrigados a empreender, numa tentativa de abrir espaço para os nossos
pensamentos. Atualmente, os pesquisadores latino-americanos somos funcionários de
pensamentos vindos de outras perspectivas; somos considerados apenas mão de obra
intelectual e consumidores e divulgadores de pensamento europeu. Podemos concordar

se à ideia de Wiredu de que “...a teoria da correspondência da verdade, tal como a conhecemos em
português, seria, no mínimo, desajeitada em língua Twi, pelo que nem sequer se coloca” (Idem, p. 323).
Parece óbvio que a multiplicidade de línguas mostra que construções culturais como o cogito ou a teoria
da verdade como correspondência dependem de seus próprios “desde” histórico-existenciais e não se
aplicam a toda a humanidade (a não ser através de atos políticos de dominação aceitos pelos próprios
afetados). Ainda sobre esta questão das línguas, Pedro Argolo (de Brasília) me pergunta, numa
comunicação particular, se meus receios a respeito do uso do inglês não nos fecharia as portas para a
vasta literatura pós-colonial (Spivak, Said, Paul Gilroy, Hommi Bhabba etc.), toda ela escrita em inglês, o
que nos impediria intercambiar com eles ricas experiências emancipadoras (das que me ocuparei mais
adiante). Ele faz ver as enormes semelhanças entre obras como Orientalismo de Said e A invenção de
América Latina de Mignolo, ou entre essas e a obra do mexicano Edmundo O’Gorman. Eu respondo que
precisamos aprender outras línguas para tomar conhecimento de elementos que podem ser importantes
para nosso desenvolvimento e emancipação intelectuais, mas que esse estudo de línguas não pode ser
feito sem determinadas condições, como é feito atualmente. Seria necessário averiguar se os autores
desses trabalhos levam em consideração os intelectuais latino-americanos e seus problemas, se fazem
esforços para aprender espanhol etc. O desafio seria poder manter-se no plano meramente instrumental
sem absorver as estruturas dominadoras das línguas em que nos adentramos. Sobretudo não cair na
ingenuidade de pensar que uma “língua científica” é um território neutro e incontaminado pelo qual
podemos transitar à vontade.
25
“Quantos filhos periféricos de Heidegger, Carnap, Sartre ou Quine, entre outros, desempenharam com
probidade as ‘obrigações filiais’ sem que o ‘pai’ tenha sequer tomado conhecimento da sua existência
nem lhe preocupe detectá-la? A falta de correspondência não afeta o filósofo periférico; para ele é
suficiente experimentar a sensação de pertencer ao mundo filosófico que respeita” (Rabossi 2008, p. 104,
tradução minha do espanhol. Esse livro é de indispensável tradução ao português). Rabossi denomina os
filósofos periféricos de “advogados” dos grandes pensadores europeus. (No país do futebol, poder-se-ia
falar também, com ironia cordial, de seus “torcedores”).
28

que priorizar as questões políticas não é o ideal, mas é algo que somos obrigados a fazer
numa situação em que somente a luta política pode abrir espaços que, de outra forma,
continuariam fechados. A isto chamo insurgência do pensamento; não podemos apenas
surgir, mas temos que nos in-surgir contra o que nos impede de ganhar visibilidade.

Quero agora entrar no cerne mesmo da noção de “filosofar desde”. Essa


procedência ou “aferência” dos pensamentos não é, como foi dito, algo de “nacional”,
no sentido de não reduzir-se a isso; não quer dizer que o lugar de nascimento, como fato
existencial radical, não seja uma parte — mesmo que mínima — do “desde”. O
nascimento é um fato brutal e gratuito26, mas, apesar disso, o lugar específico onde esse
fato primordial acontece deixa marcas em nossa futura maneira de pensar e de instalar-
nos no mundo; de certa forma, salvo o caso de você ser um estrangeiro camusiano,
todos os nossos esforços futuros serão de tentar, de alguma forma a posteriori, tornar
necessário ou, pelo menos, significativo aquele fato primordial perfeitamente absurdo;
importa, pois, a partir de onde este processo de ressignificação for operado. O local de
nascimento como centro organizador faz parte das circunstâncias pensantes, mas não as
esgota. O “desde o Brasil” não é apenas uma referência nacional, mas uma circunstância
existencial-histórica, vinculada à particular configuração do mundo que fazemos quando
o vemos desde a América do Sul e não desde a Etiópia ou o Canadá. Nomes como
“Brasil”, “Israel” ou “Paris” não aludem, pois, a nações, mas a perspectivas de
organização do mundo. Embora faça algum sentido declarar que, num mundo
globalizado, a ideia restrita de nação se dilui, pode ser falacioso dizer que a globalização
suprime perspectivas e circunstâncias a partir das quais essa globalização vai ser vivida
e pensada.

Mas o “desde” não é apenas o lugar onde nascemos, se entendido como uma
espécie de determinante; pois o lugar gratuito do nascimento é também um lugar que
pode, pura e simplesmente, ser mantido como referência longínqua, ou mesmo
abandonado, como serão, inevitavelmente, diversas maneiras de usá-lo como centro
organizador. Sendo o “desde” histórico-existencial, “Brasil” não é um mero “país”, mas
uma referência que se pode assumir fanaticamente, manter como referencial mais ou

26
O filósofo gaúcho Ricardo Timm de Sousa tem oferecido uma das melhores descrições do “espasmo do
nascimento”, em seu livro Sobre a construção do sentido (São Paulo: Perspectiva, 2003), pp. 25-29.
29

menos marcante ou simplesmente ignorar. O escritor turco Orhan Pamuk expressou isso
muito bem comparando seu próprio caso com o de outros escritores famosos:

“Há autores como Conrad, Nabokov ou Naipaul, que conseguiram escrever


com sucesso mudando de língua, de nação, de cultura, de país, de continente
e inclusive de civilização. E sei que, da mesma forma que a sua identidade
criativa ganhou força com o desterro ou a emigração, aquilo que a mim me
determinou tem sido ficar ligado à mesma casa, à mesma rua, à mesma
paisagem, à mesma cidade. Essa dependência de Istambul significa que o
destino da cidade era o meu porque foi ela que formou meu caráter”
(Istambul, cap. I).

Assim, a nação não é determinante, mas importa a atitude existencial assumida


diante dela: alguns conseguem deixá-la totalmente de lado, outros ficam retidos a ela de
maneira tirânica, e há todas as gamas possíveis entre estes dois extremos. (Em meu caso
particular, nascer na Argentina não me determinou nem tirou a minha liberdade, mas
sim me obrigou a ser livre em relação a Córdoba, e não a Istambul)27.

“Desde o Brasil” significa então, inicialmente, duas coisas: o local de


nascimento e aquilo que fazemos com ele, todas as experiências decorrentes de certa
organização do mundo, mesmo que essa organização nos leve a sair para sempre do
nosso país de nascimento, assumir outra nacionalidade e nunca mais regressar (como foi
o caso de Matias Aires com o Brasil). Nem por isso o nosso lugar existencial-histórico
de organização poderá ser ignorado como perspectiva. Além disso, em cada
circunstância do nascimento há uma série de fatos históricos diante dos quais teremos
forçosamente que nos posicionar; somos gratuitamente lançados num lugar que tem um

27
Cf. “Meu pessimismo nasceu em Córdoba, como eu?” (http://filosofojuliocabrera.blogspot.com/). É
claro que caberia aqui uma muito proveitosa devoração oswaldiana da análise da “situação” de Sartre em
O ser e o nada. Ele analisa a situação em cinco itens (meu lugar, meus arredores, meu passado, meu
próximo, minha morte), mostrando precisamente o “desde” humano, não como procedência objetiva ou
coisal (como pode ser o “nacional”), mas como uma referência que devo, sempre e inevitavelmente,
destruir (ou “nadificar”, nos termos sartreanos). A morte, em particular, constitui como a compensação
existencial do nascimento; podemos ser céticos a respeito de um “desde” o nascimento, mas é muito mais
difícil sê-lo a respeito da morte: é evidente que não se morre da mesma forma em Paris, em Israel, no
nordeste brasileiro ou no Canadá.
30

passado, diferente de outros, e herdamos esse passado, não como estigma, mas sim
como algo diante do qual temos que tomar uma atitude, seja qual for. (O passado é,
lembremos, um dos cinco patamares em que Sartre analisa a situação humana). Aqui
chegamos num ponto crucial: os que fomos gratuitamente jogados na América Latina
— em lugar de ser lançados, por exemplo, na Alemanha ou nos EUA — aparecemos
num lugar que foi historicamente colônia de outros países. Isso não significa apenas ser
uma cultura dependente, mas uma cultura que nasceu de uma invasão intercontinental,
de um processo de expansão e ocupação particularmente violentas de terras, que incluiu
a dizimação de culturas autóctones e o desrespeito por todas as articulações culturais
que aí estavam desde muitos séculos antes28. Houve a partir daí um lento processo de
assimilação racial, de tal forma que nós, atuais descendentes de colonos espanhóis e
portugueses, já não mostramos em nossas peles nenhum rasto da cultura dominada
(embora o garçom que nos serve a comida ou o menino que enche o tanque de gasolina
ainda o apresente).

O Brasil é um país colonizado pelos portugueses; a França não é um país


colonizado pelos portugueses; a França é um país que entrou em conflito com os
portugueses durante o processo de colonização; são, pois, dois “desde” diferentes, dois
centros diferentes de organização de complexos elementos sociais, históricos e culturais.
Como brasileiros, argentinos ou colombianos, nascemos numa situação que começa
com uma invasão, continua com um processo de colonização econômica e cultural
baseado no despojo; segue-se a ocorrência de independências promovidas — quase
todas no século XIX — pelas elites de cada país em decorrência de novas
reorganizações de poder no mundo da época (Espanha e Portugal são postas de lado e
França e Inglaterra, e depois os EUA, tomam o lugar de potências hegemônicas), até
chegar a época atual, onde continuamos sendo países subalternos e dependentes, tanto
econômica quanto culturalmente (ou, dito no jargão do progresso, “subdesenvolvidos”
ou “em vias de desenvolvimento” ). O fato crucial é que a dependência não é coisa do
passado no “desde” latino-americano; dezenas de grandes intelectuais brasileiros,
economistas (Teotônio dos Santos), sociólogos (Florestan Fernandes), pedagogos
(Paulo Freire), antropólogos (Darcy Ribeiro) e geógrafos (Milton Santos), já mostraram

28
Cf. Todorov 2010, particularmente o capítulo 3, curiosamente chamado “Amar”.
31

suficientemente que a dependência econômica e cultural brasileira não é “coisa do


passado”, mas continua viva e atuante agora em novas formas adequadas aos tempos.

Filósofos não figuram nessa lista de intelectuais, precisamente, em parte, ao


menos, pela poderosa força da ideologia da “universalidade” entendida no usual sentido
abstrato, segundo a qual cabe ao filósofo debruçar-se sobre problemas “estritamente
filosóficos” (que, como sabemos, são apenas o estudo do aparato transcendental
kantiano, a procissão do Uno de Plotino e a identificação de indivíduos através de
mundos possíveis), e não sobre fatos particulares, objeto das ciências empíricas.
Entretanto, é nos departamentos de filosofia que assistimos a uma das mais claras
amostras de dependência cultural: a presença quase que exclusiva de pensadores
europeus (e norte-americanos) nos curricula de filosofia, de pensamentos dos países
economicamente hegemônicos no mundo; pensadores nacionais e latino-americanos (e
africanos) não são estudados, a não ser a passos lentos e em disciplinas especiais que
custa bastante criar e depois manter diante da enorme força (e do ceticismo dos colegas)
da constituição eurocêntrica dos departamentos de filosofia, sempre apoiada nos
discutíveis critérios da “qualidade” e do “rigor”. De longe, os filósofos hispano-
americanos têm sido mais lúcidos que os filósofos brasileiros no tocante à denúncia da
dominação e exclusão cultural, tarefa que, no Brasil, como vimos, foi feita muito mais
por grandes antropólogos, sociólogos, geógrafos e educadores do que pelos seus
“filósofos profissionais”. (De fato, não existe no mundo nenhum filósofo profissional,
formado pelo sistema atual, que seja tão conhecido e discutido no exterior como, por
exemplo, Paulo Freire ou Eduardo Viveiros de Castro). Nessa literatura hispano-
americana, a situação de dependência filosófica é visualizada em dois registros
principais:

(a) No estudo exclusivo de problemáticas oriundas da filosofia europeia,


deixando de lado (ou melhor, simplesmente nem tomando conhecimento de) uma
imensa gama de outros problemas filosóficos que surgem diretamente da reflexão desde
a América Latina e que não são apresentados ao estudante brasileiro de filosofia. Trata-
se de uma espécie de “ocupação do espaço acadêmico”. (Chamarei isso de dominação
formal).
32

(b) As próprias atitudes, categorias, temáticas e seus modos de abordagem por


parte de filosofias europeias mostrariam elementos dominadores e colonizadores; não se
trata apenas de ocupação do espaço impedindo temáticas outras, mas da apresentação de
conteúdos especificamente colonizadores. (Chamarei isso de dominação temática).

Num viés emancipador, a primeira forma de dominação deveria ser combatida


mostrando aos estudantes o imenso universo problemático atualmente discutido em
países hispano-americanos e que é regularmente dispensado nos estudos filosóficos
brasileiros normais (estando presentes apenas em grupos de estudo específicos que
começam a surgir atualmente)29. A segunda forma de dominação deveria ser combatida
desmontando os elementos colonizadores das formulações, temáticas e metodologias
europeias, dentro de uma maneira nova de ler filosofia que se caracterizaria por não
deixar ao texto o papel de sujeito da enunciação, tentando tirar dos pensadores europeus
seus subsídios emancipadores e dispensando seus elementos colonizadores.

Atentando à primeira forma de dominação, algumas problemáticas oriundas de


uma reflexão desde a América Latina são, por exemplo, as seguintes: (1) a própria
questão da possibilidade de um filosofar latino-americano, que teve a famosa polêmica
entre Leopoldo Zea e Augusto Salazar Bondy como seu centro irradiador; (2) a

29
O IFIL — Instituto de Filosofia da Libertação — foi fundado em 1995, em Curitiba, e atualmente é
liderado por Euclides Mance (autor de várias entradas na coletânea de Pensamento Filosófico Latino-
americano organizada por Dussel). O IFIL mantém parcerias com outros grupos semelhantes: AFYL —
Associación de Filosofia y Liberación; AFLA — Associação de Filosofia Latino-Americana; NEFILAM
— Núcleo de Estudos sobre Filosofia Latino-Americana; CEFIL — Centro de Estudos e Pesquisas de
Filosofia Latino-Americana e RBSES — Rede Brasileira de Sócio-Economia Solidária, entre outros.
Estes centros desenvolvem suas atividades heroicamente, enfrentando todo tipo de dificuldades. É curioso
que a filosofia da libertação, um movimento de finais dos anos 60 e inícios dos 70, que já mereceu
congressos em todos os países latino-americanos, teve seu “Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia da
Libertação” somente em 2013! Um imenso número de professores de filosofia do Brasil, adeptos do
Acervo T, continua tendo enorme cautela a respeito deste movimento. Aqui deve ser entendido que o
reconhecimento da filosofia da libertação como movimento filosófico oriundo de América Latina, de
significativa projeção internacional, independe da posição que assumamos diante do mesmo. Eu tenho
muitas objeções a este movimento (mantive veementes discussões com Dussel, recolhidas na revista
Dianoia, do México), o que não me impede de reconhecer-lhe a sua importância. Constantemente, em
nossa comunidade se confundem essas duas coisas.
33

dimensão prática da filosofia (ou filo-práxis), tema fundamental para enfrentar as


objeções corriqueiras de confundir o “estritamente filosófico” com o “político”; (3) a
questão da identidade e da autenticidade; (4) a passagem do colonialismo para a
colonialidade; (5) a categoria de “vítima” e as diferenças entre vítimas externas e
internas aos sistemas de dominação; (6) as condições éticas e epistêmicas da liberação
das vítimas; (7) as leituras apropriadoras de filosofias europeias; (8) as relações entre a
história das ideias e a história oficial da filosofia; (9) a questão indígena; a reivindicação
de culturas diante do capitalismo globalizado no que tange à questão do humano e da
barbárie; (10) a questão da Utopia; (11) a temporalidade e a memória; temporalidade da
conquista e temporalidade da liberação; (12) a questão intercultural diante da atual
imposição de culturas hegemônicas; (13) a filosofia da modernidade, como reflexão
acerca do significado do processo da modernidade para a América Latina; modernidade
e colonialidade; a questão do “progresso” e seus custos; a relação com o pós-
modernismo europeu; (14) a questão da cultura popular diante do processo da
modernidade; (15) a literatura latino-americana e a filosofia, a ruptura estética; (16)
concretude e universalidade; (17) a questão de uma educação para a emancipação; (18)
mundos alternativos; a significação do dictum “outro mundo é possível”; (19) as
sucessivas fundações da filosofia latino-americana (ameríndia, hispânica, indiana,
republicana, latino-americanista, normalizadora, liberadora e intercultural)30; (20)
pensamento pós-colonial e de-colonial, antigo e atual, e pensamento liminar
(“fronterizo”); (21) pensamento africano e caribenho; (22) elementos sacrificiais do
humano nas culturas; (23) a violência e a liberação, formas modernas de injustiça; (24)
descobrimento e encobrimento da América; (25) africanismo, orientalismo e latino-
americanismo; (26) genocídio: governar como despovoar e matar; (27) a questão da
nomeação como ato de poder; (28) dialética e analéctica; (29) a questão da
cotidianidade indígena; (30) a questão da mestiçagem e a construção da identidade31;
(31) resistência e desobediência epistêmica; (32) colonialidade do ser; estudos de
ontologia desde a América Latina à luz da diferença ser-estar.

30
Cfr. Leonardo Tovar, “Las fundaciones de la filosofía latino-americana”, em Bohórquez, Dussel e
Mendieta 2011, pp. 255-261.

31
Para este tema tão importante para o Brasil, ver o excelente artigo de Kabengele Munanga,
“Mestiçagem como símbolo da identidade brasileira”, em: Meneses e Santos 2010, pp. 444-454.
34

Isto é apenas uma seleção dos principais temas que constituiriam uma “agenda
latino-americana” de filosofia. Ela é universal, já que sofrimento, dominação, exclusão
e emancipação são temas humanos universais, tanto como a estrutura do conhecimento
ou da existência, mas são temas pensados desde uma circunstância ou situação de
dominação secular, atualmente operada por agentes locais mais do que por agentes
externos. Não são questões meramente “políticas”, porque exigem uma elaboração
conceitual e histórica muito sofisticada. (É preciso ler algumas das obras seminais
indicadas mais adiante). O acadêmico universalista, quando passa os olhos por estas
problemáticas, já dirá que elas nada têm de especificamente “latino-americanas”, por
serem questões também tratadas por pensadores europeus. Bem, isso é simplesmente
falso. Algumas destas problemáticas têm sido, sim, de interesse do pensamento europeu
(como, por exemplo, a dimensão prática da filosofia; a liberdade, a temporalidade e a
memória; a autenticidade, concretude e universalidade; a justiça; a violência; a utopia
etc.); mas a abordagem latino-americana destas questões é sempre sui generis; por
exemplo, não se trata de filosofar sobre a “liberdade”, num sentido cartesiano ou
kantiano, mas sobre “liberação”, que não é apenas um conceito totalmente diferente de
“liberdade”, mas que a ela se opõe (liberação é, entre outras coisas, liberar-se dessas
concepções de “liberdade”). Da mesma forma, quando se fala em “justiça”, trata-se não
de uma justiça meramente distributiva de bens dentro do sistema, mas de justiça radical,
no sentido de contestar o próprio princípio de distribuição de bens em suas bases; e
assim nos outros casos, de maneira que só em aparência as temáticas são as mesmas.

Por outro lado, a imensa maioria destes problemas é de interesse particularmente


latino-americano, tais como as possibilidades de um pensar desde a América Latina, a
questão indígena, a passagem do colonialismo para a colonialidade, o conceito de uma
vítima externa ao sistema (as éticas europeias apenas se ocupam das vítimas internas), a
temporalidade da conquista, o encobrimento da América, os mundos alternativos, o
genocídio; estes não apenas não são problemas tratados por europeus, mas muitos deles
lhes são absolutamente tabu, porque mexem com as próprias bases do “processo
civilizatório” do qual agora se pretende que os latino-americanos participemos, o que
pressupõe um tipo particular de memória (ou de falta dela) dentro de uma temporalidade
colonizadora. É evidente que estes problemas não serão jamais colocados pelos
europeus (nem pelos seus advogados regionais latino-americanos), porque contestam a
35

sua própria hegemonia e colocam na mesa aquilo que jamais deveria ser mencionado: a
incrível violência do “processo civilizador”.

O acadêmico universalista dirá: “Nada nos impede de estudar também estas


temáticas e autores; basta que eles apresentem argumentos racionais, que tenham alta
qualidade e mostrem rigor”. Mas acontece que muitos desses pensadores e pensadoras
não vão se encaixar nos critérios de “qualidade” e “rigor” do padrão atual dos cursos de
pós-graduação brasileiros, e os textos produzidos não vão ser considerados textos
filosóficos “de qualidade” e “rigorosos”. Muitos pensadores latino-americanos
escrevem em forma de ensaio, ou de maneira jornalística e panfletária, ou ainda
narrativa; muitos são mais associativos e poéticos do que estritamente argumentativos,
todos são fortemente políticos — respondem a uma forma práxica de filosofar não
baseada apenas no “estudo”, mas na tentativa de transformação do real — e, sobretudo,
são todos eles autores atentos a todo tipo de tradições (africanas, asiáticas, latino-
americanas), e não apenas à europeia. Assim, declarar que esses autores não são
excluídos pelo sistema atual é trivialmente falso, porque as próprias definições vigentes
do que deva ser um trabalho filosófico “de qualidade” e “de rigor” já excluem a priori
uma boa porção do que esses pensadores fazem. É claro que seus trabalhos são de alta
“qualidade” e têm muitíssimo “rigor”, mas para compreender isso esses termos teriam
que ser liberados da tutela de seus critérios únicos e eliminatórios e colocados num
ambiente plural e diversificado.

Os estudantes de filosofia brasileiros deveriam poder estudar em seus curricula e


planos de estudo, junto com seus Kant, Leibniz, Wittgenstein, Habermas e Deleuze (que
não serão abandonados!), também pensadores e pensadoras tais como Paulin
Hopuntondji, Mogobe Ramose, Kwasi Wiredu, Roberto Fernandez Retamar, Valentim
Mudinbe, Kwame Appiah, Ricaurte Soler, Immanuel Wallerstein, Gloria Anzaldua,
Édouard Glissant, Ramón Grosfoguel, Edgardo Lander, Santiago Castro-Gómez,
Gayatri Spivak, Stuart Hall, Ranajit Guha, Arjun Appadurai, Homi Bhabha, Tapan
Roychaudhri, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Nicholas Guillen, Rex Nettleford, Orlando
Patterson, Enrique Dussel, Anibal Quijano, Walter Mignolo, Raúl Fornet-Bettancourt,
Paget Henry, Rodolfo Kusch, Edmundo O’Gorman, Leopoldo Zea, Augusto Salazar
Bondy, Horacio Cerutti Gulberg, Léopold Sédar Senghor, Catherine Walsh, Ofelia
Schutte, Rosa Amelia Plumelle-Uribe, Partha Chatterjee, Kishore Mahbubani, Sylvia
36

Wynter, Carlos Cullen, Pablo Guadarrama, Germán Marquínez Argote, Marta Traba,
Pedro Morandé, Ángel Rama, Nelly Richard, Arturo Roig, Beatriz Sarlo, Emilio Uranga
e Iris Zavala, todos eles intelectuais de diversos pontos do planeta (tentando assim
chegar a uma comunidade filosófica realmente universal), que pensaram diversos
aspectos da questão da colonialidade, da dominação, das condições de emancipação da
arte e da filosofia, das novas formas de injustiça, das vozes silenciadas e da diversidade.
Muitos deles são formados na Europa ou ensinam ou dão palestras em prestigiosas
universidades ocidentais, mas — eis o cerne da questão — utilizam seus conhecimentos
de maneira não cumulativa e erudita, mas em estrita funcionalidade a suas reflexões
sobre filosofar desde a África, a Ásia ou a América Latina sobre os temas da identidade
e da emancipação. Vale a pena enfrentar as dificuldades de pronúncia desses novos
nomes e passar a utilizá-los em nossos artigos e livros.

Algumas obras-primas latino-americanas que o estudante brasileiro de filosofia


deveria conhecer seriam, pelo menos: La filosofía Nahuatl e Visión de los vencidos, de
Miguel León Portilla; ¿Existe una filosofia de nuestra América?, de Augusto Salazar
Bondy; La filosofia latino-americana como filosofia sin más, de Leopoldo Zea; 1492. El
encubrimiento del Otro, de Enrique Dussel; La invención de América, de Edmundo
O’Gorman, La hybris del punto cero, de Santiago Castro-Gómez; Todo Calibán, de
Roberto Rodríguez Retamar; La idea de América Latina e Proyectos globales, historias
locales, ambas de Walter Mignolo. (Destas obras, as de Zea, Dussel e a segunda de
Mignolo têm tradução para o português).

A dominação formal consiste, pois, na exclusão implícita — nunca feita em


forma de proibição aberta32 — de temáticas e de autores não oriundos do setor europeu
e norte-americano de pensamento. A existência e plena vigência desse tipo de

32
O acadêmico adepto do Acervo T vai declarar, invariavelmente, que nenhuma dessas temáticas ou
autores está excluída, mas que ele, em particular, não pode dar aulas nem orientar trabalhos nessas áreas e
autores porque “não são da sua competência”. Mas, como não são da competência de ninguém, o
estudante interessado deverá finalmente trocar Leopoldo Zea por Deleuze e Walter Mignolo por
Agamben. É claro que dessa situação só se pode sair se alguém se dispõe, pela primeira vez, a orientar e
dar aulas sobre algo que “não é da sua competência”, mas que, em algum momento, terá de passar a
integrar-se na competência de alguém. Isto pressupondo, é claro, que exista uma vontade de mudar a
situação eurocêntrica atualmente instalada.
37

dominação parece algo totalmente óbvio. A dominação temática é muito mais


controversa; trata-se de descobrir, na filosofia europeia ensinada com exclusividade em
nossas universidades, elementos dominadores e colonizadores transmitidos pelas
filosofias hegemônicas. Talvez o mais ousado exercício de desmontagem de uma
dominação temática tenha sido a reconstrução da geopolítica da modernidade por parte
de Enrique Dussel, em textos como “Meditações anticartesianas sobre a origem do
antidiscurso filosófico da modernidade”, de 200533. Não posso fazer aqui uma
exposição completa dessa tentativa, mas apenas resumi-la de maneira esquemática. Para
começar, há uma questão que chama sempre a atenção do estudante de filosofia: o
século XVI aparece, nas histórias oficiais, como um século “vazio”, sem nenhuma
figura filosófica importante. Entretanto, esse “vazio” não é objetivo, e sim um
“esvaziamento”; trata-se de um século de enorme importância para a filosofia latino-
americana, cheio de figuras que, segundo Dussel, preparam o surgimento de Descartes e
relativizam fortemente a ideia da história oficial de que esse autor é o inaugurador da
modernidade34.

Também no apagado século XVI acontece — segundo relata Dussel — a


controvérsia de Valladolid entre Bartolomé de Las Casas e Ginés de Sepúlveda, um
marco fundamental para entender a dominação europeia sobre a América (e mais um
motivo para “esvaziar” o século XVI de todo interesse filosófico). Sepúlveda defende
pela primeira vez o direito (e o dever!) de submeter populações “inferiores”, mesmo
mediante a força, e “pelo seu próprio bem”; o índio é considerado bárbaro e ímpio e
deve ser evangelizado e civilizado mesmo contra a sua vontade (p. 354-55); isto, como
declara cinicamente Sepúlveda, “é mais valioso que o ouro e a prata” (356). Bartolomé

33
Incluído em Meneses e Santos 2010, pp. 341-395.

34
Algumas dessas influências diretas são a do espanhol Francisco Suárez, cujas Disputationes
Metaphysicae foram estudadas por Descartes com os jesuítas de La Flèche e em cuja Ratio Studiorum se
colocava um acento todo especial no exame da própria subjetividade (Dussel, pp. 347-48); do mexicano
Antonio Rubio na lógica e dos portugueses Pedro da Fonseca na ontologia (p. 349), assim como de
Francisco Sánchez. Quando o século XVI — no qual viveram e atuaram estes pensadores — é apagado, a
“originalidade” inaugural de Descartes fica historicamente constituída. (Ver “Descobrindo a pólvora. O
caso René Descartes”, em meu Diário, para enfrentar as críticas de que nada disto tiraria a
“originalidade” de Descartes).
38

de Las Casas, ainda que dentro de limitações compreensíveis (ele continua a pensar na
evangelização como boa para o indígena, se feita pacificamente e com amor),
representa, segundo Dussel, o primeiro anti-discurso filosófico da modernidade, ao
tentar mostrar — utilizando a mesma lógica aristotélica assumida por Sepúlveda,
aristotélico convicto — a ilegitimidade do despojo indígena por parte de Espanha,
realizada sob a ideia de um Ego conquisto que antecipa num século o Ego cogito
cartesiano e lhe confere suas bases sociais e históricas (p. 361). A ideia de Dussel —
depois desenvolvida por Walter Mignolo — é que a modernidade europeia foi um
produto da invasão e colonização de América, inimaginável sem o ouro e a prata
roubados, a dizimação das culturas outras e a escravização e evangelização dos
indígenas. No século XVI instala-se a matriz colonizadora que chega até nossos dias:
“...a modernidade nunca mais se perguntará, existencial e filosoficamente, por este
direito à dominação da periferia até a atualidade. Este direito à dominação irá impor-se
como a natureza das coisas e estará subjacente a toda a filosofia moderna” (p. 368).

Assim, a “modernidade” aberta por Descartes é, segundo Dussel, uma “segunda


modernidade”, a primeira nascendo no século XVI e fornecendo bases de sustentação
para a consideração de outros povos como inferiores e domináveis pela superioridade
europeia. O “bom senso” é “a coisa melhor distribuída no mundo”, mas é difícil que
Descartes — no ambiente social em que escreve seu famoso livro — aceitasse que
também índios e negros africanos se beneficiariam dessa justa distribuição do bom
senso. Isto ficará mortalmente claro em pensadores europeus do século seguinte.
Confira:

Os negros da África carecem por natureza de uma sensibilidade que se eleve


acima do trivial. O senhor Hume desafia quem lhe apresente um único
exemplo de um negro que tenha revelado talentos, e afirma que entre os
centos de milhar de negros levados para terras estranhas, apesar de muitos
terem obtido a liberdade, não se encontrou um único que tenha criado
alguma coisa grande, seja na arte, nas ciências, ou em qualquer outra
atividade honrosa, enquanto entre os brancos é frequente isso suceder, e
muitos são os que tendo saído da plebe mais modesta, pela sua condição
superior, ascendem a uma boa reputação. Tão fundamental é a diferença
entre estas duas raças humanas, que parece ser tão grande a respeito das
39

faculdades intelectuais como a respeito da cor (Kant, Observações sobre o


sentimento do belo e do sublime, cap. IV, pp. 85-86)35.

E também:

Apesar de termos algumas informações sobre a América e sua cultura,


principalmente sobre o México e o Peru, sabemos que foram povos bem
primitivos, que fatalmente sucumbiriam assim que o espírito se aproximasse
deles. A América sempre se mostrou, e ainda se mostra, física e
espiritualmente impotente. Depois que os europeus desembarcaram na
América, os nativos declinaram gradativamente à sombra da atividade
europeia. (...) Mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um
crioulo, e ainda mais perante um europeu, são as principais características
dos americanos do sul, e ainda custará muito até que europeus lá cheguem
para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos,
sob todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer
(Hegel, Filosofia da História, Introdução, pp. 74-75).

A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu
a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais
o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia
geral de sua essência (...) O negro representa (...) o homem natural,
selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda
moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente
compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano (Idem, p. 84).

Essas declarações não são meramente biográficas ou anedóticas (embora em sua


convicta firmeza cheguem a ser grotescas e vergonhosas), mas colocam em tela a
famosa questão da “universalidade da razão” no contexto do pensamento europeu e a
própria ideia de que, em suas pesquisas epistemológicas, Kant e Hegel estariam
descrevendo o aparato transcendental ou dialético de qualquer ser humano; a julgar por

35
É bem possível, como mencionado antes, que o aparato transcendental kantiano não seja mesmo
universal, e nisto não haveria nenhum demérito por parte das comunidades que não mostram indícios
dele; mas, dentro do discurso kantiano, isto cobra uma significação fortemente excluidora e valorativa.
40

esses textos, não parece que negros e índios tenham aparato transcendental ou dialética
do espírito, com o que fica lesada a tão declamada universalidade dessas filosofias. Para
Hegel, a razão é “universal” no sentido de abranger todos os humanos; mas o problema
é que — para ele — nem todos os seres com aparência humana são humanos. “Para
Hegel, o saber absoluto, embora seja um universal concreto, no sentido de ser produto
de muitas determinações, somente podia ser atingido pelo homem branco-cristão-
heterossexual-europeu...” (Grosfoguel Ramón, “De Aimé Césaire aos zapatistas”, em:
Dussel et alia, El pensamento filosófico latino-americano, p. 676, tradução minha do
espanhol). O suposto universalismo hegeliano não é abarcador, mas excluidor; é uma
falsa totalidade, pois não abrange a todos os humanos36.

A depreciação, de fundo racial, das possibilidades intelectuais de pensamentos


não-europeus não ficou, infelizmente, no século XIX. É este, precisamente, um dos
temas mais estudados pelo pensamento latino-americano: a passagem das situações
concretas de colonialismo — que acabaram, de fato, ao longo do século XX — para a
criação de uma matriz colonial — a colonialidade37 — que é preservada, de maneiras
mais ou menos manifestas, na situação atual, mantendo uma enorme parte da produção

36
Outros trabalhos críticos de Dussel na mesma direção de denúncia de dominação temática são, por
exemplo, as observações sobre os limites radicais dos métodos fenomenológicos e hermenêuticos: as
vítimas do sistema não “aparecem” em fenomenologias que se sustentam sobre o que ocultam; nem
podem ser “compreendidas” ações contra as vítimas mediante as ferramentas hermenêuticas europeias;
pelo contrário, para poder “aparecer”, as experiências de despojo, dizimação e exclusão têm que furar as
fenomenologias e ir além do “compreensivo” (as atrocidades cometidas são algo que temos a obrigação
de não compreender). Também no plano ético pode ver-se o efeito de uma dominação temática, no
sentido de que a tríade de éticas europeias habitualmente ensinadas aos estudantes de filosofia
(deontológicas, utilitaristas e de virtudes) condena comportamentos humanos que não observam o dever,
não atendem às consequências e não assumem as virtudes. Mas estas qualificações morais são todas intra-
sistêmicas e não servem para julgar a moralidade do próprio sistema que as sustenta. Pelo contrário, de
acordo com essas éticas, são as vítimas e os que tentam se insurgir contra a injustiça fundacional do
sistema os que aparecem como viciosos e imorais. (Dussel, Introducción a la Filosofia de la liberación,
pp. 163-64).

37
As melhores fontes para estudar a fundo esta temática são os livros de Walter Mignolo mencionados na
bibliografia, além das obras do sociólogo peruano Anibal Quijano e das investigações do norte-americano
Emmanuel Wallenstein sobre o sistema-mundo.
41

intelectual mundial fora do debate internacional, obrigando-a a criar suas próprias


comunidades de discussão.

Se alguém não se reconhece como pertencente a uma situação de dependência e


sente-se perfeitamente bem instalado na situação presente, pensando estar atuando numa
situação de plena liberdade intelectual, norteado apenas pelo meritório e árduo esforço
pela “qualidade” e o “rigor”, a comunicação se tornará bastante árdua. Isso fica evidente
nas declarações de Gabriel Ferreira, como esta: “Pretender responder a essa pergunta [o
debate internacional] com uma afirmação que passe por categorias tais como
‘dominação’ ou ‘agenda europeia’ é não apenas não respondê-la, como escamoteá-la”.
Bom, realmente! Se nos empenhamos em investigar as condições nas quais filosofamos
atualmente em lugar de nos abandonarmos a elas sem qualquer tipo de crítica, é porque
estamos procurando um espaço para nosso pensamento mais atento às nossas
circunstâncias reflexivas. Isso, que parece um passeio inútil pela sociologia do saber ou
pela história das ideias, é uma tarefa indispensável para todo aquele que pretenda pensar
com alguma lucidez sobre a maneira como estamos produzindo filosofia, em lugar de
aceitar a situação atual como se fosse objetiva e inalterável. É claro que desde uma
postura da filosofia já pré-definida como “investigação pura”, qualquer alusão a nosso
contexto colonizado de produção de conhecimentos será visto como “escamoteio” da
questão; mas, levando em conta os elementos circunstanciais apontados neste artigo,
esse tipo de observação, longe de “escamotear” a questão, passa a enfrentá-la
resolutamente!

Neste sentido, o professor é eufemístico ao referir-se a esta situação de presença


praticamente exclusiva de fontes europeias e norte-americanas nos curricula; e ele
comenta:

Se isso se deve a certo egoísmo ou inveja dos pares, a certo espírito de


colonizado ou ao reconhecimento explícito de que o que se produz fora é de
qualidade realmente superior, ainda uma vez mais: pouco importa. (...) A
reiterada oposição entre “Europa” e “América Latina” não é meramente
geográfica ou teorética, mas é exposta a partir de categorias com forte
referência sócio-política, como “dominação”, “dependência”, “libertação”,
“colonização”, “emancipação” etc. Contudo, não é demais questionar se a
42

crítica a uma “agenda europeia” faz sentido, em termos especificamente


filosóficos (destaque meu).

Espero que tenha ficado claro nas arguições anteriores que, quando os adeptos
do Acervo T alegam que todas essas questões são “políticas”, e não “estritamente
filosóficas”, o que estão entendendo por “estritamente filosófico” é já resultado de um
conjunto de decisões políticas; “debruçar-se sobre problemas estritamente filosóficos” é
uma maneira de resolver a situação de dependência e de posicionar-se diante dela,
maneira essa que consiste em não questionar-se acerca da genealogia desses problemas
e da possibilidade de emancipar-se. De fato, a postura eurocêntrica é já uma atitude
diante da dependência, que consiste na adaptação à situação vigente, apagando todos os
traços históricos que levaram gradativamente à situação atual, na qual não temos acesso
aos pensadores de outras latitudes a não ser mediante tremendos esforços pessoais
muito pouco estimulados. A atitude que procura emancipar-se da situação de
dependência — atitude defendida por numerosos intelectuais em todo o mundo —
opõe-se à atitude conformista de adaptação às circunstâncias atuais; mas ambas são
posicionamentos diante das mesmas circunstâncias que configuram uma parte do nosso
“desde” pensante, da nossa aferência reflexiva.

Palavras finais e prospecto

Você acabou de ler este ensaio e, se você adere fortemente ao Acervo T,


certamente não concordará com nada do que aqui foi arguido; pensará que os
argumentos não são sólidos e que o que se apresenta como filosofia desde a América
Latina não existe, pois só há filosofia europeia. Dirá que os pensamentos são falsos,
trivialmente verdadeiros ou ininteligíveis. Nada demoverá você da sua posição original.
Uma das partes poderá, inclusive, nem sequer visualizar o que a outra parte considera o
mais fundamental. Cada parte verá a outra como absurda, incabível, desonesta ou trivial.
De nada adiantará alegar que foram apresentados bons argumentos, porque os critérios
do que seja um bom argumento também estão na mesa de discussão. A ética da
argumentação filosófica exige de nós que não digamos apenas: “não estou convencido”,
mas que apresentemos contra-argumentos. Mas o problema é que — segundo a maneira
como vejo atualmente as argumentações filosóficas — sempre haverá contra-
43

argumentos para qualquer postura, sobre filosofia no Brasil ou sobre qualquer coisa;
nenhuma postura poderá nunca encerrar a discussão. Cada um dos participantes terá
uma configuração diferente da situação, e segundo certa configuração (que envolve
certas definições, modos de argumentar, valores irrenunciáveis) a situação da filosofia
no Brasil será a melhor possível, apenas satisfatória ou simplesmente calamitosa.

Mas, precisamente por isso, porque as discussões filosóficas são intermináveis e


inconclusivas, porque sempre haverá argumentos e contra-argumentos, em vez de cair
na atitude autobenevolente de pensar que se está com a razão, soterrando as posições
contrárias no erro e na desonestidade, o que proponho é que a discussão se mantenha
aberta em todas as direções e possibilidades, numa comunidade plural, que permita
todas as posições, e na qual os estudantes de filosofia possam escolher depois de ter
tomado conhecimento das mesmas. Sustento que, no momento atual, não vivemos numa
comunidade plural desse tipo. Os estudantes são ensinados a fazer filosofia somente de
uma maneira, num único estilo e apoiados numa única tradição, estudando pensamentos
apenas de quatro ou cinco países do planeta. Os problemas e autores da lista latino-
americana, apresentada anteriormente, parecem relevantes para o futuro dos jovens
estudantes de filosofia, colocando-lhes questões críticas em lugar de simplesmente
inseri-los como trabalhadores e consumidores dentro de um sistema pretensamente
objetivo. Em lugar de decidir pelo aluno de maneira paternalista, deveríamos encontrar
um espaço de informações e discussões onde todas as maneiras de fazer filosofia fossem
apresentadas, discutidas e por vezes excluídas, pois mesmo para excluir filosofias é
preciso que elas apareçam.

O intuito deste ensaio não foi, pois, sustentar que as argumentações em prol de
um “filosofar desde” sejam definitivamente sólidas e inatacáveis. O intuito deste ensaio
foi abrir espaço para essas ideias num ambiente que atualmente se fecha a elas,
fornecendo aos estudantes de filosofia uma visão muito parcial e tendenciosa dos
estudos filosóficos no planeta.

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