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MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA

OS DEMOCRATAS NO
FIO DA NAVALHA

Na América Latina, houve um tempo volvimento econômico, por um lado, e


de otimismo, quando se acreditou que in- por outro, como fruto da luta política que
dustrialização e democracia eram projetos opunha as forças do progresso, em ascen-
inseparáveis. Onde avançasse a primeira, são, às forças conservadoras. Mas, tanto
a segunda terminaria por se consolidar de num quanto noutro caso, a verdade é que
forma plena. E inversamente, sem um sis- o pensamento progressista latino-ameri-
tema político efetivamente democrático, cano e as correntes políticas que dele se
não seria possível garantir continuidade à alimentavam não vislumbraram, no início
expansão da indústria, condenada, assim, dos anos 60, a possibilidade de que o ca-
à estagnação ou mesmo ao retrocesso. pitalismo industrial pudesse firmar seu
No linguajar dos anos 50, desenvolvi- primado, sob a rédea curta de governos
mento econômico e desenvolvimento po- autocráticos e antipopulares.
lítico caminhavam juntos e prestavam O colapso do regime representativo no
reforço mútuo. A democracia foi pen- Brasil em 1964 trouxe à luz outra realida-
sada como resultado da moderniza- de, que as dramáticas mudanças políticas
ção da sociedade, induzida pelo desen- na Argentina (1960 e 1975) e Chile

DEZEMBRO DE 1981
OS DEMOCRATAS NO FIO DA NAVALHA

(1973) pareceram confirmar. Pelo menos to conjunto de normas definidoras das re-
em nosso País ficou patente que a indus- lações entre governantes e governados e
trialização podia tomar um curso mais da feição e atribuições dos organismos go-
perverso, deixando ao largo o povo e as vernamentais e demais instituições políti-
instituições políticas, através das quais sua cas.
vontade tradicionalmente toma corpo. De fato, a noção de Estado burocrático-
Procurando interpretar o inesperado, o autoritário faz referência a um regime po-
pensamento social do continente, em lítico não democrático, que exclui a parti-
condições penosas, lançou-se à análise do cipação popular, e em que o mando é
novo autoritarismo, regime político si- exercido de forma não personalizada por
multaneamente excludente e moderniza- elites burocráticas e tecnocráticas militares
dor, em que o mando é monopólio das (e/ou civis), em benefício dos interesses da
instituições militares. grande empresa internacional, estatal e,
Uma produção alentada e estimulante secundariamente, nacional, privada, e
tratou de perguntar sobre as condições da através da promoção do aprofundamento
gênese e da estabilidade do novo tipo de da industrialização.
regime — que o cientista político argenti- Tratava-se, pois, de postular, entre o
no Guillermo O'Donnell chamou buro- predomínio dos interesses grão-burgueses
crático-autoritário — assim como sobre modernos e um regime político fechado e
suas tensões e conflitos típicos. E no afã modernizante, uma relação na qual as ré-
de demolir o excessivo otimismo das aná- deas do Governo estariam nas mãos firmes
lises do passado, não foram raras, no pólo da corporação militar e nas mãos há-beis
oposto, as afirmações de que, na América da tecnocracia civil, enquanto relação
Latina, o desenvolvimento capitalista, por típica do momento de transição de uma
beneficiar a poucos e excluir necessaria- fase a outra do processo de industrializa-
mente a muitos, só podia florescer sob o ção tardia e dependente.
autoritarismo. Uma série de trabalhos posteriores à
Em torno dessa polêmica afirmação análise de O'Donnell (Collier, 79) mostrou
gravita, nos últimos anos, um debate ace- as diferenças entre as políticas econômicas
so e não distanciado de cogitações políti- implementadas pelos novos governos
cas bem concretas, pois, em última ins- militares do Brasil, Argentina, Chile e
tância, o que se indaga é quais as alterna- Uruguai, e pôs em dúvida a existência de
tivas políticas plausíveis nos países mais propósito claro de aprofundar a indus-
desenvolvidos da América Latina. trialização, fazendo pensar que fosse quiçá
Aqui retomo algumas questões cruciais precipitado postular a existência de uma
do tema e referentes ao novo autoritaris- singular coalização de interesses grão-
mo, que parecem relevantes para a discus- burguesa e característica do novo au-
são do momento político no País. toritarismo burocrático latino-americano.
Nessa direção apontou Fernando Hen-
Estado ou regime autoritário? rique Cardoso (1979) quando insistiu na
necessidade de discutir Estado e regime
À diferença das interpretações que en- político e propôs que se chamasse de bu-
fatizaram a recorrência e a continuidade rocrático-autoritário aquele grupo de re-
histórica dos padrões elitistas e autocráti- gimes de força, modernizantes, que ex-
cos de estruturação política nos países lati- cluem a participação popular, e nos quais o
no-americanos, as análises sobre os regi- mando efetivo estivesse nas mãos da
mes burocrático-autoritários buscaram os corporação militar.
elementos que os distinguem das outras Dessa forma, admitiu-se que regimes
formas de autoritarismo tradicionais e burocrático-autoritários, assemelhados por
caudilhescas, das quais há exemplos suas instituições e regras de exercício do
abundantes no passado e no presente de mando político, pudessem estar lastrea-
nosso continente. dos em bases sociais distintas, dar curso a
Na sua formulação original, que deve- pactos de dominação diversos e imple-
mos a O'Donnell, a noção de autoritaris- mentar políticas públicas cujo conteúdo
mo burocrático procurava dar conta de modernizante é muito variável. (É inegá-
duas dimensões do fenômeno do poder vel, por exemplo, a feição modernizante
político: de uma forma específica de Esta- das políticas postas em prática pelo Go-
do, enquanto expressão de relações insti- verno militar chileno. Muito dificilmen-
tucionalizadas de domínio, e de uma for- te, contudo, é possível sustentar que se
ma específica de regime político, enquan- trata de políticas de aprofundamento da

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Para uma vertente da industrialização ou sequer de políticas in- é mais complexa. Ela supõe que se logre
tradição marxista, dustrializantes.) escapar do determinismo econômico sim-
cujas análises foram
moeda corrente aqui, É pertinente a restrição do uso do ape- plista, sem jogar pela janela a idéia de
existe uma relação lativo burocrático-autoritário a um tipo que há certos condicionamentos estrutu-
unívoca entre Estado, de regime político, proposta por Cardoso. rais definidos por um dado padrão de de-
entendido como Ela permite sublinhar as semelhanças que senvolvimento e que estão na base dos
expressão de um
pacto de poder, e marcam a ordem política dos países do processos políticos, conformando o cam-
regime político. Cone Sul, sem postular uma homogenei- po da solidariedade e dos conflitos de in -
dade dos fundamentos sociais do poder, teresse, limitando a liberdade de ação dos
das alianças de dominação e das políticas atores políticos e tornando certas soluções
governamentais de difícil comprovação institucionais mais prováveis, plausíveis e
empírica. freqüentes.
Todavia, a precisão sugerida deixa sem Em última instância, uma das questões
resposta uma questão implícita no esforço a elucidar é a seguinte: por que os regi-
conceitual de O'Donnell: o problema do mes burocrático-autoritários constituíram
tipo de relação que é possível postular en- a resposta mais freqüente às crises políti-
tre pactos de interesses, que se fazem do- cas e às dificuldades econômicas que co-
minantes como conseqüência de um curso moveram tantos países? Esses países, em
determinado de desenvolvimento capita- graus e com êxitos variáveis, já haviam en-
lista tardio e dependente, e a forma de trado numa etapa avançada de seu proces-
governo através da qual esse predomínio so de industrialização, e neles, por conse-
social se faz poder político. Em outras pa- guinte, se projetavam, em primeiro pla-
lavras: o problema da relação entre domi- no, os interesses das corporações multina-
nação grão-burguesa e regime político em cionais e da grande burguesia associada.
um momento determinado da industria- Esse o desafio analítico que O'Donnell
lização tardia. encarou com a noção de Estado burocráti-
Para uma vertente da tradição marxis- co-autoritãrio e, particularmente, com a
ta, cujas análises foram moeda corrente idéia da existência de afinidades eletivas
em nossos países, o problema comportava entre a gestão autoritária de elites moder-
uma solução clara: existe uma relação uni- nizantes civis e militares e o predomínio
voca entre Estado, entendido como ex- dos grandes interesses.
pressão de um pacto de poder, e regime Para esse autor, o autoritarismo buro-
político. crático surge como resposta provável às
Assim como o marxismo oficial dos tensões sócio-econômicas e políticas que
anos 30 afirmou que o regime fascista era resultam do avanço da industrialização. E
a forma normal da dominação da burgue- isso é fato incontestável. É necessário
sia financeira, não foram poucos os analis- avançar a análise, todavia, quando não se
tas latino-americanos a decretar que o au- crê que a exclusão dos setores populares
toritarismo burocrático consumia a forma — e, por conseguinte, a solução autoritá-
de regime correspondente — e a única ria — constitua a única saída capitalista
adequada — ao domínio do capital inter- possível para a crise econômica, social e
nacional e da grande burguesia a ele asso- política que pareceu ameaçar a continui-
ciada, nos países mais avançados da Amé- dade do desenvolvimento dos países do
rica Latina. Na verdade, por trás da afir- Cone Sul, em certo momento de seu pro-
mação da inevitabilidade do domínio au- cesso de industrialização. É preciso inda-
toritário havia uma suposição que a análi- gar das condições que tornavam a demo-
se econômica séria não referendava — cracia, em nosso continente, tão vulnerá-
qual seja, a de que o nosso era um capita- vel a ponto de sucumbir a uma crise polí-
lismo deformado e pervertido que, a partir tica mais funda.
de certo ponto, só podia avançar à custa da
superexploração das classes trabalhadoras, A democracia difícil
o que, por seu turno, pressupunha e
demandava altas doses de coerção política A investigação dessas condições, que
e policial. estão na raiz da fragilidade de nossas ins-
Para os que descartam essa visão simpli- tituições democráticas, nos remete a um
ficadora e admitem que, na América Lati- conjunto de fenômenos de natureza di-
na, existe mais de uma via de crescimento versa, mas igualmente relacionados às vi-
capitalista e que um mesmo pacto de po- cissitudes e peculiaridades de nosso de-
der pode realizar-se através de regimes senvolvimento econômico tardio e depen-
políticos distintos, a solução do problema dente. Tentarei indicar alguns deles a
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partir da reflexão sobre a atual realidade ças entre grandes agregados classistas e
brasileira. pensar em blocos de interesses heterogê-
É de Alain Touraine (1979) a observa- neos, do ponto de vista de sua posição de
ção de que as classes sociais não parecem classe, e instáveis, no sentido de que se re-
ser os atores principais da história latino- constituem a cada decisão importante.
americana. Aqui, afirma ele, a nitidez A dificuldade de compatibilizar os in-
das situações de classe não tem, como teresses dominantes na sociedade só se
conseqüência, práticas de classe identifi- agravou no curso do processo de desenvol-
cáveis. Com efeito, no caso do Brasil, o vimento, na medida em que, a partir dos
processo de desenvolvimento econômico anos 50, Estado e capital estrangeiro ad-
terminou por conformar uma estrutura quiriram crescente gravitação econômica.
social fragmentada e heterogênea, tor- Ela esteve na raiz das tentativas freqüen-
nando a própria idéia de classe de duvido- tes — e arriscadas — de utilizar a pressão
so valor explicativo, quando o que se quer popular para dirimir conflitos entre forças
compreender ou prever é o sentido da sociais dominantes, o que, por seu turno,
ação coletiva, especialmente na sua di- contribuiu para aumentar a instabilidade
mensão política. do pacto de poder, que dava conteúdo e
Essa afirmação já é um lugar-comum lastro social ao Estado.
na boa literatura sociológica, brasileira e As disputas freqüentes entre interesses
latino-americana, quer se tenha ocupado dominantes, os recursos à mobilização,
dos setores populares, quer se haja dedi- popular, os constantes realinhamentos
cado à análise do comportamento do em- políticos foram fonte de instabilidade
presariado. política característica dos últimos trinta
O avanço do processo de industrializa- anos de nossa história.
ção não fez senão aprofundar a heteroge- Se, por um lado, o processo de desen-
neidade estrutural do sistema econômico, volvimento significou crescente diversida-
com a conseqüente fragmentação e des- de e fragmentação social, por outro impli-
continuidade da trama social de nosso cou em progressivo intervencionismo es-
País. Dizer heterogeneidade e fragmenta- tatal na esfera sócio-econômica, com no-
ção social implica afirmar a diferença, a táveis conseqüências políticas.
disparidade e, inclusive, a divergência de Em primeiro lugar — e esse não é fenô-
interesses mesmo no interior daqueles meno peculiar deste País — à medida que
segmentos sociais que, por sua idêntica se estendeu a ingerência estatal no domí-
posição no processo produtivo, constituem nio da produção direta e no de sua regula-
uma mesma classe ou fração de classe. ção, multiplicaram-se os instrumentos de
Essa peculiar conformação de nossa so- gestão e controle à disposição do Executi-
ciedade teve conseqüências políticas. Sem vo. Dessa forma, como ocorreu ali onde a
sombra de dúvida, tornou extremamente pauta intervencionista se fez prática corri-
precárias e instáveis as alianças políticas queira, o centro de gravidade do poder de
entre os diversos segmentos das classes Estado alojou-se definitivamente nos ór-
proprietárias, até entre os empenhados na gãos do Executivo, em detrimento da ca-
continuidade do processo de industriali- pacidade de decisão do Legislativo, com
zação. Em outros termos, os alinhamen- pelo menos duas conseqüências impor-
tos políticos sempre mudaram com rapi- tantes e sobejamente tratadas na literatura
dez, ao sabor de problemas tópicos, e clássica em Ciência Política. De uma
com freqüência não espelharam clivagens parte, a ampliação da esfera de decisões
de interesse entre "classes" ou "frações que se subtraía ao controle de cidadania,
de classe". desprovida de mecanismos adequados de
No caso brasileiro, é notória a dificul- fiscalização sobre a burocracia pública.
dade de pensar a política de industrializa- De outra parte, o acirramento da disputa
ção a partir dos supostos interesses da bur- pelo controle do Executivo, dada a soma
guesia industrial. Mesmo nas fases iniciais de instrumentos de poder que nele se
da industrialização substitutiva, diante de concentra.
cada opção decisiva de política econômi- Em segundo lugar, a ampliação do po-
ca, os grupos industriais compuseram-se der dos órgãos da administração transfor-
ou conflitaram em função de clivagens se- mou-os em território de caça dos interes-
toriais, regionais ou do poder de merca- ses privados, que aí se foram aninhar,
do. Talvez seja conveniente, pelo menos através da cooptação ou da representação
para o Brasil, abandonar a análise dos corporativista. (Em certo sentido, a pre-
conflitos em termos de oposições e alian- sença direta dos interesses sociais — so-

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A expressão de bretudo dos dominantes, mas, às vezes, 2. concentraram capacidade de deci-
interesses no Estado, também dos dominados — no aparelho são no Executivo em detrimento do
sem a mediação dos
partidos e por trás de Estado, à maneira corporativista, ou poder das assembléias eletivas, com
das assembléias, foi seja, fragmentada e circunscrita, refletiu e pelo menos dois efeitos políticos:
freqüente, depois dos reiterou a heterogeneidade e a fragmenta- a. subtrair uma ampla gama de
anos 30, mesmo sob ção de nossa estrutura social, anterior- deliberações políticas ao contro-
o regime liberal da
Constituição de 46. mente aludidas.) le democrático da cidadania;
A expressão de interesses no aparelho b. transformar o controle sobre
de Estado, sem a mediação dos partidos e o Executivo em fator crucial de
pelas costas das assembléias eletivas, cons- poder, fazendo intolerável para
tituiu prática freqüente depois dos anos os interesses constituídos a vi-
30, mesmo sob a vigência de regime li- gência de governos pouco con-
beral-democrático da Constituição de fiáveis, dadas suas relações e
1946. Nesse caso, ela conviveu com a re- compromissos com os setores
presentação de interesses através do siste- populares;
ma partidário e com o processo parlamen- 3. ampliaram a autonomia decisória
tar. Todavia, a existência dessa forma sor- das elites burocráticas do Estado,
rateira de influência na formulação de po- dando lastro a uma ideologia que
líticas governamentais em certa medida identifica razão de Estado com inte-
solapou o terreno onde deveriam se enrai- resse na Nação.
zar as instituições da democracia repre- Alegar a existência de um conjunto de
sentativa. Pelo menos para os grupos so- condicionantes gerais que tornaram difícil
cial e economicamente dominantes, a a vigência e a estabilidade da democracia
cooptação ou as formas aparentadas à re- no País não é o mesmo que afirmar sua
presentação corporativista constituíram inevitável substituição por um regime bu-
canais sempre abertos para o exercício de rocrático-autoritário. Esses condicionantes
pressão sobre os governantes. E em certas não bastam para explicar a derrocada das
circunstâncias, foram vias expressas, instituições democráticas. Eles tão-somen-
quando comparadas ao tortuoso caminho te conformam um estreito campo de ma-
da tomada de decisões por método demo- nobras para os partidários da democracia.
crático. A análise concreta da crise, que condu-
Além do mais, é inegável que a repre- ziu à imposição de uma ordem burocráti-
sentação direta no Estado constituiu uma co-autoritária no Brasil, revela uma dinâ-
forma bastante cômoda para a viabiliza- mica política intrincada, cujo desenlace
ção dos grandes interesses internacionais, dependeu, em boa medida, das opções de
cuja expressão aberta na arena política de- ação feitas pelos atores políticos em pug-
mocrática encontrava óbvias dificuldades. na. Em particular, parece evidente a im-
Finalmente, a disparidade e o particu- portância das alternativas de ação postas
larismo dos interesses sociais, a enorme em prática pelas forças ligadas aos setores
gravitação do Estado como produtor, alo- populares, que jogaram na derrocada das
cador de recursos e, também, como locus instituições políticas vigentes, percebidas
de organização e arena de disputa dos in- antes como praça forte dos interesses con-
teresses privados, só fizeram ampliar a li- servadores que como alavancas de amplia-
berdade de ação das elites burocráticas do ção da participação social e política. Nesse
Estado, exercitando-as na função de me- sentido, sua prática concreta contribuiu
diadoras dos conflitos e estimulando sua para encolher o espaço do diálogo e da
vocação para o exercício do mando político. negociação e para acentuar a radicalização
Em resumo, creio que existem condi- política, deitando por terra a limitada e
cionantes estruturais, moldados por nosso precária institucionalidade democrática.
padrão histórico de desenvolvimento e
acentuados com o progresso da industria- Impasses do novo autoritarismo
lização, que:
Sem embargo, se a democracia é difícil,
1. tornaram os distintos grupos bur- tampouco os regimes autoritários logra-
gueses pouco identificados com a de- ram índices elevados de alguma estabili-
fesa e o fortalecimento das institui- dade política.
ções democráticas e sempre dispostos Existe consenso, entre os estudiosos, so-
a delas abrir mão, diante do que pos- bre o fato de que os regimes dessa nature-
sa parecer ameaça grave a seus inte- za têm dificuldade em se afirmar como al-
resses; ternativa duradoura às instituições libe-
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ral-democráticas. Ao contrário do fascis- mes burocráticos-autoritários.


mo, que negava radicalmente a democra- Com efeito, a literatura que enfatizou
cia liberal e propunha novas instituições a baixa institucionalização e a falta de le-
e outro princípio da representação, o res- gitimidade de regimes como o nosso cha-
tabelecimento da normalidade democrá- mou a atenção para a dificuldade de o au-
tica permanece no horizonte dos gover- toritarismo se fazer aceito em seus pró-
nos militares, como ponto de chegada prios termos, definindo normas e proce-
necessário, ainda que sem data prevista. dimentos consensuais — distintos daque-
No momento em que se descarta a les propostos pela liberal-democracia —
idéia de que os regimes burocrático-auto- para a escolha dos governantes e para a ar-
ritários abrigam sempre e necessariamen- ticulação entre Estado e sociedade, através
te um único pacto de poder, cujos interes- da construção de canais de expressão de
ses industrializantes só podem se efetivar interesses e anseios dos diversos segmen-
com a implementação de uma única e de- tos sociais.
terminada política econômica, torna-se Por trás de formulações que nem sem-
impossível isolar qualquer conflito de in- pre escapam ao formalismo e que resva-
teresses típico que esteja na raiz da vulne- lam a engenharia política, existem ques-
rabilidade dessa forma de governo. De fa- tões substantivas a considerar. Elas dizem
to, a redemocratização chegou à ordem respeito não só à maneira como se repro-
do dia na Argentina, em 1970, como con- duz a marginalização política dos setores
seqüência do fracasso da política econô- excluídos dos benefícios do crescimento
mica de Ongania, frente à capacidade de econômico, mas também à relação entre
resistência de um setor do empresariado as elites burocráticas militares e civis, de-
industrial e da classe trabalhadora. No tentoras das rédeas do Estado, e os seg-
Brasil, o êxito de uma certa política eco- mentos sociais dominantes com suas for-
nômica não impediu que a questão da ças de apoio.
"abertura política" entrasse em pauta,
por iniciativa do grupo militar que subs- Focos de Tensão
t i t u i u o governo do "milagre econômi-
co". Ao contrário, não foram poucas as O desgaste implicado na óbvia correla-
análises que enfatizaram os efeitos "de- ção entre políticas sociais e econômicas
sestabilizadores" da rápida modernização antipopulares e medidas repressivas não
da sociedade brasileira, decorrente do no- deve ser menosprezado, posto que contri-
vo padrão de crescimento econômico. bui para empurrar para a oposição t a n t o
Nesse particular, nenhum modelo po- aqueles setores que temem e são necessa-
de substituir a análise concreta do jogo de riamente atingidos na eventualidade de
forças que define arranjos de poder diver- uma degeneração fascistizante do regime
sos entre os variados segmentos das cama- — a Imprensa, a Universidade, os políti-
das proprietárias. Não cabe dúvida de cos profissionais, os juristas, e t c . . . —
que a extensão e solidez maiores ou meno- quanto instituições que assumiram a de-
res do pacto de poder, assim como sua ca- fesa e a tutela dos deserdados e excluídos,
pacidade de contar com a aquiescência como a Igreja. Todavia, esse não é o unico
das camadas médias, constituem fatores foco de tensão a abalar os pilares de sus-
decisivos para conferir maior ou menor tentação do autoritarismo.
viabilidade ao exercício efetivo do mando Creio que aqui ganham relevância dois
autoritário. Existe, entretanto, mais de temas, em certa medida correlacionados:
uma via para lográ-los, mais de uma polí- o da monopolização da Presidência pelas
tica econômica para propiciá-los. Forças Armadas e o da ausência de formas
Se é fato que a capacidade de compati- definidas de representação e expressão de
bilizar interesses dominantes e assegurar a interesses presentes na sociedade.
simpatia das camadas médias urbanas, O primeiro fenômeno tem conseqüên-
que formam o grosso da opinião pública, cias óbvias e bastante conhecidas, seja no
constitui o elemento decisivo da perma- que respeita ao efeito da luta sucessória
nência dos governos burocrático-autori- sobre a unidade interna da corporação ar-
tários, não é menos verdadeiro que essa mada, seja no que respeita ao fato de ex-
forma de regime tem problemas próprios, cluir do processo de escolha do chefe da
que acentuam sua vulnerabilidade. A es- Nação até os mais poderosos, introduzin-
ses problemas foram sensíveis os que pen- do um fator de distanciamento entre o re-
saram nas questões correlatas da institu- gime e seus suportes sociais, que nestes
cionalização e da legitimidade dos regi- rapidamente pode se transformar em in-
NOVOS ESTUDOS N.º 1
Já se acreditou que a diferença, quando não em hostilidade. caso do Brasil, ainda está por ser feita a
democracia era difícil O segundo fenômeno relaciona-se à análise cuidadosa da distensão política,
pelo atraso da
economia e da maneira extremamente precária pela qual iniciada em meados dos anos 70.
sociedade. Hoje se os interesses dominantes na sociedade se Essa análise, necessária e urgente, pro-
sabe que ela é difícil, fazem presentes nos órgãos decisórios es- piciará balizas mais sólidas para a indaga-
também, pelo que há tatais. Nesse particular, vários foram os ção sobre a legitimidade das projeções
de moderno e
avançado no nosso autores que assinalaram a expansão de que possamos fazer sobre a viabilidade de
capitalismo. formas de representação corporativista uma democracia estável no País.
sob os regimes burocrático-autoritários. A náusea que os anos de regime autori-
Avançando a análise, O'Donnell tário nos causaram, e a esperança, que re-
(1980) sublinha o caráter bifronte do cor- nasce quando o vemos presa de suas pró-
porativismo, associado às funções de ex- prias contradições, fizeram surgir uma in-
clusão do setor popular e de expressão dos terpretação simetricamente oposta às que
interesses dos grupos proprietários direta- decretaram a necessidade do autoritaris-
mente no Estado. mo para dar curso a uma industrialização
Todavia, os regimes autoritários não dependente dos fluxos internacionais de
instituíram uma forma definida de estru- capital. Segundo essa nova interpretação,
turação corporativista. Se é verdade que o regime burocrático-autoritário seria
se multiplicaram os órgãos em que a re- uma espécie de camisa-de-força a aprisio-
presentação "classista" ficou assegurada, nar uma sociedade civil pujante, estrutu-
não é menos certo que no conjunto preva- rada e indiferente ao Estado, como uma
leceu uma pauta muito menos nítida de boa sociedade civil oitocentista.
participação privada, através do que Car-
O atrasado e o moderno
doso designou por anéis burocráticos.
Ainda que os anéis burocráticos tenham Entretanto, essa não é a realidade de
parentesco com o corporativismo, na sua nossa sociedade. Continuam a ter vigên-
forma moderna, dele se distinguem pela cia aqueles fatores que, pelo lado da frag-
transitoriedade, informalismo e predomí- mentação social e pelo lado da gravitação
nio da cooptação sobre a representação. do Estado, favoreceram a derrocada do ré-
Destarte, mesmo que, sob o autoritaris- gime de democracia restrita da Constitui-
mo burocrático, o Estado seja poroso e ção de 46. Eles são expressão e resultado
seus órgãos absorvam os interesses priva- de um curso de desenvolvimento em que
dos, é inegável que a falta de procedi- a oligopolização da economia e a inter-
mentos claramente definidos de patrici- venção do Estado se configuraram já nas
pação na tomada de decisões cria um ele- primeiras etapas da industrialização, e só
mento de arbitrariedade e imponderabili- ganharam importância com seu avanço.
dade extremamente desconfortável para o Em certa época acreditou-se que a de-
capitalismo privado. Isso é ainda mais mocracia, na América Latina — e no Bra-
verdadeiro quando se considera que em sil —, era difícil pelo que havia de atrasa-
muitos casos, sob o autoritarismo, esten- do na economia e na sociedade. Hoje se
deu-se ainda mais a intervenção estatal no sabe que ela é difícil, também, pelo que
domínio econômico, na produção ou em há de moderno e avançado em nossa so-
sua regulação, e que, por definição, os re- ciedade capitalista. Aqui se manifestam
gimes autoritários levam a seu limite a de maneira exacerbada todas as tendên-
concentração de mecanismos de poder cias que, nos países capitalistas maduros,
executivo. têm sido associadas às transformações da
A existência desses pontos de tensão, etapa dos monopólios e que começam a
obviamente, não explica a crise dos regi- estreirar as bases de uma institucionalida-
mes autoritários, seu andamento e seu de- de democrática de arraigada tradição. Em
senlace. Eles constituem tão-somente ele- nosso País, operam todos os fatores que
mentos que tornam vulneráveis regimes tornam cada vez mais difícil a vigência
aparentemente tão fortes e contribuem efetiva das instituições liberal-democráti-
para explicar por que o descontentamento cas, sem que, com raríssimas exceções, as
com relação a um Governo transforma-se práticas democráticas houvessem consti-
com facilidade em oposição ao regime bu- tuído uma experiência histórica real de
rocrático-autoritário. Os elementos de- nossa sociedade.
sencadeantes dos processos de abertura e No Brasil, assim como nos países mais
liberalização, assim como seus freios ou avançados do continente, democratizar
catalisadores, hão de ser desvendados pe- não pode significar apenas restabelecer as
la análise concreta de cada processo. No normas e procedimentos da democracia
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OS DEMOCRATAS NO FIO DA NAVALHA

liberal, mas repensá-las nas novas circuns- elas tivessem importância, qualquer refle-
tâncias. Onde o Estado produz, ordena e xão sóbria nos convenceria de que todos
regula, não há como escapar à discussão os indícios econômicos apontam na dire-
sobre quais são as formas de controle de- ção da maior servidão". E concluiu: "A
mocrático sobre a burocracia pública. liberdade e a democracia só são possíveis
Quais os contrapesos à concentração de quando de antemão se afirma a vontade
poderes no Executivo, para além dos que resoluta de uma Nação de não permitir
o figurino liberal define e que se revelam que a governem como a carneiros".
cada vez mais inadequados? Quando os O problema é que, no País, a democra-
interesses sociais díspares e fragmentados cia tem muitos partidários ocasionais e
tendem a se expressar sob formas aparen- poucos defensores fiéis, e os que o são ca-
tadas ao corporativismo, onde ancorar minham permanentemente sobre o fio da
partidos políticos realmente representati- navalha.
vos? Onde o desenvolvimento capitalista
é difícil e com freqüência recria desigual-
dades sociais gritantes, não será atual o te- NOTAS
ma do planejamento e de como torná-lo
democrático em seus métodos e efeitos? O presente artigo foi redigido por Maria Hermínia Tavares
de Almeida a partir de sua contribuição no Seminário “Esti-
As questões não são poucas, nem sim- los de desenvolvimento econômico e regimes políticos na
ples, muito menos novas. América Latina”, realizado em janeiro deste ano no CE-
Pensando sobre as condições da liber- BRAP, com a presença de estudiosos de varias parte do
continente (N. da R.)
dade no mundo moderno, Max Weber,
em 1906, afirmou que "se apenas as con-
dições materiais e as constelações de inte-
resses direta ou indiretamente criadas por

PUBLICAÇÕES CEBRAP
Livros
Elza Berquó e outros – A fecundidade em São Paulo
Candido Procopio Ferreira de Camargo – Igreja e desenvolvimento
Candido Procopio Ferreira de Camargo e outros – São Paulo 1975: crescimento e pobreza
Bolivar Lamounier (org.) – Voto de desconfiança
Paul Singer e Vinícius Caldeira Brant (orgs.) – São Paulo: o Povo em movimento
Francisco de Oliveira – Economia brasileira: crítica à razão dualista
Seleções CEBRAP
José Arthur Giannotti – Exercícios de filosofia (n.º 2)
Cadernos CEBRAP
E. Berquó, M.L. Milanesi e J.R. Prandi – Aspectos biológicos da fertilidade
Carlos Estevam Martins – Brasil-Estados Unidos dos 60 aos 70
Fernando Henrique Cardoso – Notas sobre Estado e dependência
F.R. Madeira e Paul Singer – Estrutura do emprego e trabalho feminino no Brasil: 1920-1970
Cardoso, Candido Procopio, Kowarick e Singer – Considerações sobre o desenvolvimento de
São Paulo: cultura e participação
Juarez Brandão Lopes – Do latifúndio à empresa
Plínio de Arruda Sampaio – Capitalismo estrangeiro e agricultura no Brasil
Geraldo Muller – Estado, estrutura agrária e população
Fernando Henrique Cardoso – As idéias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento
Guaracy A. de Souza e Vilmar Faria (orgs.) – Bahia de todos os pobres
Maria Andréa Loyola – Os sindicatos e o PTB
Estudos de População
– Sertãozinho (São Paulo)
– Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo)
– Santa Cruz do Sul (Rio Grande do Sul)
Estudos CEBRAP
Números 6, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 24, 25, 26, 27
À venda nas livrarias ou através de pedidos ao CEBRAP.

NOVOS ESTUDOS N.º 1

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