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OS DEMOCRATAS NO
FIO DA NAVALHA
DEZEMBRO DE 1981
OS DEMOCRATAS NO FIO DA NAVALHA
(1973) pareceram confirmar. Pelo menos to conjunto de normas definidoras das re-
em nosso País ficou patente que a indus- lações entre governantes e governados e
trialização podia tomar um curso mais da feição e atribuições dos organismos go-
perverso, deixando ao largo o povo e as vernamentais e demais instituições políti-
instituições políticas, através das quais sua cas.
vontade tradicionalmente toma corpo. De fato, a noção de Estado burocrático-
Procurando interpretar o inesperado, o autoritário faz referência a um regime po-
pensamento social do continente, em lítico não democrático, que exclui a parti-
condições penosas, lançou-se à análise do cipação popular, e em que o mando é
novo autoritarismo, regime político si- exercido de forma não personalizada por
multaneamente excludente e moderniza- elites burocráticas e tecnocráticas militares
dor, em que o mando é monopólio das (e/ou civis), em benefício dos interesses da
instituições militares. grande empresa internacional, estatal e,
Uma produção alentada e estimulante secundariamente, nacional, privada, e
tratou de perguntar sobre as condições da através da promoção do aprofundamento
gênese e da estabilidade do novo tipo de da industrialização.
regime — que o cientista político argenti- Tratava-se, pois, de postular, entre o
no Guillermo O'Donnell chamou buro- predomínio dos interesses grão-burgueses
crático-autoritário — assim como sobre modernos e um regime político fechado e
suas tensões e conflitos típicos. E no afã modernizante, uma relação na qual as ré-
de demolir o excessivo otimismo das aná- deas do Governo estariam nas mãos firmes
lises do passado, não foram raras, no pólo da corporação militar e nas mãos há-beis
oposto, as afirmações de que, na América da tecnocracia civil, enquanto relação
Latina, o desenvolvimento capitalista, por típica do momento de transição de uma
beneficiar a poucos e excluir necessaria- fase a outra do processo de industrializa-
mente a muitos, só podia florescer sob o ção tardia e dependente.
autoritarismo. Uma série de trabalhos posteriores à
Em torno dessa polêmica afirmação análise de O'Donnell (Collier, 79) mostrou
gravita, nos últimos anos, um debate ace- as diferenças entre as políticas econômicas
so e não distanciado de cogitações políti- implementadas pelos novos governos
cas bem concretas, pois, em última ins- militares do Brasil, Argentina, Chile e
tância, o que se indaga é quais as alterna- Uruguai, e pôs em dúvida a existência de
tivas políticas plausíveis nos países mais propósito claro de aprofundar a indus-
desenvolvidos da América Latina. trialização, fazendo pensar que fosse quiçá
Aqui retomo algumas questões cruciais precipitado postular a existência de uma
do tema e referentes ao novo autoritaris- singular coalização de interesses grão-
mo, que parecem relevantes para a discus- burguesa e característica do novo au-
são do momento político no País. toritarismo burocrático latino-americano.
Nessa direção apontou Fernando Hen-
Estado ou regime autoritário? rique Cardoso (1979) quando insistiu na
necessidade de discutir Estado e regime
À diferença das interpretações que en- político e propôs que se chamasse de bu-
fatizaram a recorrência e a continuidade rocrático-autoritário aquele grupo de re-
histórica dos padrões elitistas e autocráti- gimes de força, modernizantes, que ex-
cos de estruturação política nos países lati- cluem a participação popular, e nos quais o
no-americanos, as análises sobre os regi- mando efetivo estivesse nas mãos da
mes burocrático-autoritários buscaram os corporação militar.
elementos que os distinguem das outras Dessa forma, admitiu-se que regimes
formas de autoritarismo tradicionais e burocrático-autoritários, assemelhados por
caudilhescas, das quais há exemplos suas instituições e regras de exercício do
abundantes no passado e no presente de mando político, pudessem estar lastrea-
nosso continente. dos em bases sociais distintas, dar curso a
Na sua formulação original, que deve- pactos de dominação diversos e imple-
mos a O'Donnell, a noção de autoritaris- mentar políticas públicas cujo conteúdo
mo burocrático procurava dar conta de modernizante é muito variável. (É inegá-
duas dimensões do fenômeno do poder vel, por exemplo, a feição modernizante
político: de uma forma específica de Esta- das políticas postas em prática pelo Go-
do, enquanto expressão de relações insti- verno militar chileno. Muito dificilmen-
tucionalizadas de domínio, e de uma for- te, contudo, é possível sustentar que se
ma específica de regime político, enquan- trata de políticas de aprofundamento da
partir da reflexão sobre a atual realidade ças entre grandes agregados classistas e
brasileira. pensar em blocos de interesses heterogê-
É de Alain Touraine (1979) a observa- neos, do ponto de vista de sua posição de
ção de que as classes sociais não parecem classe, e instáveis, no sentido de que se re-
ser os atores principais da história latino- constituem a cada decisão importante.
americana. Aqui, afirma ele, a nitidez A dificuldade de compatibilizar os in-
das situações de classe não tem, como teresses dominantes na sociedade só se
conseqüência, práticas de classe identifi- agravou no curso do processo de desenvol-
cáveis. Com efeito, no caso do Brasil, o vimento, na medida em que, a partir dos
processo de desenvolvimento econômico anos 50, Estado e capital estrangeiro ad-
terminou por conformar uma estrutura quiriram crescente gravitação econômica.
social fragmentada e heterogênea, tor- Ela esteve na raiz das tentativas freqüen-
nando a própria idéia de classe de duvido- tes — e arriscadas — de utilizar a pressão
so valor explicativo, quando o que se quer popular para dirimir conflitos entre forças
compreender ou prever é o sentido da sociais dominantes, o que, por seu turno,
ação coletiva, especialmente na sua di- contribuiu para aumentar a instabilidade
mensão política. do pacto de poder, que dava conteúdo e
Essa afirmação já é um lugar-comum lastro social ao Estado.
na boa literatura sociológica, brasileira e As disputas freqüentes entre interesses
latino-americana, quer se tenha ocupado dominantes, os recursos à mobilização,
dos setores populares, quer se haja dedi- popular, os constantes realinhamentos
cado à análise do comportamento do em- políticos foram fonte de instabilidade
presariado. política característica dos últimos trinta
O avanço do processo de industrializa- anos de nossa história.
ção não fez senão aprofundar a heteroge- Se, por um lado, o processo de desen-
neidade estrutural do sistema econômico, volvimento significou crescente diversida-
com a conseqüente fragmentação e des- de e fragmentação social, por outro impli-
continuidade da trama social de nosso cou em progressivo intervencionismo es-
País. Dizer heterogeneidade e fragmenta- tatal na esfera sócio-econômica, com no-
ção social implica afirmar a diferença, a táveis conseqüências políticas.
disparidade e, inclusive, a divergência de Em primeiro lugar — e esse não é fenô-
interesses mesmo no interior daqueles meno peculiar deste País — à medida que
segmentos sociais que, por sua idêntica se estendeu a ingerência estatal no domí-
posição no processo produtivo, constituem nio da produção direta e no de sua regula-
uma mesma classe ou fração de classe. ção, multiplicaram-se os instrumentos de
Essa peculiar conformação de nossa so- gestão e controle à disposição do Executi-
ciedade teve conseqüências políticas. Sem vo. Dessa forma, como ocorreu ali onde a
sombra de dúvida, tornou extremamente pauta intervencionista se fez prática corri-
precárias e instáveis as alianças políticas queira, o centro de gravidade do poder de
entre os diversos segmentos das classes Estado alojou-se definitivamente nos ór-
proprietárias, até entre os empenhados na gãos do Executivo, em detrimento da ca-
continuidade do processo de industriali- pacidade de decisão do Legislativo, com
zação. Em outros termos, os alinhamen- pelo menos duas conseqüências impor-
tos políticos sempre mudaram com rapi- tantes e sobejamente tratadas na literatura
dez, ao sabor de problemas tópicos, e clássica em Ciência Política. De uma
com freqüência não espelharam clivagens parte, a ampliação da esfera de decisões
de interesse entre "classes" ou "frações que se subtraía ao controle de cidadania,
de classe". desprovida de mecanismos adequados de
No caso brasileiro, é notória a dificul- fiscalização sobre a burocracia pública.
dade de pensar a política de industrializa- De outra parte, o acirramento da disputa
ção a partir dos supostos interesses da bur- pelo controle do Executivo, dada a soma
guesia industrial. Mesmo nas fases iniciais de instrumentos de poder que nele se
da industrialização substitutiva, diante de concentra.
cada opção decisiva de política econômi- Em segundo lugar, a ampliação do po-
ca, os grupos industriais compuseram-se der dos órgãos da administração transfor-
ou conflitaram em função de clivagens se- mou-os em território de caça dos interes-
toriais, regionais ou do poder de merca- ses privados, que aí se foram aninhar,
do. Talvez seja conveniente, pelo menos através da cooptação ou da representação
para o Brasil, abandonar a análise dos corporativista. (Em certo sentido, a pre-
conflitos em termos de oposições e alian- sença direta dos interesses sociais — so-
liberal, mas repensá-las nas novas circuns- elas tivessem importância, qualquer refle-
tâncias. Onde o Estado produz, ordena e xão sóbria nos convenceria de que todos
regula, não há como escapar à discussão os indícios econômicos apontam na dire-
sobre quais são as formas de controle de- ção da maior servidão". E concluiu: "A
mocrático sobre a burocracia pública. liberdade e a democracia só são possíveis
Quais os contrapesos à concentração de quando de antemão se afirma a vontade
poderes no Executivo, para além dos que resoluta de uma Nação de não permitir
o figurino liberal define e que se revelam que a governem como a carneiros".
cada vez mais inadequados? Quando os O problema é que, no País, a democra-
interesses sociais díspares e fragmentados cia tem muitos partidários ocasionais e
tendem a se expressar sob formas aparen- poucos defensores fiéis, e os que o são ca-
tadas ao corporativismo, onde ancorar minham permanentemente sobre o fio da
partidos políticos realmente representati- navalha.
vos? Onde o desenvolvimento capitalista
é difícil e com freqüência recria desigual-
dades sociais gritantes, não será atual o te- NOTAS
ma do planejamento e de como torná-lo
democrático em seus métodos e efeitos? O presente artigo foi redigido por Maria Hermínia Tavares
de Almeida a partir de sua contribuição no Seminário “Esti-
As questões não são poucas, nem sim- los de desenvolvimento econômico e regimes políticos na
ples, muito menos novas. América Latina”, realizado em janeiro deste ano no CE-
Pensando sobre as condições da liber- BRAP, com a presença de estudiosos de varias parte do
continente (N. da R.)
dade no mundo moderno, Max Weber,
em 1906, afirmou que "se apenas as con-
dições materiais e as constelações de inte-
resses direta ou indiretamente criadas por
PUBLICAÇÕES CEBRAP
Livros
Elza Berquó e outros – A fecundidade em São Paulo
Candido Procopio Ferreira de Camargo – Igreja e desenvolvimento
Candido Procopio Ferreira de Camargo e outros – São Paulo 1975: crescimento e pobreza
Bolivar Lamounier (org.) – Voto de desconfiança
Paul Singer e Vinícius Caldeira Brant (orgs.) – São Paulo: o Povo em movimento
Francisco de Oliveira – Economia brasileira: crítica à razão dualista
Seleções CEBRAP
José Arthur Giannotti – Exercícios de filosofia (n.º 2)
Cadernos CEBRAP
E. Berquó, M.L. Milanesi e J.R. Prandi – Aspectos biológicos da fertilidade
Carlos Estevam Martins – Brasil-Estados Unidos dos 60 aos 70
Fernando Henrique Cardoso – Notas sobre Estado e dependência
F.R. Madeira e Paul Singer – Estrutura do emprego e trabalho feminino no Brasil: 1920-1970
Cardoso, Candido Procopio, Kowarick e Singer – Considerações sobre o desenvolvimento de
São Paulo: cultura e participação
Juarez Brandão Lopes – Do latifúndio à empresa
Plínio de Arruda Sampaio – Capitalismo estrangeiro e agricultura no Brasil
Geraldo Muller – Estado, estrutura agrária e população
Fernando Henrique Cardoso – As idéias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento
Guaracy A. de Souza e Vilmar Faria (orgs.) – Bahia de todos os pobres
Maria Andréa Loyola – Os sindicatos e o PTB
Estudos de População
– Sertãozinho (São Paulo)
– Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo)
– Santa Cruz do Sul (Rio Grande do Sul)
Estudos CEBRAP
Números 6, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 24, 25, 26, 27
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