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Resumo
O objetivo deste artigo é investigar as narrativas jornalísticas sobre o “menor de idade” nas
décadas de 20 e no ano de 2017, observando a produção sentidos. Nossa análise recobre as
reportagens do jornal A Manhã, em 1927, ano em que foi promulgado o primeiro “Código de
Menores do Brasil” e do jornal O Globo na cobertura do caso Jaime Gold, ocorrido em 2015,
época em que acontece o retorno do debate público sobre a redução da maioridade penal.
Trabalhamos com a hipótese de que a construção narrativa do jornalismo apontou emoções
diferentes nessas décadas. Na primeira, o cuidado, visando à proteção dos “menores” e, na
segunda, produzindo sentidos de medo, pavor e ódio que reverberaram no “clamor” pelo
endurecimento de medidas repressivas.
Introdução
Este artigo propõe a investigação da relação entre mídia e legislação penal em dois
momentos: década de 20 e anos 2000. Nossa inquietação se estabelece na percepção de que
jovens “menores de idade” são simbolicamente condenados pela sociedade, em reprovações
sugeridas nas narrativas jornalísticas. Nossa proposta é problematizar as matérias do jornal A
Manhã, publicadas em 1927, pois neste ano fora promulgada a primeira lei específica que
abarcaria a proteção de crianças e adolescentes, o Código de Menores do Brasil. Além disso,
buscamos traçar um comparativo com reportagens de 2015, época em que se volta a discutir a
redução da maioridade penal no país.
A partir da tríplice mimesis de Ricoeur (1994), observamos o processo cíclico que as
narrativas jornalísticas estabelecem, estigmatizando “menores” e promovendo o
1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do V Encontro Regional Sudeste de História da
Mídia – Alcar Sudeste, 2018.
2 Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Bolsista CAPES. Mestre em
Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Direito pelo IBMEC. E-mail:
erica.fortuna@gmail.com.
3 Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em História, Política e Bens
A escolha da maneira como contamos os fatos é uma forma consciente (ou não) de se
estabelecer a experiência humana no tempo. Quando pensamos em narrativas construindo
representações, as contribuições de Paul Ricoeur (1994) são primorosas, pois, para o autor,
narrar é organizar o tempo, dar sentido através do tempo. Esse tempo, porém, não é só
cronológico, mas também um esforço de produção de sentidos. Trazemos no presente o nosso
passado e futuro. A história é contada para estar no mundo e assim entendê-lo. Ao narrar,
criamos o acontecimento, a identidade, dizemos quem somos. Com Ricoeur (1994),
percebemos que a narrativa não se resume a uma problemática linguística. Ela permite
representar no discurso diferentes perspectivas. Para Benjamin (1994), nela se imprime a
4Referimo-nos apenas aos meninos, pois não encontramos matérias em que meninas fossem acusadas de da prática de
violência urbana.
"marca do narrador", que se apóia em sua própria experiência ou na que é relatada pelos
outros. Podemos e devemos ir além do sentido do texto, projetado no mundo do leitor.
Ricoeur (1994) afirma que o ponto de chegada é também o ponto de início, de
recomeço. Esse processo de apreensão pode nos passar a ideia de circularidade, mas o
processo narrativo “perfeito” deve ser espiralado, possibilitando que o leitor construa a sua
própria opinião, sem ideias engessadas que direcionam sentidos. A tríplice mimesis forma um
arco hermenêutico pelo qual existem duas formas de completar o pensamento: uma em que o
leitor recebe a informação e se fica no mesmo lugar, estabelecendo um ciclo vicioso; em
segundo, a que ele interpreta e apreende os fatos, originando a construção de outras narrativas.
Esse último chama-se procedimento espiralado em que o leitor pode imaginar a realidade de
uma forma diferente e projetar um novo futuro.
No jornalismo, avistamos o caráter cíclico e a formação de ideologias. Com narrativas
repetitivas e persuasivas ao longo da história, o jornal seleciona os fatos sobre violência que
devem sem publicizados e classifica os responsáveis. Conforme a epígrafe destacada, Le
Breton (2009) coaduna com o entendimento de Durkheim (1996) e dialoga, ainda, com os
estudos de Ricoeur (1994), dando a ver que todo esse processo de apreensão está diretamente
ligado à afetividade e à vinculação social: “mesmo a atividade de pensar não escapa desse
filtro [emoção]” (LE BRETON, 2009, p. 111).
O autor entende todo esse processo simbólico das sensações como um fenômeno
social. Sendo assim, podemos pensar na construção social que se estabelece na ceara do
jornalismo por meio de aproximações e distanciamentos das emoções. De acordo com as
reportagens analisadas, o jornal cristalizou sentidos de cuidado e proteção com crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade. A opinião pública aproximou a sociedade dessa
questão, fomentando a necessidade de uma nova legislação que os amparasse.
As pessoas possuem sentimentos aparentemente produzidos de forma individual, mas
que são sempre esperados pelo grupo a que pertencem. O coletivo enuncia atitudes e condutas
que devem ser seguidas. Por sua vez, a mídia contribui sobremaneira nesse sistema,
principalmente porque “joga” com as emoções. Nesse sentido, quando pensamos nas matérias
jornalísticas, observamos que a sociedade sentiu a necessidade de resguardar crianças que
estavam desassistidas na década de 20. Enquanto isso, no ano de 2015, a sociedade quer se
sentir segura e a grande maioria apoia a da diminuição da idade penal com intuito de diminuir
a violência urbana, sem problematizar consequências de tal medida5.
Contudo, não há como ignorar que o indivíduo tem seus próprios sentimentos de dor,
alegrias, medo, tristeza, além de tantos outros. Porém acreditamos que a força do grupo mais
do que elevar “sentimentos em coro”, pode criar ou direcionar novas e/ou diferentes
sensações. Assim, são expressões que podem ser construídas para os olhos dos outros. De
acordo com Muniz Sodré (2006), é o sensível criando mais do que uma relação e sim uma
vinculação social. Em certos momentos, o indivíduo pode ser induzido pelo grupo a sentir-se
da mesma forma que a “maioria” e apoiar medidas drásticas.
5
Aproximadamente 87% da população defendem o projeto de emenda constitucional, segundo pesquisa do Datafolha.
Disponível em: http://www.politize.com.br/5-argumentos-a-favor-e-contra-a-reducao-da-maioridade-penal/ -acessado em
14/03/2018.
poder público.
O art. 228 da Constituição Federal é considerado uma cláusula pétrea, um núcleo duro
e que não pode ser alterado pelo poder derivado que salvaguarda os direitos fundamentais e a
democracia do país. A idade penal aos dezoito anos foi uma conquista consagrada pela
constituinte de 1988. Sendo assim, a alteração dessa norma pode ser considerada um grave
retrocesso social6.
O medo da violência que acomete a cidade e a responsabilização de adolescentes pelos
crimes estão diariamente nas páginas dos jornais, no noticiário da TV, nos discursos políticos,
na Internet e na fala da maioria das pessoas, que muitas vezes reproduzem o que é dito nos
veículos de comunicação. Isso se confirma quando verificamos a redação da proposta de
emenda constitucional, elaborada pelo deputado Benedito Domingos (PP – Partido
Progressista). O próprio deputado utiliza a mídia como argumento para justificar a
necessidade da alteração da norma, tendo em vista que, segundo a imprensa, a maioria dos
casos de violência é cometido por jovens menores de idade.
O projeto foi publicado em 27 de outubro de 1993, mas não teve continuidade. Por
vezes, pela interposição de apensos que versavam sobre o tema, a discussão da PEC voltou ao
Congresso, mas não seguiu em frente. Entretanto, em março de 2015, a Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a proposta de emenda constitucional
171/39, que visa à redução da idade penal de dezoito para dezesseis anos, dando
prosseguimento ao feito. Independente dos apensos, o texto base da proposta continua sendo
o do deputado Benedito.
6
Princípio do não retrocesso social ou da proibição da evolução reacionária: uma vez conquistados, direitos
sociais e econômicos passam a constituir uma garantia constitucional. Trata-se de um direito subjetivo que,
depois de concretizado, não pode ser diminuído ou esvaziado, mesmo que através de lei ou reforma.
7
Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD27OUT1993.pdf#page=10. Acessado em: 26
de outubro de 2017.
Em 2015, em meio ao processo legislativo da Emenda Constitucional 171/93, ocorreu
um crime de grande repercussão midiática, potencializando as discussões sobre o tema: Jaime
Gold, ciclista, médico, morador da Zona Sul da cidade foi vítima de um assalto na Lagoa
Rodrigo de Freitas. Faleceu no dia seguinte ao assalto em decorrência de golpes de faca. Os
assaltantes eram, supostamente, jovens menores de idade.
A sensação de insegurança em uma importante região da cidade gerou o clamor por
uma resposta punitiva do estado. Além da apreensão dos culpados, a sociedade exigia a
revisão e o endurecimento de penas. Nesse diapasão, muitas reportagens sobre o crime
vincularam e incitaram a redução da maioridade penal. Confirmamos esse entendimento
quando no dia 23 de maio de 2015, um suspeito, menor de idade, negro foi apreendido pela
divisão de homicídios. E uma página inteira do jornal narrou: “Uma história cruel:
adolescente de 16 anos tem histórico de 15 passagens pela polícia por furto e roubo”. A
matéria elabora um diagrama e mostra todos os antecedentes do acusado. No entanto, o
"menor" nega participação no crime. Nos últimos parágrafos, o jornal reacende a discussão
sobre o projeto de emenda constitucional, citando as palavras do governador do Estado:
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8
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