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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 327-334, maio/ago. 2004 327
exemplo, a progressão continuada e o estabe- frisar aqui é que, tal como se lê no texto “De-
lecimento dos ciclos. Curiosamente, entretanto, mocratização do ensino”, essa “unanimidade na
os argumentos contrários a essas políticas lan- superfície” esconde as “divergências profundas
çam mão de expressões e conceitos muito pró- acerca do significado” das expressões recorren-
ximos — às vezes idênticos — aos então arro- tes no discurso educacional — “democratização
lados como críticas à democratização do acesso do ensino”, “qualidade de ensino” e mesmo
ao ginásio: o caráter “falsamente democrático” “uma sólida formação docente”.
das medidas adotadas, a queda na “qualidade Nesse sentido, sua permanência históri-
de ensino”, a necessidade de uma “preparação ca revela mais do que a aparente persistência
prévia” tanto da infra-estrutura como do corpo de um mesmo conjunto de problemas ao qual
docente das escolas para fazer face aos novos se vêm dando há décadas as mesmas soluções.
desafios oriundos da mudança dos alunos, etc. Ela pode significar que o caráter freqüentemente
Daí a relevância de se retomar o tipo de aná- vago desse tipo de discurso tem obscurecido a
lise proposto em “Democratização do ensino”. compreensão da cambiante realidade escolar, e
Em 1 de dezembro de 1968, o editorial que essa aparente unanimidade tem impedido
do jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, ao o afloramento de uma discussão mais clara
comentar a medida da administração Ulhôa sobre as profundas divergências de concepções
Cintra, afirmava que “para que ela surtisse efei- programáticas que ele encerra.
to seria preciso que houvesse classes e escolas É em relação a essa hipótese que um
com professores preparados (...) que as condi- retorno ao ensaio do professor Azanha pode se
ções materiais fossem previamente ou simulta- revelar promissor, transcendendo-se seus pro-
neamente criadas — sem o que teremos não pósitos imediatos. Ao explorar as vicissitudes da
uma verdadeira democratização do ensino, mas idéia de democratização do ensino, mais do
tão somente uma extensão formal da escolari- que simplesmente tomar uma posição em face
dade”. Lendo hoje essas afirmações, talvez fôs- de uma política pública, Azanha aponta para o
semos tentados a inferir que a natureza dos caráter necessariamente programático dessas
problemas em educação pouco mudou ou ape- definições educacionais e para o tipo de dis-
nas se agravou, que o diagnóstico de então cussão que devem ensejar, se não nos quiser-
ainda é válido, quase quarenta anos depois, mos confinar à superfície unânime da retórica
uma vez que já se debatiam a “qualidade da educacional.
educação”, a “formação adequada de professo- Trata-se, portanto, de reconhecer que o
res” e as condições para a “verdadeira democra- recurso a uma mesma expressão pode obscure-
tização do ensino”. A recorrência dessas expres- cer não só concepções teóricas divergentes
sões pode levar a crer que há décadas perse- como diferentes — ou conflitantes — programas
guimos os mesmos objetivos — uma educação de ação. Tomemos como exemplo a noção de
democrática e de qualidade — e temos os mes- educação de qualidade, uma reivindicação tão
mos diagnósticos: faltam verbas, condições de antiga quanto unânime, pela qual os mais di-
trabalho e um esforço de formação de professo- versos segmentos sociais no Brasil têm se ma-
res que seja capaz de responder aos desafios da nifestado há décadas. Mesmo ignorando a va-
escola contemporânea. riação histórica e atendo-nos a alguns atores e
Não é o caso, para o propósito destas re- instituições sociais, é pouco provável que, por
flexões, de entrar no mérito de cada uma des- exemplo, a Fiesp e a CUT, o Estado e a famí-
sas complexas questões ou das alegações sobre lia, os professores e os responsáveis por polí-
a razão da constante — e em parte justificada ticas públicas tenham, todos, a mesma expec-
— insatisfação em relação aos resultados da tativa quanto ao que poderia ser uma educação
escolarização em nosso país. O que interessa de qualidade. O mesmo se poderia dizer sobre
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das divergências se revelam.”) Enquanto, para alguns desses pontos. Se pensarmos nos obje-
uns, a democratização se caracteriza por polí- tivos e mesmo do momento histórico em que
ticas públicas de abertura da escola para todos, surgiu essa idéia — ou seja, no conteúdo his-
para outros, ela decorre de práticas pedagógi- tórico e programático que ela veicula —, é ine-
cas capazes de formar indivíduos livres. gável que expressa um louvável esforço de
Ora, é evidente que, ao explicitar as di- respeito à cultura do educando. Nesse sentido,
ferentes concepções subjacentes aos discursos o programa veiculado pode ainda guardar in-
aparentemente consensuais sobre a necessida- teresse para além do contexto que o originou.
de de “democratização do ensino”, Azanha não Mesmo no âmbito mais específico da educação
procurava simplesmente marcar duas possíveis escolar “regular”, a valorização do meio cultu-
formas complementares de compreensão do ral de que advêm os alunos, seus hábitos e seu
problema. Ao contrário, sua análise histórica modo de vida nem sempre são objetos do de-
revela o caráter alternativo das práticas e dos vido respeito.
princípios de ação que se proclamam favoráveis Assim, no que concerne a esse aspecto
ao ensino democrático: “É claro que expandir do conteúdo programático, pode-se afirmar que
universalmente as vagas e instituir uma prática sua ênfase — a de que os homens são produto-
educativa especial poderiam eventualmente ser res e portadores de cultura, ainda que ela nem
conjugados, mas a verdade é que historicamen- sempre coincida com a cultura escolarmente va-
te, pelo menos no caso de São Paulo, têm-se lorizada — pode ter um papel relevante no pro-
apresentado como opções que se excluem”. O cesso educativo. Sua difusão pode, portanto, ser
conflito não se resolve, pois, pela simples adi- valiosa em certos contextos específicos, nos
ção desses que seriam dois “aspectos comple- quais a escola, talvez por força de sua história
mentares” da democratização da educação. extremamente seletiva em nosso país, rejeite, por
Tampouco o fato de não ter havido com- meio de práticas discursivas e não discursivas, as
patibilidade histórica entre as duas ênfases4 sig- manifestações culturais que não coincidem com
nifica a impossibilidade lógica de sua conjuga- seu ethos específico. No entanto, nesse e em
ção. No entanto, como fica claro no decorrer outros casos análogos, mais do que o símbolo
do texto, ambas as correntes partem de pressu- de um movimento educacional, o slogan “todo
postos bastante distintos. A democratização educando é um educador e todo educador um
concebida como uma prática pedagógica visa a educando” passou progressivamente a ser inter-
formação de personalidades democráticas por pretado como uma doutrina literal e progra-
meio do cultivo da “liberdade do educando”. mática acerca das relações desejáveis entre pro-
Nesse caso, a ênfase recai sobre um certo tipo fessores e alunos, inclusive da educação básica.
de relação pedagógica: aquela capaz de supri- Por essa razão, é preciso analisá-lo também
mir — ou pelo menos reduzir drasticamente — quanto a esse aspecto, já que ele nos remete a
as hierarquias que historicamente marcam as re- uma das concepções possíveis sobre “democra-
lações pedagógicas entre professores e alunos, tização do ensino”.
tidas como invariavelmente autoritárias. Adotando a palavra educador em seu
Essa concepção, largamente difundida à sentido mais amplo, a frase é sem dúvida ver-
época e ainda hoje bastante corrente entre edu- dadeira. O ato de educar, e mesmo o de ensi-
cadores, encontrou sua expressão mais forte na nar, não é exclusivo de professores, mas, ao
propagação de um slogan oriundo da obra de contrário, é uma característica humana. Não há
Freire: “Todo educador é um educando e todo ser humano que jamais tenha ensinado algo a
educando é um educador”.
4. Vale ressaltar que as Escolas Vocacionais, que gozavam de autono-
Já nos detivemos antes no assunto (Car- mia, não aderiram de imediato ao exame de admissão facilitado, mantendo
valho, 2001, cap. 3), mas vale a pena retomar assim seu caráter seletivo.
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fato de que ele é o agente institucional que escola, mas pode ser e é levado a cabo por
inicia os jovens numa série de valores, conheci- várias outras instituições sociais. Originalmen-
mentos, práticas e saberes que são heranças te, é provável que seu emprego se tenha devi-
públicas (cf. Arendt, 1978, cap. 5) que uma do a uma tentativa de ênfase no fato inegável
nação escolheu preservar através de sua apre- de que Freire não desejava a simples transmissão
sentação e incorporação por parte daqueles que de uma capacidade técnica; no caso, de leitura e
são novos no mundo. Nesse sentido, somos co- escrita. Ao contrário, a educação de adultos de-
autores dessas tradições e a autoridade deriva, veria incorporar a construção de uma forma de
etimológica e eticamente da autoria — nesse ver o mundo. Pressuposto, aliás, que não é
caso, dessa co-autoria. menos verdadeiro para as escolas regulares. No
É claro que essa escolha curricular dentre entanto, um professor educa num sentido am-
a diversidade dessas heranças, bem como as prá- plo, que inclui valores, visão de mundo, enfim,
ticas pedagógicas de que nos servimos para seu uma certa forma de agir e se posicionar no
ensino, refletem uma divisão desigual de poder mundo, mas sempre o faz através do ensino , e
dentro da sociedade. É igualmente evidente que em particular do ensino dos conteúdos próprios
ela é passível de críticas e reformulações. Aliás, a das tradições públicas escolares. Mas, a bem da
própria continuidade de cada uma e do conjun- verdade, o termo “professor” indica tudo isso,
to dessas heranças culturais implica modificações, uma vez que não se confunde com “instrutor”
posto que tudo aquilo que é vivo, não só bioló- ou “treinador”.
gica mas também socialmente, se modifica com Novamente, nesse aspecto é que reside
o tempo. Mas elas sempre representarão as esco- nossa especificidade e, diria ainda mais, a pró-
lhas que o mundo adulto fez para transmitir às pria dignidade de nosso trabalho. Um padre, uma
novas gerações. Nesse sentido é que as escolhas rede de televisão, uma organização não-gover-
implicam a responsabilidade e a conseqüente namental educam, mas fazem-no a partir de
autoridade do professor. Sua autoridade não é, interesses específicos e freqüentemente privados
portanto, pessoal, mas institucional. ou restritos a um grupo específico de cidadãos.
Ao professor cabe esse papel de agente Os professores e as instituições públicas de en-
insti-tucional responsável simultaneamente pela sino educam por meio do ensino de grandes
preservação de certos saberes, valores e práti- tradições públicas — capacidades como as de ler
cas que uma sociedade estima e pela inserção e escrever, as artes como a literatura, as ciên-
social dos novos nessa parcela da cultura hu- cias, enfim, as formas de conhecimento cujo de-
mana. Assim, embora o professor ensine e senvolvimento se deve justamente ao caráter
aprenda, inclusive de seus alunos, e através de público tanto de seus resultados como dos cri-
seu ensino eduque e seja educado, o contexto térios pelos quais as avaliamos e validamos.
institucional em que ele o faz não deve permitir Os objetivos da educação escolar segura-
que os papéis se confundam, nem tampouco mente ultrapassam a mera posse dessas informa-
pode implicar uma igualdade, como se o con- ções, e mesmo a capacidade de produzir, reco-
texto político das relações entre cidadãos se nhecer e apreciar as produções nessas áreas,
reproduzisse de forma idêntica ou imediata no posto que se dirigem também para a formação
contexto escolar e entre professores e alunos. de certos tipos de comportamento socialmente
Nesse sentido, a própria sugestão, tão valorizados, mas sempre o fazem através dessas
amplamente aceita, de se substituir a palavra formas de conhecimento — por meio de seu
“professor” por “educador” também enseja uma ensino. A desvinculação dos valores e objetivos
certa ambigüidade quanto às funções específi- educacionais das disciplinas e formas de conhe-
cas dessa classe profissional e dessa instituição. cimento tipicamente escolares pode e tem leva-
Educar não é específico do professor ou da do professores a esvaziar de sentido suas pala-
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que faz com que o bando o siga”. que algo ‘ser‘ democrático seja algo produzir ,
A democratização do ensino muito deve gerar democracia” (Ribeiro, 2001, p. 66). Assim,
às ações do professor José Mário Pires Azanha, uma escola cujo acesso, gestão e compromis-
não só por seus escritos, mas por sua luta por sos educacionais sejam fundados nos ideais da
uma escola aberta à totalidade da população. democracia política e social exige de todos os
Mas democracia não é um ponto a que se envolvidos um constante esforço teórico de
chega, é antes um processo que se vive. Por compreensão dessas diferentes dimensões e um
isso, Renato Janine Ribeiro sugere que “talvez esforço prático reiterado a fim de que sua ação
o melhor seja usar não o verbo ser , mas fazer fomente a igualdade de direitos e uma cultura
para a democracia; talvez mais importante do de promoção dos valores democráticos.
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education.