Francisco de Oliveira

A NAVEGAÇÃO VENTUROSA ;
Ensaios sobre Celso Furtado
-,
 A NAVEGAÇÃO VEI:JTUROSA*

1. O teórico do su b d esenvo lvim ento

, . ,
A vasta, abrangente e diversificada obra intelectual de Celso Fu rt ado
representa um marco na hi stó ria e na produção das ciências sociais em
escala mundial. Nenhum outro autor contribuiu tanto para constituir
as econ om ias e so~iedades subdesenvolvidas em objeto específico de es'-
tudo. Para ser rigoroso, é preciso dizer que Raúl Prebisch, criador da
C om issão Econômica para a América
I
Latina
.
(Cepal) e mentor daque-
labrilhanre equipe de qu e Furtado foi um dos mais eminentes m em -
bro s, é, de certa forma, no famoso relatório d a Cepal de 1949, seu pre-
decessor mais im port ante. M as Prebisch jamai s alcançou a dimensão de
Furtado como cientista social, tendo-se restringido ao que se co nvencio no u
chamar "ciência econ ômica", e não podendo) pela sua condição de buro-
crata in ternacional; empreender sequer a crítica de sua própria produção.
No vácuo da produção marxista, que desde Leniri, com O desen volvi-
mento do capitalismo na Rússia ** - rigorosamente um estu do da form ação

* Introdução à obra Economia. (Coleção Grandes Cient istas So ciais - Celso Purrad o)
São Paul o, Ãt ica, 1983. .
** Vladimir I. Lenin. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de
formaç ão do me rcado inte rno para a grand e ind ústria. São Paulo , Abril Cultural.
1982 (Série O s Econ o mistas).
 12 Francisco de Olivei ra
de uma economia subdesenvolvida - , paro u e ficou repetindo velhas arengas,
Furtado emerge nos anos 1950, a parrir d os esrudos da Cepal, inaugurando
·o q ue veio a ser chamado "m étodo hist órico-estrutural", adequado para ex-
· plicar a formação dessas economias e sociedades no sisrema capirali sra para
além da do m inação colonial. O nome dado ao ripo de análise, menos que
um m érodo, é sim ulraneam ente uma denú nc ia da falência do mérodo
neodássico, a-histórico, então soberano na análise econômica, e "um reco-
n heci mento' da necessidade de histo ricizá-la, O vigor de sua contrib uição
resid e pr ecisamente na tentativa de descobrir a especificidade da for ma ção
dessas eco no m ias e sociedades subdesenvolvidas. Sua m arca caracrerística é
o aba ndono do clichê do colon ialismo em que havia naufragado a reorização
m arxisra dep ois do br ilhanre e definitivo esrud o desse auro r - abertura de
cam in hos teóricos - lido como "aplicação" da teoria marxista e parado xal-
menre um dos menos conhecidos e estu dado s trabal hos desse tema. Por
outro lado , a teorização furradiana recusa tam bém O velho e surrado esq uem a
da divisão inrernacional do trabalho comandada pelas "vanragens comparari- .
· vas", de inspiração ricardiana e mal barararnenro neoclãssico 'e marginalisra.
O esquema teórico furtadiano explica as economias e as sociedades
subdesenvolvidas m edianre um a inversão da reor ia da s vantagens com-
parativas. Estas convertem-se numa espécie de "desvantagens reiterativas":
é a pa rrir da hisrória da América Larina - cuj a inserção n a divisão interna-
cio nal d o tra ba lho do capitalism o mercanril em exp ansão na Europa dos
séc ulos XVI e XVII funda as diversas economias latino-am ericanas - q ue
se produz a teo rização. A especialização dos países da América Larina na
pro d ução de bens primários converte-se em d esvan tagem na m edida em que
os países centrais do sistema capitalista passam a ser predom inan temente
prod u ro res e exp ortad o res d e man ufat u rados. Por m eio d a de sigualda-
de n.a rela ção de trocas do com ércio internacional, instaura-se um mecanis-
mo de sucção d o excedente eco nô m ico lat ino -america no por parte das
econom ias dos países centrais, que é ao mesmo tempo a reiteração, para
os primeiros, da condição' de produrores de ben s primários.
Essa ligação-reiteração dos serores agroexportado res d as economias
latino-america nas depende, sem p re, da deman da dos p aíses centrais.
Intername nte, o seto r exportador é o seto r "moderno", que se comporta
A navegação vent urosa 13
di namicamente quand o assim o favo rece a deman da ext erna, mas que
pela co rrt ín ua deterioração dos termos de intercâm bio vê ro ubada uma
parre su bst ancial do excedente q ue prod uz, Essa ligação -roubo não dá
ao sero r ex po rtador um papel inrerno tra nsformado r d as esrruturas eco-
nômicas e sociais. Ele se faz "moderno" em si mesm o, mas não se faz
atrasa O , rep resenrad o pe Ia Iarga pro - '
"m o d erno " para o outro seto r, o "atrasado"
dução agrícola de sub sistência, que na v ulgarização da teo ria foi d ep o is
assimilado à agr icultu ra em geraL O sero r exporrador é esp ecializad o na
produção de algu m as po ucas mercadorias primárias, que tanto pode m
ser o café, a carne o u o trigo , o u na pro dução mineral (caso, sobret udo,
do C hile). E tanto ele qua nro as cid ades devem ser alimenr ados pela agricu l-
tura de subsistência , o setor "atrasado" da economia, que tem dinâm ica
próp ria, in fensa ao que se passa no sero r "moderno", exportado r, Está de
pé o "dual-estruturalismo". .
A tese ce palino-furrad iana da dualidade distingue-se da co nsratação
geral e h isró rica do "desenvolvim en to desigu al e combinad o" da trad i-
ção marxista (Len in e Trotski ) precis amenre porque para Furrad o e ·a
C ep al o desenvolvimenro é desigual - ta nto pelas d iferenças de grau e
ritmo de desenvo lvim ento quanto pelas difere nças q ua litativas entre se-
rores que se de sco nhecem entre si - , mas não é combinado. Os dois seto-
r~s não têm relações articuladas:.o setor "atrasado" é apenas um obst ácu-
lo ao crescimento do setor "moderno", principa lmente porque, por um
lado , não cria mercado intern o e; por outro, não atende aos requi sitos
da demanda de alimentos. Nem sequer a clássica fun ção de "ex ército de .
reserva" o I'atrasado;' cumpre em relação ao "moderno": seria de supor
que os exce den tes po pulacio nais pr oduzid os pela lei interna de popula-
ção do seror "atrasado" contribuíssem para, aumenrando a oferta de mão-
de -o bra no seror "m oderno", reb aixar os salários reais, o q ue lhe realçaria
as fun ções na ac um ulação do "m odern o". M as a tese d ual-estruturalista
postula que o atraso do "atr asado", ao elevar os preços dos alim ento s,
contribui para elevar os salários do "moderno" e, por essa razão, conver-
te-se em obstdculo à expansão do "m odern o".
D essa "contradição sem negaç ão" entre o "m ode rno" e o "atrasado"
n asce uma das mais importan tes teses cepa linci-furtad ianas: a d a in fla-

14 Francisc o de O liveira
ção estrutural, que é, por sua vez, uma das contribu ições ma is no táveis
ao pensamento econômico. Esta , a inflação , é estrutural num dupl~ sen-
tido: em prim eiro lugar, a contínua deterioração dos preços de Inter-
câmbio entre as econ omias centrais e as economias latino-americanas
ob riga estas a aumentare~ constantemente a produção em volume fí~i­
co para co mpen sar a queda dos preços internacionais das me rcadorias
que exportam; em segundo lugar, a inelasticidade da oferta agrícola de
alimentos produzidos pelo "atrasado" - uma concl usão fundada n um
aspecto peculiar à economia chilena, o qual ocorr e conjuntura lmente
em alguns outros países latino-amer icanos - eleva os preços e instaura
uma corrida en tre preços e salários no setor "mo derno".
O remédio _ a teorização cepalino-furtadiana faz-se em função da pro -
posição de políticas - para sair do círculo vicioso do subdesenvolvimento é
industrializar-se. Utilizando-se de um vasto e eclético arsenal , que vai des-
de um protecionismo à List - não o compositor-virtuo se, mas o doutrinador
da car relizaçâo alemã do século XIX - até Lord Keynes - cujo multiplica-
dor do emprego explica como a industrial ização gera maior quantidade
e diversidade de empregos e, por isso, eleva a renda, pondo em ação um
mecanismo realimentador -, a proposição de Furtado e da Ce pal converte-
se na ma is poderosa ideologia industrialisra e, ao contrário do destino de
muitas ideologias, influencia e determina políticas c on cretas, agen das
de ação dos vários governos latino -ame ricanos. Co m a proposta de indus-
trialização, Furta do pretende solucionar todos os problem as: por um lqdo,
corta o nó górd io da relação que deteriora continuamente os preços de
int ercâmbio, pois supõe - uma de suas falhas - que, se os países latino-
amer icanos passassem agora a exportar produtos manufaturados em vez
de bens primários, a relação de intercâmbio se modifi caria favoravelmente
a eles; por ou tro , põe fim à inflação estrutural qu e advém da insuficiência
dinâmica do setor externo , derivada precisamente da relação qe intercâm-
bio desfavorável. Diante do problema da opos ição entre o "moderno" e o
"arrasado", que enfraquece o me rcado interno e gera uma inflação de
custoS e preços desfavorável à expansão do "moderno" (que será agora a
ind ústria), propõe-se a reforma agrária: ela é o elemento viabilizado r da
indu strialização, pois, ao mesmo tempo que cria mercado int erno, au-
A navegação ven r u r c s ~
menta a oferta de.alimentos , desbloqueando a acumulação por impedir o
aumento dos salários nom inais.
O du al-estruturalismo não é de modo nen h um uma teorização vul-
gar. Sua força residiu , sobre rudo, em apontar a emergência de pro cessos
qu e não eram perceptíveis nem importantes para as ou tras vertentes teó-
ricas. A d ualidade "atrasado-moderno" escapa, por exemplo, tanto à a-his-
toricidade do método neoclássico quanto ao mecanicismo das "eta pas"
e dos modos de produção seqüenciais próprios do sralinisrno convertido
em orácu lo do marxismo. Mas ele tam bém - in clusive porque teoriza
contemporaneamente os próprios processos que percebe - mascara os novos
interesses de classe que se põem .agora como "interesses da Nação". O prote-
cion ismo à List vem tarde dema is: as burg uesias e seus interesses, funcio-
nando como estruturadore s de Esta dos nacion ais, são também um a
construção dos séculos XVIII e XIX .
. Tendo em 'conta sua raiz keynesiana, decorr ente não apenas da utili- .
zação das contas nacionais, o esquema cepalino-furradia no já demons-
tra, pelo menos, uma primeira inconsistência teórica. D ificilmen te se
poderia esperar igual agregação de valor ent re a produção de bens prim á-
rios e aproduç ão de bens ma nu faturados. E é essa agregação diftrencia-
da que fu nda, na aparência, essa "troca desigual". Do ponto de vista de
sua formalização, um exame ma is acura do levaria a não postular essa
apa rência, pois a base da teoria da conta bilidade social repousa exata-
mente sobre a noção de valor agregado , e não seria de esperar q ue eco"
nom ias com divisões sociais do trabalho tão desiguais produzissem o
mesmo valor agregado; os preços internac ionais e a relação de trocas
deles decorrentes são, em parte, um fenômeno diretamente derivado dessa
difere nciação da divisão social do trabalho e da agregação de valor po r
ela pro duzida.
A versão marxista, que desde logo não é a que postulam Furtado e a
Cepal, a "troca desigual" de Samir Ami n e Argh iri Eman uel, é ainda mais
contraditória. Esses teór icos deveriam voltar a Marx, pois ele é explícito: o
comérci o internacional, ou, em outras palavras, a estruturação pelo capi-
talismo ind ustrial de uma divisão internacional do trabalho, não se dd
mediante troca desigual de valores. A famosa comparação entre o valor pro-

16 Fran cisco de O liveira
duzido por um artesão chinês e o que resulta do emprego da força de
tr;balho de um ope rário inglês é suficientemente clara a respeito.
Tanto a ~ersão cepalino-furtadiana quanto a marxista de Amin-Emanuel
não con rem plaram a possib ilidade teórica" que se deu n a prática, da
estrutu ração da divisão internacional do tra balho sob o capitalismo indus-
trial. Em prime iro luga r, não perceb eram o fato inegável de que o estabe-
lecim ento de colônias é, em si mesmo , um ato de rapina, de saque, pan e
do amplo processo de acumulação primitiva que, ta nto nos futuros países
cent rais quanto nas suas colônias, esrá fundando o capitalismo. Ec: se-
gundo lugar, tanto a fragilidadeda teoria monetária em sua versão cepalino-
furtadiana como a da versão ma rxista Amin-Emanuel não conseguiram
desvenda r o m istério da "troc a desigual": esta não se dá porque exista
desequilíbri o na relação de tro cas, senão porque é a hegemonia d~ capital
fina nceiro dos países centrais sob re a produção da "periferia ", como é o
caso da Amé rica Latina , que estrutura o próprio,sistema de preços in terna -
cional, fazendo com que a mo eda no s países dependentes expre sse menos
o valor da ho ra de rrabalho e mais sua função na circulação interna do
excedente e sua relação - a taxa cam bial - com a moeda hegemônica.
Logo, te ntar medir p elos preços a relação desigual ent re as produções cen-
trais e as das "periferias" não apenas não permite ent en der a ques tão como
não faz nenhum. sent ido: Aqui, uma vez mais, o feriche do dinheiro tor -
nou opaco o processo real. E vale lembrar que o cam inho aberto por Lenin
com a teoria do imperialismo for necia, pelo menos, as pistas teóricas ini-
ciais para o ap rofundament o da que stão . Que a ve rsão cepalino-furtadiana
não inco rporasse essas pistas é, até certo ponto , compre ensível, mas que as
cham adas versões rnarxistas da "troca desigual" rambém não as ten ham
inco rpo rado é sim plesme nte lament ável. N este caso, a teoria do imperia-
lismo deu um passo atrás, tornan do-se um a versão pobre que não desven-
dou os mecanismos reais, vol tando, mo nocordiamen te, aos chavões do
coloni alismo e do neocolon ialismo.
A rigor, por n ão ter incorporado a teorização de Marx sobre a
internacionalização do capital, Fu rtado e a Cepal vão percebe r algum
rempo depo is que a in dustr ialização preco n izada foi realizada na grande
m aioria dos países latino -americanos por meio de associ ações com o
A n ave g ação Y~:; ,:1:: ; i
capital estr angeiro , o qu e rigorosamente põe po r terra a teo rização sob re
"troca desigual" via relação de trocas no com ércio internacional.
Mas a contr ibuição furta diana é in ovadora precisamente ali onde ram-
bém comete equívocos, pois antecipa uma questão que somente vai ser
perceb ida em suainteireza já correndo os anos 1960: 'n ão há nenhum a
"contradição antagônica" ent re paísesprodurores de maté rias-primas e países
produtores de manufatu ras. No capitalismo moderno, a divisão intern a-
cional do trabalho esrá esrru tu rada m uito m enos por uma "divisão entre
as nações" do que por uma "divisão in tern a do trabalho" entre as empresas
em escala internacional: estas são -as multinacionais que Srephen H ymer
, vai teori zar mais tarde, De algum modo, po is, ao escapa r d o clichê do
marxismo vulgar e dos epígonos de D avid Ricardo , a teo rização furta diana
enriquece e dá alguns passos adiante no aprofundamento de um a teoria
da divisão internacional do trabalho cujos alicerces estão na inremacio-
nalização prevista por Marx, na teori a leninista do imperialismo e n a pos-
terio r teorização de H yme r sobre as empresas multinacionais. H avia-se
superado, definitivamente, o mito das vantagens comparativas.
A estrutura teórica do subdesenvolvim en to como dualidade é frág il.
Apesar dos esforços por hi storicizar, da recusa à asséptica análi se
neoclássica, que é ma is de Furtado que da Cepal (pois nas análises p ro-
priamente cepalinas o setor "atra sado" é um dado do problema, en -
quanto Furtado faz, principalmente em Form ação econômica do Brasil e
em Teoria e políti ca do desenvolvim ento econôm ico e no tratamento da
"questão Nordeste'Luma teoria do "atrasado" como extensão do "m o-
derno"), o problema não é resolvido teoricamente. As contradiçõ es entre
o "atrasado" e o "moderno" não passam do nível de oposiç ões: apesar da
relação negariva que parece ligar os dois serores; não há realm ente relações:
e é aq ui, paradoxalmente, onde o dual-estruturalismo se aproxima de
po sições neoclássicas - ,não há propriamente uma teoria da acum ulação
na constru ção teóri ca do "subdesenvolvimen to", há apenas um a teoria da
formação do capital, e esta é a grande responsável pela in cap acidade de
ente nder as articulações reais entre os dois setores e a forma dialética
dessa coexistên cia. Por ourro lado, p roblem a qu e Furtado perceberá de-
po is em seu Subdesen volvim ento e estagnação na América Latina, a indus-

18 Francisc o de Oliveira
rrializa ção. nas condições concretas do no sso contine nte, concentra a renda
em vez de o pe rar sua mel ho r distrib uição , e não porque não crie empre-
go, mas po rque a sup osição de uma relação unívoca no modelo keynesiano
entre os multi plicad ores da ren da e do em p tego era falsa. Aq ui também
a 'recusa a pensar este reo ti pada m ente vai ao ponto de abando nar co n cei-
to S de maior riqu eza teó rica, passívei s de utilização dent ro do ecletismo
f uriad iano.
A prod ução fur tadiana desse largo primeiro período, em q ue se fun -
dam as bases da teoria do sub desenvolvim ento , é essencialmente otim is-
I .
ta . Se u distanciamento polít ico ex p líc ito procura, à maneira dos
neocl ássicos, apresen tar um a teoria «econô mica" da economia, mas não
à manei ra de Marx, em q ueas relaçõe s de prod ução constro ém a socia-
b ilidade geral; a rigo r, a política na teo ria do subdesenvolvimen to é um
epifenômeno. Se a relação centro-periferia reitera uma relação de de-
pe ndência, ela mesm a lan çará, sim ulta neamente, as bases de um m ercado
interno que se am pl ia e de um "po nto de estrangulam en to" da industria-
lização por escassez de divisas fo rtes, o que por sua vez reforçará, q uase
em sen tido behaviorista, o movimento de industrializa ção , dando lugar
ao que Maria da Conceição Tavares, di let a discíp ula , irá chamar de "subs-
t ituição de impo rtações". Paradoxalmente, a teo rizaçã o q ue m ais se ba-
seou no con hecimento empír ico das econ omias latino- americanas não
chegou a alçar o vôo pata realizar a passagem do concreto ao abstrato ,
co m o que a pr ópria pesqu isa do e so bre o subdesenvolvim en to delimi-
to u-se não s ó historicam ente como perdeu capacida de explicativa à me -
di da que a realid ad e afastou-se crescentemente das esperanças abertas
pela teoria e pela prátic a - as agendas de ação - nela fundadas .
2. O d emiurgo do Brasil
. Já em seu primeiro livro , A economia brasileira, a ap licação da teoria
ce palin a ao caso do Brasil dava mo stras do qu e viria a ser. Reto m an do
basicamente os mesmos temas, com abrangê ncia e apro fundam en to histó -
ricos maiores, Furtado esc reverá, de poi s de um período em C ambridge ,
A navegação vent ur zss •
Formação econômica do Brasil, pi êc« de r ésistance, formador de todas as
gerações de cientistas sociais desde 1956. Furtado converte-se - é forte o
termo - em demiurgo do Brasil. N ingué m , nes tes anos, penso u o Brasil a
não ser nos termos furtadian os. Essa obra tem uma imensa sig nific;ção
na história brasileira . Coloca-se, seguram ente, ao lado de Casa-grande c:
senzala de G ilbe rto Freyre, RaízesdoBrasil de Sérgio Bua rq ue de H olanda
e Formação do Brasilcontemporâneo de Caio Prado j r." - o bras qu e expli-
caram o Brasil aos brasileiros. A obra de Fu rtado, no en ta nto, vai além:
não potque seja teo ricam ente superio r, senão po rque foi escrita in actione.
En q uanto as anterio res exp licaram e "construíram" o país do p assad o , a
de Furtado expl icava e "cons t ru ía" o Brasil do s seus dias: era c ónternpo-
rânea de sua própria "construção". N enhuma obra teve a importância
ideológic a de Formação econômica do Brasil em nossa recente hist6 ria
social.
Teo ricam ente, Formação econômica do Brasil é um a leitura keynesiana
da hist ória brasileira, O ecletismo cepalino também aí está p resente,
mas a marca forte ~ keynesiana. Incorporando contribuições de variad~
procedência (algumas não muito explicitadas, beb idas no próprio Caio
Prado j r.) , o forte do livro é a exp licação qu e apresenta d a transição da
eco no m ia exportado ra de café pa ra a eco n omia ind ustrial que emerge a
partir da Segunda G uerra Mundial. Um engenhoso esquema keynesiano
exp lica como, queimando o café, o governo brasileiro, sob Vargas, m an ti-
n ha os n íveis da renda intern a e, ao mantê-los, prep arava a tran sição
para a industrialização. Esta ap arece como o resul tado convergente de dois
processos: a manutenção do s níveis de renda int~rnos e a crise de divisas
fortes que, impedindo a im po rt ação de be ns m anufaturados, funciona~a
prat icamente como uma espé cie de barreira alfan degária que pro tegia os
nascentes (o u em ampliação) ramos ind ustri ais que su bst ituíam as impor-
tações na oferta interna. M as Furtado não explica co nvi ncentemente - e
o grave é que q uase ninguém co brou isso depois - como se dá a realização
* Gilberto Freyre. Casa grande 6- senzala. Rio de Jan eiro , Record, 20 0 0. Sérgio
Buarque de H~ land a . Raizes do Brasil. 3' ed. São Paulo, Companhia das le-
tras, 1997. CaIO Prado [ r. Formação d o Brasi! contemporâneo - co lôn ia. 24 1 ed.
São Paulo , Brasiliense , 1996.
20 Francisco de Oliveira
do valor de uma mercadoria não vendida: o café que foi queimado. Por um
lado, a funçã o de sustenta ção dos preços internacionais em violenta queda
não compensava, quer pela ma nutenção dos preços no patamar a que
haviam chegado, quer por uma mel horia desses mesmos preços, os custos
dos fatores internos que haviam sido con sumidos para pro duzir o café.
Por outro, o papel do Estado, retendo uma porcentagerri do preço exter-
no para manter os níveis internos da rend a, é um a espécie de cachorro
mordendo o próprio rabo . A elegância do modelo, em 'q ue parece existir
dialética, pois forças inconscientes de seu papel, ao lutarem por seus interes-
ses stricto sensu, estruturam um processo não previsto} capturou tod os e
até hoje não se conseguiu produzir nada que o substituísse teoricamente.
A imporrância ideológica de Furrado e do seu keynesianismo que expli-
cava a transição será, nos anos 1950, e, por que não o dizer, aré hoje, o pano
de fundo do "amor ao Estado" da burocracia econômica nacional. Essa "au-
t~nomià' do gasto estatal, capaz de consrruir pirâmides que mantêm a renda
interna, formou gerações de cientistas sociàis e, principalmente) de econo-
misras cuja parricipação foi relevante na gestão da ~co nomia pelo Esrado
durante todo o períod o pop ulista. A ideologia furta diana estava ancorada
em bases incrivelmente reais, e foi aí que colheu forças para influenciar todo
um estilo de gesrão econômica e estatal: estava ancorada de fato, embora a
teorização furtadiana assim não o compreendesse, nas novas funçõ es do
Esrado no capitalismo dos oligopólios. Porque mesmo as torpes figuras dos
"enrreguisras" clássicos, toda a laia que vai de Roberto Campos, passando
por Lucas Lopes, Go uveia de Bulhões, até Delfim Netto, embora não co-
mungassem ideolo gicam ente do love the government, eram ta m bém
esratizanres, obedecendo à lógica do capiralismo oligopolisra, Mas estes últi-
mos sempre pensam que a intervenção do Estado é passageira, apenas'prepa-
ratória"da assunção, pela empresa privada, dos ramos e setores que o Estado
desbrava, enq uanto Furrado e as gerações que ele formou padeciam de um a
fúria amoro sa pelo Estado: o primeiro, por ter descoberto keynesianamente
a auto nom ia do gasto estatal em rela ção às imediatas condições concretas da
dema nda e da oferta agregadas, e, muitos dos segundos, misturando essa
confusa noção com outra mais confusa ainda, de extração marxista vulgar,
da esratiza ção ante-sala do socialismo.
A n avegaç ão W'.::":::; ;'<'
3 . Novos exe rcíc ios de demiu rgia: a questão N ordeste
A trajetória intelectual de Celso Furtado, a parrir da segunda metade
dos anos 1950 , passa a confundir-se com sua trajetória doublé de adm i-
nistrador público e político não-partidário . Sua temática vai voltar-se
para a que stão regio nal. Os estudos que Furtado con duzia à époc a, como
Diretor Regional do Ban co Nacional de D esenvolvim ento Econôm i-
co (BND E) e economista do Grupo de Trabalho pata o Desenvolvi-
mento do Nordeste (GT DN) , chegam a conclusões dramáticas no mesmo
mo me nto em que uma nova seca} a de 1958, colocava outra vez o N or-
"deste nas manchet es dos jornais. Kubitschek aproveita elança a "Opera ção \
Nordeste" no conjunto do seu Plano de Metas, criando o Conselho do
Dese nvolvimento do Nordeste (Codeno), já sob a batu ta de Furtado.
Em um brilhante documento '- que não po de ser creditado à sua
bib liografia devido ao caráter oficial qu e ganhou -, "Um a política de
desenvolvimento para o Nordeste", Furtado resolve de form a admirável
a velha qu eixa regionalista do atraso do No rdeste em relação ao Centro-
Sul, emol durando-a n um qu adro mais amp lo e racional izando-a: sim,
os nordes tinos tinham razão em suas queixas) mas eram outras as causas.
A causa princ ipa l, desde logo , residia na arcaica estru tura agrária, que
prod uzia sim ult aneamente exceden tes popula cionais que migravam para
o Centro-Sul e uma econ omia extrem am ente vulnerável no Polígono
das Secas, A economia do Nordeste era viável: sua contribuição ao orça-
mento de divisas, seu perma nente saldo de divisas q ue passaram a ser
ut ilizad as pelo Centro-Sul para pagar as import ações o demo nstravam .
Reforçar a viabilidade da economia do Nordeste significava sim ultanea-
mente atacar a estrutura agrária e promover um a vigorosa política de
industrialização, que seguia de perto, embora sem formali zação mede-
lística, a "sub stituição de im po rta ções" válida para o conj unto da econ o-
m ia nac ional. -
Sem abu sar da expressão, seria necessário voltar a dizer que, desta
feita , Fu rtado tra nsforma-se no dem iur go do No rdest e. E o Nordeste
por ele pensa do tem a mesma força ideológica que o "seu" Brasil: numa
conjuntura particularm ente crítica, em que os signos d e afastamento do
22 Francisc o de Oliveir a
N ordeste em relação ao Centro-Sul que se in dustrializava rapidamente
são, a rigor, sim ultânea e contraditoriamente} indicadores de um pro-
cesso d~ integraç ão latente e da mo rte d a burguesia region al, a proposi-
ção de Furta do para o Nordes te tem ,' out ra vez, o condão de agradar
quase a gregos e tro iano s. Uma po derosa coligação de forças, que incluía
a p rópria burguesia industrial regional, a burguesia ol igopo lista interna-
cion al-associada do Ce ntro-Sul , classes médias e inrelectualidade, Igre-
ja, trabalhadores e camponeses; além das Forças Arm adas, resul ta, no
apagar d as luzes do governo Kub itschek, na criação da Superintendên cia
de D esenvolviment o do N ordeste (Sudene), organ ism o fundado pa ra
implem entar a po lítica proposta po r Furtado para a região no rd estina.
Todas as teses cepalinas estão de volta ago ra n a ~oldura nordestina. .'
H á, exp lícita, um a deterioração dos term os de intercâm bio entre o NOr-
deste e o Centro-Sul , por me io de uma ope ração triangular: o Nordes te
exporta para o exterior, e tam b ém para o Centro-Sul, bens pri mários,
enquanto importa deste as manufat uras. O C entro-Sul gasta, n a im port a-
ção de bens de capital e prod utos intermediá rios para sua industrialização ,
as divisas que o Nordeste pro d uz. Uma política nacional de co~é rcio
ext erio r pen aliza o Nordeste: as políticas cam bi al e tarifária impedem-
no de ter relações aut ônomas com os p aíses para os quais exporta açúcar,
sisal, algodão, COUtoS e peles, óleos vegetais. Aqui, a pro posição fur tadiana se
esquece, esq uecen do-se a si m esma, de q ue no caso da América Lati n aa
relação direta com os países centrais n ão melhora a posição de barganha.
Estamos em plena euforia da industrialização kubitsche ki ana: também o
Nordeste somente conseg uirá sair da situação de "periferia", vencer o sub-
desenvolvime nto , se se in dustrializar. Os interesses das classes sociais
nacion'aissão resolvidos em torno da industrialização: de fora, ap en as os
latifundiá tios do Nordeste, e n ão precisam ente os barões- ladrões do açú-
car, m as os do complexo algodão -pe cuá ria, os "coron éis".
Em A operação Nordeste, livro q ue re úne as conferênci as feitaS no
Instituto Superior di: Est udos Brasileiros (Iseb) em 19 59 , Furtado assu-
m e a tesponsabil idade pela s teses inscritas no programa do G TDN , e as
radicaliza:_o Nordeste é um problema de segurança nacional, seu atraso
relativo im plica a' descontinuidade da unidade nacional; estão dadas,
A na vegaçã o venr urcsa
pois, as co ndições para a cristalização de um antagonismo , de um res-
sentimento que o tem po sim plesme nte não resolverá. São inúmeros os
exempl os na h ist ória dos países cap ita listas de "q uestões regionais"
irresol ut as, flan cos abertos na u nidade n acional desses países: a Irlan da e
a In glaterr a, o Mezzogiorno e a Itália, o O ld Sourh e os Estados Un idos.
Contradições enrreregi ões podem transform ar-se em contradi ções entre
classes - e, ironicamente, a principal delas seria entre os operários do
Centro-Sul e os im igrant es do Nordeste, pois a im igração maciça estava
. m a ntendo baixos os salários reais n o Centro -Sul, e m ab sol uto
descomp asso com os ganhos de produtivid ade do tr aba lho ob serváveis
na eco nomia que tem São Paulo como epicen tro .
Teoricamente, a contribuição de Cels o Furt ado sobre a "questão re-
gional" não é muito relevante . A p art e a construção do que se poderia
cha mar de "m od elo de equilíbrio" do complexo algo dão-pecuária, em
que a sobrevivência dos baixos padrões de produtividade é um me can is-
mo endógeno de articulação entre a produção de subsistên cia e a produ-
ção das m ercado rias ou dos p rodutos com ercializáveis - de u m lado ,
po is, os produtos do latifund iário e, de outro , o fundo de subsistência
dos parceiros, meeiros, posse iros, da vasta tipologia sem icampo nesa do
Nordeste - , não há out ra novidade teó rica na p rodução furtadian a sobre
o Nord este. Di ga-se de passagem qu e a teori zação sobre o complexo
algodão-pec uária é extre mamente im portante para desvendar o segredo
da manutenção da arcaica estrutura agrária no Nordeste e me smo em
outras regiões bras ileiras. Mas Fu rt ado n ão expl ora a fundo essa consta-
tação. Seu int eresse reside apen as em mos trar como esse "equilíbrio do
sertão" é avesso e antagôni co à industrialização.
Mais tarde, refletindo sobre sua experiência - d ívida que aliás Celso
Furtado não pagou completamente e que todos esperam um d ia ver
quitada - , ele m igra pat a um a esp écie de "sociologia da resistê ncia às
mudan ças", exp licando o atraso do Nordes te e as próprias lutas tr avadas
em torno da criação da Sudene - de que foi o primeiro e insuperável
supe rintendente - pelo enrij ecimento das velhas estruturas sociais que
ficaram à m argem dos processos de tra nsformação em curs o na soci eda-
de brasileira. O q ue pod e pa recer à prim eira vista um a sim ples tau to logia
'2 4 Francisco de Oliveira
é, na verdade, um ã forma eufemística - muito usada po r Furtado para
n ão se s~bme ter aos cânones de qual quer escola - de in terpretar a luta
entre as oligarquias agrárias e a burguesia ind ust rial internacional-asso-
ciada do C en t ro- Sul,
4 . Reformas antes que tarde
o lema da Inconfidência Mineira, "liberdade ainda que tarde", é uma
co ntradição: quando tarda, ela não vem jamais. No período que vai de
1959 a 1964, Celso Furrado trabalha ativamente: sua experiência doublé
de administrador público e político enriquece extraordinariamente o' pen-
sador - e somente muito depois de 1964 é q ue Furrado pode ser conside-
rado um acadêmico, no sentido de que sua? proposições não estão ligadas
à ação -, e este devolve àquele formulações de políticas e estratégias de trans-
[armaç ão. A experiência e um agudo senso de observação ensinaram ao
antigo cepalino que "há dores no parto": a sociedade bras ileira move-se
com extraordinária rapidez, e esse processo de rupturas, reformas, implan-
tação de novas estruturas é, n um a palavra, um processo agudíssi!!,o na
luta de classes em todas as direções. Furrado produz Desenvolvimento e
subdesenvolvimento, A pré-revolução brasileira e, como ministro do plane-
jamento, o Plano Trienal do governo João Goularr. Esta é a tri logia de sua
platafo rma de reformas: antes que tarde ... demais-.
DesenvoÍvimento e subdesenvolvimento é a sistematização da teoria do
subdesenvolvimento, que reaparecerá depois em Teoria e política do de-
senvolvimento econômico, e é também um prelúdio antirnarxista da pla-
taforma de reformas. A Furtado parece que, no espectro de possibilida-
des políticas que a agudização da luta de classes coloca, uma é certamen-
te o caminho "soviético": Furtado trata de demonstrar que, em relação
ao nível alcançado pelo processo econômico, social e político brasileiro,
qualquer revolução significará um retrocesso - isto ficará mais claro em A
pré-revolução brasileira. A sociedade brasileira caracteriza-se, já naquele
momento, por uma estrutura industrial diversificada e relativamente
avançad a, uma estrutura social enriquecida pelo próprio crescimento
A na vegaçã o venturosa 25
econô m ico e um Estado bastan te articula do , já tendo , até mesmo , avan -
çado subsrancialmente no campo do planejamento eco n ô m ico '- um
Estado moderno, sem dúvida. Nessas condições, nenhuma reoolu çâo i
necessária e sua emergência pode arriscar todo o avan ço já conseguido.
É preciso demonstrar; porém, que o equívoco de um po ssível ··.:.a..tT?i-
nho soviético" provém da própria teoria marxista, É preciso avan çar nas
reformas "antesque tarde"; a esquerda brasileirade então é não apenas "reror-
mis ta", mas, mais que isso, pensa dent ro dos esq uemas furtad ianos. Pa: a
conservá-la como aliada, mas derrotar as alternativas q ue possa pro?or,
é preciso d~rrotá-Ia em seu próprio terreno. É preciso derro tá- la. derro -
tando Marx. Talvez Furtado não suspeitasse que a esquerda brasileira da
época conhecia muito pouco Marx . Há erros - ?- grosseiros na cr ítica a
Marx e um viés pos itivista em esperar que os sistemas fundados no "socia-
lismo da acumulação" - o sistema social soviético e dos países do "socialis-
mo real" - pudessem ser confrontados com a visão marxista - Isto é, de
Marx _ das sociedades para além do capitalismo. Em outras palavras, Fur-
tado não fez aos países do "socialismo real" a crítica de Ma~ ao "Programa
de Gótha" . O empreendimento 'revela-se intelectualmente infeliz. E na-
quilo que poderia ser um avanço em relação a Marx; no explorar as formas
do capitalismo oligopolista, Furtado não avança um milímetro.
A pré-revolução brasileira é um dos mais brilhantes ensaios de Furta-
do, injustamente esquecido. Aqui ele abandona a postura do economis-
ta para alcançar as dimensões de um pensador político, numa linha que
talvez n unca tenha retomado com o mesmo vigor. A pré-revolução é uma
proposta 'de reformas de base. Contemporânea dos mesmos movirnen -
·tos que reclamavam a modernização das estruturas econômicas, sociais e
políricas da nação,' difere na questão central posta,. e essadiftrença é essen-
cial: para Furtado, as reformas são necessárias para manter uma sociedade
aberta e pluralista, que sobreviva às tensões de sua própria expansão/
transformação. O rema da liberdade é colocado de forma desassombrada,
sem falsos pudores . Enquanto para a própria-esquerda da época impulsio-
nar as reformas de base é apenas uma estratégia de ampliação e consolidação
do capitalismo, muito ao figurino das "etapas" e seqüências de modos de
produção do stalinismo, para F~rtado. as tensões da expansão/trans-
/
26 Franci sco de Oliveira
form ação, entregues à sua automaticidade, tendem ao fechamento da
sociedade f, segundo a sua visão ) ao "modelo soviéti co".
Suas proposras levavam, evidentemente, ' ao aperfeiçoamento do ca-
pitalism o, e seu ataque frontal ao '''espectro soviético" mostra aonde ele
quer ir ou onde quer se manter. A atualidade desse ensaio persiste pela
colocação da questão da liberdade, e nesse sentido o livro é até profético.
Furtado e a esquerda da época se equivocam por não terem captado os
conteúdos int rinsecamente autorirários do capitalismo oligopolisra e,
mais concretamente, as form as que assume em soc iedades co mo a brasi-
leira. Equivo cam-se por não terem um a teoria do capital ismo contempo-
rân eo . N outr a linha teórica , analisando as tendênc ias à interna-
cionalização da economia brasileira, Fernando Henrique Ca rdoso, em
trabalho que só seria pub licado nos albores de 1964 , Empresário indus-
trial e desenv olvimento econômico no Brasil *, aponta certeiramente para
os processos de associação da burguesia nacion al com o capital estran-
geiro , p a ra a ausê~cia de um projeto nacional dessa classe e para a sua
discreta preferência - o "discreto charme da burguesia" bu üueliano -
po r um Estado forre ou sua nada' discrera indisposição para alianças
com o proletariado. Esrava desfeito o ' ''pacto populista" que Furtado
inte ntava reformar e a esquerda míop e, sem óculos, tentava etern izar.
Ca rdoso acerta quanto às tendên cias, e sua competên cia revela-se pre-
cisamente no uso do método marx ista. Enquanto Furt ado traba lha
co rretam ente no tracejar as te ndê ncias , sem entretan to concretizar os
atores e age ntes das tran sfo rm a ções, o que é sua fraqueza teó rica, a
esquerda da época tr abalha em termos de um teleologismo sem histó-
ria concreta, e Card oso estud a as tend ências tom ando os atore s e agentes
conc retos das tr ansformações. Nis to reside a diferença. Longe do ."es-
pecm:, soviét ico" e lon ge da "estatiza ção ante-sala do socialismo", o
movimento militar de 1964 vai mos trar qual é a fó rma do regime po-
lítico: vai di reto ao au tor itarismo e, nos períodos mais negros, à dita-
dura sem disfarces.
Fernando H enrique Cardoso. Empresário ind ustrial e desenvolv imento econ ôm ico
no Brasil. 2' ed. São Paulo , Direi, 19'72.
A navegação ventu rosa
o Plano Trienal do Gove rno Goul~rt, qu e serviu de bandeira de luta
cont ra o parlam entarismo vigente em 196 1- 1962, após a renún cia-gol-
pe de Jân io Quadros, é o Te Deum do presidencialismo pop ulista, uma
espécie de "visita da saúde" ao moribundo, e o requiem do ministro do
Planejamento. É a cristalização ptogramática dos conteúdos de Desen-
volvimento e subdesenvolvimento e de A pré-revolução brasileira. É 'o tarde
das "reformas antes que tarde".
5. O desenvolvimentism o e seu espel ho: o estagnacionismo .
o golpe militar de 1964 desfaz ilusões; se fossem apenas ilusões, ainda
que lamentáveis... As tensões quase insuportáveis previstas por Furtado
deslocam para a direita, e não para a esquerda, os regimes políticos que ,
presidem a expansão do capitalismo oligopolista. Furtado agora é um acadê-
mico: seu trabalho não está voltado para propostas de ação, mas para a
interpretação. Co mo os grandes economistas, sua tentativa de buscar as .ra-
zões estruturais que determinam o fechamento da expansão capitalista - na
verdade, uma crise cíclica e não um "fechamento" da expansão - o cond uz
ao estagnacionismo , à estagnação como componente int rínseco, ~ão um
mom emo, mas uma determin ação para a qual tende sempre o sistema eco-
nômico . Estamos de volta a Smirh, Ricardo e, sobretudo, a Stuart Mil!.
Sua produção desse pe;íodo é sintetizada em Subdesenvolvimento e
estagnação na América Latina. Aqu i Furt ado está em seu apogeu de "eco-
nomista", mais rigoroso, mais establishme nt ecui êmico. A base do modelo
é, de novo, o mu ltip licador keyn esiano do investimento e do emp rego,
só que dessa vez as conclusões que ele tira são opostas: há um a ten dência
economizadora de mão -de-obra no pro cesso global de crescimento eco-
nômic o, e econ om ias como a brasileira - que não geram seu próprio
progresso técn ico - ao importarem tecnolo gia estão impo rtando "fun -
ções de produção" - diria um neoclássico - economizadoras de mão-de-
obra. Os clássicos problemas levantados desde a Cepal ressurgem , dessa
vez com sinais contrários: a tendência crônica ao déficit do balanço de pa-
gamento se instaura. ademai s do' efeito da deteriorado dos term os de
28 Francisco de Ol iveira
intercâ mbio, pela pre ssão da demanda de importações para a industria-
lização sobre uma receita cambial inel ástica, A importação de bens de
cap ital com tecnologia tipo capital-intensiue, determ ina da não apenas
por ser a tecnologia disponível no mer cado inte rnacional, mas por ela
aumentar acelerada mente a prod utividade do trabalho e o excedente ,
instala uma crescen te desp roporção' entre o aumento do produto e o
aumento do emprego. Produ zem-s e simultaneamente crescim ento e con -
centração da renda . O mercado estreit a com a expansão, em vez de -
com o perdão d a redundância - 'expan d ir, O s ciclos sucessivos e
reforçado res desse mecanismo levam à estagnação: o progresso técni co é o '
elemento central da tendência à esragnação. Estamos mai s próxim os de
David Ricardo e de Stuart Mil!.
O co r ~ l á ri o de sse "fech am en to" do mercado é um a crise de
subco nsurno e de superacumulação que - pelos efeitos depressivos sobre
a taxa de excedente produzido pela ocio sidad e do capital, por uma rela-
ção capital - trabalho em alta - desemboca n uma crise de subacum ulação.
O modelo elabo rado por Furtado talvez tenha sido o mais rigoro so que
ele pro duziu. U ma vez m ais, a recusa em utilizar os con ceitos de "explo-
ração" e de "mais-valia" revela o flanco teórico da construção fu rtadiana:
não é que a utilização desses conceitos supra o trabalho teórico-prático,
mas nas mãos de Furtado certa mente sua utilização poderia ter sido bem
rica. Uma crise dramática é confund ida em suas causas e Furtado não
' percebe sua "ut ilidade", que é a de acelerar o processo de concentração de
cap ital na econ omi a brasileira. Não percebe , a rigor, qu e se estava fe-
chandopara semp re a breve, etapa do capitalismo concorrencial no Brasil,
cujas leis diferem das do'capitalismo oligopolísta e cujas formas políticas
so mente por mi lagre não seriam distintas. Estamos em pleno ano de
1966, a ape nas um ano ou pouco mais do começo ?e um febril período
de expansão, conseguido à custa, entre outras causas, do arrocho salarial-
e a previsão de Furtado era a de estancam ento .
Teoria epo lítica do desenvolvimento econômico é a obra de sistema tização
mais acabada na bibliografia furtadian a, E~;ão aqui as idéias já expostas
em Formação econômica do B rasil, o aproveitamento do que restou de De-
senvolvim ento e subdesenvolvi;"ento, principalmente do capítulo sobre Marx,
A navegação ve n t u ro 5 ~
e a teorização sobre a crise típica das economias subdesenvolvidas já pre-
sente em Subdesenvolvimento e estagn ação na América Latina. Há uma bri-
lhan'te exposição das diferenças históricas entre a formação das economias
centrais e a das economias subdesenvolvidas. O esquema diferenciador
gira em torno da transformação tecnológica, originária e autônoma nos
países centrais e imposta às econo mias subdesenvolvidas. Essa diferença faz
com que para as economias subdesenvolvidas se exporte m apenas as rela-
ções técnicas stricto sensu, mas não as relações sociais} que são sua "alma}'.
O efeito sobre as economias subdesenvolvidas é o de um m ultiplicador
keynesiano funcion ando em senti do inverso (para economizar mão -de-
obra) e o de um "consumismo" imp osto econômica e culturalmente (o
qual lhes dep rime o coeficiente de poupança, por um lado, e obri ga a
sofisticar a tecnologia, por outro). t. o círculo vicioso do subdesenvolvi-
mento, sem possibilidade de sua "negação".
O planejamento nas economias subdesenvo lvidas , na ausência de
mecani sm os de mercado q ue funcio nem como nas econo mias centrais
capitalistas, tem a fun ção de téc nica de alocação de recursos. O plane-
jame nto é uma técnica neu tra: esta é uma das teorizações mai s ideo ló-
gicas d o esq uem a cepalino-fur tadiano, a qual projetou negativa in -
fluência sobre gerações de cien tist as sociais . A ausênc ia de m ercado
nas econo m ias subdesenvolvidas é insufi cien tem en te expli cada, assim
como a teo rização sobre o próprio mercado nas ec onomias cen trais é
reduzid a às funções sim bó licas de orientação pa ra a alocação de recur-
sos. O p laneja mento faz, portanto, as vezes do mercado: aqu i a
reo rização furtadiana não aproveita seq uer sua raiz keyne siana, poi s no
capitalismo oligopolisra, rigorosame nte, não há mercado no sentido •
em q ue seria válido falar no co ntexto e sob as leis de rep rodução do
capiralismo concorren cia!.
. A obra furradi ana, fiel às suas raízes cepalinas, continu a a expor seu
"calcanhar-de-aquiles": o tratamen to da questão monetária simplesm ente
inexiste, o u, melhor dizen do, os preços são reduzidos a uma mera fun-
ção simbólica, e o dinheiro e a moeda são apenas equ ivalentes da produção
físic a. t. evide nte o' empobrecimento da teo ria m onetária na s mãos
dos estrut uralistas, com o Furtado. Os preços não são valores, mas ape nas
30 Francisco de Oliv eira
uma tradução das quantidades físicas da produção. Essa absoluta in ca-
pacidade de lid ar com as questõ es mo netárias já havia provado sua ine-
ficácia teórica e prática em toda a h istória p ós-ce pa lina da infl ação nos
países da América Latina, quando a frágil teo ria da inflação estru tural
reduzia o fenômeno inflacionário a uma desestruturação entre oferta e
demanda físicas, longe de comp reender as com plexas determinações do
que é o real n o sistema ,capitalista - onde o d in he iro desem pen h a nã o
apen as uma fun ção cruc ial, mas é a pró pr ia síntese de um sistema que se
estrutura sobre a produção de valor.
6 . R efo rm as sem refo rmadores
No Brasil, o regime pós-I964 e seu "êxito" eco nôm ico (conseguido
à custa da repressão polí tica e do arrocho salarial), red efinindo as fu n-
ções do Estado na sustentação e na produção de valor, h aviam p osto por
terra to das as teorizações estagnacionistas, incl usive e fundamental-
mente a cepal ina e a fu rt ad iana, versões de um mesmo n úcleo central.
Em vez do "fech amen to" do mer cado , uma inu sitada expa nsão deste ;
em vez d a corre ção dos im passes do cap italismo su bdesenvolvido pel as
"reformas de base", uma expans ão sustentada precisam en te em anti -
reformas. Era preciso "explicar" teo ricam ente aquele "sucesso". Furt a-
do também não resiste a essa seduçã o e tenta 'man ter-se ainda no terre-
no do "economista": pro duz Umprojetopara o Brasile Análise do "modelo
brasileiro". . .
Um projeto para o Brasil, pro duzido no calor das esperança s h avidas
com o "veran ico" C osta e Silva, pré-t~ rro r do AI-s, é a pro posição de
um conjunto de reformas, chamadas "medidas", que gravitam em to rno
d a mudança do perfil da dem an da global como motor de um a nova
exp ansão in dustrial e mecanismo COrreto r do s "desvios" do deseÍlVolvi-
mento anterior, os q uais hav iam conduzido à paralisia recessiva dos anos
1963-1967 . A interação entre essa expa nsão in dustrial e o consumo po-
pu lai é, elamesma, a melh oria d a distribuição da ren da. Fu rtado anteci- .
pa o fetichis mo do con sumo, que vai dom inar sua ob~a teórica até o
A navegação venrur J ; '<'
per íodo ma is recente, quando ele começa a tra nsitar da econ omia para l
filosofia , fazendo, ao invers o, o caminho de Marx. Um projeto par,z o
Brasil é a utopia do consurnis mo po pu lar, po is não apr esenta um a exp li-
cação adequada de como, sem transferência do poder ou mudanças fun -
damentais na sua estrutura, sem mudanças na estrutura de classes - que
só é entendida como a pirâmid e de distrib uição da renda -, sem m udan-
ças na estrutura de apro priação e propriedade do excedente econômico, '
para n ão falar do capi tal, po de oco rrer uma industrialização voltada para
os interesses po p ulares,.para o consumo popular. A teo rização de maior
fôlego de Furtado h avia negado preci samente a possibilidade de existên-
cia entre nós de um capitalism o capa z de alargar fun da mentalmente' a
produção para as grandes massas populares, em razão do mecani sm o
que instaura uma relação desfavorável entre crescimento do p rod uto e
crescimento do emprego .
A Análise do "modelo brasileiro" pa rte da concentração da renda, que é
. explicada por mei o dos mesmos meca nismos que susten tavam , em Sub-
desenvolvimento e estagnação naAméricaLatina, a teorização sobre o "fe-
chamento" do mercado; dessa feita, a concentração da renda expli cá a
expa nsão do mercado de bens duráveis de cons umo e.os efeitos reiterativos
entre essa expansão e a própria conce ntração da renda. O fet ich ism o do
consumo, já assin alado , lastreia a proposição teórica: a impo rtaç ão de
"estilos, de cons umo , intern acionalizados pelos modernos me ios de co-
municação via mass media, induz à industrialização interna dos be ns
duráveis de consumo e, em última análise, à concentração da renda.
Aqui, ao querer ser "economista", Furtado m igra par~, a rigor, colo-
car COm o d ad a a forma específica da expansão capi talista no contexto
de um a economi a su bdesenvolvida ; sua teo ria da internacion alização
dos estilos de cons umo é claram ente insu ficien te para tanto. Dessa
form a, sua proposição é política no ar, pois a transiçãopolítica para um
no vo est ilo de expansão industrial não tem expl icação econômica: a
eco nomia política de Furtad o resvala.ide man eira im percep tível, tal-
vez co rno nunca em sua pr odução teórica, para aproximar -se, parado-
xalment e, dos neocl ássicos. I .
 ,
32 Franc isco de Oliveira
7 . Da economia para a filosofia
A mais recente fase da produção intelectual de C elso Furtado pode
' ser chamada de "filosófica". Como para todos os gran des economistas, o
campo estritamente técnico-teórico da ciên cia econô mi ca revelou-se es-
tr eito para um int electu al do seu porte, co m sua cara cterística ab ert ura e
inegável criatividade. Seguindo' uma tradição que entre os economistas
vem , pelo me nos, desde Sm ith , um "filósofo m or al", Furtado empreen -
de ago ra uma ampla incursão pelo terreno da discussão das próprias
prem issas científicas, do arcabouço teó rico da economia e de sua capac i-
dade para dar resposta aos grandes pro blemas contemporâne os. Produz
o Prefiício à nova economiapolítica; depois, Criatividadeedependência na
civilização industrial; e, já agora em 1980, Pequena introdução ao desen-
volvimento - enfoque interdisciplinar.
O Prefácio revela muito da pre tensão furtad iana: o arcabouço teó rico
da ciência econômica deve'ser radicalmente repensado , pois os esquemas
que remo ntam a Smith, permanentes até nossos dias, são insuficientes para
descrever e interpretar o mundo de hoje. A realidade consolidada das
empresas multinacionais, a convergência antes qu e antagonismo entre as
du as grandes potências, Estados Unidos e União Soviética, que simbolizam
os siste mas capitalista e socialista, derrotou ~ todos, marxistas e não-marxis-
tas de to dos os matizes. Furtado em preende uma crítica histórica dos funda-
mentos da economia, mostrando a tem poralidade da construção conce itual
e, po rtanto, seus limites e sua inadequação para explicar um mundo radical-
mente tra nsformado . A crítica à economia neocl ássica é particularmente
interessant e, pois desven da como um artifíc io red ucionista, que em algu m
momento da história foi pert inent e, foi elevado à categor ia de abstra ção
universal, sem fro nte iras de tempo e espaço. Já na crítica ao marxismo,
tarefa teór ica imprescind ível até para o pró prio marxis mo, Furtado deixa-se
levar por um velho preconceito: M arx é reduzido às proporções de um "dis-
cípu lo de Sismondi" (Simonde de Sismondi), o que é evidentemente um
a
despropósito. Furtado não aprove ita ocasião, por exem plo, de uma crítica
à teoria da formação da taxa de lucro, para deixar-se levar pelo camin ho da
contestação fácil de qu e, ao contrário da previsão marxista, não houve a
A navegação venturosa 33
"pauperização absoluta", nem a revolução nos países capitalistas mais
im po rta ntes acon tece u nem o proletariado n esses países foi a classe
revolucio~ária. M uito ao co ntrário , o pro letariad o alcançou n íveis de
vida bastante sim ilares aos das classes não-proletárias - as classes médias,
po r exemplo - e ch egou a ser part e das estruturas de pode r nos p aíses
europeus mais desenvolvid os.
Em Criatividdde e dependência na civilização industrial, Furtado dis-
cut~ a origem da crença na razão e a ciência como técnica da razão ,
apontando para a influên cia que o neoplatonism o de G alileu reve n a
est ruturação de um m o do de pensar que privilegiou a formalização e a
qua ntidade co m o expressões da realid ade; a ciência seria apenas a lei-
tura dessa razão interior do m undo das co isas; a ciência é a rnatern ãtica
porque a realidade é matemática. Sua tarefa é, pois, semelha nte à próp ria
façan ha de Galileu: basta ap erfeiçoar os instru m entos da percepção, os
pesos e 'as medidas, o telescópio . O ob jeto está lá, mudo , sere no e
imperturbável, à espera de sua revelação ao descobridor, que somente o
descobrirá se for capaz de const ru ir teori as e in strumentos iguais à nat u-
reza do objeto: matematizáveis, quan tificáveis.
Essa razão-ciên cia ocidental, ao privilegiar a quantidade , acoplou-se,
em relação de causa-efeito-causa, a um sistem a de produção que tin ha po r
eixo a acumulação, fundada em extração 'de valor. A sociabilidade do m odo
de produção capitalista é uma sociabilidade do valor qu antificável. Nesse
processo, ~anto O sistem a capitalista qu anto sua razão-ciência aba nd on a-
ram , desvalorizaram o outro lado: o lado da qualidade, som ente recuperá-
vel pelas ru pturas que o não-qu antificável im põe a essa sociabilidade: pela
arte, qu e recupera a criativida de, in fensa à quantidade: pelos moviment os
não-políti cos que postul am o não -pod er sobre as estruturas fun dad as no
valo r - o movimento ecol ógico, o movimento das m ulheres.
Vale a pen a ressaltar, de passagem , que a própria noção de ciên cia
como técnica da razão , que Furtado combate, há muito foi superad a,
No terreno das ciências da natureza e da própria matem ática, a ciên cia
não é mais a "leit ura" de um objeto dado: a interação suj eito-objeto é
posta claramente já na noção einsrein iana de espaço-tem po, e n a mate-
mática o estu do do s conju ntos e da prob abilidad e recu pe ram a q ualid a-
 34 Francisco de Oliv~ ira
- de, reiteram a individuação com o mediadora da pr ópri a quantidade. A
lingüística e a sem iologia, ao procederem à desestruturaç ão do discurso
e à in teração do significante e do sign ificado, exploram exatamente a
individuação no ·contexto, como qualida de di feren ciadora.
Por outro lad o, à pa rte o m ateri alismo vulgar t ravestido de marxismo
n a longa letargia stalini sta , é pos sível defender para o m arxism o uma
proposta de ciência com o não-leitu ra da natureza: a dial ética da essên cia
e da aparência, a qu estão do fet iche, o conceito de-valor, central no
marxism o, não apenas se afastam, senão que negam a transparência!da
realidade - esta não é qu an tificável , ne m tem um a m edida, um pe so,
um metro, im u"táveis e alheios à relação sujeito-objeto. I ronicame nte,
essa impossibilidade de med ir o valor - modernidade de Marx, at ualidade
de M arx, antecipação de M arx - . foi sempre posta pelos seus críticos,
Furtado incluído entre eles nas pegadas de Jo an Robinson, com o a prova
da n ão-cien tificidade do m éto do marxista , e o conc eito d e valor jogado
ao limbo de uma metafísica. in inteligível.
. internacional d e novos países, criados pela liquidação do colonialismo
. como seqüela da Segu n da Guerra Mundial - a dete rminação .social da
8. A eco n om ia política de Celso Furtado
Furtado é, simultân ea e contradito riam ente, o menos clicherizado
dos intel ectuais bras ileiros de seu tem po e o m ais ideológico de todos. J á
se anotou 'suat'rebeldia" aos padrões impostos tanto pelo pensamento
m arxista , nã o muito produtivo na América Latina antes do s anos 1970 ,
quanto pela ortodoxia neoclássica em estado falimentar. E, entretanto,
se assinala sua produção como sen do ideológica. Talvez tenha contri-
buído muito para essa "ideologização" do pensamento furtadiano o ter
tr abalhado na C epal, cuja função pr incipal era a de estu da r as economi-
as lat ino-american as e recomendar prá ticas de planejam ento e políticas
de desenvolvimento. Esse contato com a reali dade multiforme e ao me s-
mo tem po homogênea da Amé rica Lat ina , por um lado, e, por outro , a
necessid ade de recom endar políticas produziram a obrigação de conhe-
ce r, uma imensa vantagem sob re u m a teorização que já conhecia
ap riorisricam ente a verdade - a marxista vul gar; produzida principa l-
A navegação ve n ru t csa
me nte pelos seguidores do s pa rtidos com unistas - , mas levaram tam -
bém ao viés quase po sit ivista de que todo conhecim ento é orientado
para solucionar algu m a questão . A obra furradiana é uma o bra para a
ação . U m certo ziguezague é determinado por essa obsessão de produzir
conhe cimento que se transform e em ação.
A originalidade da ob ra de Furt ado t;asce dessa con tradição . Como
qualq uer produ ção científica , ela é socialmente determ inada, e essa dete r-
minação é perceptível. M as dizer que ela é soc ialm ente determ in ad a n ão
é dizer t udo: to das as suas contemporâneas também o foram , n o ent an-
to poucas chega ram ao nível da ob ra furtadiana e nenhuma teve a sua
im portância ideológico-p ráti ca. A obriga to riedade de entrar em contato
com a realidade de outros países da América Lati na abriu as p o rtas para
a percepção de que havia algo mai s além do s chavões do "colonialisrno"
e das "vantagens comparativas" da divisão internacional do tr abalho. O
conceito de subdesenvolvimento é isso: se bem o termo tenha sido usa-
do antes, e de fato seu aparecimento coincide com a p resença na cena
produção intelect ua l-, a produção cepalino-furtadiana é que vai erigi-
lo em algo mais que um n eologism o da nova linguagem d iplomática "à'
Nações Unidas". O conhecimento das economias e sociedades latino-
am ericanas re~elou-se vital para a produção desse conceito: tratava-se de
paíse s secularmente indep endentes do ponto de vista po líti co, 'de al-
gu ns p aíses que havia m alcançado alta participação na divisão internacio-
nal do trabalho do per íodo de ouro do imperialismo - tan to a Argentina na
produção e no comércio de trigo e carne quanto O Brasil na produção e
no comércio de café - e que , portanto, co ntavam com enormes quanti-
dades de excedente econômi co rein vertfvel. N o entanto, permaneciam
numa relação de subord inação dentro de uma divisão internacional do
trabalho cap italista já diferente . Forço so é dizer que os esquemas teóri -
cos do colonialisrno não exp licam essa realid ade. Por outro lado, a histó-
ria d a ascensão ao rankingdos desenvolvidos via alta especialização com o
produtores de bens p rim ários na pretérita divisão internacional do tra-
balh o, façanha alcançada por Austrália e Nova Zelândia e nunca rep eti-
36 Franc isco de Oliveira
da depois, desme ntia tam bém a teor izaç ão sobre a vantagem das "vanta-
gens compar ativas'".
O novo da pro dução furtadiana , princ ipalmente de sua fase "cepalina",
é essa síntese : rigorosamente, a prod u ção intelectual de Celso Furtado é
a pro dução do conceito de subdesenvolvimento. Como síntese, seus ele-
me n tos são ecléticos, vindos p rinc ipalme nte da fusão de uma visão his-
tórica - imposta mesmo pelo fato de que as economias e soci eda des
latino-ame ricanas nã o haviam nascido ontem - com os elementos teóri-
co-instru ment ais keynesian os. Esse é seu n úcleo p rincip al. Nesse senti-
do , o uso dos conceitos te óricos pr inc ipa is é redefi n ido no interio r da
cons truçã o funadiana. Um a leitura escolástica e exegética da ob ra de
Furta do é não ape nas míop e, mas também , e principalmente, perde o
sentido de síntese teórica do conceito de sub desenvolvime nto.
Por outro lado, o conhecimento como forma de supon ar, in formar a
ação , como planejamento, é tam bém determinado pela n ecessid ade de
apontar políticas, prime iro par a o conj unto dos países da Am érica Lati-
na e depo is para o Brasil. Contraditoriament~, o conhecim~nto como
planeja me nto é altamente lim ita tivo na teorização funadia na, aparecen-
.do como uma n ecessidade ditada pela obrigatoriedadede acelerar o cres-
cimento - em ausência ou não se'podendo esperar pelo nascimento epela
consolidação dasformes de mercado - e nu nca como um sina l dos p ró-
prios ptoces sos de concentração e centralização do capi tal. O planeja-
mento é racional na teorização furtadiana, é uma questão de ade q uação
entre fin; e meios. E o conhecim ento como planej amento será o respon-
sável pela sua enorme infl uência, pela demiurgia fuccadi an a. Sur gido em
condições de gestação de uma nova divisão internacional do trabalho
capitalista, em q ue as antigas cont radi ções entre imperialism o e in dus-
triali zação das pe riferias estava m se trans formando em seu contrário, o
pen samento fuccadiano logr ou um raríssimo acoplamento n a história
da produç ão intelectual: entre esta e o mo vime nto de transformação da s
estruturas de produ ção. Esta é a sua força e a explicação de seu inusitado
sucesso até hoje.
Essa produção para a ação é a economia política de Cels o Furtado e
também sua m ais s éria limitação. Tendo começad o seu roteiro teórico
A navegação ventur osa 3-
procurando escapar das lim itações e da rigidez pr oduzidas pela ausência
de teorização original sobre as economias e sociedades latino-americanas,
e especialm ente sobre a br asileira, a obra de Fur tado transforma-se ela'
mesma n uma ideologia; se esse é um critério pelo qual se pod e medir o
alcance de sua influência, é também um critério pelo qu al se pode ajuizar
a tem poralidade de sua obra. Durante algumas década s, pelo menos no s
últimos vinte e cinco anos , os economistas brasileiros podiam ser divid idos
"entre "furtadianos " e "an tifurtadianos", e essa influência, já se assin alo u,
extrapolo u e atingiu ou tras áreas das ciênc ias sociais. Essa transformação
em ideologia terminou por infecun dar as p róprias gerações por ela in.
fluenciadas: a ob ra de Fur tado é uma referência obrigatória para todos
que estudam o subdesenvolvimento, a América Latina e o Brasil mas ,
no período em que suas teses para a ação já ru íam pela dem onstração
contrária - e esse é um dos fon es handicaps de qualquer. ideologia - ,
tanto a nova situação econômica, social e política do Brasil n ão podia
, ser entendida à luz da teorização funadiana quanto, o q ue é mais grave,
elas não de ram lug ar a nenhuma pesquisa q ue pudesse tentar conhecer a
n ova situação. A obra de F~nado corre o risco de ser apenas citada, o que
é, sem dúvida, um lamentável resultado do no sso m odismo cultural.
Como se a "questão nacional", que no fun do ' é a questão pos ta pelo
conceito de subdesenvolvimento, já n ão tivesse ne nhuma relevância nem
pertin ência , para citar apenas a pri ncipal.
Estas no tas introd utórias à leitura do que de mai s exp ressivo co n-
té m a ob ra de C elso Furtado, seleção certamente in flue nc iada pelas
minhas própr ias p referên cias, não se pa recem com balo fas laudações
usu ais ne sse tipo de apresentação. Elas talve z pareçam mais críticas do
que deveriam ser. A ob ra de Fur tado é, ela mesma, uma recu sa ao
"jeiti n ho" brasileiro ; a críti ca de sua ob ra ta m bém deve recusar essa
"ação entre amigos" em qu e se' de senvolve boa pane da prod ução inte-
lectual n acio n al. De mais a mais , não se co nhe ce nenh um o ut ro autor
contemporân eo cuja influênci a no Brasil ,tenha alcan çado os ní veis
que a obra de Furtado alcan çou.
Sobre a pessoa Celso Fur rado , sua autobiografia intelectual, que abre
a presente antologia, fala eloqüentem ente:
38 Francisco de Olivei ra

Personalizando, por mi nha vez, estas notas introdutórias, devo dizer

que aprendi com C elso Furtado não ape nas tudo aq uilo que esta int ro-
dução assinala, mas sobretudo u ma lição de di gnidad e, austerid ade no
trato da coisa pública, da res publica, inco rruptível decência polí tica, que
é o pri vilégio de quem pôde privar de sua lideran ça e de sua am izade .
. ,
CELSO FURTADO E O PENSAMENTO
ECO NÓMICO BRASILEIRO*

C o meço invertendo a tr adicional form a de exposição em qu e se

aborda a obra intelectual de um auto r, neste caso Celso Furt;do, par a
me referir in icialmente à pessoa, uma rara figura de intelectual e ho-
mem de ação. Essas duas qualidade s poucas vezes vêm juntas, e no
Brasil infelizmente essa coincidência é ainda mais escassa . Alguns n o-
táveis estruturadores do pensam ento social brasileiro ou não exp eri-
m entaram pôr erruaç ão sua doutrina ou não tiveram essa chance; de
outro lado , a maioria do s h omens públicos bra sileiros não tem do u tri-
n a _ são apenas político s profissionais, un s mais florentinos, ourros
mai s malufado" quase todos o avesso do avesso: pensam-se heróis, e
são anti-heróis; como o person agem M acuna írna, têm em comum ape-
nas a falra de caráter.
No caso de Celso Fu rtado essa referência pessoal não é nenhuma
louvação , aliás desne cessária,.mas serve para dar o gan cho que dá senti-

• Capítulo elaborado para a obra -Inteligência brasileira. o rganizada por Reginaldo

Mo raes. Ricardo Antunes e Vera B. Perranre. São Paulo, Brasiliense, 1986 .

40 Franc isco de Ol iveira
na
a dou trin a e a ação que é específica
do a sua obr a. É essa ligação entr e
ou o fun dad or da mo der na eco no-
ob ra de Cel so Furt ado , e qu e o torn o começo dos anos 1950 , e é a Cepal
ent o volt ado para a ação, o que nã
mia pol ítica bras ileira. É um pen sam - eco nomias que começaram a se cha
pen samento mais abstrato, não preo
qu o< dizer que não tem os méritos do a.
nsfo rme m em regras de con duta par
cupado que suas p rop osições se tra é hist ó ria e ao pen sam ento das ciências
nom ia política de Celso Fur tado
a soc iedade; tam bém os tem . A eco . do foi que m levou essa con cep ção
sob retu do isso, uma pro pos ta para
a ação.
es dele ' não há nen hum gra nde
a explicá -la e de apr ofu ndá-la. Ele é
• Ser ia desnecessário dize r q ue ant
I nea men te, sim bior icar nen te, um a
figura que te nha for mu lad o sim ulta o,
ia pol ític a. A figu ra de Caio Prad
I teo ria e um a pro pos ta de eco nom
que é, por sua vez, o fun dad or da
teo ria da hist ória eco nôm ica bra si-
i leir a, sob ressai, ali me nta ndo incl
usive os estu dos de ' Fur tado , mas
o Prado , inscreve ndo -se n um a ver-
a
- Em que consiste essa reflexão, essa
I dife rença é que as pro posiçõ es de Cai
tent e teó rica , o mar xismo , evi den
tem ent e recus ada pel as classes do-
m te r se tra ns fo rma do em pau ta
m ina nte s no Brasil, jam ais pod eria
con trário parte da am pla cult ura de
de ação 'para a burguesia, sen do ao sua
ar. E, salvo do pon to de vista de
esq uerda que com eça va a se form
com o arti culado r d o deb ate in te-
m ili tân cia po lític a e de seu pap el
Revista Brasiliense , C aio Prad o Jr.
lect ual-p ol íric o tam bém através da a que venceu nas ciências eco nôm
bin ar reflexão teó rica e age nda par
não teve a opo rtu nid ade de com
o Est ado e a burgue sia.
de um pen sam ent o par a a ação é,
Essa ~ ing u lari dade, essa con junção é par tir do mo me nto em qu e o sist
a do pen sam el)to de Fur tado . Ela
ao mesmo tem po, a força e a fraq uez
sob re o que lhe é con tem por âne o,
forç a por qu e Furtad o teor iza sem pre
seto r púb lico imp lem entand o as teo-
e, sen do alguém que trab alho u no
conferi u um a eno rme proemi nên-
rias que const ruía /defend ia, isso lhe
cenárid teó rico e político do Brasil.
A istas. como H ans Sing er e Paul
cia e um a eno rme visibilidade no de
s da derro ta polít ica de sua s tese s,
tal pon to que, passados vinte ano
ua a ser uma voz que é o uvid a, um
sua escola - a cepalina - , ele co ntin
n-
transfo rma r-se em ação e, certa me
pen sam enr o que busca meios pat a
Brasil, voltará a ter influência, se não
te, r:a nova qu adr a que se abre no do
uadro de forças é bastante dist into
nos níveis ant eriores, posto que o q
rá ent re os form ulad ores da pol ític
de vin te anos atrás, segura me nt e esta
eco nôm ica no Brasil.
econô mic o brasileir o 4j
Celso Furtado e o pensame nto
,
de Celso Fur tado? Ele não pod e
Co mo nasce a pro duç ão intelectual
um dos ma is brilhantes mem bros
no
ser descolado da Cep al, da qual foi
que ina ugu ra um a refl ex~ o sob as re
mar "su bdesenvolvid as'" , que é) sem
ico original dos latino -americanos
à
ufa nismo brasileiro, um apo rte teór
soc iais em escala mu ndial. Furta-
à forma mais rad ical, no sen tido
de
la
mes mo , den tro desse elenco da esco
l
ort ante deles. É discípu lo de Raú
cepalina, seg ura me nte o 'ai ais imp
ntino fun dad or da "esca lá ' Cep al,
Preb isch ", o gra nde eco no m ista arge
mas a'm eu ver Fur tado é mais abe
para além dos limites em .q ue o eco
rto, alargando o cam po de reflexã
nom ista tra balha . '
o
teoriz ação sob re eco nom ias sub-
tiva às du as con cep çõe s, duas verten-
desenvolvidas? Ela cria uma alterna
ent ão pre dom ina vam . A prim eira
, no
tes te óric as-e dou trin árias que até
ica neo clássica e ma rginal ista que
o:am po da eco nom ia, a verte nte teór
de o fina l do sécu lo XIX, ten do sofr
i-
dom in a as ciên cias eco nôm icas des
nte a par tir dos anos 1940 , com
a
do apenas um a mu dan ça imp orta
cláss ica e mar gin alista, ess ~ ver ten
te
revo lução key nesiana . As teor ias neo
icas no mo me nto m esm o em que
o ca-
ou-se o sistema social de pro dução
pitalism o a part ir do sécu lo XIX torn
ina nte tam bém na sua periferia; a
dom ina nte nos países cen trais e dom
ema cap italista de pro dução tinh a
fi-
or feuda l e as classes operárias não
nalm ente venci do seu gra nde con tend
países soc ialistas, inv erter o and a-
conseg uira m desde entã o, salvo nos
Ros ensrein-
Ant es da Ce pal, algu ns eco nom
1
econ omi as "sub dese nvo lvid as" da Europa
Rodan , avançaram no estu do de
Oc iden tal, so bretudo Esp anh a.
Portugal. Gré cia. A Cep al mesma
utilizou -se
aram a faze r "escola"
. que enrr eran ro não cheg
de algu ns ap ortes desses estu dos ção da
da Cep al, nem cent rara m a aten
nem tinh am a abrangência da obra divisão inte rnac iona l do
oo.s mecanism os da
gênese do "sub desenvo lvim ento "
onal, com o o fez a Cep al. .
trabalho e do comércio internaci
a 198 6 . (No ta redi gida por ocasião
da revisão
Raú l Prebisch faleceu em abril de
2
o de 198 6.)
do texto da co nferência. em mai
 Erancisco de Oli veira
men ro da históri a. A corrente neoclássica é também um pensamen to teó-
rico com raízes e determinações sociais m uiro precisas, embora se ap resenre
com o ererno. Depois da suá vitó ria, durante sua longa hegem onia, ficou
um pe nsame nro a-histór ico, que não tem data, não tem tem poralidade,
n ão tem especificidade espacial: por isso os economistas, no Brasil como
nos Esrados Unidos, usam os mesm os insrrumenros e supõem que esres
tratam da mesma realidade. Esse pen samenro a-hi stórico não podia dar
conra de histórias específicas que se formaram evidentemente denrro do
cap italismo, m as que nem por isso deixam de gua rdar sua espec ificidade.
~ \
Do outro lado havia o campo teórico marxista, muito mais rico, muito
m aiscapaz de apreender a realidade e a partir dela criar ou recriar os conce itos,
mas que infelizmenre tam bém naufragou do ponro de vista da inrerpretação
do que era específico na periferia do sistem a capitalista. Depois de Lenin,
com O desenvolvimento do capitalismo na Rússia' , que na verdade rigorosa-
mente é a primeira obra teórica que -tenta entender a formação de uma
periferia no sistem a capitalista, um livro bastante conhecido, mas geralmente
m al lido, o marxismo empobreceu, pelo menos do ponro de vista de encarar
o desafio de um a reflexão sobre a especificidade das econo mias subdesenvolc
vidas. No banho stalinista, o marxismo transtor mou-se num a espécie de .
teleologia, e os p aíses subdesenvolvidos ou atrasados - nunca chamados
sub desenvolyidos - são apenas uma etapa para chegar a ser desenvolvidos.
Grosso modo, essa era a post ulação denrro do campo teórico marxista, algo
assim como a criança que é apenas um caminho para a pro dução do adulro,
que a psicologia felizmenre já rejeitou há muiro.
É denrro desse vazio teórico, das d uasc orren tes princip ais, n ão só n a
eco nomia, mas na interp retação geral do mundo, que o pen sam enro da
C epal emerge. Seu próprio campo teór ico é muito eclético, e se consti-
tui to m ando emprés tim o s d e vários camp os teóricos, ta nto do
neoclassicismo quanro sobretudo do keynesianism o e mesmo do m ar"
xismo, mas os empréstimos são redefinidos em um a nova globalidade,
que é inreiram enre original. O pressuposro é que o subdesenvolvim enro
não é ape nas um a etapa de um processo linear e evolucionista de cresci-
* Op . cir.
Celso Furtado e o pensamenm econôm ico brasilei-c
m enro pelo qual passarão as economias subdesenvo lvidas até chegarem
a ser econom ias capitalistas desenvo lvidas. Isto qu e é tão simples de afir-
mar é em si mes m o um a ino vação teórica radical: o subdesenvolvim enr o
é uma pro dução histórica d o capitalismo, um a espécie de "~vo de
. Colombo" , tão óbvio para nó s hoje .
O pensamento de Furrado, nessa linha teórica, vai articular de novo
economia e história, vai escapar da asséptica teori a neocl ássica, para quem
a história não conra absolutamente nada. Seu primeiro passo é recuperar a
história, retornando à economia política, e nega ndo tanto as economias
subdesenvolvid as como criaçõ es a partir de suas próp rias forças quanro
;;' rem apenas uma eta pa do dese nvolvim ento. É a partir da história que
se verifica q ue as economi as subdesenvolvidas n ão eram uma etap a, mas
um produto específico do sistem a cap ital ista, desde a sua formação , isro
é, desde a expansão mercanrilista d a Europa em d ireção às colônias. E
ap esar de essas economias, de form a geral, estarem insertasno p rocesso
internacional e, portanro, delas poder-se dizer que são também eco no-
m ias capitalistas, constitu em um a diferença no inrerio r do capitalismo.
Esta forma sim ples de enunci ar é um enorme avanço teó rico, po sto que
.. recuperar as diferenças é mais importante qu e assina lar as semelhanças.
Essa marcação de 'um a diferença den tro do me smo cam po capitalista
entre economias que têm graus di feren tes de de senvo lvimento , por pro-
cessos e percursos diversos, pedia urgenremenre um aparato teórico que
tratasse essa diferença. Esta é outra grande contribuição à história do
pensamento social mundial, estabelecer um modo próprio de nascim enro,
de gênese e de dese nvolvimenro dessas econom ias nascidas na periferia
do siste ma cap italista . Celso Furtad o é um au to r bastan te eclét ico , lan-
çando mão de vários esq uemas teóricos parciais para co nstr.u ir es~ a nova
idenridade real, hi stóri ca, construir um novo sujeiro h istórico na cional. .
Essa é a gênese do chamado pensamenro cepalino e de Furtado, sendo .
evidente também qu~ é preciso estabelecer a determinação social desse
pensamento , estabelecer quais são as âncoras do real que possib ilitaram
a formação dessa teoria. Por que n asce a teoria do subdesenvolvimenro,
quais são as cond ições sociais precisas que dão cap acidade, possibilid ade
a que essa teoria nasça e se afirme ? Provavelm ente, anres dos an os 1950
 44 Francisco de Oliveira
essa teo rização di ficilmente en contraria eco , encontraria au ditório ,
encontraria resp aldo social. O subdesenvàlvimento se dava em na-
ções politicamente independente s, pelo q ue elas não pod eri am - nem
eram real e teoricamente - ser rraradas co mo co l ônias.q ue haviam se
consti ruído como uma extensão da expansão mercantilista do capitalis-
mo europeu. Nações que em determ inado momento da história haviam
ganho sua independência política, e, embora um certo marxism o vulgar
ten ha reduzido as nações politicamente independentes ao mesmo esta -
tuto d as colô ni as, o pensamento da Cepal deu-se conta disso, dando
lições ao próprio marxismo : a independência política não se passa sem
modificações no estatuto da economia, sem modificações no seu com-
po rtame nto ; em termos marxistas, como pensar modificações tão im -
portantes na superestrutura sem modificações na infra-estrurura? Do
ponto de vista do método , isto é extremamente importante : ao contrário
da vertente neoclássica, que apl ica curvas de indi ferenç a entre os
bantus da África e Os hab itantes de Nova York co mo se fossem o mes-
mo suj eito - o bjet o t eór ico ; ao contrá rio ta m bém d a 'verten t e
. empobreced ora do marxism o, que dizia que sob a in depe ndência poll-
rica os países: continuavam sendo colônias, numa visão estanque, como se
en t re as independênci as, apolítica e a eco nô m ica, as co isas tivessem se
passado sem se realirnentarern, sem redefi nirem o campo do real e o
campo do teórico.
A teoria do subdesenvolvimento ganha foros de legitimidade devido
ao grande movim ento de descolonização no segundo pós-guerra, colo-
cando pro blemas novos, questões de que a teorização neoclássica e a
reorização das colônias não pod iam dar conta. É nesse momento histó-
rico que a teor ização cepalina ganha a possibilidade de respo nder a esse
des afio posto pela descolon ização, o q ue é pa radoxal , posro q ue a
teor ização cepa lina se refere sob retudo a eco nomias e sociedades q ue
já eram politicamente independentes havia mais de cem anos . De q ual-
q ue r fo rma, é importante anotar, é nesse co ntexto que nasce a teoria do
sub desenvolvimento . Outro ponto para buscar essa determinação social
da teoria é que ela vai nascer, em termo s latino-americanos, precisarnen-
te qu ando as principais economias - Brasil, México, Chile, Argentina,
Celso Furtado e o pensamento econômico br asileiro 45
Uruguai, Venezuela, Colômbi~ - se defronta vam com a nova divisão
inte rnacional do trabalh o que se gesto u após a crise dos anos 1930 e
após a Segunda Guerra Mundial. T inha m sido econ omias que havi am
resistido de forma d iferente às crises dos anos 1930, enquanto outras,
como as da Amé rica Central e do Caribe, permaneceram atadas aos es-
quemas pretéritos ; e por isso seus processos de rransfo rrnação tardia a
que assist imos hoje ~ão lhes abrem mais o passo a soluções dentro do
sistema capitalista, mas o ultrapassam, e Cuba é o primeiro caso , N ica-
rágua é o segundo , e provavelmente os demais países da América Cen-
tral se encami nhem para o mesrpo tipo '.
A teoria do subdesenvolvimento vai nascer como um desafio dessas
economias que haviam resistido de forma diferente à crise dos ano s 1930 .
Em outraspalavras, elas tinham procurado se indu strializar, sair da crise
do períod o não voltando ou perm anecendo na velha divisão internacio-
nal do trabalho - por um lado, prod utores de matérias-prim as,ou subdesen-
volvidos, por outro, pro du tores de manufaturas, ou desenvolvidos - , mas
avançan do no sen tido da indusrrialização; esta é a segunda dete rm ina-
.ção social precisa do nascimen to da teoria do subdesenvolvimento.
D izendo de outra forma, o nascimento, a gênese da teoria do subdesen-
volvim ento responde tamb ém ; certas dete rmin ações que adv êrn de in-
teresses que estão sendo postos, ou seja, ela é um a teoria soci almente
determinada. Como é qu e Celso Furtado ou Prebisch mentalizaram esse
processo objetivo, não sabemos, e não vamos acreditar no psicologi smo
vulgar de que Furtado nasceu na Paraíba, portanto esteve sempre de cara
e em contato com o subdesenvo lvimento, como ele mesmo o disse. Não
é assim que as coisas se passam .. H á der erminações sociais que criam a
possibilidade de uma teoria ser efetiva e ganhar respaldo : a de Marx, que
. é uma das mais bril hantes construções teóricas nas ciências sociais, por
mais que o seja, não tem o menor respaldo entre as classes dominantes.
De que adv êrn essa força e o fato de que faz eco e torna-se "pauta para a
ação"? Por que a grande força da teor ização cepalina e da obra de Furta:
do ? Possivelmente advenham do fato de que essas economias esta vam se
industrializando adversamente à divisão internacional do rrabal ho vi-
gente. Esse embate de forças requer ia uma explicação teórica.
 46 Francisco de Ol iveira
Q uando Furtado reconstrói a hisrória brasileira, por exemplo, ele
encontra um a espécie de política keynesiana avant la lettre nos anos 1930
no Brasil. A obra mais importante de Keynes é de 1936, A teoriageraldo
emprego, do ju ro e da moeda", e só com eçou a ser con hecida no pós-
guerra. Vargas nos anos 1930 fez rigo rosame nt e aq uilo que depois ia ser
cham ado um a po líti ca keynesian a anricíclica. Para não pensarmos
/ q ue ho uve uma espécie de inversão, à maneira da grafologia espírita, que
Furtado e os cepalinos cop iaram aquilo que Keynes ainda não havia
escrito, é preciso pen sar nas determinações sociais que fazem possível o
nascimento de um a teor ia daquele tipo . Eram interesses bastante con-
cretos, lu tando por escapar à cam isa-de-fo'rça da divisão internacional
do trabalho: o Brasil queima café em 1932-1 933 para sustentar preços e
rend as, pro cedimento tipicamente keynesiano, irão d izer depois os ma-
nu ais de histór ia. Porque havia classes sociais aqui , interesses econômi-
cos luta ndo por não se submeterem à crise dos ano s 1930, D isso decor re
a força da teoria cepalina , e o fato de ela se converter realmente n uma
ideologia das classes'soci; is dominantes, cujo problema real era aqu ilo
que a teoria cepalina vinha tentando explicar, de como sair da camisa-
de-força da divisão in ternacional do traba lho dos anos anteriores a 1930 ,
industrializar, expandir-se. Os homens agem , apesar de às vezes não sa-
berem por que agem , parafraseando Marx. ,
Ao se converter numa ideologia, numa pauta de ação, a teoria cepalina-
furtadiana se desnuda, abrindo os flancos para sua contesração. É seu lado
fraco, em pleno apogeu. Faço um parê ntese para dizer, desde logo, que
'não pratico a redução simpl ista de que Furtado esrava a serviço das classes
dominantes, redução vulgar mu ito freqüente e que empobrece a histó ria
das relações ent re ciência, sociedade e persona lidades. Aliás, se valem os
depoimentos pessoais, devo dizer, por ter trabalh ado co m ele durante cin-
co anos, que é um dos homens públicos bra~ileiros mais independentes
dos pode res econômicos. Entretant o, realmente sua .teoria e a da Cepal
John Mayanard Keyn es. .rh~ General Theory ofEmployment. Interest and M oney.
- Brasil, o programa de metas do governo Juscelino Kubitschek na meta-
N ova Yo rk, Ha rcou rt, Brace, 19 3 5 . (Edição brasilei ra: tradução de Mario Ri-
bei ro da Cruz. São Paulo, Atlas, 1992 .1
Cel so Furtado e o pensame nto eco nô mico brasileiro 47
converteram-se numa arm a ideológica poderosa a serviço da nova burgu e-
sia ind ustrial emergerite no Brasil e em outros países daAmérica Latina.
Ela vai fundamentar teoricam ente aquelas tentativas de erro e acert o, de
sair da cam isa-de-força, de ind ustrializar-se contra a vontade dos países
mais industrializado s, e nem de longe as cham adas empresas multinacionais
tinham a perspectiva furt adiano-cepalina, buscando localizar-se no Brasil.
Tratava-se de uma luta de interesses em escala internacional, e a teoria da
Cepal vem dizer "vocês estão certos, é po r aí mesmo", e estruturou um
arcabouço teórico que se transformou numa arma ideológ ica importante,
que pautou a ação de cada governo latino-americano, liberal, conservador
. ou progressista; todos fizeram a mesma coisa.
E sendo assim , se não estamos aqui para fazer exerdcios ingênuos.
nem colocar nos altares os "santos cep alinos" ante s que a Santa M adre
, Igreja o faça, é evidente que essa ideol og ia recobria ta mbém , como é
próprio de to da ideologia, antago nismo s de classe e de inte resses qu e,
ou não in teressava exp licitar, ou ficavam submergidos no int eresse
ma ior, mais globa l, que era o do desenvo lvimento econômico. Em
outras palavras, interesses de camponeses, de tra balhadores e de op erá-
rios, dentro da construção ideológica, da construção teórica 'cepalina e
de Furtado, nã o encontram lugar. Ela não está feita pa ra sus tentar esse
tipo de proposição, ne m seus pres supostos teóricos acolhem os confli-
tos sociais; e, sendo uma teorização para a ação, ela opera a submissão
dos interesses de o utras classes sociais aos interesses ma iores das classes
soc iais predominantes . Não apar ece na pro dução teórica de Furtado
nem da Ce pal; como problemas do crescimento econô m ico, nenhum
do s antagonismos sociais de que qualquer formação social, não escapan-
do disto as da América Latin a, é consrituída. E é assim que ela se faz
forte e se faz fraca, exatamente porque uma teoria desse port e, realm ente
orig ina l, uma contribuição inovadora do pensamento latino-americano,
tem entretanto fragilidades teóricas do tipo assinalado . Puxan do para o
de dos ano s 1950 é decalcado , qua se por inteiro, de um trabalho q ue o
próprio Furtado havia feito para a Cepal e o então BNDE. O plano de
metas ) com os erros e ace!'tos que a hist ória já registrou. torna mais claro
48 Francisco de Olive ira
que o desenvolvimento econôm ico logrado exacerbo u o con fliro soci al
em rodas as dimensões, desd e o antago n ismo proletar iado-b urgúe siá aré
os confliros urbanos, agrá rios, interb urgueses, que a teoria fur rad iano -
cepalina amalgamava sob o rótulo dos " interesses nacion ais».
Furtado ganha proe minência no conjunt o dos pensadores sociais brasi-
leiros por juntar teoria e prática, doutrina e proposição; por out ro lado , sua
teorização era contemporânea dos processos que teor izava, realím entando-
se, calibrando-se por eles. E não porque ele pessoalmente fosse um servo
da classe dominante - um a injusti ça desleal que lhe poderia ser imputada-
mas po rque ocorre precisame n te no m om ento em que frações da classe
domin ante estão em conflito com os capitais esrrangeiros, ele transfor-
mou-se numa espécie de "criador" do Brasil, de suas m ãos nascendo o
pensam ento sobre o Brasil moderno , o qu e é um a eno rm e responsabilida -
de. Se não tivesse a cabeça tão boa quanto sei que tem, ele já esta ria no
hospício há muito tempo , dando urn a de Na poleão. Todo mundo que
pensou o Brasil depois de Furtado pensou -o à sua m aneira: ain da hoje,
vint e anos depois do golpe de 1964 , vint e anos depois da provisór ia derro-
ta do pop ulisrno, vê-se na discussão sobre a econom ia brasileira - que é
radicalmente diferente da economia brasileira dos anos 1960 - os postu la-
e
dos cep alinos furt adi anos o rientando de novo o debate. Pensa-se em
autonom ia nacion al, pensa-se em defesa do mercado para Prot eger a in-
dústria da in for mática, pensa-se em políti ca industrial no sentido de ror-
nar o pa ís auto-suficien te, mesmo na discussão da dívida exrerna, que é
colocada sem pre com o se fossem os banqueiros internacionais contra o
Brasil, é a visão nacionalista dos ano s 1950 que preside o debate . É a rigor
um debare regido por fant asmas; posro que as con dições sociais que presi-
d iram a gênese da teoria furtadiano -cepalina não m ais existem .
A dívida externa,. por exem plo , deveria ser t ratada com outra aborda-
gem , posto que a discussão esconde que um país que tem 100 bilhões de
dólares de dívida não é m ais devedor, senão que é sócio do sistema capi ta-
lista in tern acional. Essa teorização que tem data 'm arcada, do ponto de
vista de sua gênese social, de sua prevalência enquanto pa uta de ação,
enquan to agenda de ação para governo e classes sociais, ela é válida para os
anos entre 1945 e 1964 , quando se recusa i morte na crise dos anos 1930 ,
Celso Furrado e o pensamenro econô mico brasileiro 49
e a industrialização será o novo mo to r da divisão social do tr abalho; e é
uma específica classe social, no caso a burguesia industr ial brasileira, que
roma as rédeas da política econômica, que vai influir poderosamente na
implantação da política eco nô mica , o que é radi calm ente diferent e de
hoje. A Ce pal sem pre tra balho u, posro que esse era o problem a nos anos
pós-guerra, no suposto de um comportamento adverso das econom ias
cap italistas mais desenvolvidas em relação às chamadas economias subde -
senvo lvidas, dando alm a ao corpo do nacionalismo do s anos 1950 . A in-
.dustrialização de qualquer país da América Latin a, e do Brasil in clusive,
'sem pre apareceu aos olhos dessa teorização como algo que contrariava as
leis da divisão internacional do tra balho e contrariava o compor tam ent o
dos agentes econôm icos das classes sociais, em escala int ernacional . H oje,
evidentemente, não é mais assim, a burguesia brasileira é associada ao
capi ral internacional, 'sem esquecer que isso coloca novas contrad ições,
com novos signos e significados . O próprio capita l intern acional, a part ir
do Plano de Metas de Juscelino e sobretudo depois de 196 4 , não vê m ais
a expa nsão de um a economia como a brasileira com o algo que lhe é adverso,
sen ão que aproveit a a política econôm ica implem entada para localizar-se
aqui também , como é bem o caso das multinacion ais.
No final dos an os 1950, Furtado é feito supe rinten den te d e uma
agência especial para o desenvolvimento do N ordeste, e disso sai um a espé-
cie d e subideologia nacion al, que é a preocupação com o N ordeste, e o
modelo de resolução do su bdesen volv im ento esp ecífico de ssa região ,
no contexro do subd esenvo lvime nto brasileiro, é clar amente cep alin o.
N a Suden e, ele produz um a teoria do Norde ste. É preciso enten de r
que essa pe rsonifica ção em .Fu rt ado constitui um p roblema na teoria
das ciências, posro que o probl ema da regiã o é o surgime nto d e um
processo de transform ação de sua econ om ia, integrando-se à econo -
mi a já tr ansformada pelos efeitos do que a Cepal teorizou. É toda um a
conjunção d e forças soc iais que vai negar o p redo mínio das antigas
oligarquias fundiárias do Nordeste , resolvendo a qu estão do atr aso re-
gional , mais uma vez, pOt aquele cam in ho que a C epal já h avia apon - ,
rado para os país es lati no-am erican os: pela industrialização . E Furt ado
transfo rma-se
. por sua vez no "de m iur go", do Nordeste: rodos pe nsa m
 SO Francisco de Oliveira
a q uestão até hoje posta nos mesmo s termos em que ele a colocou no
fina l dos anos 195 O.
O que vem depoi s pertence.à história, isto é, se o projeto de desen-
volvimento doNo rdeste seguiu as pautas do pensamento furta d iano ou
não . Assinalando algumas diferenças, principalme nte o fato do golpe de
1964, a verdade é que o regime autorirário leva ao exagero as proposi-
ções da Sudene em 1959; as diferenças são import antes, para não se
pensar q ue tanto vale uma democracia quanto um a ditadura para o de-
. se~volvimento da economia . Entretanto, é possível dizer que, em geral,
o prog rama de integração do N;'rdeste seguiu as pautas das proposi ções
or iginais, à frente das qua is estava Furta do. De novo aqui as eno rmes
lacunas teór icas da teorização furradiano -cepalina comparecem . Em pri-
meiro lugar, o encobrimento dos antagonismos sociais: o desenvo lvi-
mento não é pensado com o um proce sso de luta social, de luta de clas-
ses, como um processo co nflitivo. Ao contrá rio) é pensa do em termos
exclusivos dos interes ses proeminentes em escala nac ional. Essa falha
teórica vai cobrar pesados juros, não tão pesados quanto os da dívida
externa, mas bastante pesados do ponto de vista teórico e social.
Hoj e nos surpreendemos com a enorme desigu aldade social no Bra-
sil, com a enorme concentração de renda. Tudo isso nos aparece hoje -
como se fossem (perversões" do crescimento) atribuídas exclusivamente
ao regime autoritário e às multinacion ais - o que não os absolve, desde
logo, de parcela da respon sabilidade. Mas é preciso reconhecer qu e, na
matr iz teór ica da forma de pensar o Brasil e o Nordeste, esses problemas
já estavam lá. Não é que a economia se desenvolveu segundo a teor ia,
cobrança eq uivocada qu e geralme nte se faz, e se faz até em nível mais
alto, poi s a críti ca mais vulgar da direita é que é a obra de Marx a respon-
sável pelo que ocorre .na U nião Soviética. Para não fazer essa cobrança ,
bastante bana l, de q ue O culpad o é Furt ado ou a CepaI, é preciso reco-
nhecer, tanto no que concerne aos problemas da pesqu isa científica quant o
no que tem que ver com a luta polí tica, que a ideologia decorrente da
teorização cepalino-furradiana encobria o aspecto contraditório de qual-
qu er desenvolvi mento capitalista; há, corno d isse Bou rdieu , um "efeito- .
r PA r i')" c A h rp e c l11r '.J c cn r i ",i<:
Celso Furtado e o pensamento eco nômico brasile iro ;1
Na reflexão e pauta para O desenvolvimento do No rdeste, Fu rt ado,
que é um tip o extremamente sofisticado, raramente deixando O rabo
fora da toc a para a gente pux á-lo - m as dá pra puxar, o bicho é esperto,
mas o caçado r às vezes é mais -, dizia prec isamente q ue um dos grandes
riscos do atraso do Nordeste transformava-se em im perativo da seguran -
ça nacional, posto que os trabalhadores do Centro-Sul não cons eguiam
aumentar sua parte na d istribuição da renda nacional ou no s gan hos de
produti vidade da ind ústria qu e crescia acelerada mente em São Paulo
porque os mi grantes nordestinos rebaixavam o salário real. Isto está es-
crito e mostra como a questão contraditória das classes sociais em qual-
qu er proce sso de expansão capitalista era colocada de m aneira falsa ou
pelo menos equívoca . Furtado aq ui també m foi original, inventou "luta
de classes entre trab alhadore s", mas o que verbalmente é uma brincadei-
ra denuncia insuficiências teóricas da produção cepalino-furtadian a.
Portanto, algo do que ocorreu nas econ omias brasileira e nordestina, se
vistas de outro campo teórico, não seria tão surpreendente assim. Os
germes de certos prob lemas agudo s que a economia e a sociedade br asi-
leira enfren tam hoje estavam, de certo mo do, nas p ostula ções teori ca-
m ente equi vocadas essenciais de Furtado e da Ce pal. Evid entemente,
não foram os propositore s de política econôm ica os autores disso, foi' a
relação entre as classes sociais em luta, o poder de uma grande burguesia
associada ao grande capital internacional, de Um lado , e, de out ro, a
falta de poder das classes trabalhadoras em geral do operariado indus- e
trial. Mas as lacunas teóricas existentes nas proposições, sobretudo do
autor de qu e se está tratando, tiveram aquele "efeito -teoria" de que fala
Bou rd ieu - como s empre, e como é com um entre acadêm icos e homens
públicos, eles jamais dão a mão à palmatória. M as ~ u rtado vai se dar
conta de alguns equívocos quando passar a criticar a política econôm ica
pós-1 964: na sua form ulação an terior, sobretudo em Teoria epolítica do
desenvolvimen to econômico, seu livro teórico mais consis tente, ele usava o
mu ltip licador keynesiano de emprego para afirm ar que, atr avés desse
efeito, aumentaria o em prego, e a distribuição da rend a ten deria a me-
lho rar. Em período sub seq üente Fu rta do se dá conta de que a economia
........ A: " ....:1 " n ..,,..::\..... "" ""I"" 11 C '1 n ~p Cn"ln rnn rpitn "11 f' ;. ri
 52 Francisco de Olive ira
m ultiplicador keynesiano de em prego par a explicar a estagna ção , po is
inve rsões sofisticadas e int ensivas em capital imped iriam a criação de
novo s em p regos à altura do crescimento da população economicamente
ativa e da força de trabalh o ' à disposição, por esse lado aparecendo a
concentração da renda.
M esm o sua "particular" revisão apontava de novo para suas insufi-
ciências teó ricas: a previsão de estag nação é feita em 19 67, um ano antes
de a economia entrar em novo desenvolvime nto acelerado, chamado o
"milagre brasileiro ". A base teórica cepalin o-fu rtadiana faltou sempre
uma reoria da acumulação , que não pode ser con fun dida com a form a-
ção de capi tal, e o período pós-autoritário gestou formas de acumulação,
como o con fisco salarial, que na matriz keyn esiana, fonte de muitos
"em préstimos" da C epal, apen as se' expres sa n uma queda da demanda
dos consumi dores. Esse esquema não percebe que, mesmo em condi-
ções de não-crescimento do emprego , o processo de acumulação podia
se dar, po sto que esta não oco rre pela criação de empregos, mas pela
extração de um excedente econômico retirado d a força de trabalh o. Esse
conceito teórico é suficiente p ara da r conta de certos impasses a q ue a
teoria de Furtado e da Cepal chegaram, n ão pe rcebendo qu e, mesmo no
int erior de sua formu lação, q uan do há crescimento do emprego, não ne-
cessariame nte a rend a tende a se redistribuir se o mecan ismo básico de
sua form ação é a extra ção de mais-valia, ou , em ou tras palavras , que a
econo mia está aume ntando mais a explo ração do trabalho do qu e a re-
m une ração deste, coisa qu e em qualquer economia se dá e sempre se
deu, historicamente comprovado.
Apesar disso tudo , é inegável que a const ru ção teórica da Cepàl e,
s-
de mo do especial, a de Cel so Furtado - é a mais original e a mais rica
contribuição em ciên cias sociais que se produziu na América Latina e
sobre tudo no Brasil. Ela n ão deve ser despre zada mesmo se incorr eu em
tant os equ ívocos e mesmo que ten ha encoberto confl itos de grande pon-
-dera ção no que se chama o "desenvolvimen to"; sua p rova histórica é que
ch egou a ser um instru ment o de luta social, O que poucas teo rias podem
se creditar; sua prova teórica é que abriu novas pistas pa ra a p rópr ia
pesqu isa. A obra da Ce pal e de Celso Furtado continua sendo um enor-
Celso Furtado e o pensamen to eco nômico brasileir o
me desafio teór ico , ch eia de lacu nas, cheia de in consistên cias. Não se
eleva ao mesmo nível de abstra ção e de rigor paradigmático , tal com o a
teo ria m arxista e mesm o a teoria neoclássica ; sua un iversalid ade é menos
abra ngente, sem dúvida, mas ela permanece como um a das co nstruções
ma is originais do pensamento econômico da segu nda metade do sécu lo
XX. H á que ressaltar qu e os trabalhos de C elso Furtado e os da Ce pal
vêm dar conta e coloca r de pé com rigor inusitad o a chamada "questão
na cional " . Pois há um a questão nacion al no interior da d ivisão in tern a-
cional do tra balho, que constitu i ain da um desafio teórico-prático. O
qu e quer dizer uma nação no sistem a capitalista internacional, do po nto
de vista de sua auto no m ia, do ponto de vista de polít icas autônomas,
questão que se coloca agor a com todo o rigor ecom toda a força? O que
qu er dizer uma econom ia nacional, ou será que isto é um conceito e
uma realid ade já ultrapassados?
Fina lm ente, o pen sam ento furrad iano-cepa lin o nã o devia estar ape-
nas, como hoj e, em cursos de história econômica, como ~I go que já foi e
q ue se estuda como um mo vimento 'do. passado , senão que pela sua
prevalência, pela força e pelo arr aigamento que en controu n a lura social
ele deve ser en carado como um desafio teórico e pr ático de pr imeira
grandeza. Eu não sei de faculd ades de economia e mesmo de ciên cias
socia is que levem a sério um curso sob re a teo ria do subdesenvolvimen-
to . Depois do ano de 196 4 a pr aga dos Ph .D . de C hicago se im plant ou
no Bras il, sob a égide do ministro Delfim Netto, e n os currícu los das
escolas de economia não existe um curso de teor ia do subdesenvolvi-
mento. Ao subdesenvolvimento some nt e se recorre quand o não se sabe
explicar po r ou tras vias; quando se d iz que o Brasil está frente à p ressão
do s banq ueiros internacio nais, então se recorre às "econo mias subdesen -
volvidas" e a ladai nh a se repete, tal co mo a Santa M adr e Igreja mandava
. recitá-Ia décadas atrás, e não surt ia nenhum efeito . É preciso levar a
sério , e as faculda des de econom ia no Brasil deveriam ter cur sos de teo-
ria do subdesenvolvimento, n ão como expli cação ad hoc, uma explica-
ção que se dá quando no s falta a explicação central. Para testá-la como
um paradigma cien tífico nas ciências sociais, verificar sua validade, veri-
ficar as leis de sua gên ese social, a qu e fenômenos histó ricos esteve ligada,
54 Francisco de Oliveira

e se responde ainda a interesses reais, sociais, concretos . Qualquer cam-

1'0 reó rico-científico produz um a certa visão de mundo que se incorpo-
ra ao nosso modo de ser, como a física, em todo seu desenvolvime nto,
de Ar ist óteles a Galileu, deste a N ewto n, passando por Einstein, e agora
com a fís ica qu ân tica, mo ldou nossa visão cósmica. M as no caso da s
ciênc ias sociais esta visão de m undo que toma corpo e que se tr~ns fo rm a
n uma ideologia é muito mais cotidian a, porque ela atua mais do que
qualquer visão cósmica, at ua no cotidiano da lu ta de classes e das classes RETRATO DE FAMfLIA*
soc iais. É por isso q ue não se pode to mar o. pensam ento cepa lino -
furtadiano como um a coisa já vista e co mo algo que deve figurar no
museu da história da teoria econômica.

Retrato d a família, feito nos idos dos 1950.

A imagem já não é a mesma, mas os traços de família estão lá. Do
retrato de 1959, o que permanece, além desses queixos quadrados, desses
perfis dir-se-ia talhados à foice, à imagem e semelhança de seu demiur go '
To m ados ao pé da letra, p ouco s textos parecem tão exitosos. Co mo
no programa de dez pontos de Lenin para a fase do soc ialismo , q ue
algumas déc adas depois pareci a haverem sido alcançados e mesmo ultra-
passados nos grandes países capitalista s desenvolvidos, no caso do docu-
men to do GTDN (G rupo de Trab alho do Desenvo lvime nto do N ordes-
te) , três décadas teri am sido suficientes para cum pr ir.o programa quase
/ quim érico - visionário, disse Assis C hateaubri and em solenidade no
Recife de 1959 - de Cels o Furtado .Ó :

A industrialização se fez, sem so mbra de dúvidas . Uma ver dej ante

Nova Califórn ia expo rt a so l em m an gas, uvas e mel ões d as margens
outro ra in óspitas , visitadas pelas carr anc as escalavradas n a proa dos
barcos, q uem sabe para meterem medo à seca que che gava, de safor ad a,

* Apresentação à o bra O GTDN· da p rop osta à realidade - ensaios sob re a ques-

tão regio nal. Editora da Un iversidade Federal de Pernambuco, 19 94 .