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Sutiã:
Não é por falta de competência nem por falta de domínio da tradição filosófica
europeia que os filósofos e estudantes brasileiros não participam dos debates
supostamente “universais”, mas por razões políticas que nada têm de estritamente
filosóficas. E mesmo a posição europeia é tão condicionada historicamente, tão
relativizável quanto qualquer outra
Olho:
Julio Cabrera
Introdução
por que eu não mudo de postura, responderia que já mudei: durante várias décadas
ensinei a meus alunos que a filosofia europeia é universal e que não tem nenhum
sentido falar de uma filosofia desde o Brasil ou desde a América Latina. Neste texto,
quero explicar por que mudei de postura.
Uma das questões mais curiosas que me são propostas nas discussões sobre
filosofia no Brasil é a de que a minha abordagem é “marcadamente política” 1, como se
fosse eu quem introduz a política no corpo asséptico e incontaminado da “filosofia
pura”, como se as questões que expus numa entrevista2, e em meu livro Diário de um
filósofo no Brasil, não fossem estritamente conceituais (como, digamos, uma discussão
sobre o sujeito transcendental kantiano), mas apenas questões ligadas ao poder.
Gostaria de dizer desde já que as ideias de que a filosofia europeia é filosofia universal
e de que os pensamentos nascidos na América Latina ou na África são nacionais são
políticas de ponta a ponta, que fazem parte de uma política que, ao ter sido instaurada e
vigorar de maneira hegemônica, esconde seus próprios traços ideológicos,
apresentando-se como se fosse tão somente a verdade absoluta e objetiva 3. Em nenhum
momento escondo ou disfarço o caráter político das minhas reflexões sobre a filosofia
no Brasil, mas trata-se de uma postura política que tenta enfrentar outras posturas
políticas, e não uma “realidade objetiva” que teria surgido do mundo mesmo “tal como
ele é”4.
1
Ferreira 2014.
2
Cabrera 2014.
3
Esta é a situação usual: a ideologia hegemônica nunca sente a si mesma como ideológica, mas como “a
realidade mesma”, enquanto que os dissidentes, os que não conseguem adaptar-se aos valores do sistema,
veem claramente o caráter ideológico do vigente. A noção de “vigência” — que ainda deveria ser
devidamente estudada — significa precisamente isso: os valores que “vigoram” tomam de assalto a
realidade e passam a representá-la como se fosse “a coisa mesma”. O que vigora tranquiliza, naturaliza,
apoia, fortalece e transforma em “meramente político” tudo aquilo que ousa desafiá-lo.
4
Por outro lado, e se ainda quisermos preservar uma distinção entre política e filosofia, as questões
políticas se mostrarão necessárias para abrir espaços a questões mais propriamente filosóficas, as quais
continuariam sendo ignoradas sem a pressão de uma ação política. Veremos isto melhor ao longo do
artigo.
4
Apresentação do Acervo T
5
Apresentada pela primeira vez em meu Diário de um filósofo no Brasil, pp. 28-30.
5
(4) Ao falar-se numa filosofia a partir de certa parte do planeta (por exemplo, desde
o Brasil, ou desde os Estados Unidos ou desde a Bélgica), alude- se
ilegitimamente a uma origem “nacional” do filosofar, o que contradiz
frontalmente a natureza universal da filosofia. Estes projetos “nacionais” não
fazem o menor sentido e devem ser abandonados por não serem universais e,
portanto, não serem filosóficos. Seriam coisa tão absurda quanto falar de uma
física ou de uma matemática brasileiras ou norte-americanas. As alegações
“nacionais” são mais políticas do que estritamente filosóficas.
(7) Qualquer “filosofar autoral”, que assim se pretenda, pressupõe, como condição
necessária, que se conheça solidamente esse acervo de conhecimentos
filosóficos universais; qualquer tentativa de “filosofar autônomo” — ou, pior
ainda, de “filosofar independente” — que prescinda desses conhecimentos corre
o lamentável risco de repetir o que já foi dito e de incorrer em todo tipo de
ingenuidades.
6
6
Por exemplo, na ideia (1), estão compreendidas filosofias que põem o acento em sentimentos (como
podem ser as teorias éticas e estéticas da filosofia escocesa); “racional” refere-se à natureza
eminentemente argumentativa da filosofia, mesmo numa filosofia dos sentimentos. Com isto quero dizer
que a formulação de (1)-(7) poderia aprimorar-se, mas que as ideias básicas são essas.
7
A diferença entre os países latino-americanos a esse respeito reside em que, em alguns deles, como o
Brasil, as atividades filosóficas se identificam exaustivamente com o filosofar norteado pelas ideias do
Acervo T, enquanto em outros países latino-americanos, como a Colômbia, por exemplo, uma parte da
filosofia responde ao Acervo T, mas ainda são praticadas atividades filosóficas alternativas que são
acompanhadas e respeitadas por boa parte da comunidade filosófica. (Ver Pachón Soto Damián, Estudios
sobre el pensamiento colombiano. Volumen I, pp. 125-129). A diferença é, pois, de ênfase e
diversificação, mas o Acervo T enquanto tal implantou-se no mundo todo durante a segunda metade do
século XX.
7
8
A ideia de universalidade é muito problemática e se poderia perfeitamente abrir uma discussão acerca da
mesma; a minha estratégia argumentativa aqui será não mexer com essa noção e aceitar, de início, que a
filosofia é uma empreitada universal, no sentido bastante óbvio de afetar a todo ser humano enquanto tal,
sem diferenças nacionais ou regionais.
8
transforma o meio ambiente e pode torná-lo hostil ao próprio homem”, temos que
atentar não apenas à referência dessa expressão (com seu conteúdo de verdade), mas
também ao seu aferente (a procedência da alocução), porque ela poderá ter influência no
valor de verdade do referente; essa “mesma” frase terá diferentes valores de verdade
(além de diferentes tons e nuanças conceituais) se proferida por Hesíodo, por
Aristóteles, por Locke, por Marx ou por Oswald de Andrade em sua etapa marxista. A
procedência poderá afetar o valor de verdade do conteúdo enunciado, na medida em que
esses pensadores possuíam informações diferentes, metodologias diferentes de
abordagem, linguagens diferentes; dirigiam-se a diferentes audiências, tinham diferentes
propósitos etc. Assim, embora as ideias sejam universais (no sentido de interesse para a
humanidade), a sua universalidade está situada historicamente (podem significar coisas
diferentes ou podem não significar coisa alguma).
filosóficos pode ser também relevante na medida em que esses pensamentos (cuja
universalidade não é negada) podem não ser os mais interessantes para pensar a
filosofia prática desde nossa própria circunstância pensante (desde a qual, talvez, o
horror dos campos de concentração não seja o tema prioritário; talvez na circunstância
brasileira existam outros horrores mais prementes. Retomarei estas questões mais
adiante).
9
Existe no Brasil um profundo desconhecimento das fontes latino-americanas de pensamento filosófico
(felizmente, essa situação está, lentamente, começando a mudar, como veremos depois). Isso faz com
que, quando citamos pensadores latino-americanos, não sejamos levados a sério pelos nossos colegas,
alguns dos quais pensam que a expressão “pensador latino-americano” é como “quadrado redondo”. Mais
adiante neste artigo falarei mais sobre essas fontes, mas neste momento já é oportuno trazer à tona a ideia
de universalidade da filosofia formulada pelo filósofo argentino do século XIX Juan Bautista Alberdi,
considerado o primeiro pensador latino-americano a colocar claramente a questão de um pensar desde as
nossas circunstâncias. Em seu texto “Ideas para presidir la confección del curso de filosofia
contemporânea en el Colegio de Humanidades de Montevideo” (1840), Alberdi escrevia: “Não há, pois,
uma filosofia universal, porque não há uma solução universal das questões de fundo que a constituem.
Cada país, cada época, cada filósofo tem tido a sua filosofia peculiar, que se difundiu ou durou mais ou
menos tempo, porque cada país, cada época e cada escola tem dado soluções distintas dos problemas do
espírito humano” (Alberdi 1996, pp. 94-95. Destaque meu e tradução do espanhol minha, pois não existe
nem existirá tradução portuguesa dos escritos deste importante pensador latino-americano). Parece claro
que Alberdi não queria negar a universalidade de problemas filosóficos que nos atingem enquanto
humanos; quando ele afirma que “não há filosofia universal”, significa que não há nenhum problema
universal que não seja visto desde a perspectiva de um país, uma época ou um filósofo.
10
(2ª) Se aceitarmos o que acabo de expor, ou seja, que toda universalidade filosófica é
constituída historicamente a partir de circunstâncias e perspectivas, resulta pelo menos
enigmática a ideia de que a história da filosofia europeia possa ser detentora exclusiva
da universalidade da filosofia; o máximo que se poderia dizer é que ela seria apenas
uma das criadoras e cultoras de universalidade filosófica ao lado de outras pensadas a
partir da África, da Ásia, da América Latina e do Caribe, surgidas de outras
circunstâncias pensantes (como veremos, o ponto geográfico é parte da circunstância
pensante, mas não se identifica com ela). Assim, quando se diz, por exemplo, que os
mecanismos transcendentais do conhecimento tais como apresentados por Kant e
filósofos pós-kantianos são universais, no sentido de se aplicarem aos seres humanos de
qualquer latitude, isto deve ser visto como uma pretensão que não forçosamente se
cumpre (poderia haver grupos humanos, como certas tribos indígenas, cuja mente não
funciona segundo o aparato transcendental kantiano)10; mas, ainda que se aceite que
esses mecanismos se apliquem a todos os seres humanos, isso não dispensa a pergunta
acerca de onde surgiu a ideia da necessidade de um aparato transcendental e de por que
Kant sentiu-se impelido a responder a essa questão, quando pensadores cem anos
anteriores a ele sequer a visualizaram. Essa ideia tem um aferente e uma circunstância
pensante que não é externa ao pensamento, no sentido de ela ser um componente do
adequado entendimento do mesmo.
Como mostrado, entre outros, pelo pensador argentino Enrique Dussel — ainda
pouco conhecido no Brasil —, mas também por outros pensadores, como Walter
Mignolo e Eduardo Rabossi, a centralidade cultural da Europa é muito recente (150
anos), e decorre de uma construção geopolítica; não é um “fato objetivo”11. Portanto,
mesmo que seja fato inconteste que o pensamento europeu gerou pensamentos
universais, em primeiro lugar ele o fez desde a sua própria circunstância e perspectiva
— como é inevitável — e, em segundo lugar, não foi o único setor do planeta que
conseguiu fazê-lo. (Que a filosofia universal coincide com a o pensamento europeu é,
pois, ideologia, não “fato”).
10
Günther 2004.
11
As melhores fontes são: Dussel, 1994; Mignolo 2007; Rabossi, 2008.
11
12
Precisamente porque a procedência reflexiva de um pensamento não é — como veremos — meramente
nacional, é totalmente irrelevante que Vieira tenha nascido em Portugal e Flusser na Tchecoslováquia;
pelo que fizeram histórico-existencialmente, estão permanentemente filiados ao pensamento brasileiro.
Isto torna igualmente brasileiro um pensador como Matias Aires, que nasceu no Brasil mas foi levado
ainda criança para a Europa e nunca mais voltou; não são essas vicissitudes biográficas e nacionais as que
determinam a perspectiva de um pensamento, mas a sua densidade reflexiva numa circunstância pensante.
(Do contrário, teríamos que considerar Julio Cortázar um escritor belga). É com esse critério que o
professor Paulo Margutti inclui, em sua recente História da Filosofia do Brasil (2013) [livro resenhado na
Nabuco nº 1, agosto / setembro / outubro de 2014], não apenas autores portugueses como Pedro da
Fonseca, Francisco Sanches e Vieira, mas até espanhóis como Luis de Molina e Francisco Suárez e
italianos como Antonio Genovesi.
12
(4ª) Sendo assim, pode ser falso afirmar que as ideias filosóficas geradas por pensadores
brasileiros não são discutidas no âmbito europeu pelo fato de não serem universais; os
motivos da exclusão ou indiferença devem ser buscados noutro lugar, dado que esses
pensamentos são genuinamente universais. A resposta mais usual a isso consiste em
dizer que, embora as questões tratadas por pensadores brasileiros sejam mesmo
universais, o tratamento carece de “qualidade” suficiente (ou de “excelência” e
“originalidade”), e, metodologicamente, do “rigor” necessário a um trabalho filosófico
de interesse internacional. Neste ponto, torna-se fundamental um estudo conceitual, de
filosofia da linguagem, acerca dos modos de uso destes termos cruciais — “qualidade”,
“excelência”, “originalidade”, “rigor” — que vêm qualificar, de alguma forma, a
universalidade do pensamento não-europeu, universalidade que não parece suficiente.
(5ª) Muitas vezes, em discussões sobre o tema, após eu ter sustentado que deveríamos
incluir literatura latino-americana em nossas bibliografias em lugar de concentrarmo-
nos exclusivamente em fontes europeias, surge alguém do público alegando que “é
totalmente impossível prescindir da filosofia europeia”. Essas pessoas, de maneira
persistente, e como se tivessem apresentado uma grande objeção, me atribuem o
seguinte sequitur: “Devemos incluir fontes latino-americanas em nossas bibliografias;
portanto, devemos parar de ler autores europeus”. Essas pessoas precisam também
urgentemente voltar a fazer cursos de lógica elementar. É claro que vamos utilizar
fontes europeias entre outras. E seu uso, por outro lado, nada tem de “contraditório”,
mesmo que utilizemos fontes europeias para contestar a atual hegemonia do filosofar
europeu; pois o que está sendo contestado não é a Europa, mas o eurocentrismo (isso já
foi dito, inutilmente ao que parece, milhares e milhares de vezes). As fontes europeias
podem e devem ser perfeitamente utilizadas se conjugadas a outras fontes de
pensamento (africanas, asiáticas e sul-americanas), e se utilizadas de maneiras
apropriadoras, criativas e críticas.
(6ª) Mas talvez a ideia norteadora inabalável mais problemática de todo o Acervo T seja
a (6), a ideia de que o filosofar autoral tem como condição necessária e incontornável o
sólido conhecimento da história da filosofia europeia. Pelo que já foi falado, o que
deveria ser exigido, em todo caso, seriam sólidos conhecimentos de história da filosofia
mundial, e não apenas de história da filosofia europeia. Isto seria uma genuína situação
universal. (Que tipo de “universalidade” é esta que se concentra exclusivamente na
produção filosófica de um setor do planeta? Eis uma questão que eu gostaria muito de
ver respondida pelos “universalistas”). Mas o problemático é que nem sequer um
conhecimento sólido e exaustivo de filosofia mundial é estritamente “necessário” num
sentido absoluto, mas apenas num sentido relativo a dois parâmetros: dependerá do tipo
de trabalho filosófico que se quiser fazer e dependerá do tipo de pensador que cada um
for. Aqui eu estabeleceria algumas gradações: (a) Quanto mais exegético e histórico for
o tipo de trabalho que se pretende fazer, quanto mais se debruçar sobre autores e
temáticas específicos, mais estudo de história das ideias será preciso fazer; (b) Quanto
mais criativo e imaginativo um pensador for, quanto mais talentoso e hábil em leituras e
escritas, menos precisará de profusos estudos de história das ideias em seu trabalho.
Estas são, claro, verdadeiras heresias para os adeptos incondicionais do Acervo T; de
acordo com a ideologia vigente, todo mundo que estuda filosofia tem que conhecer,
forçosamente, e de maneira sólida, a história do pensamento europeu, com
independência do que se queira fazer e com independência do tipo de pensador que
formos. Trata-se de um treinamento anônimo e impessoal, espécie de dispositivo cego
ou pedagogia absoluta, de “cultura filosófica geral” obrigatória que passa por cima de
idiossincrasias, características, vocações e projetos.
13
Pensadores europeus como Hegel e Heidegger nos ensinaram que, para ultrapassar um pensamento, é
preciso introduzir-se nele e criticá-lo “desde dentro”, que uma “superação” nunca pode ser um processo
externo. Nada impede fazermos o mesmo com os próprios textos de Hegel e de Heidegger.
15
de filosofia são todos iguais e incapazes de caminhar sozinhos, todo mundo precisa da
mesma quantidade e do mesmo tipo de estudos, e não existe, na massa de estudantes,
um sequer que seja capaz de pensamento competente e criativo sem as muletas
bibliográficas administradas massivamente.
Por outro lado, e ainda com referência aos importantes tópicos (6) e (7) do
Acervo T, creio ser equívoca a afirmação de que as filosofias dos pensadores europeus
decorreram da erudição histórica prévia que possuíam e que só dessa forma suas
filosofias se tornaram possíveis. Isso não é nada evidente, e deveria ser aberta uma
investigação historiográfica para apurar este tópico. Na verdade, os chamados “grandes
filósofos europeus” — que, por outro lado, também apresentam enormes fraquezas e
insuficiências — fizeram leituras bem estratégicas e oportunistas dos autores anteriores,
às vezes muito sumárias e inclusive com erros gritantes (veja o Platão de Aristóteles, o
Descartes de Spinoza, o Spinoza de Nietzsche ou o Kant de Heidegger; todos eles
dariam arrepios a um especialista nesses filósofos). Os “grandes filósofos” abordaram,
sim, um problema apresentado na sua própria circunstância pensante, mas estiveram
longe de conhecer profundamente o status quaestionis dos problemas filosóficos sobre
os que se debruçaram; eles tiveram dos pensadores anteriores não um conhecimento
sólido, erudito e confiável, como hoje se recomenda, mas apenas lhes arrancaram pistas
para formular seus próprios pensamentos14.
14
Em seu “Ensaio de autocrítica”, em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche se acusa de ter tentado
exprimir seus próprios pensamentos usando categorias de Schopenhauer, em lugar de ter criado as suas
próprias.
15
Karl Löwith fala do “peculiar monólogo de Heidegger com a tradição filosófica ocidental” (Löwith
2006, p. 159). Diz ainda: “A asserção arrancada dos textos mais diversos é sempre uma e a mesma e
também a do próprio Heidegger” (Id, p. 245, tradução do espanhol minha).
17
(precisamente, em seu “desde” reflexivo). A questão é que o próprio pensador não tem
por que se preocupar com isso; alguma outra pessoa poderá escrever um artigo sobre
essa inserção; o que sustento é que os próprios pensadores não precisam escrever esse
artigo nem ter os conhecimentos sólidos que seu comentador deverá ter. Os pensadores
estão demasiado ocupados perseguindo o fio de seus próprios pensamentos,
profundamente inseridos em sua época de uma maneira que eles mesmos não precisam
compreender16.
16
Num momento de seu artigo, Gabriel Ferreira parece conceder isso ao referir-se a autores
particularmente geniais: “No entanto, o produto da sua sorte ou sua genialidade será julgado ou aferido
pelos leitores justamente em relação àquele depósito que o autor, ele próprio, desconhece” (Ferreira, op.
cit.).
17
“Flusser se recusava a mencionar outros autores, a criar notas de rodapé; também tinha o hábito de
desenvolver uma linha de argumento completamente nova em cada artigo que escrevia. Isso o
desqualificava como acadêmico. Muitos críticos apontavam a abundância de hipóteses e o caráter
especulativo da filosofia de Flusser; enquanto alguns se fascinavam, para outros, isto parecia ser a prova
da falta de seriedade de Flusser” (Andréas Ströhl, “Flusser como pensador europeu”, citado em Cabrera
2013, p. 236, n. 23).
18
Por outro lado, pode ser ilustrativo comparar Flusser, Kusch ou Paz com um pensador tão
perfeitamente enquadrado no Acervo T como Vladimir Safatle. Octavio Paz começa El labirinto de la
18
soledad assim: “A todos, en algún momento, se nos ha revelado nuestra existencia como algo particular,
intransferible y precioso”. Rodolfo Kusch começa seu clássico América profunda desta forma: “La más
tremenda e inflexible de las formas de opresión es aquella que ejercen las leyes de la naturaleza,
obligándonos a transcurrir en un mundo aparentemente clausurado a las potencias sagradas”. Vilém
Flusser começa seu livro Natural:mente assim: “Duas experiências estão confluindo para formarem o
redemoinho das reflexões a serem relatadas em seguida. A primeira é a última passagem do autor pelo
passo de Fuorn...”. Já Vladimir Safatle começa seu livro Grande Hotel Abismo assim: “‘Poder-se-ia dizer
que o conceito de ‘jogo’ é um conceito de contornos pouco nítidos (vershwommenen Rändern). Mas um
conceito pouco nítido é ainda um conceito? Um retrato difuso (unscharfe) é ainda a imagem de um
homem? Pode-se sempre substituir com vantagem uma imagem difusa por uma imagem nítida? Não é
muitas vezes a difusa aquela de que nós precisamos?’ De certa forma, este livro gostaria de ser
compreendido como uma longa resposta a tais perguntas enunciadas por Wittgenstein”. Enquanto Paz fala
em solidão, Kusch do sagrado e Flusser sobre viagens, Safatle fala sobre Wittgenstein. O que o norteia
em sua reflexão são uma questão wittgensteiniana (retomada nas conclusões) e certas ideias seminais de
Hegel, num exercício de “pensar junto com o autor”. (Ver meu texto “Melancholia: a Filosofia no Brasil
entre a extinção e a nova Alexandria”, em Cabrera 2013, pp. 225-231). Esta é uma das maneiras
hegemônicas e muito celebradas de fazer filosofia no Brasil nos dias de hoje e constitui, sem dúvida, uma
maneira legítima de fazê-la (um estilo que eu chamo de “comentário horizontal”), um tipo de texto
imponente e que fascina. Mas não deveria ser a única forma admitida de desenvolver pensamentos
filosóficos. Deveríamos habitar uma comunidade filosófica onde professores e estudantes pudessem
escolher escrever como Safatle ou Flusser, Kusch ou Octavio Paz.
19
Estas reflexões nos conduzem, aos poucos, à ideia de que a ausência de filósofos
autorais no Brasil e em outros países não é uma contingência, mas um produto
necessário do mecanismo que guia hoje a produção e consumo de conhecimentos
filosóficos. Se essas reflexões estiverem corretas, seria uma miragem esperar por
filósofos a partir de um sistema cujo funcionamento exitoso pressupõe que eles não
podem existir, mas que, ao mesmo tempo, mantém uma falsa expectativa de que eles
poderão surgir precisamente da situação que os bloqueia. É por isso que essa situação é
tão grave: o que importa é livrar os jovens estudantes de um mecanismo que
sistematicamente atua contra si mesmo, mas que propõe em paralelo um discurso que
promete um futuro impossível nos termos do funcionamento do próprio sistema que
implanta essa expectativa.
19
“Quem tem faro poderá afirmar que já sente no ar o repentino despertar de uma filosofia brasileira.
Apenas é muito pouco provável que um tal despertar ocorra nas faculdades de Filosofia (que surgem
quais cogumelos depois da chuva em inúmeras e improváveis cidades), já que lá, como aliás no resto do
mundo, apenas um número crescente de papéis eruditamente impressos enche gavetas. E lá, se surgir e
quando surgir uma verdadeira Filosofia no Brasil, esta será profissionalmente combatida, como cumpre a
toda academia no mundo inteiro” (Flusser 1998, p. 143).
20
“Além das atividades de docência e pesquisa, hoje se exige do pesquisador que faça estágios frequentes
no exterior, organize eventos, participe de congressos e colóquios, profira conferências e ministre cursos
em outras instituições, integre bancas examinadoras, seja agente de divulgação do conhecimento, assuma
cargos administrativos, preste consultoria e assessoria científica, numa palavra, cumpra uma lista
infindável de tarefas as mais diversas. Ao assumir cargos e encargos, ele se vê forçado a desempenhar
múltiplos papéis; e a maioria deles nada tem a ver com o trabalho propriamente intelectual (...) Em face
da premência em atender ao que lhe impõem, o pesquisador não dispõe de tempo e, por vezes, sequer de
desejo, de dedicar-se... à pesquisa” (Marton 2004, p. 147). Também os comentários cáusticos de
20
toda velocidade, os semestres são curtos, os cursos são cada vez mais velozes e
sumários, os alunos se queixam de sair do curso sem saber filosofia, apesar de terem
conseguido, com relativa facilidade, atender aos muitos mecanismos de avaliação.
Muitas vezes se debocha do autodidata que estuda filosofia em casa, mas talvez este
tenha mais tempo e concentração para estudar, refletir e criar, do que os nossos alunos
na universidade submetidos a um “faz-de-conta” burocrático, que não produz muita
coisa além de uma habilitação formal que reproduzirá o mesmo modelo vazio. Afinal de
contas, o aluno sente, acerca da pouca filosofia que conseguirá fazer, que a fará em sua
própria casa e não nas salas de aula ou tomado pela mão de um orientador exausto.
II. O “desde” como circunstância reflexiva, não como mera nação (Segundas
reflexões)
Schopenhauer sobre a filosofia alemã paga pelo Estado (“filosofia ministerial”) conservam ainda bastante
do seu vigor.
21
“Por mais que possamos dizer que todos eles atualizam uma agenda
‘eurocêntrica’, seria difícil, senão impossível, pretender dizer, por exemplo,
que Kant, com a sua dedução transcendental das categorias, não estivesse
intentando afirmar algo acerca de qualquer sujeito cognoscente
independentemente da nacionalidade ou que Sartre não pretendesse
igualmente expor uma estrutura de abertura existencial predicável a toda e
qualquer instância existente, sem maiores determinações”.
utiliza na definição o conceito que não entendemos; se alguém não sabe o que seja
numismático, de pouco servirá defini-lo dizendo que se trata de alguém que foi pelo
menos capaz de identificar um problema numismático). A segunda parte da definição
pressupõe a existência de problemas filosóficos objetivos e universais (todos de origem
europeia), que já estão sendo discutidos pelos estudiosos do mundo todo e que se
encontram num certo status questionis no qual nós deveríamos tentar nos inserir por
meio de “contribuições”.
21
Cf. Cabrera 2013, pp. 20-27. Em virtude da minha atual concepção da argumentação filosófica, que
retomarei no final deste trabalho, a única coisa que temos em filosofia são posturas que podem ser
justificadas de diferentes maneiras, e não, em absoluto, posturas que refutam e eliminam outras. Essas
posturas incluem definições de termos cruciais. Não estou reivindicando a minha definição de filosofia
como a única correta (e gostaria que meus adversários tampouco o reivindicassem para suas próprias
concepções), mas apenas apresentando-a como razoável e como geradora de frutíferas consequências; ao
mesmo tempo, mostro os perigos das outras definições, mas sem negar-lhes seu direito de serem
colocadas na discussão. (Cf. Cabrera 2009, Parte IV).
24
Carnap e vice-versa. Parece melhor deixar o termo operando em sua máxima e mais
exuberante amplitude.
22
É curioso observar que, no Brasil, é bastante frequente que professores de filosofia apareçam na TV ou
nos jornais defendendo alguma causa social ou política (sobre saúde, educação etc.); mas isso é uma
atividade “não estritamente filosófica” no sentido deles; quando lemos os textos desses professores, eles
são comedidamente teóricos e eruditos. “Não é a própria filosofia que ocupa o espaço público, mas
pessoas que, ao discutir assuntos diversos, os temperam no molho da filosofia e, assim, conseguem ter
uma determinada audiência. (...) Como Marilena Chauí, Paulo Arantes, Bento Prado Jr. Eles são
intelectuais que têm importância não pela filosofia que fazem, mas por participar de um certo debate
cultural e político” (José Arthur Gianotti em Nobre e Rego 2000, p. 99).
23
Cf. Cabrera 2013, pp. 79-91.
25
“(...) nossa universidade não conseguiu cumprir com excelência nem mesmo
a tarefa de “produção” dessa massa de comentadores hábeis em outros
idiomas, com penetração e participação ativa no debate internacional junto
a outros comentadores (...) O que aqui me interessa ressaltar é o fenômeno
da incipiência, em grande parte das vezes, dos nossos comentadores (que,
dado o rigor e a cobrança do “sistema”, deveriam estar entre os melhores,
quiçá, do mundo)”.
24
Outro ponto em que essa atitude de assepsia política é evidente é a questão das línguas. A escolha do
inglês como simples “língua científica universal” é vista como ato inocente, apenas pragmaticamente útil;
isso supõe que as linguagens são apenas veículos neutros e inertes de comunicação. Mas, quando falamos
e escrevemos em inglês, não estamos apenas lançando mão de um recurso inofensivo de comunicação;
também estamos sendo imersos numa maneira de articular conceitos e perspectivas sobre o mundo. (Cf.
Flusser 2004, onde o autor desenvolve a ideia das línguas abrirem mundos diferentes). Línguas diversas
mostram diferentes possibilidades conceituais: o filósofo ganiano Kwasi Wiredu “afirma que na cultura e
língua Akan, do Gana, não é possível traduzir o preceito cartesiano ‘cogito ergo sum’. (...) A razão é que
não há palavras para exprimir tal ideia” (Santos, op.cit, p. 62). O filósofo kenyano Dismas Masolo refere-
27
Neste ponto da reflexão, deve ficar claro que a questão do “desde”, vivida por
outros países apenas como a sua circunstância existencial e pensante, constitui, pelo
contrário, uma premente reivindicação em setores do planeta cujo trabalho filosófico
não está sendo considerado, como acontece com os pensadores latino-americanos
(mesmo com os que se dedicam com afinco a comentar e a difundir a filosofia
europeia)25. Trata-se de uma tarefa política talvez indesejável, mas que os excluídos nos
vemos obrigados a empreender, numa tentativa de abrir espaço para os nossos
pensamentos. Atualmente, os pesquisadores latino-americanos somos funcionários de
pensamentos vindos de outras perspectivas; somos considerados apenas mão de obra
intelectual e consumidores e divulgadores de pensamento europeu. Podemos concordar
se à ideia de Wiredu de que “...a teoria da correspondência da verdade, tal como a conhecemos em
português, seria, no mínimo, desajeitada em língua Twi, pelo que nem sequer se coloca” (Idem, p. 323).
Parece óbvio que a multiplicidade de línguas mostra que construções culturais como o cogito ou a teoria
da verdade como correspondência dependem de seus próprios “desde” histórico-existenciais e não se
aplicam a toda a humanidade (a não ser através de atos políticos de dominação aceitos pelos próprios
afetados). Ainda sobre esta questão das línguas, Pedro Argolo (de Brasília) me pergunta, numa
comunicação particular, se meus receios a respeito do uso do inglês não nos fecharia as portas para a
vasta literatura pós-colonial (Spivak, Said, Paul Gilroy, Hommi Bhabba etc.), toda ela escrita em inglês, o
que nos impediria intercambiar com eles ricas experiências emancipadoras (das que me ocuparei mais
adiante). Ele faz ver as enormes semelhanças entre obras como Orientalismo de Said e A invenção de
América Latina de Mignolo, ou entre essas e a obra do mexicano Edmundo O’Gorman. Eu respondo que
precisamos aprender outras línguas para tomar conhecimento de elementos que podem ser importantes
para nosso desenvolvimento e emancipação intelectuais, mas que esse estudo de línguas não pode ser
feito sem determinadas condições, como é feito atualmente. Seria necessário averiguar se os autores
desses trabalhos levam em consideração os intelectuais latino-americanos e seus problemas, se fazem
esforços para aprender espanhol etc. O desafio seria poder manter-se no plano meramente instrumental
sem absorver as estruturas dominadoras das línguas em que nos adentramos. Sobretudo não cair na
ingenuidade de pensar que uma “língua científica” é um território neutro e incontaminado pelo qual
podemos transitar à vontade.
25
“Quantos filhos periféricos de Heidegger, Carnap, Sartre ou Quine, entre outros, desempenharam com
probidade as ‘obrigações filiais’ sem que o ‘pai’ tenha sequer tomado conhecimento da sua existência
nem lhe preocupe detectá-la? A falta de correspondência não afeta o filósofo periférico; para ele é
suficiente experimentar a sensação de pertencer ao mundo filosófico que respeita” (Rabossi 2008, p. 104,
tradução minha do espanhol. Esse livro é de indispensável tradução ao português). Rabossi denomina os
filósofos periféricos de “advogados” dos grandes pensadores europeus. (No país do futebol, poder-se-ia
falar também, com ironia cordial, de seus “torcedores”).
28
que priorizar as questões políticas não é o ideal, mas é algo que somos obrigados a fazer
numa situação em que somente a luta política pode abrir espaços que, de outra forma,
continuariam fechados. A isto chamo insurgência do pensamento; não podemos apenas
surgir, mas temos que nos in-surgir contra o que nos impede de ganhar visibilidade.
Mas o “desde” não é apenas o lugar onde nascemos, se entendido como uma
espécie de determinante; pois o lugar gratuito do nascimento é também um lugar que
pode, pura e simplesmente, ser mantido como referência longínqua, ou mesmo
abandonado, como serão, inevitavelmente, diversas maneiras de usá-lo como centro
organizador. Sendo o “desde” histórico-existencial, “Brasil” não é um mero “país”, mas
uma referência que se pode assumir fanaticamente, manter como referencial mais ou
26
O filósofo gaúcho Ricardo Timm de Sousa tem oferecido uma das melhores descrições do “espasmo do
nascimento”, em seu livro Sobre a construção do sentido (São Paulo: Perspectiva, 2003), pp. 25-29.
29
menos marcante ou simplesmente ignorar. O escritor turco Orhan Pamuk expressou isso
muito bem comparando seu próprio caso com o de outros escritores famosos:
27
Cf. “Meu pessimismo nasceu em Córdoba, como eu?” (http://filosofojuliocabrera.blogspot.com/). É
claro que caberia aqui uma muito proveitosa devoração oswaldiana da análise da “situação” de Sartre em
O ser e o nada. Ele analisa a situação em cinco itens (meu lugar, meus arredores, meu passado, meu
próximo, minha morte), mostrando precisamente o “desde” humano, não como procedência objetiva ou
coisal (como pode ser o “nacional”), mas como uma referência que devo, sempre e inevitavelmente,
destruir (ou “nadificar”, nos termos sartreanos). A morte, em particular, constitui como a compensação
existencial do nascimento; podemos ser céticos a respeito de um “desde” o nascimento, mas é muito mais
difícil sê-lo a respeito da morte: é evidente que não se morre da mesma forma em Paris, em Israel, no
nordeste brasileiro ou no Canadá.
30
passado, diferente de outros, e herdamos esse passado, não como estigma, mas sim
como algo diante do qual temos que tomar uma atitude, seja qual for. (O passado é,
lembremos, um dos cinco patamares em que Sartre analisa a situação humana). Aqui
chegamos num ponto crucial: os que fomos gratuitamente jogados na América Latina
— em lugar de ser lançados, por exemplo, na Alemanha ou nos EUA — aparecemos
num lugar que foi historicamente colônia de outros países. Isso não significa apenas ser
uma cultura dependente, mas uma cultura que nasceu de uma invasão intercontinental,
de um processo de expansão e ocupação particularmente violentas de terras, que incluiu
a dizimação de culturas autóctones e o desrespeito por todas as articulações culturais
que aí estavam desde muitos séculos antes28. Houve a partir daí um lento processo de
assimilação racial, de tal forma que nós, atuais descendentes de colonos espanhóis e
portugueses, já não mostramos em nossas peles nenhum rasto da cultura dominada
(embora o garçom que nos serve a comida ou o menino que enche o tanque de gasolina
ainda o apresente).
28
Cf. Todorov 2010, particularmente o capítulo 3, curiosamente chamado “Amar”.
31
29
O IFIL — Instituto de Filosofia da Libertação — foi fundado em 1995, em Curitiba, e atualmente é
liderado por Euclides Mance (autor de várias entradas na coletânea de Pensamento Filosófico Latino-
americano organizada por Dussel). O IFIL mantém parcerias com outros grupos semelhantes: AFYL —
Associación de Filosofia y Liberación; AFLA — Associação de Filosofia Latino-Americana; NEFILAM
— Núcleo de Estudos sobre Filosofia Latino-Americana; CEFIL — Centro de Estudos e Pesquisas de
Filosofia Latino-Americana e RBSES — Rede Brasileira de Sócio-Economia Solidária, entre outros.
Estes centros desenvolvem suas atividades heroicamente, enfrentando todo tipo de dificuldades. É curioso
que a filosofia da libertação, um movimento de finais dos anos 60 e inícios dos 70, que já mereceu
congressos em todos os países latino-americanos, teve seu “Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia da
Libertação” somente em 2013! Um imenso número de professores de filosofia do Brasil, adeptos do
Acervo T, continua tendo enorme cautela a respeito deste movimento. Aqui deve ser entendido que o
reconhecimento da filosofia da libertação como movimento filosófico oriundo de América Latina, de
significativa projeção internacional, independe da posição que assumamos diante do mesmo. Eu tenho
muitas objeções a este movimento (mantive veementes discussões com Dussel, recolhidas na revista
Dianoia, do México), o que não me impede de reconhecer-lhe a sua importância. Constantemente, em
nossa comunidade se confundem essas duas coisas.
33
30
Cfr. Leonardo Tovar, “Las fundaciones de la filosofía latino-americana”, em Bohórquez, Dussel e
Mendieta 2011, pp. 255-261.
31
Para este tema tão importante para o Brasil, ver o excelente artigo de Kabengele Munanga,
“Mestiçagem como símbolo da identidade brasileira”, em: Meneses e Santos 2010, pp. 444-454.
34
Isto é apenas uma seleção dos principais temas que constituiriam uma “agenda
latino-americana” de filosofia. Ela é universal, já que sofrimento, dominação, exclusão
e emancipação são temas humanos universais, tanto como a estrutura do conhecimento
ou da existência, mas são temas pensados desde uma circunstância ou situação de
dominação secular, atualmente operada por agentes locais mais do que por agentes
externos. Não são questões meramente “políticas”, porque exigem uma elaboração
conceitual e histórica muito sofisticada. (É preciso ler algumas das obras seminais
indicadas mais adiante). O acadêmico universalista, quando passa os olhos por estas
problemáticas, já dirá que elas nada têm de especificamente “latino-americanas”, por
serem questões também tratadas por pensadores europeus. Bem, isso é simplesmente
falso. Algumas destas problemáticas têm sido, sim, de interesse do pensamento europeu
(como, por exemplo, a dimensão prática da filosofia; a liberdade, a temporalidade e a
memória; a autenticidade, concretude e universalidade; a justiça; a violência; a utopia
etc.); mas a abordagem latino-americana destas questões é sempre sui generis; por
exemplo, não se trata de filosofar sobre a “liberdade”, num sentido cartesiano ou
kantiano, mas sobre “liberação”, que não é apenas um conceito totalmente diferente de
“liberdade”, mas que a ela se opõe (liberação é, entre outras coisas, liberar-se dessas
concepções de “liberdade”). Da mesma forma, quando se fala em “justiça”, trata-se não
de uma justiça meramente distributiva de bens dentro do sistema, mas de justiça radical,
no sentido de contestar o próprio princípio de distribuição de bens em suas bases; e
assim nos outros casos, de maneira que só em aparência as temáticas são as mesmas.
sua própria hegemonia e colocam na mesa aquilo que jamais deveria ser mencionado: a
incrível violência do “processo civilizador”.
Wynter, Carlos Cullen, Pablo Guadarrama, Germán Marquínez Argote, Marta Traba,
Pedro Morandé, Ángel Rama, Nelly Richard, Arturo Roig, Beatriz Sarlo, Emilio Uranga
e Iris Zavala, todos eles intelectuais de diversos pontos do planeta (tentando assim
chegar a uma comunidade filosófica realmente universal), que pensaram diversos
aspectos da questão da colonialidade, da dominação, das condições de emancipação da
arte e da filosofia, das novas formas de injustiça, das vozes silenciadas e da diversidade.
Muitos deles são formados na Europa ou ensinam ou dão palestras em prestigiosas
universidades ocidentais, mas — eis o cerne da questão — utilizam seus conhecimentos
de maneira não cumulativa e erudita, mas em estrita funcionalidade a suas reflexões
sobre filosofar desde a África, a Ásia ou a América Latina sobre os temas da identidade
e da emancipação. Vale a pena enfrentar as dificuldades de pronúncia desses novos
nomes e passar a utilizá-los em nossos artigos e livros.
32
O acadêmico adepto do Acervo T vai declarar, invariavelmente, que nenhuma dessas temáticas ou
autores está excluída, mas que ele, em particular, não pode dar aulas nem orientar trabalhos nessas áreas e
autores porque “não são da sua competência”. Mas, como não são da competência de ninguém, o
estudante interessado deverá finalmente trocar Leopoldo Zea por Deleuze e Walter Mignolo por
Agamben. É claro que dessa situação só se pode sair se alguém se dispõe, pela primeira vez, a orientar e
dar aulas sobre algo que “não é da sua competência”, mas que, em algum momento, terá de passar a
integrar-se na competência de alguém. Isto pressupondo, é claro, que exista uma vontade de mudar a
situação eurocêntrica atualmente instalada.
37
33
Incluído em Meneses e Santos 2010, pp. 341-395.
34
Algumas dessas influências diretas são a do espanhol Francisco Suárez, cujas Disputationes
Metaphysicae foram estudadas por Descartes com os jesuítas de La Flèche e em cuja Ratio Studiorum se
colocava um acento todo especial no exame da própria subjetividade (Dussel, pp. 347-48); do mexicano
Antonio Rubio na lógica e dos portugueses Pedro da Fonseca na ontologia (p. 349), assim como de
Francisco Sánchez. Quando o século XVI — no qual viveram e atuaram estes pensadores — é apagado, a
“originalidade” inaugural de Descartes fica historicamente constituída. (Ver “Descobrindo a pólvora. O
caso René Descartes”, em meu Diário, para enfrentar as críticas de que nada disto tiraria a
“originalidade” de Descartes).
38
de Las Casas, ainda que dentro de limitações compreensíveis (ele continua a pensar na
evangelização como boa para o indígena, se feita pacificamente e com amor),
representa, segundo Dussel, o primeiro anti-discurso filosófico da modernidade, ao
tentar mostrar — utilizando a mesma lógica aristotélica assumida por Sepúlveda,
aristotélico convicto — a ilegitimidade do despojo indígena por parte de Espanha,
realizada sob a ideia de um Ego conquisto que antecipa num século o Ego cogito
cartesiano e lhe confere suas bases sociais e históricas (p. 361). A ideia de Dussel —
depois desenvolvida por Walter Mignolo — é que a modernidade europeia foi um
produto da invasão e colonização de América, inimaginável sem o ouro e a prata
roubados, a dizimação das culturas outras e a escravização e evangelização dos
indígenas. No século XVI instala-se a matriz colonizadora que chega até nossos dias:
“...a modernidade nunca mais se perguntará, existencial e filosoficamente, por este
direito à dominação da periferia até a atualidade. Este direito à dominação irá impor-se
como a natureza das coisas e estará subjacente a toda a filosofia moderna” (p. 368).
E também:
A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu
a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais
o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia
geral de sua essência (...) O negro representa (...) o homem natural,
selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda
moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente
compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano (Idem, p. 84).
35
É bem possível, como mencionado antes, que o aparato transcendental kantiano não seja mesmo
universal, e nisto não haveria nenhum demérito por parte das comunidades que não mostram indícios
dele; mas, dentro do discurso kantiano, isto cobra uma significação fortemente excluidora e valorativa.
40
esses textos, não parece que negros e índios tenham aparato transcendental ou dialética
do espírito, com o que fica lesada a tão declamada universalidade dessas filosofias. Para
Hegel, a razão é “universal” no sentido de abranger todos os humanos; mas o problema
é que — para ele — nem todos os seres com aparência humana são humanos. “Para
Hegel, o saber absoluto, embora seja um universal concreto, no sentido de ser produto
de muitas determinações, somente podia ser atingido pelo homem branco-cristão-
heterossexual-europeu...” (Grosfoguel Ramón, “De Aimé Césaire aos zapatistas”, em:
Dussel et alia, El pensamento filosófico latino-americano, p. 676, tradução minha do
espanhol). O suposto universalismo hegeliano não é abarcador, mas excluidor; é uma
falsa totalidade, pois não abrange a todos os humanos36.
36
Outros trabalhos críticos de Dussel na mesma direção de denúncia de dominação temática são, por
exemplo, as observações sobre os limites radicais dos métodos fenomenológicos e hermenêuticos: as
vítimas do sistema não “aparecem” em fenomenologias que se sustentam sobre o que ocultam; nem
podem ser “compreendidas” ações contra as vítimas mediante as ferramentas hermenêuticas europeias;
pelo contrário, para poder “aparecer”, as experiências de despojo, dizimação e exclusão têm que furar as
fenomenologias e ir além do “compreensivo” (as atrocidades cometidas são algo que temos a obrigação
de não compreender). Também no plano ético pode ver-se o efeito de uma dominação temática, no
sentido de que a tríade de éticas europeias habitualmente ensinadas aos estudantes de filosofia
(deontológicas, utilitaristas e de virtudes) condena comportamentos humanos que não observam o dever,
não atendem às consequências e não assumem as virtudes. Mas estas qualificações morais são todas intra-
sistêmicas e não servem para julgar a moralidade do próprio sistema que as sustenta. Pelo contrário, de
acordo com essas éticas, são as vítimas e os que tentam se insurgir contra a injustiça fundacional do
sistema os que aparecem como viciosos e imorais. (Dussel, Introducción a la Filosofia de la liberación,
pp. 163-64).
37
As melhores fontes para estudar a fundo esta temática são os livros de Walter Mignolo mencionados na
bibliografia, além das obras do sociólogo peruano Anibal Quijano e das investigações do norte-americano
Emmanuel Wallenstein sobre o sistema-mundo.
41
Espero que tenha ficado claro nas arguições anteriores que, quando os adeptos
do Acervo T alegam que todas essas questões são “políticas”, e não “estritamente
filosóficas”, o que estão entendendo por “estritamente filosófico” é já resultado de um
conjunto de decisões políticas; “debruçar-se sobre problemas estritamente filosóficos” é
uma maneira de resolver a situação de dependência e de posicionar-se diante dela,
maneira essa que consiste em não questionar-se acerca da genealogia desses problemas
e da possibilidade de emancipar-se. De fato, a postura eurocêntrica é já uma atitude
diante da dependência, que consiste na adaptação à situação vigente, apagando todos os
traços históricos que levaram gradativamente à situação atual, na qual não temos acesso
aos pensadores de outras latitudes a não ser mediante tremendos esforços pessoais
muito pouco estimulados. A atitude que procura emancipar-se da situação de
dependência — atitude defendida por numerosos intelectuais em todo o mundo —
opõe-se à atitude conformista de adaptação às circunstâncias atuais; mas ambas são
posicionamentos diante das mesmas circunstâncias que configuram uma parte do nosso
“desde” pensante, da nossa aferência reflexiva.
argumentos para qualquer postura, sobre filosofia no Brasil ou sobre qualquer coisa;
nenhuma postura poderá nunca encerrar a discussão. Cada um dos participantes terá
uma configuração diferente da situação, e segundo certa configuração (que envolve
certas definições, modos de argumentar, valores irrenunciáveis) a situação da filosofia
no Brasil será a melhor possível, apenas satisfatória ou simplesmente calamitosa.
O intuito deste ensaio não foi, pois, sustentar que as argumentações em prol de
um “filosofar desde” sejam definitivamente sólidas e inatacáveis. O intuito deste ensaio
foi abrir espaço para essas ideias num ambiente que atualmente se fecha a elas,
fornecendo aos estudantes de filosofia uma visão muito parcial e tendenciosa dos
estudos filosóficos no planeta.
Bibliografia
44
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Contraponto, 1997.
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XXI, 1985.
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Ferreira, Gabriel. “Pensar desde a filosofia, com consistência”. Rio de Janeiro: Nabuco,
2014. Disponível em http://www.revistanabuco.com.br/blog/pensar-desde-filosofia-
com-consistencia/. Último acesso em 9 de outubro de 2014.
45
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Marton, Scarlett. A irrecusável busca de sentido. Ijuí: Editora Unijuí; São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.
Nobre, Marcos; Rego, José Márcio (Orgs). Conversas com filósofos brasileiros. São
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Schopenhauer, Arthur. Sobre a filosofia universitária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Sousa, Ricardo Timm de. Sobre a construção do sentido. O pensar e o agir entre a vida
e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2003.