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Arquitetura narrativa das emoções: a dicotomia entre sentidos de proteção

e medo que envolve os “menores de idade”1

FORTUNA, Érica Oliveira2


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
COSTA, Thais3
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Resumo

O objetivo deste artigo é investigar as narrativas jornalísticas sobre o “menor de idade” nas
décadas de 20 e no ano de 2017, observando a produção sentidos. Nossa análise recobre as
reportagens do jornal A Manhã, em 1927, ano em que foi promulgado o primeiro “Código de
Menores do Brasil” e do jornal O Globo na cobertura do caso Jaime Gold, ocorrido em 2015,
época em que acontece o retorno do debate público sobre a redução da maioridade penal.
Trabalhamos com a hipótese de que a construção narrativa do jornalismo apontou emoções
diferentes nessas décadas. Na primeira, o cuidado, visando à proteção dos “menores” e, na
segunda, produzindo sentidos de medo, pavor e ódio que reverberaram no “clamor” pelo
endurecimento de medidas repressivas.

Introdução

Este artigo propõe a investigação da relação entre mídia e legislação penal em dois
momentos: década de 20 e anos 2000. Nossa inquietação se estabelece na percepção de que
jovens “menores de idade” são simbolicamente condenados pela sociedade, em reprovações
sugeridas nas narrativas jornalísticas. Nossa proposta é problematizar as matérias do jornal A
Manhã, publicadas em 1927, pois neste ano fora promulgada a primeira lei específica que
abarcaria a proteção de crianças e adolescentes, o Código de Menores do Brasil. Além disso,
buscamos traçar um comparativo com reportagens de 2015, época em que se volta a discutir a
redução da maioridade penal no país.
A partir da tríplice mimesis de Ricoeur (1994), observamos o processo cíclico que as
narrativas jornalísticas estabelecem, estigmatizando “menores” e promovendo o

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do V Encontro Regional Sudeste de História da
Mídia – Alcar Sudeste, 2018.
2 Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Bolsista CAPES. Mestre em

Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Direito pelo IBMEC. E-mail:
erica.fortuna@gmail.com.
3 Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em História, Política e Bens

Culturais – FGV. Turismóloga – UNIRIO. Docente e Pesquisadora FACHA/UCAM. E-mail:thais_unirio@yahoo.com.br.


endurecimento de penas como meio eficaz na contenção de crimes. Construímos a
metodologia da seguinte forma: no site de buscas Biblioteca Nacional, analisamos a primeira
página de jornal que trouxe a palavra “pivette” no ano de 1927. Este foi o termo utilizado
tendo a vista a sua recorrência quando o assunto aborda a prática de crimes que envolvem
meninos4.
Em 2015, optamos pela cobertura do jornal O Globo sobre o caso do ciclista Jaime
Gold, morto em decorrência de um roubo na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, que
gerou grande repercussão midiática. Este foi o ano em que a redução da maioridade penal
voltou ao debate público e noticiários do país. Estamos interessados em analisar como as
matérias jornalísticas estão formuladas para entender suas significações. Analisando tais
construções e suas técnicas interpretativas, podemos visualizar e entender o processo de
produção de sentidos que estigmatiza os jovens negros e pobres como “bandidos”.

Emoções e vinculação social: arquitetura das narrativas

Ocorre que o estado afetivo em que o grupo se encontra reflete as


circunstâncias que ele atravessa. Não são apenas os próximos mais
diretamente atingidos que transmitem sua dor pessoal à coletividade, a
própria sociedade exerce sobre seus membros uma pressão moral para
que harmonizem seus sentimentos com a situação. Permitir que
permanecessem indiferentes ao golpe que a fere e reduz seria
proclamar que a sociedade não ocupa seu lugar de direito nos corações
de seus integrantes; seria negar a própria sociedade (DURKHEIM,
1996, p. 337).

A escolha da maneira como contamos os fatos é uma forma consciente (ou não) de se
estabelecer a experiência humana no tempo. Quando pensamos em narrativas construindo
representações, as contribuições de Paul Ricoeur (1994) são primorosas, pois, para o autor,
narrar é organizar o tempo, dar sentido através do tempo. Esse tempo, porém, não é só
cronológico, mas também um esforço de produção de sentidos. Trazemos no presente o nosso
passado e futuro. A história é contada para estar no mundo e assim entendê-lo. Ao narrar,
criamos o acontecimento, a identidade, dizemos quem somos. Com Ricoeur (1994),
percebemos que a narrativa não se resume a uma problemática linguística. Ela permite
representar no discurso diferentes perspectivas. Para Benjamin (1994), nela se imprime a

4Referimo-nos apenas aos meninos, pois não encontramos matérias em que meninas fossem acusadas de da prática de
violência urbana.
"marca do narrador", que se apóia em sua própria experiência ou na que é relatada pelos
outros. Podemos e devemos ir além do sentido do texto, projetado no mundo do leitor.
Ricoeur (1994) afirma que o ponto de chegada é também o ponto de início, de
recomeço. Esse processo de apreensão pode nos passar a ideia de circularidade, mas o
processo narrativo “perfeito” deve ser espiralado, possibilitando que o leitor construa a sua
própria opinião, sem ideias engessadas que direcionam sentidos. A tríplice mimesis forma um
arco hermenêutico pelo qual existem duas formas de completar o pensamento: uma em que o
leitor recebe a informação e se fica no mesmo lugar, estabelecendo um ciclo vicioso; em
segundo, a que ele interpreta e apreende os fatos, originando a construção de outras narrativas.
Esse último chama-se procedimento espiralado em que o leitor pode imaginar a realidade de
uma forma diferente e projetar um novo futuro.
No jornalismo, avistamos o caráter cíclico e a formação de ideologias. Com narrativas
repetitivas e persuasivas ao longo da história, o jornal seleciona os fatos sobre violência que
devem sem publicizados e classifica os responsáveis. Conforme a epígrafe destacada, Le
Breton (2009) coaduna com o entendimento de Durkheim (1996) e dialoga, ainda, com os
estudos de Ricoeur (1994), dando a ver que todo esse processo de apreensão está diretamente
ligado à afetividade e à vinculação social: “mesmo a atividade de pensar não escapa desse
filtro [emoção]” (LE BRETON, 2009, p. 111).

O homem não se insere no mundo como um objeto atravessado de


sentimentos passageiros. Intricado em suas ações, suas relações com
os outros, com os objetos que o entornam, com o seu meio, etc., ele
está permanentemente sob influência dos acontecimentos e sendo por
eles tocado. Mesmo as decisões mais racionadas ou mais “frias”
envolvem afetividade. São processos embasados em valores,
significados, expectativas, etc. Seu processamento envolve
sentimentos, o que diferencia o homem do computador (LE BRETON,
2009, p. 112).

A arquitetura da narrativa é fluída. Nesse sentido, a afetividade também está


eternamente em movimento, utilizando aspectos conscientes e inconscientes, e a emoção
passa a ser o fio condutor desta linha de pensamento. Mas não se trata de questão apenas
individual, visto que a afetividade está diretamente ligada ao senso comum. Nesse sentido, os
aspectos simbólicos em que o grupo está inserido podem influenciar as formas pessoais de ver
o mundo.
Temos uma estruturação de pensamento que perpassa pela tríplice mimesis (Ricoeur,
1994) e está irremediavelmente atravessada pelos afetos. Nas diversas e complexas visões de
mundo, a emoção apreendida, o repertório cultural e as trocas em grupos ajudam a formar
aquilo que a pessoa é, pensa e faz. Portanto, o individual também é formado a partir da
relação com o outro.

O “menor de idade” na década de 20

Em 1920 foi criada a primeira legislação específica destinada a cuidar de crianças e


adolescentes no país. Antes disso, o código penal fazia menção a algumas regras que
deveriam ser cumpridas, mas não existiam normas que visassem proteger meninos e meninas.
Nesse contexto, a mídia também foi o estopim para a reflexão sobre o assunto. Em
1926, o Jornal do Brasil trouxe a história de um menino na Santa Casa “em lastimável
estado”. No Rio de Janeiro, um engraxate de doze anos discutiu com um cliente que não quis
pagar pelo seu trabalho. Irritado, o menino atirou tinta no cliente e foi preso por quatro
semanas. Na cela, o garoto foi violentado por vinte adultos. Os repórteres o encontraram na
Santa Casa e os médicos estavam indignados com tal situação.
A emoção provocada pela veiculação da notícia causou muita polêmica e iniciou um
debate público que chegou ao Congresso e ao Palácio do Catete, sede do governo federal. Foi
quando o presidente Washington Luís assinou, no dia 12 de outubro de 1927 (dia das
crianças), a primeira legislação específica para a infância e a adolescência no Brasil. Uma das
normas mais importantes dizia que apenas os maiores de dezoito anos de idade poderiam ser
criminalmente responsabilizados e encarcerados.
De acordo com Le Breton (2009), os sentimentos se propagam por acontecimentos
passados, presentes ou futuros, tanto de forma real como imaginária, na relação do homem
com o mundo. Sendo assim, produzindo sentidos de afeto e cuidado, observamos uma notícia
- com relevância midiática - auxiliando e expondo a necessidade de proteção legislativa (mas
não apenas essa) para meninos (as) e jovens do país.
Para entendermos as narrativas jornalísticas dessa época, analisaremos a reportagem
do jornal A Manhã:Ao contrário das outras: as redes policiais só apanham peixes miúdos...
(1926, edição 00255, capa). Na foto, a legenda: cinco pequenos “cabeças de turco”. Na sua
quasi ingenuidade, dois delles encaram a machina photographica.... pallidos de espanto.

Demos hontem notícia do pretendido assalto à casa do capitalista Sr.


Manoel Menezes, em Inhaúma, evitado com a prisão do “pivette”.
Descoberto, Benedicto Marques do Santos, que consta apenas 15
annos, disse ter sido destacado para ali por dois consummados ladrões
com incumbência de facilitar-lhes a entrada no prédio. Benedicto citou
dois vulgos – “Paquetá” e “Laranja”, como sendo os organizadores do
assalto.
Hontem, no afan de mostrar “serviço”, os investigadores do Meyer
foram à praça 15 de Novembro, afim de capturar os acusados e, à falta
de outros criminosos, “grampearam” cinco garotos, desses que, sem
proteção dos poderes públicos e por culpa da própria polícia,
perambulam, vadios, pelas ruas da cidade.
Não eram esses, positivamente, os ladrões procurados, mas, no intuito
de concluir a “fita” os sherlocks recambiaram Álvaro José da Motta,
Antônio Porto, Oswaldo Ferreira, Octacílio Ramos e José da Silva,
para a secção de roubos e furtos do Meyer, onde ficarão “mofando”
até que surjam os authenticos “escrunchantes” ou, pelo menos, até
que, desappareça o pavor de que se acham possuídos os moradores de
Inhaúma, onde a polícia, como no resto da cidade, é invisível.
O mais engraçado é que aos “meliantes” (os que a nossa photographia
mostra seriam capazes, se tanto, de furtarem um queijo ou um pão
para matar a fome, foram dadas alcunhas, os chamados nomes de
guerra: “Mãosinha”, “Galleginho”, “Sanfona” e até mesmo “Laranja”!
E dizer-se que a cidade está cheia de conhecidíssimos “vigaristas” e
“punguistas”, que os argutos investigadores não vêem!...
A reportagem fala sobre um grupo de jovens que foi preso para dar uma resposta à
sociedade, pois os verdadeiros culpados não foram encontrados. Ela foi uma suíte, com intuito
de esclarecer fatos narrados no dia anterior. O texto, o título e a foto direcionam sentidos. O
jornalismo tenta reproduzir o cenário da vida real na página do jornal. Assim sendo, o corpo
do jovem negro representado na foto oferece sensações, imaginadas ou não. “Na constituição
dos imaginários urbanos, cidade e corpo se comunicam, veiculam mensagens e jogam um
importante papel” (SIQUEIRA e SIQUEIRA, 2011, p. 660).
Mesmo com palavras que, de alguma forma, estigmatizam os jovens como
“vagabundos”, o jornalista problematiza a ausência de intervenção do poder público em
questões sociais. Ele está indicando a carência que existe naárea da educação, saúde, moradia,
cultura, entre outras que poderiam ajudar (e muito) a edificar uma vida digna para esses
meninos. O repórter está desempenhando seu papel de alertar e denunciar, mesmo que nas
entrelinhas, essa problemática tão difícil que afeta a cidade.
Cabe ressaltar que isso não é comum nas reportagens contemporâneas. O narrador
deixa claro que a prisão cumpre o papel de acalmar sentimentos de medo naquela área da
cidade. Entretanto, o verdadeiro culpado não foi encontrado e poderia continuar cometendo
crimes. A matéria não enxerga apenas um lado da história, ela contextualiza ações praticadas
por diferentes atores: homens que foram acusados e não encontrados, os “menores” que
serviram de “bode expiatório”, os policiais que “resolveram” o caso, os moradores assustados
com o crime, além de passar as condições em que tudo aconteceu.
O jornalista deu voz a diferentes perspectivas sobre o mesmo fato. Dessa forma, os
leitores tiveram a oportunidade de aprofundar a história e tirar suas próprias conclusões, sem
que a mensagem fosse recebida de forma pronta, engessada e unilateral. O jornal pôde
esclarecer certos sentidos. É notório que ele destaca a sensação de medo, tendo em vista que
os verdadeiros criminosos ainda estão soltos, mas ele também mostra que não há necessidade
de nutrir sentimentos ruins sob aqueles meninos negros que “mal conseguem encarar a
fotografia para o jornal”. Acreditamos que a forma de narrar com diferentes informações e
visões sobre o caso, ajudou a desvendar sentidos antes direcionados pela matéria do dia
anterior.
Importante observar que, na mesma página, há outra matéria que relata um acidente de
carro. Nesse caso, o jornal continua tratando o menino como “menor”, mesmo sendo branco e
de família abastada, além de estar na posição de vítima, pois foi o atropelado. Esses são
indicativos de que a narrativa jornalística da época tratava todos os meninos (as) como
“menor”, independente de cor, condição social ou lugar em que ocupa na história.
Michel Mauss (1999), estudando a expressão obrigatória dos sentimentos em rituais
australianos, observa a construção social das emoções dentro de uma comunidade.

Não são somente os choros, mas todos os tipos de expressões orais


dos sentimentos que são essencialmente, não fenômenos
exclusivamente psicológicos, ou fisiológicos, mas fenômenos sociais,
marcados eminentemente pelo signo da não-espontaneidade, e da
obrigação mais perfeita (MAUSS, 1999, p. 325).

O autor entende todo esse processo simbólico das sensações como um fenômeno
social. Sendo assim, podemos pensar na construção social que se estabelece na ceara do
jornalismo por meio de aproximações e distanciamentos das emoções. De acordo com as
reportagens analisadas, o jornal cristalizou sentidos de cuidado e proteção com crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade. A opinião pública aproximou a sociedade dessa
questão, fomentando a necessidade de uma nova legislação que os amparasse.
As pessoas possuem sentimentos aparentemente produzidos de forma individual, mas
que são sempre esperados pelo grupo a que pertencem. O coletivo enuncia atitudes e condutas
que devem ser seguidas. Por sua vez, a mídia contribui sobremaneira nesse sistema,
principalmente porque “joga” com as emoções. Nesse sentido, quando pensamos nas matérias
jornalísticas, observamos que a sociedade sentiu a necessidade de resguardar crianças que
estavam desassistidas na década de 20. Enquanto isso, no ano de 2015, a sociedade quer se
sentir segura e a grande maioria apoia a da diminuição da idade penal com intuito de diminuir
a violência urbana, sem problematizar consequências de tal medida5.
Contudo, não há como ignorar que o indivíduo tem seus próprios sentimentos de dor,
alegrias, medo, tristeza, além de tantos outros. Porém acreditamos que a força do grupo mais
do que elevar “sentimentos em coro”, pode criar ou direcionar novas e/ou diferentes
sensações. Assim, são expressões que podem ser construídas para os olhos dos outros. De
acordo com Muniz Sodré (2006), é o sensível criando mais do que uma relação e sim uma
vinculação social. Em certos momentos, o indivíduo pode ser induzido pelo grupo a sentir-se
da mesma forma que a “maioria” e apoiar medidas drásticas.

2015: o retorno da discussão sobre a redução da maioridade penal

A cobertura jornalística policial ganhou força no final do século XX no Brasil. Nos


últimos vinte e cinco anos, destaca-se a emergência da redução da maioridade penal. Segundo
a cobertura dos principais jornais cariocas, a sociedade “clama” por uma solução imediata.
Nessa perspectiva, o jornalismo apresenta narrativas que parecem fomentar o endurecimento
da legislação penal. De forma cíclica, o público fala sobre o assunto e o jornal o alimenta com
narrativas repetitivas que podem levar à estigmatização, apontando culpados.
De tempos em tempos, projetos que visam à diminuição da maioridade penal voltam à
pauta legislativa. Esses ciclos obedecem à pressão política de atores sociais que têm interesses
no agendamento dessa pauta. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal rejeitaram,
inúmeras vezes, emendas que versavam sobre o tema, pois consideravam a alteração da idade
penal uma violação constitucional. A recorrência com que as emendas aparecem pode ser
observada como termômetro do comportamento social. É evidente que não estamos afirmando
que o Legislativo brasileiro seja consuetudinário, mas sofre os impactos das oscilações do

5
Aproximadamente 87% da população defendem o projeto de emenda constitucional, segundo pesquisa do Datafolha.
Disponível em: http://www.politize.com.br/5-argumentos-a-favor-e-contra-a-reducao-da-maioridade-penal/ -acessado em
14/03/2018.
poder público.
O art. 228 da Constituição Federal é considerado uma cláusula pétrea, um núcleo duro
e que não pode ser alterado pelo poder derivado que salvaguarda os direitos fundamentais e a
democracia do país. A idade penal aos dezoito anos foi uma conquista consagrada pela
constituinte de 1988. Sendo assim, a alteração dessa norma pode ser considerada um grave
retrocesso social6.
O medo da violência que acomete a cidade e a responsabilização de adolescentes pelos
crimes estão diariamente nas páginas dos jornais, no noticiário da TV, nos discursos políticos,
na Internet e na fala da maioria das pessoas, que muitas vezes reproduzem o que é dito nos
veículos de comunicação. Isso se confirma quando verificamos a redação da proposta de
emenda constitucional, elaborada pelo deputado Benedito Domingos (PP – Partido
Progressista). O próprio deputado utiliza a mídia como argumento para justificar a
necessidade da alteração da norma, tendo em vista que, segundo a imprensa, a maioria dos
casos de violência é cometido por jovens menores de idade.

O noticiário da imprensa diariamente publica que a maioria dos crimes


de assalto, de roubo, de estupro, de assassinato e de latrocínio, são
praticados por menores de 18 anos, quase sempre, aliciados por
adultos. A mocidade é utilizada para movimentar assaltos,
disseminação de estupefacientes, desde o "cheirar a cola" até o viciar
se com cocaína e outros assemelhados, bem como agenciar a
multiplicação dos consumidores. Se a lei permanecer nos termos em
que está disposta, continuaremos com a possibilidade crescente de ver
os moços com seu caráter marcado negativamente, sem serem
interrompidos para uma possível correção, educação e resgate (D.O.
1993, p. 230637).

O projeto foi publicado em 27 de outubro de 1993, mas não teve continuidade. Por
vezes, pela interposição de apensos que versavam sobre o tema, a discussão da PEC voltou ao
Congresso, mas não seguiu em frente. Entretanto, em março de 2015, a Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a proposta de emenda constitucional
171/39, que visa à redução da idade penal de dezoito para dezesseis anos, dando
prosseguimento ao feito. Independente dos apensos, o texto base da proposta continua sendo
o do deputado Benedito.

6
Princípio do não retrocesso social ou da proibição da evolução reacionária: uma vez conquistados, direitos
sociais e econômicos passam a constituir uma garantia constitucional. Trata-se de um direito subjetivo que,
depois de concretizado, não pode ser diminuído ou esvaziado, mesmo que através de lei ou reforma.
7
Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD27OUT1993.pdf#page=10. Acessado em: 26
de outubro de 2017.
Em 2015, em meio ao processo legislativo da Emenda Constitucional 171/93, ocorreu
um crime de grande repercussão midiática, potencializando as discussões sobre o tema: Jaime
Gold, ciclista, médico, morador da Zona Sul da cidade foi vítima de um assalto na Lagoa
Rodrigo de Freitas. Faleceu no dia seguinte ao assalto em decorrência de golpes de faca. Os
assaltantes eram, supostamente, jovens menores de idade.
A sensação de insegurança em uma importante região da cidade gerou o clamor por
uma resposta punitiva do estado. Além da apreensão dos culpados, a sociedade exigia a
revisão e o endurecimento de penas. Nesse diapasão, muitas reportagens sobre o crime
vincularam e incitaram a redução da maioridade penal. Confirmamos esse entendimento
quando no dia 23 de maio de 2015, um suspeito, menor de idade, negro foi apreendido pela
divisão de homicídios. E uma página inteira do jornal narrou: “Uma história cruel:
adolescente de 16 anos tem histórico de 15 passagens pela polícia por furto e roubo”. A
matéria elabora um diagrama e mostra todos os antecedentes do acusado. No entanto, o
"menor" nega participação no crime. Nos últimos parágrafos, o jornal reacende a discussão
sobre o projeto de emenda constitucional, citando as palavras do governador do Estado:

Eu não quero que a gente fique enxugando gelo. A maioria de apreensões


que fazemos é de menores. (...) Só quero que seja feita uma discussão no
Congresso Nacional. A polícia bateu recorde de apreensão de menores e não
está sendo suficiente (O GLOBO, 23/05/2015, p.8).

Em 21 de maio de 2015, página 11, encontramos a reportagem intitulada


“Frequentadores mudam a rotina para driblar assaltos”. A promoção da mídia na segregação
na cidade aparece ainda mais clara. O jornal veicula um mapa da Lagoa Rodrigo de Freitas
indicando os locais mais perigosos. O conteúdo da reportagem informa como as pessoas estão
mudando suas rotinas e evitando o local. Quando traçamos rotas “seguras” excluímos lugares
que não são considerados bons, com isso também excluímos e separamos pessoas,
alimentando o próprio ciclo da violência. Estamos escolhendo o nosso caminho, em todos os
sentidos.
Na sequência da matéria, o seguinte subtítulo: “Em quatro meses, 167 feridos a faca
no Rio”. Essas narrativas incitam o medo e aumentam o temor a assaltos por faca. Baseado
nos números de quatro hospitais, o texto não diz ter havido qualquer comprovação que esses
ferimentos aconteceram em decorrência de crimes, ou, que a violência de fato tenha
aumentado. Essa técnica de unir assuntos aparentemente "interrelacionados" não foca no que
realmente está acontecendo e potencializa questões que provavelmente já existiam,
aumentando a sensação de insegurança.
Para Bauman (2008), o caos social que se instala tende a inibir a sociabilidade,
esvaziando o espaço público como local de encontros de diferentes classes sociais. O medo e
a banalização da exclusão social estão presentes nos noticiários de violência. Isto ocorre
porque, segundo o autor, a mídia costuma narrar o fato sem contextualizá-lo. Muitas notícias
são passadas com dados objetivos e caráter espetacular, inibindo o espaço de reflexão,
privilegiando, a priori, o acontecimento pontual. Ao preocupar-se mais com a forma da
informação do que com a problematização, a mídia muitas vezes gera informação
desqualificada. São narrativas que reforçam o medo. Nesse sentido, o indivíduo/governante
busca incessantemente medidas de proteção que acabam por estimular a própria violência. Se
pensarmos no caso específico do Rio, temos como exemplo de segregação espacial e
discursiva os condomínios fechados, o piscinão de Ramos e a suspensão de linhas de ônibus
que ligavam a Zona Norte à Zona Sul.
O conceito de “pânico moral”, desenvolvido pelo sociólogo americano Stanley Cohen
(1972), nos ajuda a entender o apoio de grande parte da população a certas políticas de
segurança pública no combate à violência. Pânico moral é um comportamento social que
promove uma espécie de “histeria coletiva” das classes mais abastadas contra certos atores
que são marginalizados e encarados como ameaças morais. A mídia, através de um
agenciamento discursivo, é parte fundamental na descrição e culpabilização de determinadas
pessoas. Nas palavras de Cohen (1972): “indivíduo ou grupo social que começa a ser definido
como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; sua natureza é apresentada de modo
estilizado e estereotipado pela mídia de massa” (COHEN, 1972, p. 1). Os “menores de idade”,
nessa concepção, são os sujeitos responsáveis pela “onda de terror” que se estabelece através
de uma “onda de violência”, provocando “pânico” por onde passam.
A expressão “menor de idade” parece se tornar um conceito. Esse conceito revela a
constituição de um mito, pois busca explicar e ordenar a realidade, separando os “bons” e
“maus”. De acordo com Siqueira e Siqueira (2011), o conceito consegue traçar uma nova
história com base no mito. O “menor de idade” narrado na década de 20 que não faz distinção
entre negros e brancos, ricos ou pobres, parece ter sido esvaziado enquanto significado para
dar origem a uma história moderna, implementada pelo mito, produzindo outros sentidos: o
“menor de idade” dos anos 2000 se encontra estigmatizado como “bandido” e um dos
principais responsáveis pela violência urbana no Rio de Janeiro.
Considerações finais

O medo é uma das sensações mais presentes no jornalismo carioca, principalmente no


que diz respeito à produção de sentidos dos espaços urbanos. As representações do jovem
“menor de idade” reverberam em toda a cidade, trazendo consequências concretas desse
processo simbólico. O Rio de Janeiro encontra-se atravessado por discursos de uma “onda de
violência” que direcionam sentidos de pavor e ódio, responsabilizando jovens supostamente
“infratores”. A redução da maioridade penal parece uma forma de aplicar soluções para
corrigir certos “desvios8”.
Quando identificamos a mudança no olhar que existia na década de 20 para o ano de
2015 por parte das instituições midiáticas, políticas e da sociedade, recorremos a Le Breton
(2009), para quem “o homem está afetivamente presente no mundo. A existência é um fio
contínuo de sentimentos mais ou menos vivos ou difusos, os quais podem mudar e
contradizer-se com o passar do tempo e de acordo com as circunstâncias” (LE BRETON,
2009, p. 111). Ou seja, sob uma perspectiva sociológica a forma de construir emoções por
parte do jornalismo, instâncias legislativa/jurídica e sociedade mudaram, alterando, por
conseguinte, as visões tanto do jornalista quanto do leitor que estão no mundo, narrando ou
apreendendo fatos.
O contexto afetivo do medo, violência, vingança e insegurança pública que nos cerca,
espiralou (RICOUER, 1994) e distorceu o pensamento ao longo de décadas. Dessa forma, a
implementação de medidas repressivas que não problematizam questões sociais caras à
população tornou-se, ao que nos parece, uma das principais “soluções para a violência urbana
no estado do Rio de Janeiro” – argumento comumente utilizado por políticos que ocupam
cargo executivo em nossa cidade. Ocorre uma força moral e política na organização do
comum.

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