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A Mulher e o Sonho Anne Weale

A Mulher e o Sonho
Girl in a Gold Bed - 1986

Anne Weale

Digitalizado por Rai Lira

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sem fins lucrativos e de fãs para fãs. A
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estritamente proibida
Resumo:
No delicioso refúgio do sono, Liz escapava da solidão. Sonhando, sentiu a
presença de um homem, mãos fortes escorregando por seu corpo, incendiando-
a de desejo. A fantasia ia se tornando tão real que a consciência acabou
trazendo-a à tona da realidade.
Ofegante, abriu os olhos e viu um loiro, nu sob os lençóis! Ela reagiu ao
choque com um movimento brusco, e o estranho também despertou. Confuso,
igualmente embaraçado. Pensava ter Bethany nos braços, a mulher que há anos
tentava conquistar!

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A Mulher e o Sonho Anne Weale

CAPITULO I

A madrugada estava quente e Liz vestiu uma camisola de tecido fino, bem leve, antes
de relaxar o corpo na enorme cama colonial. Sua mente vagava entre lembranças do
passado e incertezas do futuro, tornando tudo irreal à sua volta, como se estivesse num
sonho. Era verdade que passara dias maravilhosos na Villa Delphini — exatamente
sessenta. Estava mesmo precisando da tranqüilidade e do isolamento que o lugar lhe
oferecia. Contudo, agora, saciado seu desejo de estar só, sentia necessidade de
extravasar toda a energia que conseguira reunir. Enganou-se a princípio, pensando que
sentia saudade de Richard, que já não via há seis meses. Depois, percebeu que nada mais
a ligava a ele ou às suas manias, exceto lembranças controvertidas e dolorosas.
Reconheceu então, que do seu mais profundo interior partia um desejo incontrolável
de amar novamente, de entregar-se a um homem que respondesse com igual fervor a toda
a sua paixão. Tremia só de imaginar mãos fortes percorrendo as linhas curvas de seu
corpo, o contato de seus seios com um peito viril. . . Sabia que era o momento de
abandonar sua redoma e abrir-se para um novo relacionamento, embora temesse cometer
algum erro. Já estava cansada de relacionamentos fúteis e superficiais ou "casinhos" que
fatalmente ficariam limitados a uma noite de sexo. Não reprovava esse tipo de
envolvimento. Liz estava com vinte e oito anos e não só ela, mas toda a sua geração fora
mais bem preparada para compreender e lutar contra a repressão sexual infundada. Mas
ela buscava um envolvimento diferente dos que já experimentara algo mais profundo e
duradouro, onde imperasse a compreensão e o respeito mútuos.
Liz mexeu-se na cama, impaciente. Não conseguiria dormir enquanto não tirasse esses
pensamentos da cabeça. Procurou desviar a atenção, admirando os detalhes da imensa
cama. De todos os aposentos da casa, escolhera aquele quarto justamente pelo fascínio
que o móvel exercia. Devia ter pelo menos dois séculos de existência. O dossel era
sustentado por colunas esculpidas com figuras de querubins, chamados no italiano de
amorini, e guirlandas de flores. Na parte interna do dossel, um grande espelho, marcado
pelo tempo, duplicava a riqueza dos ornamentos.
Deitada na cama, os cabelos soltos no travesseiro, Liz podia ver uma imagem nebulosa
de seu corpo esguio refletida no espelho sobre sua cabeça; um espelho que provavelmente
aumentara o prazer dos casais que ali fizeram amor.

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Sem perceber, ela enveredava mais uma vez pelos caminhos da reflexão sobre a sua
solidão. E assim passara todo o dia: impaciente, incapaz de concentrar-se no trabalho ou
mesmo de relaxar.
Antes de qualquer coisa, Liz se considerava uma artista, e a pintura lhe absorvia a
maior parte do tempo. Mas nem mesmo a paixão pela arte, naquele dia, conseguiu refrear
o desejo de estar nos braços de um amor.
Construída no alto de uma colina íngreme, num dos mais pitorescos portos do
Mediterrâneo, a romântica mansão onde se instalara parecia acentuar esse desejo. Era
uma pena que desperdiçasse uma noite tão bonita e quente numa casa tão fabulosa,
absolutamente só.
Enquanto Liz Redwood se revirava na cama, incapaz de dormir, do outro lado da
Europa, no aeroporto de Schiphol, Amsterdam, um homem alto e atlético, de cabelos
loiros e irresistíveis olhos azuis, embarcava num vôo para Gênova.
Era a última etapa de uma viagem ao redor do mundo que o levara a se afastar, por
mais de dois anos, de Portofino.
Pensou que jamais retornaria à casa da colina para evitar o choque das lembranças
dolorosas. Mas o tempo conseguira abafar o desespero que o fizera abandonar a Itália.
Cansado de viver como um nômade, sentiu novamente a necessidade de estabelecer-se e
ficar em paz por algum tempo. E não havia melhor lugar no mundo que a Villa Delphini para
se alcançar a tranqüilidade.
Não se preocupou em avisar a velha Anna, sua delicada empregada, do seu retorno.
Chegaria de madrugada e queria evitar transtornos para ela, que fatalmente o aguardaria
com quitutes, procurando agradá-lo com o carinho de uma mãe saudosa. Adiaria, também,
nem que por pouco tempo, perguntas às quais ele não tinha resposta: o que tinha
conseguido durante a viagem? Fora feliz? Quanto tempo pretendia ficar em Portofino?
Nada disso estava claro para ele. A única coisa de que tinha certeza era o desejo de
caminhar pelos quartos vazios e constatar que não mais estavam assombrados.
Exausto, o homem abandonou as bagagens no hall da mansão e dirigiu-se para o quarto
apenas com a maleta. Estava tonto de sono e mal se deu conta de que as janelas tinham as
venezianas fechadas, mas não travadas, como havia orientado antes de viajar.
Despiu-se pensando que somente muitas horas de sono reporiam suas energias.
Resolveu deixar o banho para o dia seguinte e esticar o corpo na cama gigantesca, o
melhor lugar que conhecia.
Do outro lado do imenso quarto, era possível perceber que as venezianas estavam
misteriosamente abertas pelo farfalhar das cortinas em meio à brisa, mas ele não notou

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isso, cansado que estava, e nem se preocupou ao encontrar a cama desarranjada. Deitou-
se devagar e imediatamente caiu num sono profundo.

O canto dos pássaros entre as árvores do denso bosque anunciava o amanhecer. O


homem adormecido espreguiçou-se e sua mão tocou a curva macia de um quadril feminino.
Ainda em meio ao sono, acariciou a cintura fina e aproximou-se mais, procurando o seio
macio. Há quanto tempo que não tocava uma mulher, desde que se impusera àquele exílio,
desde que os dias de alegria e as noites de amor terminaram abruptamente.
Envolta nos braços dele. Liz murmurou sonolenta quando suas costas tocaram o peito
masculino e pernas musculosas prenderam as suas.
Estafada, depois de tantas horas de insônia, Liz caíra num sono pesado. Sonhou que
Richard a abraçava. Estavam a bordo do iate dele, passando férias em Puerto de Ia
Duquesa, ainda juntos e felizes.
Por alguns segundos, reviveu no sonho a época em que seu futuro parecia tranqüilo e
garantido, quando tinha projetos de se casar e morar numa casa de campo, onde as
crianças pudessem crescer ao ar livre, em contato com a natureza e com animais. Sempre
gostara de cachorros e gatos e talvez até mesmo pudessem manter um burrinho de
cascos pretos e brilhantes.
Aos poucos, as leves carícias no seu corpo a fizeram flutuar de volta à consciência. Um
segundo depois estava acordada, percebendo que havia algo errado. De repente, viu que a
mão em seu seio não era fruto do subconsciente, mas real, de carne e osso, e não tinha o
direito de tocá-la.
Seu coração disparou e num gesto rápido e instintivo, arrancou aquele braço do seu
peito, enquanto ouvia alguém gritar:
— Mas que diabos. . .?
Liz sentou num pulo só e, à luz fraca do amanhecer, percebeu que estava na cama com
um homem que nunca vira antes.
Antes que conseguisse esboçar qualquer reação, a luz do abajur acendeu, revelando um
homem forte, com o cabelo revolto e a barba por fazer. Embora o lençol o cobrisse até a
cintura, estava nu.
Liz era uma pessoa calma, capaz de enfrentar as situações mais difíceis. Mas aquela
era surpreendente.
Cobriu-se com o lençol e fitou o desconhecido, boquiaberta.

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— Quem é você? — perguntou ele, furioso, como se ela não tivesse o direito de estar
ali.
— Ora, eu é que pergunto! Como entrou aqui? — sua voz saiu estridente, bem
diferente do tom suave e ponderado que a caracterizava.
— Com a chave: com o que mais. . ..? Esta é a minha casa, droga!
Ela arregalou os olhos. O homem ali à sua frente não correspondia, nem de longe, às
descrições de Anna. Sir David Castle, o baronete inglês, dono da Villa Delphini, deveria
ser um velho. E viúvo ou divorciado, a julgar pelo comentário vago da empregada quando
Liz lhe perguntou o estado civil do homem. Ele, na verdade, parecia apenas uns dez anos
mais velho que ela.
— É melhor fechar os olhos enquanto visto alguma coisa — disse ele. E pulou da
cama, pisando descalço no chão de mármore em direção ao banheiro.
Liz não conseguiu desviar os olhos a tempo. Seu tino de artista sentiu-se atraído pelos
ombros largos e poderosos, as costas musculosas que se estreitavam nos quadris. Devia
ter quase um metro e oitenta de altura, seu corpo era extremamente bem proporcionado,
e uma marca de maiô dividia os tons da pele dourada.
Assim que ele desapareceu, Liz saiu da cama e vestiu o robe de seda branca. A maioria
de suas roupas era simples, clássica, sem ostentação, mas adorava lingerie e camisolas
bem femininas e provocantes, mesmo que não houvesse ninguém mais para vê-la.
Estava amarrando o laço do robe quando Sir David voltou com uma grande toalha de
banho amarrada em volta dos quadris.
— Meu penhoar não estava no banheiro.
Liz ainda não conseguia encarar o homem que há poucos minutos a acariciava com a
intimidade de um amante. Provavelmente ele também sonhava com outra pessoa, como
acontecera com ela.
Há tempos não enrubescia, mas o sorriso malicioso e a ironia que lia nos olhos azuis
fizeram com que seu rosto se tingisse de um vermelho vivo.
— Como conseguiu persuadir Anna a deixá-la ficar na casa?
— Foi ela que me persuadiu. Eu estava morando na aldeia — respondeu ela, apontando
na direção do mar e do pequeno porto. — Ela argumentou que aqui era mais calmo e que o
senhor costumava alugar a casa quando se ausentava por muito tempo. Não é verdade?
— Não, mas pode ser que ela não pretendesse me contar. Quanto está pagando?
Ela lhe disse a quantia e Sir David franziu a testa.

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— Não achou muito barato para uma Villa como esta?


— Claro, mas ela explicou que não seria justo cobrar-me o que pagaria uma família
inteira; afinal, só estou usando este quarto e a cozinha. Todos os outros aposentas
permanecem fechados, exceto quando Anna faz a limpeza. Faço todas as minhas
refeições no terraço. Anna me deu a entender que o senhor preferiria um aluguel barato
a não receber nada, e que a maioria das pessoas que vêm a Portofino preferem o Hotel
Splendido, onde podem fazer mais amizades. Não deve culpar-me por acreditar nela, Sir
David, não agi de má fé. Pareceu-me bastante razoável que uma Villa como esta, com a
grandiosidade das antiguidades, não interessassem aos turistas de hoje.
Enquanto falava, lembrou-se de Richard e sua preferência por lugares ostensivamente
luxuosos. O grande luxe embaçado do passado, que sempre a atraíra e constituía a
principal atração da Villa, não teria agradado a ele. Jamais Richard alugaria uma casa sem
som estereofônico, televisão e vídeo, microondas e outras instalações que considerava
essenciais para seu conforto.
— Prefiro ser chamado de Castle — sorriu descontraído. — No entanto, dadas às
circunstâncias, por que não me chama simplesmente David? Qual é o seu nome?
— Liz... Liz Redwood.
— Está sozinha aqui, Liz?
Se não soubesse, de antemão, de quem se tratava, mentiria que tinha um irmão
dormindo no quarto ao lado. Mas agora podia dizer a verdade.
— Estou.
— Deve dormir como uma pedra para não ter ouvido quando entrei. Depois de tantas
horas de vôo, cheguei esgotado. Antes de deitar a cabeça no travesseiro, já estava
dormindo. — Fitou-a por alguns instantes, pensativo. — Quando comecei a acordar e
percebi que não estava sozinho, eu a confundi com outra pessoa.
Parecia ter encerrado o assunto quando, inesperadamente, acrescentou:
— Alguém que morava aqui... há muito tempo.
Essa informação explicava o porquê do tom de censura de Anna ao abordar o assunto.
A mulher mencionada teria sido amante de Sir David, e Anna, uma senhora de muitas
tradições e preconceitos, talvez desaprovasse esse tipo de relacionamento.
A claridade da manhã já invadia o quarto. Enquanto conversaram, Liz retomou sua
tranqüilidade e tomou sua decisão.

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— Vou levar algum tempo para tirar minhas coisas daqui; já que está tão cansado,
seria melhor que eu lhe preparasse a cama num dos outros aposentos. Assim que acordar,
estarei pronta para ir embora.
— Há quanto tempo está aqui? Quando termina seu acordo com Anna? — indagou
David, calmamente.
— Estou aqui há dois meses e pretendia ficar todo o verão, mas isso não é problema:
arranjarei outro lugar.
— Tenho minhas dúvidas. E estamos na temporada. Não sei o que Anna lhe disse, mas
Portofino é um lugar muito popular, e sem reserva antecipada é impossível conseguir
acomodação, além de ser caríssimo. Quanto a mim, não faço objeções a que continue na
Villa. Há lugar suficiente para nós dois aqui.
— Eu não poderia aceitar; agradeço sua gentileza, mas é justo que fique à vontade em
sua própria casa. Pelo menos é o que eu faria se fosse você.
— Bem, por que não conversamos durante o desjejum? Posso dormir mais tarde; no
momento, adoraria uma xícara de café e algo para comer. A comida no avião não era das
piores, mas escolhiam sempre o momento errado para servi-la e estou faminto. Que tal
preparar alguma coisa enquanto tomo um banho?
Liz cozinhava muito bem e, se não fosse pela pintura, teria se dedicado à culinária:
Contudo, depois do rompimento com Richard, jurou que nunca mais se deixaria coagir a
fazer tarefas domésticas simplesmente porque era mulher. Estava certa de que esse
tipo de pensamento não deveria mais ser alimentado. Durante séculos e séculos a própria
mulher submetera-se a essa condição, mas agora os tempos haviam mudado.
Richard a decepcionara nesse sentido. Era incapaz de preparar qualquer coisa além de
um ovo cozido, e deixava claro que não tinha a menor intenção de aprender o que
considerava "trabalho de mulher".
O fato de Liz ser uma artista profissional, cujas pinturas detalhadas e minúsculas
eram disputadas por admiradores na Europa e Estados Unidos, não contribuiu em nada
para modificar a sua concepção.
No início, não deixou transparecer seu lado conservador e machista, mas, aos poucos,
aflorou sua opinião de que a função mais importante da mulher é suprir o conforto e o
prazer do homem. Poderia até seguir uma carreira desde que esta não conflitasse com o
seu papel principal — o de servi-lo — e nem com a carreira do "chefe de família".
Esteve a ponto de dizer a David Castle que ela também gostava de uma ducha pela
manhã e que se quisesse tomar o desjejum, teria de prepará-lo por conta própria, mesmo
porque, àquela hora do dia, ela só comia frutas e tomava um iogurte.

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Mas ponderou sobre a situação. Lembrando-se dos dois meses agradáveis que passara
ali a um custo tão baixo, concluiu que, além de indelicada, se comportaria como uma
ingrata se não lhe fizesse aquela gentileza.
— Com prazer. O que vai querer? — Liz admirou o corpo esbelto e os traços
marcantes do rosto de Sir David.
— O que conseguir. Acho que vai querer tomar um banho também, não é? Usarei outro
banheiro.
Pegou as roupas jogadas descuidadamente sobre uma cadeira de estilo renascentista e
a maleta de couro, que parecia bem pesada. Saiu do quarto sem olhar para trás. Não teria
problemas em abrir o outro quarto, já que Anna deixava as chaves na fechadura, pois era
preferível que os ladrões roubassem os objetos valiosos a danificar as portas antigas.
Assim que ficou sozinha, Liz foi ao banheiro escovar os dentes e lavar o rosto como
fazia todos os dias, com o sabonete especial para sua pele sensível.
Enquanto massageava suavemente o rosto, sorriu ao pensar na situação insólita que
estava passando. David Castle parecia à materialização dos sonhos que tivera na véspera.
E como era bonito! Nunca havia namorado um loiro, e os olhos azuis de David a deixaram
fascinada.
Deixou os pensamentos vagarem, soltos. Como seria um beijo daquele homem?
Imaginou e logo se censurou. . . A fantasia a estava levando longe demais.
Prendeu os cabelos numa touca e entrou no box especialmente desenhado para o
ambiente. As portas de vidro, embora modernas, harmonizavam-se perfeitamente com a
banheira antiga.
Enquanto deixava a água escorrer pelo corpo tentou relaxar e traçar algum plano. Não
queria deixar Villa Delphini, sentia como se sempre tivesse morado ali. No entanto, não
lhe restava outra alternativa.
Saiu do banho, enxugou-se e escolheu um pareô colorido para vestir. Gostava da roupa,
embora não lhe trouxesse boas recordações. Richard o havia comprado em Puerto Bañus,
marina na Costa do Sol, onde ele gostava de passar as férias.
Presenteá-la acompanhando-a até a butique e ajudando-a a escolher a roupa tinha sido
um gesto estranhamente generoso, mas logo ela percebeu, decepcionada, que a intenção
dele era impressionar o casal que lhes fazia companhia.
Desde que se conheceram Liz não se lembrava de ele ter se preocupado em agradá-la
com presentes inesperados, desses que se compra ao lembrar da pessoa ao acaso e
refletem uma atenção especial. Não devia gastar nem um minuto sequer ao telefone para

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encomendar as flores e perfumes que lhe enviava sem ao menos um cartão com uma
mensagem carinhosa.
Agora, pensando nos três anos que passaram juntos, espantava-se por ter demorado
tanto para deixar de amá-lo. No caso do primeiro namorado, ainda havia uma desculpa:
aos dezoito anos se é jovem demais para reconhecer uma simples atração física, mas
repetir o erro aos vinte e quatro, não podia mais ser considerado loucura da juventude.
Devia ter compreendido logo quem era Richard Fox.
Um egoísta irremediável, com valores conservadores que ofuscavam seu desejo se é
que o tinha de unir-se a ela. Por que demorou tanto a perceber a verdade por meio dos
motivos fúteis que alegava para adiar o casamento? Como pôde ser tão ingênua?
Depois que conseguiu enxergá-lo como realmente era, agradeceu aos céus por não
serem marido e mulher e, principalmente, pais. Filha de um casamento fracassado, Liz
odiava a simples idéia de infligir a mesma condição a outras crianças — seus filhos.
Suspirando, Liz terminou de se aprontar dando uma última ajeitada nos cabelos.
Quando ela chegou na cozinha, David já preparava suco de frutas, e uma grande
bandeja com xícaras e bule de porcelana estava pronta para ser levada ao terraço.
Ele desligou o liquidificador e estendeu-lhe a mão.
— Vamos começar tudo de novo, está bem? — sugeriu ele, sorrindo. — Como vai, srta.
Redwood? Sou David Castle. Sinto muito não ter avisado que chegaria hoje, mas não deve
preocupar-se, pois pretendo ficar pouco tempo. Espero que tenha gostado da casa.
Seus modos eram simples, de um homem educado apresentando-se a uma hóspede,
como se, de fato, não se conhecessem. Então, por que a mão de Liz tremeu quando ele a
apertou?
— Gostei muito. É a casa mais bonita que já tive a oportunidade de ver.
Fitaram-se longamente e Liz achou-o um pouco mais velho agora que estava com o
cabelo penteado, ainda molhado do banho. Mais velho não, talvez mais aristocrático,
embora preferisse ocultar o título.
Sob o olhar atento dele, ela sentiu-se aliviada por ter se esmerado na aparência. David
devia viver cercado por mulheres sofisticadas e na certa ficaria chocado sé sua
"hóspede" não fizesse jus à pompa da mansão.
Liz tinha os cabelos presos em trança, como costumava usar por causa do calor
excessivo. Caía-lhe muito bem. A cor que escolhera para tingir os cabelos lhe dava um ar
juvenil — um pouco mais clara que o natural. Também trazia um chapéu de palha fina na
cabeça, seu inseparável companheiro nas longas horas de trabalho sob o sol.

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— Imagino a alegria e surpresa de Anna quando souber que está de volta — comentou
Liz, disfarçando seu embaraço. — Tem tido uns problemas de saúde ultimamente, e eu a
aconselhei a procurar um médico. Mas acho que é o tipo de pessoa que prefere ignorar os
sintomas de doença a admitir que esteja doente. Talvez consiga convencê-la a ser mais
sensata.
— Vou até a casa dela logo depois do café. Costumo escrever quando estou viajando,
mas Anna não lê nem escreve muito bem, embora seja inteligente. Além disso, teria sido
difícil escrever para mim, pois andei explorando a Austrália e o Pacífico, sem endereço
fixo.
Enquanto Liz preparava os ovos mexidos, David cuidava das torradas. Quinze minutos
mais tarde, sentaram-se à mesa redonda do terraço superior.
— Liz sorveu uns goles do suco, apreciando seu gosto exótico.
— Por que se chama Villa Delphini? Perguntei a Anna, mas ela não soube explicar.
Delphini significa golfinho, não? Mas por aqui há mais leões do que golfinhos.
— Portus Delphini era o nome romano de Portofino. E os leões devem pertencer à
coleção de um dos antigos proprietários da casa.
— Há quanto tempo comprou esta casa?
— Há uns dez anos. Vim para cá no barco de um amigo, sem a menor intenção de ficar.
Está vendo aquele prédio perto da igreja?
— Aquele que tem uma inscrição em latim na torre?
— Então já a viu?
— Sim, mas não consegui traduzi-la.
— São versos do poeta romano Catulo. Quem colocou essa inscrição na torre deve ter
sentido que Portofino era seu lugar. Como aconteceu comigo, depois de apenas duas
semanas. Escute só o que significam os versos:
"O que há de mais sagrado do que deixar as preocupações de lado,
enquanto a mente descansa seu fardo e, cansados do trabalho e
viagens distantes voltamos para nosso próprio lar?"
— E, no entanto passou dois anos viajando. Não sentiu saudade de casa?
Uma estranha expressão de tristeza toldou os profundos olhos azuis. Ele demorou um
pouco a responder.
— Às vezes, mas a vida é curta e o mundo amplo. As pessoas deveriam tentar
conhecê-lo ao máximo. — Um novo silêncio se seguiu antes que ele voltasse a falar,

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desviando bruscamente o assunto. — Mas. . . agora, diga-me: o que está acontecendo com
Anna?
— Não sei, talvez problemas de vesícula ou fígado. Teve dores muito fortes duas
vezes, depois de ir ao restaurante com parentes.
David deixara de lado o suco para comer os ovos. Assim que terminou, limpou a boca
com o guardanapo.
— Estava uma delícia! E você, Liz, o que faz? É enfermeira? Deixe-me adivinhar...
— Não, que idéia! Sou pintora e vivo do meu trabalho.
David interrompeu o gesto de levar o copo aos lábios e fitou-a atentamente.
— É mesmo? E que tipo de coisas pinta?
— Comecei como ilustradora, porque não me parecia possível pintar ao vivo algo que
me agradasse. Mas por uma sorte incrível é o que tenho feito. Há seis anos, dois quadros
meus foram aceitos para a Exposição de Verão da Academia Real de Londres e adquiridos
por uma americana. Um marchand de Nova York os viu e me encomendou outras pinturas
no mesmo estilo.
— Deve ter um talento excepcional, pois a maioria dos artistas leva bastante tempo
para conquistar uma reputação que garanta o sustento. Muitos jamais conseguem viver de
sua arte.
— Eu sei, mas não deve ser por causa do meu talento excepcional que tenho
conseguido me manter nos últimos cinco anos. O tema de meus quadros deve ser muito
chamativo para levar as pessoas a gastar um bom dinheiro numa obra minúscula.
— É miniaturista?
— Não. Ou talvez só no sentido em que minhas pinturas cabem na palma da mão,
mas não pinto em marfim. Faço naturezas mortas em óleo sobre tela. Minhas despesas
são mínimas: uso os melhores materiais possíveis, mas em quantidades muito pequenas e
não preciso de um estúdio. Posso trabalhar até numa mesa de cozinha.
— Gostaria de ver seus trabalhos. Pintou alguma coisa enquanto estava aqui?
— Claro trabalho todos os dias e foi assim que conheci Anna: estava fazendo uns
esboços na piazza e ela veio espiar. Começamos a conversar, com um pouco de dificuldade
porque eu não entendia bem italiano. Falo um pouco de espanhol, mas italiano só entendo
quando se fala bem devagar.
David empurrou a cadeira para trás para poder esticar as longas pernas. Usava uma
camiseta verde, short branco e chinelos de borracha.

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— Já morou na Espanha?
— Durante alguns meses, antes de vir para cá. Meu sonho sempre foi conhecer
Florença e lá uns americanos me falaram sobre Portofino. Parecia um lugar maravilhoso
para passar o verão.
Agora ele já sabia bastante a seu respeito, mas ela mal o conhecia. Quis perguntar-lhe
se trabalhava, mas não teve chance, pois David voltou a falar.
— Pelo que entendi, é livre em todos os sentidos. Não é casada. . . ou comprometida
de alguma forma?
— Não. Eu era, mas. . . não sou mais.
— Casada?
— Simplesmente "comprometida". E você?
— Bem, acho que meu tempo passou como dizem das velhas solteironas.
Ambos sorriram.
Se ele dizia a verdade, devia ser por opção própria, pensou Liz, observando-o enquanto
se servia de café. Um homem atraente como David Castle não teria a menor dificuldade
em arrumar uma esposa. A menos que se apaixonasse por alguém impossível, como uma
mulher casada, por exemplo.
— Quando Anna veio trabalhar para mim, morava aqui, na Villa. Só que cada vez que eu
viajava, mesmo que ficasse apenas alguns dias fora, ela morria de medo de ficar nesse
casarão sozinha. E quando resolvi passar mais tempo longe, voltou a viver na casa da
aldeia. Talvez esteja com uma estafa por fazer longas caminhadas todos os dias.
— Eu me ofereci para abrir as janelas e arejar a casa uma vez por semana. Só que
Anna não quis nem ouvir falar nisso. Não deve confiar em mim — fez uma pausa e sorriu
para ele.
Era o primeiro sorriso descontraído que dava, transformando a expressão séria que
costumava ostentar. Seus olhos brilharam de alegria. Olhos de gato, dizia Richard; só que
os gatos piscam e desviam o olhar, enquanto Liz encarava as pessoas de modo franco e
aberto.
Pessoas que, muitas vezes, estranhavam que as olhasse com tanta intensidade, porque
não sabiam que o olhar de artistas capta tons de pele, feições, cada detalhe. Várias
vezes, principalmente na Itália e na Espanha, encarara por algum tempo um ou outro
homem que lhe despertou interesse artístico e teve problemas para livrar-se dele.
Experiências desse tipo a ensinaram a ser mais cautelosa.

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— Deve ter pensado que ficaria tão absorta com sua pintura que esqueceria assuntos
triviais como abrir e fechar janelas' — David retribuiu-lhe o sorriso. — Anna sabe que
escritores e artistas têm a tendência de esquecer do mundo quando estão criando.
— Você é escritor, David?
— Não, mas tenho alguns amigos escritores. A maioria das pessoas que se hospedam,
ou melhor, se hospedavam, aqui, têm ocupações criativas que não deixam para trás quando
estão de férias. — David tomou o resto do café e levantou. — Liz, se me der licença, vou
ver Anna agora.
Parou diante dela e sorriu.
— Não comece ainda a arrumar suas coisas. Se Anna concordar, vou trazê-la para
ficar conosco até descobrirmos se repartir a casa é uma proposta prática ou não. Ah,
está com bigode de suco de fruta. — Aproximou-se e com a ponta do dedo acariciou seu
lábio superior antes de entrar na casa.
Liz tirou a mesa e voltou para o terraço a tempo de vê-lo desaparecer através do
jardim em direção à cidade.
Imaginando que ele se ausentaria por quase uma hora, ela resolveu nadar como
costumava fazer todos os dias, pela manhã. Um dos prazeres da vida na Villa era poder
nadar nua quando Anna não estava por perto para escandalizar-se. Escondido da entrada
e dos terrenos das casas vizinhas pelas altas cercas de ciprestes, o jardim da Villa
Delphini mantinha privacidade absoluta, embora propiciasse a belíssima visão do mar da
costa.
Enquanto atravessava a piscina várias vezes, pensava na proposta de David. Aceitar
significaria se dispor a conviver com ele, partilhar a intimidade. Arrependeu-se por ter
contado a verdade sobre seu estado civil. Poderia ter mentido e criar uma barreira entre
eles.
Ainda pensativa Liz deixou a piscina e enxugou-se. Havia meia dúzia de cadeiras
dispostas em volta da piscina que, segundo Anna lhe contara, eram pintadas todos os
anos, na primavera. O jardineiro ia até a Villa duas vezes por semana e se encarregava de
vários serviços. Durante o resto da semana cuidava dos jardins das outras casas. As
cadeiras eram revestidas e extremamente confortáveis para o banho de sol.
Muitos anos antes, no final da década de vinte, Anna trabalhava como empregada para
uma família em cujas festas de verão sempre estava presente um tenente-coronel inglês
que se casara com uma viúva, mãe de duas crianças. A velha Anna ainda se lembrava de
como eram apaixonados, embora já não fossem tão jovens.

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Eram muito felizes juntos, mas o casamento deles só durou dez anos. Que tragédia!
Ela foi picada por um inseto venenoso e os médicos nada puderam fazer para salvá-la —
contou a mulher, que gostava de discorrer sobre a história de Portofino. — Ele nunca se
recuperou da dor e não tornou a casar. Devotou-se inteiramente ao exército e acabou
ficando muito famoso.
— Lembra-se o nome dele, Anna?
— Ela o chamava de Bernardo. O dela era Betty. O sobrenome era Mont. . . gom. . .
ery. Muitos anos depois a rainha da Inglaterra deu-lhe o título de lorde, assim que me
contaram. Acho que já morreu, mas deve ter ouvido falar nele.
Liz ouvira falar sobre Marechal-de-campo Visconde Montgomery e a famosa batalha
de El-Alamein na Segunda Grande Guerra. Vira inclusive um clip de uma entrevista na
televisão, mas não sabia que o rígido militar tinha vivido uma história de amor e
sofrimento.
Anna acompanhava com muito interesse os casos amorosos e a vida luxuosa das
pessoas a quem servia, no entanto, não alimentava amargura ou inveja: ela, viúva muito
cedo, sempre trabalhara muito para o sustento dos filhos e aceitava o seu destino sem
rancor.
Embora nos dias de hoje o destino das pessoas ainda se definisse em função de sua
posição social ou situação financeira, Liz sentia-se feliz por ter nascido numa época em
que os padrões morais não eram mais tão rígidos. Hoje, pelo menos a mulher pode
escolher o seu parceiro e já está na luta pela igualdade de direitos.
Apesar de engajar-se nessa luta, Liz não conseguia deixar de lado seus anseios
românticos. Velhos preconceitos ainda a atingiam como havia acontecido na véspera.
Achou incômodo o fato de ter vinte e oito anos e ainda ser solteira. Bobagem pensava
agora. O importante era amar e no momento certo.

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CAPÍTULO II

Quando David voltou, Liz estava se exercitando no saguão. Não conseguindo


concentrar-se no trabalho, resolveu adiantar os exercícios de ioga para a manhã.
Ele chegou silenciosamente, carregando uma grande bolsa de plástico, sem demonstrar
o menor cansaço depois da subida íngreme.
— Não pare por minha causa — disse, com um olhar de aprovação para o corpo magro
e proporcional, coberto apenas por um collant cor-de-rosa.
— Estava quase terminando. Como está Anna?
— Parece bem disposta. Virá mais tarde para fazer o jantar para nós — e vai dormir
aqui. A sugestão foi dela; afinal não ficaria bem "para uma jovem educada como a
signorina Redwood dormir desprotegida com um homem na casa". Ah, não contei a ela
sobre minha chegada de madrugada, para evitar explicações desnecessárias, está bem? E
fiz algumas compras. . .
— Seu italiano deve ser fluente — comentou Liz, ajeitando os cabelos.
— Fluente, mas não perfeito. Posso deixar estas coisas com você? Preciso ver como
está meu carro, o mecânico de Rapallo ficou de vir regularmente; espero que tenha
mantido a palavra.
Mediante um aceno positivo, David saiu em direção da garagem. Quase como autômata,
Liz distribuiu os alimentos pelos armários. Estaria fazendo o jogo dele, aceitando cada
vez mais as tarefas domésticas?
"Pode pregar este botão para mim, amor? Por que não prepara um café,
querida? Vou ter um dia cheio hoje: será que poderia levar meu terno azul para o
tintureiro? Bolas esqueci de procurar o presente de casamento para Larry e
Margot. Você vai estar muito ocupada hoje? Acha que conseguiria dar um pulo até
a Peter Jones? Eles deixaram a lista de presentes no Livro das Noivas, não deve
demorar mais que uns cinco minutos para achar alguma coisa."
Ecos de sua vida com Richard vieram-lhe à mente. Não permitiria que esse tipo de
situação se repetisse. Por sorte, Anna estaria por perto e ela, pelo menos, era
remunerada. Passaria as camisas dele, pregaria os botões e realizaria as tarefas que
gerações inteiras de mulheres aceitaram como parte de sua função natural.

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Se Anna piorasse, David contrataria uma substituta ou esperaria simplesmente que Liz
assumisse as rédeas do lar? Para ela, se resolvesse ficar na Villa, o aceitável seria dividir
as tarefas igualmente.
Em sua última viagem a Londres foi ao dentista, e, enquanto aguardava na sala de
espera, leu numa revista um artigo que afirmava que embora na maioria dos casos de
união, ambos trabalhassem fora, apenas alguns homens realizavam uma pequena parte do
trabalho doméstico. Portanto, a idéia de dividir igualmente essas tarefas não agradava a
maioria masculina. Seria o caso de David?
Bem, impossível dizer tão cedo. David era um homem atraente, inteligente e, sem
dúvida, gentil. Se nos próximos dias não assumisse nenhuma atitude inconveniente, Liz até
poderia ficar o tempo que se propusera desde o início. Talvez sua permanência fosse
ainda mais interessante com a companhia dele. Mas era preciso deixar bem claro que
precisava concentrar-se em seu trabalho durante algumas horas todos os dias.
— O carro me parece em ordem — disse David, entrando na cozinha. — Vou fazer mais
um pouco de café. Que tal se me mostrasse seus quadros?
— Bem. . . vou buscá-los.
Correu para o quarto, que a partir de então voltaria a ser o dele, e abriu o armário
onde guardava seu material de trabalho. Retirou, cuidadosamente, seus dois últimos
quadros, que mandara emoldurar em Rapallo na semana anterior. Antes de descer,
admirou-os com alegria.
Um deles mostrava um pratinho com azeitonas, uma garrafa de vinho branco e um
pedaço de casca de pão sobre um guardanapo azul. O fundo era composto por uma laje
iluminada pelo sol. As azeitonas reluzentes, a condensação do vidro e a textura aveludada
do musgo sobre a pedra dificultaram seu trabalho, mas ela ficou encantada com o
resultado.
A segunda pintura foi inspirada numa caixa de agulhas que encontrou num antiquário
em Londres. Feita de marfim, com o formato de um peixe de flecha com cupido num dos
lados da aljava e dois corações flamejantes do outro. Fora obrigada a desembolsar uma
boa soma pelo objeto, mas não mais do que o par de sapatos que acabou seduzindo-a
também no mesmo dia.
Pintou a caixa de agulhas com dois botões de prata ao lado de um tinteiro vitoriano,
cheio de flores do campo, tudo sobre a superfície reluzente de uma mesa de madeira.
Quando mostrou os dois a David, durante um longo momento ele se limitou a olhar as
pinturas com atenção. Afinal, perguntou:

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— Aceitaria a encomenda de pintar um objeto meu ou só pinta temas que você mesma
escolhe?
Esse comentário, para Liz, era ao mesmo tempo lisonjeiro e decepcionante. Que ele
desejasse ter um Redwood era gratificante, mas talvez quisesse apenas fazer um bom
investimento, depois do que ela lhe contara.
Era fato que precisava de dinheiro para viver, contudo gostava de saber que suas
pinturas eram valorizadas não como simples objetos decorativos com valor de mercado.
Seu maior desejo era que, entre os Redwood espalhados pelos dois lados do Atlântico,
pelo menos alguns fossem considerados tesouros valiosos por seus proprietários.
Pelo que via, no entanto, não parecia ser esse o caso.
Liz suspirou, num desabafo. Talvez estivesse sendo exigente demais.
— Depende do que quer que eu pinte. Alguns objetos, lindos por si próprios,
simplesmente não me interessam como temas. Para ser franca, fica cada vez mais difícil
encontrar objetos que me inspirem.
— Mais tarde vou mostrar-lhe algumas de minhas coisas preferidas. Ficaram
guardadas durante minha ausência para poupar Anna de trabalho desnecessário —
respondeu David, devolvendo-lhe as obras. — Gostaria de almoçar na piazza comigo?
Traríamos Anna na volta.
— Deve conhecer muita gente em Portofino, David, e eu não gostaria de atrapalhar
seu encontro com amigos. Posso ficar e almoçar aqui, como é meu costume.
— Seria agradável almoçar com você. Gostaria de conhecê-la melhor.
— Já sabe bastante a meu respeito. Você é que é o homem misterioso: ainda não sei
nem o que faz. Deve ter algum interesse, não é, mesmo que seja como hobby?
— Faço o mesmo que você: pinto, mas não como hobby. Tem sido minha profissão há
vinte anos.
Liz tinha certeza de nunca ter ouvido seu nome ou ter visto um trabalho seu.
— Anna não me contou, mas deve ter sido por isso que queria que eu ficasse aqui. Será
que ela tem uma queda por artistas?
— Talvez, embora não tenha comentado nada comigo também. Ela estava mais
interessada em contar-me o que andou acontecendo por aqui do que saber minhas
aventuras — respondeu com um sorriso. — Para ela, Portofino é o centro da terra: o que
acontece no resto do mundo não é muito importante.
— E não é uma tendência natural à gente achar que a nossa terra é o centro de tudo?
Não sentiu isso em sua viagem?

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— Senti falta desta casa — foi a resposta vaga.


David levantou-se e olhou ao redor como se tivesse chegado ali naquele momento.
Observou as paredes, as molduras esculpidas das janelas. Villa Delphini estava bem
conservada e o tempo não conseguiu destruir sua beleza.
— Só quando você sai da Europa é que percebe o charme e o valor das construções
maravilhosas que temos aqui. Na Austrália, uma casa histórica nunca é anterior ao
período vitoriano e demoliram alguns de seus patrimônios para construir estradas. Claro,
na Europa fizemos o mesmo, mas temos mais monumentos.
Isso me preocupou muito na Espanha. Casas antigas com lindos balcões eram demolidas
para dar lugar a horríveis blocos de apartamentos. Muitas que se safaram estão caindo
aos pedaços, sem qualquer atenção. O arrependimento virá daqui a uns vinte anos, quando
será tarde demais.
David levantou-se.
— Hoje não quero discutir as loucuras dos planejadores e os crimes do progresso. Vou
buscar uma garrafa de champanha para comemorar minha volta ao lar e o inesperado
prazer de encontrar uma colega.
Beijou delicadamente a mão direita de Liz com o charme dos homens latinos.
— Você é mais do que bem-vinda bella signorina.
Uma hora depois, haviam tomado pouco mais de meia garrafa de Perrier-louet's Belle
Époque. Comeram alguns salgadinhos e então resolveram sair para almoçar.
Liz subiu rapidamente para trocar de roupa. Escolheu um conjunto leve e solto de
algodão azul e como enfeite usava apenas a corrente de ouro com um pingente, dado pelo
pai, e brincos também de ouro. As jóias antigas que colecionava haviam ficado guardadas
num banco de Londres, pois jamais se arriscaria a levá-las numa viagem pela Europa. Sem
falar que, desde seu rompimento com Richard, não havia se preocupado em se esmerar na
aparência.
Embora estivesse na Villa há muitos dias, Liz não visitou todos os lugares da
propriedade. Nem havia passado pela garagem. Por isso, surpreendeu-se ao deparar-se
com a Ferrari prateada, conversível, que a aguardava na porta. Era um lindo modelo e, na
certa, caríssimo. David Castle devia ter outros meios de subsistência, além da pintura,
pensou.
Acomodou-se no banco e observou o homem a seu lado. Continuava sem conhecer quase
nada sobre sua vida, o que aguçara ainda mais sua curiosidade.

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— Você dirige, Liz? — perguntou ele, enquanto o carro atravessava os altos portões
da propriedade, encimados por leões de pedra.
— Sim, tenho carta há dez anos, mas como morei a maior parte do tempo em Londres,
nunca dirigi muito.
— Se incomodaria de trazer Anna de volta depois?
Só de pensar em guiar aquele carro sofisticado sentia-se assustada, pois o último
veículo que dirigira fora um pequeno Ford Fiesta, alugado na Espanha, para explorar as
cidades nas colinas da Andaluzia.
— E como você volta para casa?
— Vou subir a pé: este é um carro para apenas duas pessoas, não é?
— Você conhece melhor o carro. O mais correto é que você traga Anna.
— Ora, não se deixe intimidar pelas aparências. Este carro é facílimo de dirigir. De
modo geral, os carros italianos são excelentes, principalmente os da Ferrari. É questão de
aprender os macetes.
Liz resolveu adiar a discussão. Provavelmente tomariam vinho no almoço e, na hora
certa, alegaria "um pouco de tontura". Com certeza, daria resultado.
— Não vai ter problemas em achar lugar para estacionar? A esta hora do dia o
estacionamento costuma estar cheio.
— Eu sei, por isso combinei com o rapaz que toma conta do estacionamento para me
guardar uma vaga. E também reservei uma mesa no meu restaurante favorito. É pena que
não poderemos comer muito — disse ele, irônico. — Pelo que conheço de Anna, teremos
muita pasta pela frente no jantar. Espero que não seja do tipo de mulher que se recusa a
comer massa. . .
— Costumo comer pouco e faço exercícios todos os dias. Por isso posso comer massa
sem problemas de consciência.
— Realmente, não precisa se preocupar com o peso. — David virou-se e deixou o olhar
deslizar pelo corpo esguio e as pernas bronzeadas.
Embaraçada, Liz baixou a cabeça e fitou as mãos. Aquilo não podia estar acontecendo
com ela. Estava ao lado de um homem muito atraente e que se mostrava interessado
nela! Praticamente um estranho que viera a conhecer da maneira mais insólita possível.
Só havia uma estrada para Portofino: um caminho estreito, que serpenteava pela costa
entre os rochedos e o mar. No verão, com exceção das primeiras e últimas horas do dia,
estava sempre cheia de carros. No entanto, como Portofino tinha uma área limitada para

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estacionamento e os carros não podiam entrar na área à beira-mar, muitos turistas eram
obrigados a voltar para Santa Margherita e Rapallo.
Foi exatamente a dificuldade de acesso que salvou o pequeno porto de ser destruído
pelo progresso. Vista do mar Liz tomara uma vez o barco para San Fruttuoso, uma aldeia
acessível apenas por mar ou a pé a pequena aldeia estreita atrás do cais mais parecia o
cenário de um teatro.
Diferentes das casas brancas da Espanha, muito brilhantes ao sol forte, as de
Portofino eram pintadas nos tons mais suaves do rosa, amarelo-limão, terracota e
pêssego. Onde os cais se encontravam, formando a praça, a piazza italiana, muitas casas
tinham sido transformadas em restaurantes cujas frentes, cobertas por toldos,
comportavam mesas espalhadas pelas pedras irregulares do chão.
A mesa reservada para David propiciava uma boa visão do cais, no ponto onde
ancoravam os iates e cruzeiros. Foram conduzidos pelo proprietário que o cumprimentou
como a um velho amigo. Olhou para Liz com a mesma curiosidade de sua esposa, que se
aproximou da mesa para anotar os pedidos.
Liz nunca se incomodara em comer sozinha. Observar as pessoas era um de seus
passatempos prediletos e na Itália uma mulher sozinha não era ignorada pelos garçons,
como acontecia às vezes em outros países. No entanto, depois de seis meses de solidão,
era bom almoçar acompanhada por um homem como David.
Ele sugeriu que pedissem apenas a insalata di maré, o melhor prato do restaurante.
Estavam tomando vinho branco, esperando o prato de frutos do mar quando David
estendeu a mão para pegar o pingente pendurado na corrente de Liz virando-o para ler a
inscrição.
Aquele gesto natural fez com que o coração de Liz disparasse. Lembrou-se do toque
quente daquelas mãos sobre seu corpo, da deliciosa sensação de estar naqueles braços.
— Uma prova de amor Liz?
— De certa forma: pertencia a meu pai e nós gostávamos muito um do outro. Morreu
quando eu tinha vinte anos.
— E sua mãe?
— Raramente a vejo. Mora em Cambridge, com o segundo marido. Meus pais se
divorciaram quando eu estava com oito anos. Morava, então, com minha mãe e passava as
férias com meu pai. Na adolescência, tivemos problemas de relacionamento e minha mãe
me mandou para um internato na lnglaterra. Desde essa época passei a viver com meu pai.
— Onde ele morava? — perguntou David soltando o anel e encostando-se na cadeira
de palhinha.

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Liz sentiu-se à vontade para falar abertamente com ele sem o perigo de ser taxada de
mimada ou esnobe, como os estudantes europeus costumavam rotular as moças que
vinham de famílias tradicionais.
— Em Norfolk. Minha escola tinha sido a casa do meu bisavô e por isso papai conseguiu
um bom desconto nas minhas mensalidades. O motivo principal do divórcio de meus pais
foi que minha mãe pensou ter casado com dinheiro e status e demorou a perceber que
tinha errado nos cálculos. Tudo que meu pai herdou quando meu avô morreu foi uma casa
enorme, em ruínas, sem instalações modernas e uma montanha de dívidas. — Ela fez uma
pequena pausa antes de prosseguir. — Bem, chega de contar a história da minha família.
Fale-me sobre a sua agora.
— Eles moraram em Northamptonshire. Nunca vou lá. Minha cunhada viúva mora lá
com as duas filhas. Margaret e eu não nos damos bem e já faz seis anos que não apareço
em Blackmead.
A expressão tensa, que Liz já flagrara outras vezes, reapareceu. A última visita que
ele fizera a Blackmead devia trazer lembranças dolorosas.
Nesse momento, o garçom serviu os pratos e a atenção felizmente passou para o
almoço apetitoso.
Mais tarde, depois de ajudarem Anna a fazer a casinha onde morava e pôr suas coisas
no carro, David insistiu para que levasse o carro. Embora guiasse com segurança, só
respirou aliviada quando alcançou os grandes portões da Villa sem um só arranhão no
valioso carro esporte.
Se Richard tivesse um carro desses, jamais permitiria que ela o guiasse. Quando
andavam de barco, nunca sugeriu que assumisse o comando, mesmo sabendo que ela
aprendera a navegar.
Durante todo o relacionamento com ele, Liz sempre tivera um papel passivo,
concordando com seus planos para os fins de semana e férias, mesmo quando preferia
fazer algo diferente.
Enquanto Anna preparava o jantar, David sugeriu que visitassem seu estúdio. Devia ser
a construção atrás da garagem, que ela pensava ser um alpendre em desuso.
— Deve estar cheio de pó, Liz. Eu não permito que a Anna entre para fazer limpeza.
Poderia danificar alguma obra, mesmo sem querer.
Liz tinha a desagradável impressão de que ele era um amador, entusiasmado com a
venda de alguns quadros numa exposição ou feira de artes. E para ela não existia nada
mais difícil do que fazer elogios a quadros que não apreciava.
David abriu a porta e entrou.

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— Até que não está tão sujo — observou, indicando que entrasse.
O prédio não tinha janelas, apenas uma enorme clarabóia com venezianas que, ao
simples toque de um botão, deslizaram para o lado, permitindo a entrada da suave luz do
entardecer.
Antes que tivesse tempo de olhar em volta, sua atenção foi atraída por um quadro na
parede em frente à porta.
— Você tem um David Warren! — exclamou extasiada.
Admirava o trabalho de Warren desde que era estudante de pintura.
Depois de ficar alguns instantes admirando o trabalho, viu dois quadros menores, na
parede oposta, também de Warren. Antes que pudesse fazer outro comentário notou que
todos os outros quadros no estúdio pertenciam ao mesmo pintor. Virou-se e encarou-o
espantada.
— Você é David Warren?
— Já conhecia meus quadros?
— Claro. . . é um artista famoso. . . Por que não disse logo?
— E se você nunca tivesse ouvido falar no meu nome? Não sou o tipo de pintor
admirado por estudantes e críticos de arte.
— Os críticos de arte compram quadros? Os estudantes não, isso é certo. Curadores
e colecionadores são os que contam realmente. Eles compram seus quadros.
— Ainda bem.
Dizendo isso, ele caminhou pela sala, abrindo gavetas fechadas há dois anos ou tirando
o pó dos cavaletes.
Liz olhou atentamente para os quadros, nervosa com aquela descoberta. Sentir-se
atraída fisicamente por um homem era algo bastante comum, mas descobrir que essa
mesma pessoa era um dos doze artistas vivos cujo trabalho admirava particularmente
complicava demais a situação.
Voltaram para a casa e sentaram-se no salão, saboreando Chianti enquanto aguardavam
o jantar.
— Amanhã preciso tirar minhas coisas de seu quarto — disse Liz quando terminaram
a refeição.
— Não vai ser necessário. Eu me instalarei em outro quarto. Todas as camas da casa
são confortáveis. Além disso, estai noite dormiria como uma pedra mesmo que fosse no
chão!

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Nos dias que se seguiram, David a tratava com o mesmo respeito, mesmo na ausência
da desconfiada Anna. Passava a maior parte do tempo no estúdio ou sentado no terraço,
colocando em dia a correspondência acumulada durante sua ausência. Escrevia as
respostas numa máquina de escrever portátil, batendo só com dois dedos no teclado, mas
com cuidado e rapidez.
À noite costumava tomar vinho ou café no terraço e batiam longos papos. Ora David
contava episódios de suas viagens, ora falavam de pintura, dois assuntos inextinguíveis.
Todas as noites levavam os copos e xícaras para a cozinha e os lavavam, pois Anna se
recolhia bem mais cedo que eles. Em seguida, David verificava se as portas e janelas
estavam fechadas, enquanto Liz subia a grande escadaria. Quando se despediam ao pé da
escada, Liz sempre tinha a sensação de que o aborrecia a idéia de separar-se.
Havia algo no modo como dizia "durma bem" que confirmava que a desejava tanto
quanto ela o desejava. Mas David se mantinha distante.
Às vezes, Liz se punha a conjecturar: sem dúvida, tímido ele não era; talvez por causa
de Anna...? Quem sabe não queria envolver-se com ela apenas para uma aventura. . .
Na verdade, Liz sentia um frio no estômago todas as vezes que pensava nele. Duas
semanas depois do seu retorno, ela admitiu estar apaixonada. Só que, desta vez, o homem
que conquistara seu coração era digno de ser amado. O que a intrigava era o fato de ele
ainda ser solteiro. Devia ter um motivo muito forte para continuar sozinho. Não tinha
nenhuma companheira, nenhuma namorada. . .
Na verdade, o comportamento de David em relação a ela era dúbio. Às vezes dava a
entender que se sentia atraído; outras, tratava-a com exagerado respeito e distância.
Por mais que tentasse não podia imaginar o que o prendia. Talvez, em suas andanças
pelo mundo tivesse deixado algum romance em suspenso. . . Mas nesse caso, na certa
receberia telefonemas ou pensasse em viajar de novo, o que não parecia estar nos seus
planos.
Liz, por sua vez, sentia-se cada vez mais envolvida. Mesmo mantendo um
relacionamento que não passava dos limites da amizade, sonhava com algo mais. Quando
fitava o rosto expressivo de David, sua boca firme e sensual, não conseguia evitar as
fantasias. Imaginava-se nos braços dele, tocando-o, sendo tocada em carícias quentes e
deliciosas. Mas também sonhava em prolongar a união em todos os sentidos, não apenas
fisicamente. Sonhava em partilhar a vida com ele, como verdadeira companheira. Tinham
tantos interesses comuns que parecia natural morarem juntos. . . Será que. um dia David
perderia a timidez e se aproximaria dela? Ou, talvez, ela é quem devia tomar a iniciativa?

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Os dias foram passando sem que Liz se armasse de coragem para mudar a situação.
Até que, certa tarde, um fato alterou a rotina em Villa Delphini. Liz e David tomavam um
drinque na sala de estar quando um barulho de louça quebrada' chamou-lhes a atenção.
— Anna costuma ser muito cuidadosa. Acho melhor verificar. Com licença um instante.
— David levantou-se e seguiu para cozinha, seguido por Liz.
Chocados, encontraram-na caída no chão, entre cacos de louça e pedaços de comida,
com o rosto contraído de dor.
Imediatamente, David assumiu o controle da situação: telefonou para o médico, deixou
uma ambulância de prontidão! Caso fosse necessária uma internação e acalmou-a,
conversando! Contando coisas que Anna gostava de ouvir, com seu italiano fluente, só para
distrai-la.
Uma hora depois da chegada do médico, a ambulância levou a mulher para o hospital de
Gênova para fazer exames. David e Liz a acompanharam, mas no carro dele.
Já era quase noite quando a deixaram no hospital. Antes dá se despedirem, Anna disse
alguma coisa que Liz não compreendeu.
— Ela disse que tem uma prima em Rapallo que pode tomar conta da casa e fazer
companhia para você — traduziu David, enquanto escrevia o endereço.
Para o alívio de todos, deixaram-na já sem dor.
O sol começava a esconder-se quando pegaram à estrada doa arredores de Gênova.
Bastavam dez minutos para chegar à estrada que conduzia a Rapallo.
Foi somente então que Liz se deu conta de que agora ela e David ficariam sozinhos na
casa.
Enquanto ele guiava pelas ruas estreitas de Rapallo em direção à entrada de Santa
Margherita, meio caminho de Porto fino, Liz perguntou-se se David esquecera da prima
de Anna!
Ou se não tinha a menor intenção de contratar seus serviços!

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CAPÍTULO 11

Embora já tivesse pensado o bastante na decisão que teria de tomar, caso David se
declarasse a ela, Liz ainda não sabia o que fazer.
Sempre acreditou na liberdade das mulheres, de fazer amor com o homem amado sem
receio de reprovação da sociedade, esta que historicamente pendeu sobre os amantes
como nuvens escuras nas gerações anteriores.
Contudo, mesmo sem os freios do passado, ainda havia muitas coisas a considerar.
Seria cedo demais para ter certeza de que amava David? Será que não estavam
confundindo atração física e amor? O que ele sentia por ela?
Richard dizia que a amava, e se isso fosse verdade, tinha um jeito bem estranho de
amar. Era gentil, mas não respeitava seus direitos, seu trabalho; nunca se preocupava em
saber se ela estava feliz com a vida ou satisfeita quando faziam amor.
E se fosse para cama com David e descobrisse que era tão egoísta quanto Richard?
Estava envolvida demais e ela bem sabia como a paixão nos leva a distorcer a realidade.
Mas David lhe parecia sensível; sua rara sensibilidade aparecia claramente em seus
quadros.
Um dos mais bonitos, do qual possuía uma cópia tirada de um livro sobre artistas
contemporâneos, representava duas mulheres velhas inteiramente vestidas de preto,
desde os lenços que cobriam os cabelos brancos até os chinelos nos pés enrugados.
Estavam sentadas num banco, diante de uma casinha pintada de branco, conversando.
Poderia ter sido pintado era qualquer país do Mediterrâneo; essas mulheres eram típicas
representantes de uma geração prestes a acabar, cujas vidas duras e simples seguiram o
mesmo padrão quase inalterado durante séculos.
Esse quadro e o modo gentil como David tratava Anna, prometendo ir visitá-la no
hospital todos os dias, serviram para acalmar algumas de suas dúvidas.
Enquanto o carro serpenteava pelos caminhos íngremes, cada vez mais próximos de
Portofino, continuava apreensiva e insegura. Quando chegaram à bifurcação onde surgia a
estrada que levava à Villa Delphini, David não pegou o caminho da casa.
— Estou faminto. Que tal irmos comer alguma coisa na Luigi's?
Havia horas que nada comiam. Só de pensar em comida e vinho, Liz sentiu-se melhor.
— Ótimo — respondeu, aliviada também por retardar a volta à Villa.

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Não havia vaga no estacionamento. David desligou o motor e retirou o cinto de


segurança.
— Vou deixar a chave com Marco.
Mas, em vez de abrir a porta, inclinou-se para ela e a beijou! Foi um beijo longo e
sensual, que a deixou completamente aturdida. Quando afastou a boca, Marco estava ao
lado do carro, contemplando a cena com um sorriso.
David saiu, trocando brincadeiras com o rapaz, e foi abriu a porta para Liz.
Caminharam pela praça de mãos dadas, trocando sorrisos ê olhares que diziam muito
mais que palavras!
O jantar demorou mais de duas horas. Começaram com cannellini, um prato frio com
feijões da Toscana, temperado com azeite e vinagre. Liz se deliciou com essa entrada
simples acompanhada de bom vinho tinto e pão italiano. Como prato principal escolheram
fusili com presunto, creme de leite queijo parmesão. Quando terminaram. Liz pós
a mão na barriga e riu.
— Agora vou ter de ficar dois dias sem comer. Isto foi mais do que um banquete!
David pediu outra garrafa de vinho ao garçom e algo mais que ela não entendeu.
— Você não teve coragem de pedir sobremesa, não é?
— Há uma coisa que você precisa experimentar; não se trata de doce.
— David, não vou poder. . . não sei como consegue comer tanto!
Mas quando o garçom voltou com gorgonzola em torradas, É ela provou o primeiro
pedaço do queijo forte com veios azuis, foi obrigada a concordar que era um final
esplêndido para uma refeição.
Mais tarde passearam pelo cais, admirando os iates, dentre os quais se destacava um,
cujo dono oferecia um jantar ao ar livre, servido por garçons impecavelmente trajados de
branco.
Os homens sentados ao redor das mesas eram bem mais velhos que David; as moças,
da idade de Liz ou talvez mais jovens, todas glamourosamente vestidas e com ar
inconfundível de mulheres que devotam a maior parte de seu tempo à aparência.
Certa vez, em Puerto Bañus, na Espanha, sentou num café à beira-mar e ouviu a
conversa de duas moças que discutiam as suas experiências com homens mais velhos.
Quando repetiu alguns trechos da conversa para Richard, ele caiu na gargalhada.
— Elas estão conhecendo o mundo e gozando a vida. O que há de tão terrível nisso? Se
eu fosse uma garota bonita, preferiria arranjar um protetor rico que me levasse para

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conhecer o Mediterrâneo a um empreguinho medíocre. É fácil Para você torcer o nariz


para esse tipo de mulher; pode fazer compras em Marbella com seu próprio dinheiro.
Muitas moças não podem dar-se a esse luxo.
— Não torço o nariz para elas: sei apenas que não poderia viver à custa de um homem,
velho ou jovem, se não gosta dele?
— Enquanto continuar fazendo quadros com valor de venda não vai precisar. E agora,
já que aprendeu algumas dicas COM uma dupla de profissionais, que tal experimentá-las
comigo hein?
Liz mal ouviu a última frase de David. Sua mente retornou ao passado, revivendo uma
discussão com Richard, que abalou seu relacionamento já em desintegração. O
rompimento fina ocorreu depois de uma festa em Marbella, da qual insistira e sair quando
as pessoas começaram a exagerar na bebida.
Richard ficara furioso com ela.
— Ninguém a estava molestando, Liz — gritou lívido.
Poderíamos ter saído mais tarde, sem chamar a atenção. Ela também não gosto dessa
gente, mas algumas pessoas ali poderiam ser úteis aos meus interesses. Será que você
tem tudo implicar e discutir por tudo!
— Não fui eu que comecei a discussão, Richard, foi voei que se recusou a sair da festa
quando eu queria. Sabe como me sinto mal em festas que acabam desse jeito. E, se queria
ficar por que não me deixou sair sozinha? Não ia soar bem, não é As pessoas iriam
comentar e... Quer mesmo saber, não suporto essas pessoas. Nunca suportei. Não gosto
de Marbella, não gosto de Puerto Bañus. O que eu quero conhecer é a verdadeira
Espanha, não apenas esse pessoal que não faz nada na vida a não ser gastar o dinheiro que
tem em excesso.
— Você não tem o menor traquejo social, Liz! É uma boboca.
— Acho que fui tola sim. Tola em ficar ao lado de um homem que só pensa em seus
interesses, que não tem coração.
Tendo perdido a calma e dito tudo o que pensava, só lhe restava arrumar as malas.
Pegou um táxi e foi para El Fuerte um hotel no centro de Marbella.
Na manhã seguinte alugou um carro e afastou-se para o campo, na Sierra de Ronda,
onde pôde amargar o fim de um relacionamento que pensava ser eterno.
Voltando ao presente, resolveu não estragar a noite com lembranças desagradáveis.
Já deixavam o restaurante e David pôs o braço em seus ombros.

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— O que a preocupa? — ele quis saber vendo que o rosto de Liz expressava uma
súbita tristeza.
— Nada, David. De repente me lembrei de uma época infeliz de minha vida... mas não
quero pensar nisso, agora que estou tão bem.
Ele enlaçou-lhe a cintura e, abraçados, voltaram para a praça, em direção à rua
estreita onde deixaram o carro.
Na Villa ele abriu a porta principal e acendeu as luzes antes de voltar para o pátio e
guardar a Ferrari.
— Vamos tomar mais um pouco de café? — sugeriu, antes de sair.
Na cozinha, Liz encheu a máquina de fazer café, que agora substituía o coador dos
velhos tempos.
Alguns minutos depois ele retornou para a casa, mas só foi para a cozinha depois que o
café estava pronto. Do salão, ouvia-se o som de guitarras havaianas.
— Deixe que eu levo isto. — E tirou a bandeja de suas mãos. Enquanto atravessavam o
saguão, comentou: — Não sou de grande ajuda para as lojas de souvenires; tudo que
trouxe de minha viagem foi meia dúzia de fitas compradas pelo caminho, infelizmente,
foram-se os dias em que um viajante podia trazer um autêntico bastão de guerra Fijiano
ou algo tão interessante. Em Sydney levaram-me a uma galeria especializada em pinturas
aborígines, mas não me interessaram muito.
— Pensei que na Austrália o grande negócio fosse comprar opalas.
— Deve ser, mas como não havia nenhuma mulher na minha vida naquela época, não me
preocupei com isso. Se soubesse que você estava aqui à minha espera. . . — Sorriu
sugestivamente fazendo o coração de Liz acelerar.
As guitarras havaianas juntaram-se uma voz masculina cantando uma canção de amor.
— Esse é Don Ho. Acho esse tipo de música romântica ideal para se dançar em
fim de festa. — Atravessou a sala para pegar dois copos e a garrafa de
brandy no aparador verde e dourado.
O sotaque do cantor era americano, mas algumas das palavras que dizia eram no
dialeto das ilhas. Liz ajeitou-se no amplo sofá, balançando o pé ao ritmo da música.
— Já esteve no Tahiti? Morro de vontade de conhecer essa ilha.
— Passei algumas semanas lá — comentou ele, enquanto servia o café e o brandy.
Então começou a discorrer sobre a beleza daquelas ilhas francesas, onde não se conhecia
o inverno.

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Liz escutava, espantada com a própria calma diante do que ia acontecer. Depois que
ele a beijara, suas dúvidas foram substituídas por uma tranqüila sensação de
inevitabilidade. Não era fatalista, não acreditava em destino ou que as pessoas nada
podiam fazer para alterar a vida.
Nesta noite, porém, queria acreditar que vivia um sonho criado por deuses. Não queria
fazer nada, apenas deixar-se levai pela magia que parecia envolver aquela noite perfeita.
A música continuava muito suave. David convidou-a para dançar e Liz foi para seus
braços.
A princípio, ele a enlaçou levemente, fitando-a sorrindo!
Aos poucos, foi estreitando-a em seus braços, trazendo-a para mais perto.
Liz fechou os olhos, entregando-se ao prazer de sentir-se aconchegada depois de
tantos meses de solidão...
A canção dizia doces palavras de amor, e ela suspirou lascivamente, deslizando as
mãos pelos ombros de David, atei envolver-lhe o pescoço.
Sentia o calor das mãos de David que passavam pelas costas dos lábios percorrendo o
rosto macio, a curva do pescoço, os ombros. . .
— Seu perfume é maravilhoso — murmurou ele, aspirando a delicada fragrância do
Shalimar que ela passara antes do almoço.
Liz prendeu a respiração quando ele começou a beijá-la com sensualidade cada vez
maior. Já não prestava atenção à música quando ele começou a lhe desabotoar o vestido
de algodão e deslizou os dedos até o fecho do sutiã precisa mesmo de tanta roupa? —
balbuciou ele, rouco.
—Acho que nós dois estamos vestidos demais! — E tentou desabotoar a camisa dele
com as mãos trêmulas.
Ficaram nus e finalmente se abandonaram aos seus desejos. A longa espera por aquele
momento tornou-a especial para Liz. David era um amante terno e carinhoso, e, envolta
em suas, carícias, ela nem sequer lembrou das dúvidas que a atormentaram antes.
Lentamente, abandonaram-se sobre o carpete macio, as mãos descobrindo curvas e
tocando pontos sensíveis, despertando o prazer e sentindo-o crescer, até que juntos
percorreram o delicioso caminho do prazer.
Na manhã seguinte ela dormiu mais do que costumava e, quando desceu, ele já estava
preparando o café da manhã. Abraçou-a e beijou-a carinhosamente.
— Já telefonei para o hospital: Anna passou bem à noite. Hoje de manhã vão fazer
vários exames, mas poderemos ir vê-la à tarde.

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— Deve estar precisando de algumas coisas. Podemos parar em Rapallo para fazer
compras e, talvez, almoçar?
— Por que não?
Na correria do dia anterior Liz não conseguira juntar tudo que Anna precisava para
ficar no hospital. Chegando a Rapallo foi direto a uma loja de lingerie.
— Vai ter de entrar comigo, David; preciso de um intérprete.
Ele não demonstrou a menor relutância em entrar numa loja exclusivamente feminina,
mas quando a vendedora lhes mostrou uma camisola transparente e decotada enviou um
olhar malicioso a Liz.
— Não acho que Anna vá gostar desse tipo de roupa, Liz, E uma mulher simples.
— Claro que vai, David. O fato de sempre ter usado roupas humildes não significa que
não aprecie algo mais sofisticado. Durante toda a vida lavou e passou vestidos
maravilhosos para outras mulheres; está na hora de ela ter algo realmente bonito. Não se
preocupe com o preço, eu vou pagar.
— Não é essa minha preocupação. Só não quero que gaste dinheiro em vão. Anna não é
mais uma mocinha!
A resposta dele a fez recordar várias ocasiões em que Richard esfriara-lhe o ânimo
deixando claro que a considerava extravagante. Certa vez, viu-a preencher um cheque em
favor das vítimas da fome e seu comentário não poderia ter sido mais inconveniente.
— Minha querida, espero que saiba que apenas um centavo dessa quantia fabulosa
chegará às mãos das massas famintas.
O resto será empregado em custos administrativos ou ajudará a comprar uma
Mercedes para o corrupto oficial encarregado de receber o dinheiro.
Talvez seu cinismo tivesse fundamento, mas mais tarde Liz arrependeu-se por ter
rasgado o cheque. Não era a única vez que Richard a impediu de fazer o que desejava.
Ele, por sua vez, nunca desistira de nada para agradá-la.
Por mais que amasse David, não seria sensato deixá-lo desenvolver o mesmo poder
sobre ela. Aprendera uma dura lição com o ex-noivo e agora não iria incorrer-nos mesmos
erros. Por mais que se gostem, e até mesmo por isso, ninguém tem o direito de sufocar a
personalidade do outro.
— Idade não tem nada a ver com isto. Conheço muitas senhoras que, felizmente,
continuam vaidosas — argumentou Liz encerrando o assunto.
A próxima parada foi numa farmácia, onde comprou água de colônia, talco e lenços de
papel, um pequeno espelho de mão, uma escova de cabelos e um pente.

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Quando David sugeriu que comprassem flores, Liz concordou.


— Mas seria melhor um vasinho com flores, não acha? Dura mais e pouparia às
enfermeiras o trabalho de procurar um vaso e arrumar as flores.
— Tem razão, não tinha pensado nisso. Não tenho muita experiência com doentes.
— Meu pai entrou e saiu de muitos hospitais antes de morrer. No final, foi para uma
casa de repouso, onde era muito bem tratado. Naquela época, eu trabalhava das nove às
cinco e não tinha tempo para cuidar dele. Ainda me arrependo por não ter tirado uma
licença, mas arranjai- emprego naquela época não era fácil. — Suspirou lembrando-se
dessa época difícil e então quis saber: Quanto tempo levou para estabelecer-se, David?
— Até os trinta não causei grande sensação no mundo da pintura. Vivia com uma pequena
pensão deixada por minha mãe, suficiente para os gastos essenciais. Comi muito feijão e
sanduíche de atum. Depois cansei e aprendi a cozinhar de modo decente. Hoje até que me
saio bem na cozinha. E você?
— Tenho cozinhado desde que estou aqui, mas gosto muito de saladas, e essas
qualquer um faz. Raramente como carne. Aposto que a maioria dos homens não cairia pelo
meu menu. . . — acrescentou, lembrando as palavras de Richard que chamava sua comida
de "ração de subsistência".
— A mim agrada. Mas por enquanto tenho muito trabalho e você também. Acho que
seria melhor chamar a prima de Anna para vir três vezes por semana preparar comida e
limpar a casa. O resto do tempo podemos comer fora. Que acha?
— Perfeito. . . Desde que me permita dividir com você o salário dela. — Percebendo
que ele ia protestar, prosseguiu: — Pense na situação inversa: permitiria que eu o
sustentasse?
— Não teria a menor objeção em ser seu hóspede, além de seu amante. Compraria uma
caixa de champanha de vez em quando ou salmão defumado. Cortesia de hóspede.
Chegaram à floricultura e não tiveram mais oportunidade de conversar. As ruas
estavam apinhadas de gente, e quando voltaram para o carro, David já esquecera o
assunto. Propôs que ouvissem uma fita de Luciano Pavarotti, o grande tenor italiano,
cantando com a americana Leontyne Price.
Eram duas das melhores vozes do mundo, e Liz não teve dificuldade em reconhecê-los.
Adorava música e nunca viajava sem um gravador e algumas fitas, às quais ia
acrescentando novas aquisições durante as viagens.
A Ferrari deslizava pela autopista, e Plácido Domingo substituiu Pavarotti. Liz
lembrou-se do último comentário de David. antes que entrassem na floricultura. Sua
alusão à "cortesia de hóspede" sugeria que não encarava o relacionamento deles

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duradouro. Era como uma visita: algumas semanas juntos e depois adeus. De repente, a
alegria que sentira ao acordar naquela manhã depois da primeira noite juntos, foi
substituída por uma melancolia profunda, que ela mal conseguia disfarçar.
A atitude de Anna em relação a hospitais não era nada positiva, mas encontraram-na
muito bem. Por sorte, havia uma senhora da mesma idade na cama ao lado e sua presença
aliviou muito dos medos de Anna.
A velha senhora ficou encantada com a azaléia e os produtos de toalete, mas quando
abriu a caixa que continha a camisola e o negligê, ficou sem palavras. Com mãos calejadas
de uma vida de trabalho pesado, ergueu a peça cheia de rendas e fitou-a em silêncio, seus
olhos se enchendo de lágrimas.
A reação de David não foi muito do agrado da enfermeira de plantão, que o olhou
severamente, mas fez com que Liz o admirasse ainda mais. Inclinou-se para abraçar a
senhora e deu-lhe o lenço para secar os olhos, prestando atenção aos comentários
excitados.
— O que ela estava dizendo? — perguntou Liz, quando Anna fez uma pausa.
— Estava perguntando se eu ainda tinha dúvida sobre os motivos que a levaram a
convidar você para ficar na Villa. Disse que você não é apenas bonita, mas seu
temperamento combina com sua aparência. Já a havia observado e perguntara a seu
respeito para as pessoas do porto. E, na opinião dela, com a qual todos em Portofino
concordam você é uma raridade hoje em dia — concluiu ele.
— Nossa, que discurso!
— Posso dar um beijo na signorina? — Anna falou bem devagar para que Liz
compreendesse.
Imediatamente Liz ofereceu-lhe o rosto, abraçou-a e beijou a face enrugada.
Anna fez mais um comentário, mas David mostrou-se reservado. Liz adivinhou que a
velha Anna devia estar bancando o cupido.
Prevendo que a doente logo perguntaria pela prima, Liz apressou-se em perguntar
quais exames havia feito e se o hospital era bom.
Saindo do hospital passearam pelo centro da cidade, compraram livros e material de
pintura e voltaram pára Villa Delphini. A tarde estava quente e o jardim recendia ao
aroma de flores.
Ficaram conversando algum tempo, trocando carinhos c. vendo-se a sós naquele
cenário magnífico, não resistiram à vontade de se entregar novamente ao apelo da
paixão.

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Satisfeito o desejo, acabaram adormecendo nos braços um do outro. Liz não saberia
quanto tempo havia ficado ali até que despertou e viu David vindo dá casa com uma
garrafa de champanha e uma cesta de nectarinas.
— Eu deveria estar trabalhando, David, e você também — murmurou Liz, ainda nua,
sentada na beira da piscina, agitando as pernas na água morna.
— Na segunda-feira, às nove da manhã, estaremos trabalhando. O resto da semana
vamos nos concentrar nos outros prazeres da vida. Se tivermos sorte, poderemos
continuar pintando mesmo depois de velhos, mas não poderemos passar a tarde fazendo
amor. . .
— Dizem que as pessoas podem continuar fazendo amor a vida toda — comentou Liz,
já meio tonta pela champanha, observando os reflexos do sol na água azulada.
— Melhor assim. Você tem bronzeador na sacola?
— Tenho, até já passei um pouco.
— É, mas precisa passar de novo: o sol está forte demais. Vou buscá-la.
Agradou a ela saber que ele não mexeria em suas coisas. Richard não respeitava sua
privacidade e chegou até a criticar Liz, certa vez, por carregar tantas coisas
desnecessárias na bolsa. Foi a primeira discussão que tiveram.
Uma leve expressão de aborrecimento surgiu em seu rosto. Por que sempre permitia
que lembranças do passado viessem à tona, impedindo-a de aproveitar a felicidade que
sentia agora? Talvez fosse uma reação de autodefesa. Ela sabia como o fim de um
romance poderia ser amargo — e talvez temesse entregar-se completamente.
Na manhã seguinte, David contratou a prima de Anna e combinaram os termos de
trabalho. Quando foram ao hospital à tarde, puderam tranqüilizar a doente, garantindo
que estariam "bem cuidados" até o seu retorno.
Três dias mais tarde, receberam notícias do real estado de Anna. As suspeitas de Liz
foram confirmadas. Ela sofria de cálculo na vesícula e precisaria ser operada com
urgência. A prima de Anna ficou agitadíssima e, para acalmá-la, levaram-na junto ao
hospital para que ouvisse as palavras do médico. Segundo ele, em vista da avançada idade
e do gênio da doente, seria pouco provável que obedecesse a uma dieta severa. Como era
uma mulher forte, sugeriram a cirurgia.
Naquela noite, deitada na espaçosa cama dourada, Liz viu refletidas no espelho as
cenas que imaginara durante suas noites solitárias.

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Com a cabeça encostada no ombro de David, não invejava mais os amantes incontáveis
e desconhecidos que compartilharam da cama no passado. Era sua vez de ser feliz e, pelo
sorriso que via no rosto dele, David sentia o mesmo.
Acabou adormecendo embalada em doces pensamentos. No meio da madrugada,
entretanto, acordou assustada. Tateou no escuro, à procura de David, mas não o
encontrou. Ergueu-se assustada, esperando alguns minutos na quietude do quarto. Não
ouvindo nenhum barulho, levantou-se e foi até o banheiro. Ele não estava lá. Enrolando-se
numa toalha, saiu à sua procura.
Viu que havia luz num quarto do outro lado do corredor. Descalça, caminhou pelo chão
de mármore polido e, como a porta estava entreaberta, pôde ver David sentado numa
cadeira com um copo de água na mão. Olhava através da janela para o vazio, parecendo
perdido em seus pensamentos.
Algumas vezes, depois que se tornaram amantes, Liz tivera a sensação de que sua vida
se transformara num sonho. Encontrar o homem que há muito admirava como artista e
acabar se envolvendo com ele parecia enredo de um conto de fadas. Devia haver algo
errado em alguma parte dessa história. Era bom demais para ser real.
Enquanto o observava sem ser vista, teve certeza de que sua intuição estava correta.
Um homem não se levanta no meio da noite para ficar estático durante tanto tempo
com a expressão impassível, sem que algo o esteja perturbando.

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CAPÍTULO IV

Liz hesitou um momento, mas resolveu conversar com David.


— Não consegue dormir?
Sem demonstrar surpresa, ele sorriu, descontraindo-se.
— Sempre sofri de insônia. Às vezes desperto no meio da noite e fico acordado quase
uma hora. Quando demoro demais para pegar no sono novamente, levanto e vou trabalhar
ou leio um livro até que o cansaço me derrube. Mas por que acordou?
— Percebi que não estava perto de mim e fiquei preocupada. Achei que talvez não
estivesse passando bem.
— Eu estou ótimo. — Ergueu o copo e tomou uns goles de água.
Liz olhou em volta. Atrás da cama, havia uma tapeçaria antiga representando uma cena
clássica que ela desconhecia. Os móveis incluíam uma escrivaninha e, como em todos os
aposentos, havia grandes portas de vidro que se abria para um terraço.
Por que teria escolhido esse quarto? Provavelmente fora parar ali ao acaso. Sobre a
cama havia um grande rolo de papel, parecido com os posters que ela usara para cobrir as
paredes de seu primeiro quarto alugado em Londres.
— Posso ver o que é?
— Claro talvez o reconheça Liz desenrolou o papel. Era o retrato de um homem com
um sorriso tão enigmático e memorável como o da Mona Lisa. Vira esse mesmo olhar
durante sua visita a Florença.
— É Lorenzo de Médici, não é?
— Sim, o pôster é uma cópia do retrato que está no Palácio Pitti, em Florença. Há
alguns anos uma sobrinha minha morou uns tempos aqui e o comprou. Lorenzo era o ídolo
de Bethany.
— Bethany — que nome bonito!
— Ela era muito bonita.
— Era?
— Deve ser, imagino. Faz muito tempo que não a vejo. Está casada agora. . . ocupada
em ter bebês. Mas você não devia andar descalça caríssima volte para a cama.
E carregou-a nos braços até o quarto.

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A expressão enigmática de David instantes atrás havia intrigado Liz. Determinada a


descobrir o que o.deixava tão perturbado, arriscou:
— Já que estamos os dois acordados, por que não tomamos uma xícara de chá? Vá
descendo enquanto eu visto o robe.
— Não, volte para a cama para mantê-la bem quentinha. Eu trago o chá para cima,
princesa.
Quando ele chegou com a bandeja nas mãos encontrou-a vestida e escovando os
cabelos.
Sentados à beira da cama e sorvendo o suave chá chinês, Liz entrou no assunto que a
interessava menos sutilmente do que desejava.
— David, por que nunca se casou?
— Hum... por acaso está propondo o jogo da verdade? Bem, talvez porque quando era
ainda muito jovem, me apaixonei por uma mulher comprometida. Foi uma paixão de
adolescente e demorei para me recuperar. Quando finalmente consegui, a maioria das
moças com quem teria gostado de casar já tinha encontrado seus pares. Eu nunca fui um
bom partido na opinião de muitos dos pais de moças do meu meio. Além disso, o filho mais
novo não era uma boa opção, principalmente quando, além de ser mais novo, ainda queria
ser pintor. Mas você também cresceu nesse ambiente, não é?
— Não exatamente. Meus antepassados eram gente do campo, não aristocratas. E
nunca tivemos muito dinheiro depois que meu pai morreu. Tudo se esvaiu em terríveis
dívidas. Mas depois você se tornou um bom partido. . . quando herdou, o título, não é? Por
que não o usa, David?
— Eu já morava nesta casa quando meu irmão morreu num desastre, e mudar meu
estilo de vida aqui seria um absurdo. E depois, hoje em dia um título é mais um
aborrecimento do que uma vantagem; algumas pessoas se mantêm à distância, achando
que você é um esnobe. Outras se aproximam só para tirar vantagem, achando que nobre é
sinônimo de milionário, o que nem sempre corresponde à verdade.
— Sente saudade da Inglaterra?
— Nem um pouco. A Inglaterra me faz lembrar chuva e ventos fustigando as árvores.
Gosto mais daqui.
— Entendo o que sente. A Nova Inglaterra, onde mora a família de minha mãe,
também é assim — uma delícia quando o tempo está bom, mas um desespero quando se
derrete em chuva. Já esteve nos Estados Unidos, David?
— Muitas vezes. Gosto de lá; Nova York é uma cidade incrível. Onde você mora Liz?

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— Londres.
Fora uma tola em deixar seu apartamento quando mudou para a casa de Richard, um
erro que nunca mais repetiria, prometeu a si mesma.
— Antes de você chegar, estava pensando passar uns dias na Grécia. Já esteve nas
ilhas gregas?
— Durante minha fase de cigano viajei por toda a Europa. Não recomendaria as ilhas
gregas para morar, mas são fantásticas para férias. . . no verão. No inverno as casas são
verdadeiras geladeiras. — Pegou a mão de Liz e olhou-a intensamente nos olhos. — Espero
que passe o verão todo aqui, Liz.
— Só o verão? —O coração dela se encheu de tristeza.
— Sim. . . eu também gostaria, David.
No domingo, com a ajuda de Liz, David entregou-se à tarefa de abrir armários e baús,
desenterrando todas as coisas guardadas dois anos antes.
— Você pode não ser maluco por souvenirs, mas deve ter passado semanas inteiras de
sua vida vasculhando antiquários e lojas de objetos usados para conseguir juntar esta
miscelânea — comentou ela, enquanto ele abria mais um baú.
— Juntar velharias é meu segundo passatempo preferido.
— E o primeiro?
— Que pergunta boba! — E beijou-a.
Foi um desses beijos que começam com um suave carinho e logo despertam um louco
desejo.
Liz tentou evitar o que prometia ser uma longa interrupção na tarefa de recolocar as
coisas em seu lugar.
Rindo, afastou-se dele.
— David, amanhã é dia de trabalho! Ou já esqueceu? O que há nessa caixa? — Apontou
para uma caixa de papelão bem escondida dentro do baú, desviando o assunto.
Para sua decepção, ele se deixou distrair.
— É um pedaço de coral, extremamente frágil. Alguém, anos atrás, o trouxe de
Madagascar e eu o comprei numa loja perto de Blackmead. Foi a etiqueta de Madagascar
que me atraiu. Era um daqueles lugares mágicos, como Valparaiso, Istambul e Gênova, que
eu queria conhecer quando era mais jovem. Gênova é a única que conheço, mas não é a
cidade romântica que eu sonhava. Talvez seja melhor guardar minhas ilusões sobre as
outras, não é?

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Ao final de um dia feliz em que vira muitos objetos que gostaria de pintar, Liz estava
imersa na grande banheira de mármore do banheiro que ela usava.
— Sei que a maioria das mulheres prefere banheiros separados — dissera ele quando
resolveram dividir o quarto, mas usar dois banheiros.
Imaginando como ele havia chegado a essa conclusão, Liz concordou que um dos luxos
supremos era ter reservada essa intimidade. Lembrava, com desgosto, o tempo em que
morava com Richard e a desordem que ele fazia pela casa toda, inclusive no banheiro.
Dividi-lo com ele fora uma tortura para ela, obsessivamente ordeira.
A água quente acariciando seu corpo trazia-lhe o desejo de ver David.
Estava feliz com o carinho que ele lhe dedicava, mas tinha a sensação de que jamais
conheceria a fundo o seu íntimo. Lembrou-se que, na manhã da sua chegada, ele a
confundira com outra pessoa.
Nunca o interrogara sobre a identidade dessa mulher. Talvez, se o fizesse,
conseguiria motivá-lo a contar o porquê de sua tristeza na noite anterior.
Só alguns dias depois, na véspera da operação de Anna é que Liz teve coragem de
perguntar a David quem era essa outra mulher.
Como não foram ao hospital naquela tarde, não se viam desde o café da manhã. David
passara o dia inteiro trancado no estúdio, onde escolhia e catalogava todos os esboços
feitos durante a viagem. Tinha criado um sistema cuja função era localizar, em poucos
minutos, esboços feitos há anos.
— Não suporto desordem — disse ele a Liz. — A organização eficiente do estúdio é
essencial para um artista, cujo trabalho final é o resultado de vinte ou trinta esboços
preliminares.
Liz esteve igualmente ocupada num canto sombreado do jardim. Além das pinturas
habituais, estava escrevendo e ilustrando um livro juvenil sobre as aventuras de um gato
de navio.
Pouco depois do meio-dia Tereza servira-lhe um prato de sopa e frutas. David
manteve-se recluso e só saiu do estúdio por volta das seis da tarde. Nadou vigorosamente
antes de juntar-se a ela.
Sentados no terraço, depois de uma refeição leve, Liz aventurou-se a perguntar o que
a perturbava' há tanto tempo.
— David. . . quem você pensou que estava na cama naquela manhã?
— Francine Valery. . . uma pessoa que morou aqui há alguns anos.
Sua espontaneidade revelou que não mantinha mais contato com a mulher.

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— Morava com você?


— Sim. Era uma cozinheira fantástica e uma pessoa muito interessante. Esteve aqui
na mesma época de Bethany. Mas tinha uma personalidade inquieta e um dia simplesmente
levantou e foi embora. Nunca mais a vi.
— Estava apaixonado por ela?
— Não, gostava dela. Era quatro anos mais velha que eu e ainda estava casada. Não
tinha filhos, e depois de alguns anos de casamento, não agüentou mais o relacionamento
com o marido e deixou-o para viver nos Estados Unidos, onde tinha uma irmã casada. Eu a
conheci quando veio para Portofino trabalhar como cozinheira num iate. O dono do iate a
estava incomodando com suas investidas e ela adorou minha proposta de vir cozinhar para
nós. Foi também útil com Bethany. Minha sobrinha vinha de uma casa onde não a queriam
como enteada; precisava de uma pessoa como Francine... boa e compreensiva.
— Mas você é tudo isso.
— Espero que sim. . . mas sou homem, e uma adolescente precisa de alguém que
substitua a figura materna.
— É verdade — concordou com um suspiro. — Eu também senti falta disso, mas meu
pai era um amigo maravilhoso. Podíamos conversar sobre coisas que nunca diria a minha
mãe. Somos tão diferentes que é difícil acreditar que sejamos mãe e filha. E Anna, como
reagiu à presença de Francine?
— Naquela época ela ainda não trabalhava para mim. Depois da partida de Francine,
Bethany assumiu o comando da casa e se saiu muito bem, porém era uma tarefa árdua
para uma jovem de dezessete anos. Acabei arranjando um emprego para ela em Londres.
Logo depois Anna veio me ajudar.
— Temo que ela quando reassumir, não aprove o fato de termos dormido juntos. Isto
é se ainda estivermos juntos quando ela voltar para casa.
— Tem alguma dúvida?
— Por enquanto não, mas quem sabe? O futuro é tão incerto. . . Viva hoje, esse é meu
lema.
— Um lema muito bom; muitas pessoas estragam o presente pensando no futuro. O
que importa é d aqui e o agora. — Encheu os copos e fez um brinde. — Que você possa
viver todos os dias de sua vida.
— É uma citação?
— Jonathan Swift.
— "Que você possa viver todos os dias de sua vida" — repetiu Liz, erguendo o copo.

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Enquanto ela levava o copo aos lábios, notou aquela expressão evasiva que volta-e-meia
o olhar de David assumia. Na certa o brinde o fizera recordar algo muito significativo.
Por alguns momentos sentiu que o passado tomara conta, de sua mente. Mas logo o rosto
se suavizou.
— Você se incomoda com o que Anna possa pensar? — retomou ele.
— Não. Bem. . . um pouco. Ela me tem em tão alto conceito, que não gostaria de
decepcioná-la.
— Se houver um culpado, serei eu. O monstro que seduziu a vítima! De qualquer
maneira, ela vai demorar para voltar. Ficará várias semanas com a filha que mora em Pisa.
Na noite seguinte, Anna mostrou-se contente em vê-los, mas pouco disposta a
conversar. No decorrer da semana, recuperou um pouco da velha animação e começou até
a tirar o seu proveito da vida do hospital. Com sua boa conversa fez amizade com
médicos, pacientes e enfermeiras. Quando saísse, na certa deixaria saudade.
Uma tarde, Liz teve que ir sozinha à Gênova. David esperava a visita de um construtor
para fazer um orçamento do belvedere que pretendia mandar construir na parte inferior
do jardim.
Desde sua primeira experiência ao volante da Ferrari, David a encorajou a dirigir
várias outras vezes, mas ele sempre estava a seu lado. Teria que ir sozinha desta vez.
Assim que se viu livre do tortuoso caminho à beira-mar, descobriu que era uma
experiência incrível deixar o carro deslizar suavemente na pista a cento e quarenta
quilômetros por hora. Enquanto dirigia pensava na atitude de David, tão diferente da
maioria dos homens, em relação a automóveis. Para ele, o carro não simbolizava status,
simplesmente uma máquina soberba que podia dar-se ao luxo de possuir e que lhe
proporcionava grande prazer.
Quando Anna soube que Liz estivera dirigindo aquela máquina monstruosa em sua
opinião, ergueu as mãos para o céu num gesto de horror.
— O signore não deveria ter deixado a senhorita vir sozinha: aquele carro anda
demais. Um dia ainda vai acontecer alguma coisa. — sacudiu a cabeça, preocupada.
— Mas eu quis, Anna; gosto de guiar. Já tiraram seus pontos?
— Si, e a senhorita tinha razão: não doeu nada.
E contou toda a história do que acontecera no hospital com ela e as outras pacientes
desde o dia anterior. A um certo ponto pareceu ter esgotado o assunto.
— Gosta do signore não gosta?
— Por enquanto estamos nos dando muito bem.

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— Está mesmo na hora de vocês se casarem.


— Se ele quisesse se casar, não acha que já o teria feito?
— Não é fácil achar uma esposa para o signore. . . mas também não é impossível —
acrescentou com um sorriso malicioso.
— Os artistas são pessoas com hábitos estranhos, Anna. Geralmente acham o
trabalho mais importante do que o casamento e as responsabilidades de uma família.
Talvez o melhor para pintores como eu e o signore seja criar pinturas, não filhos. O
mundo já está bem povoado.
— Pois eu acho que o signore gostaria de ter filhos. Quando a sua sobrinha morava em
Villa Delphini, ele parecia muito feliz.
— Havia também uma francesa na Villa, não é? — Liz aproveitou para perguntar.
— Quem lhe contou isso?
— O signore mesmo. Disse que era uma ótima cozinheira.
— Era velha demais para ele, velha demais para dar-lhe um filho. Eu os via sempre
quando iam comer no Luigi's. A francesa teria casado com o signore, se ele a quisesse.
Bastava ver como olhava para ele. Mas ele não a queria: homem não casa com uma mulher
que pode possuir em troca de nada.
Mesmo sem ser feminista, qualquer mulher mais consciente não deixaria passar esses
comentários repletos de preconceitos sem um sermão sobre a dignidade feminina. Liz, no
entanto entendia as pressões sociais que levaram Anna a ter uma visão tão estreita sobre
a condição da mulher. Provavelmente crescera acreditando que as mulheres consideradas
dignas pertenciam aos seus maridos. O casamento, que séculos antes expressava
francamente o contrato financeiro — à base de troca de dotes milionários, passou a
reforçar a moralidade e regular a vida sexual feminina. Nesses tempos, era natural que
Anna considerasse Francine, por exemplo, uma mulher sem princípios. E provavelmente
pensaria o mesmo de Liz quando soubesse o que estivera acontecendo na Villa durante sua
ausência.
— Anna, tenho a impressão de que há uma. . . espécie de tragédia na vida do Signor
David. Sabe alguma coisa?
— Tudo o que sei é o que Maria Lipari me contou; foi empregada dele por algum
tempo. Ela disse que um dia ele precisou ir às pressas à Inglaterra porque o irmão dele
tinha morrido num desastre. Quando voltou, trouxe a signorina junto. Coitadinha, como
parecia doente!

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A velha senhora foi interrompida pela chegada de um padre que, a pedido dela, vinha
visitá-la uma ou duas vezes por semana. Procurando não atrapalhar, Liz despediu-se e
saiu.
No caminho de volta, refletiu sobre o que acabara de ouvir. Pela primeira vez, levantou
a hipótese de não ser uma mulher o motivo das preocupações de David. Talvez fosse um
lugar ou um acontecimento trágico.
Relembrou o primeiro diálogo que tiveram quando ele afirmou que sentia saudade de
casa.
Na verdade ele tinha duas casas: uma era Blackmead e outra em Portofino. A qual
delas estaria se referindo, então? Por que ele não podia residir onde nascera, a casa de
sua família? Haveria um antagonismo tão forte entre ele e Lady Castle que o impediria de
viver na casa que era sua por direito?
Bem, nenhum adulto dono dos seus atos se submete a morar com alguém que o
desagrada. Nada de excepcional nisso.
Lady Castle teria direito de negar a David sua herança? Blackmead não devia ser
muito grande, já que era impraticável a convivência dos dois cunhados. Perdida em suas
conjecturações, estacionou no pátio, atrás de um outro carro que julgou ser do
construtor que viera ao encontro de David.
E de fato, deparou-se com ele no terraço, saboreando uma taça de vinho. Era bem
apessoado e devia ter uns trinta anos, embora pouco sutil, conforme Liz pôde perceber
em seguida.
Toni a cumprimentou de modo malicioso, medindo-a da cabeça aos pés, como que
aprovando a escolha que o signore fazia no momento.
Liz concedeu-lhe o mais frio dos cumprimentos, pediu licença e se retirou, alegando
não querer interromper a conversa de negócios.
Pouco depois estava no banheiro enxugando os cabelos quando ouviu David entrar.
— Como está Anna?
— Bem — respondeu um tanto seca. — Não vou demorar David.
Ansioso, David ignorou o pedido velado para que saísse e abriu a porta do box.
— Sinto muito por aquele imbecil do Toni tê-la tratado daquele jeito. Tive vontade de
quebrar-lhe os dentes, mas ele não irá nem entender por que. É inconveniente com as
mulheres as bonitas, claro.
O aborrecimento dele era sincero e Liz passou os braços em volta de sua cintura,
colando o corpo molhado ao dele.

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— Tudo bem. . . David — "Querido" era o que ela gostaria de ter dito, mas não teve
coragem. — Como ele vai saber que não, sou uma dessas aventureiras em busca de homens
ricos?
— Só um idiota não perceberia que você é especial.
— Ele não é idiota, só que ainda não se acostumou com a idéia de que as mulheres hoje
são um pouquinho diferentes daquelas do século passado. Vai ver pensa que sou uma
bonequinha de luxo.
— Então ele pode esquecer o belvedere: não quero um cara desses rondando a minha
casa.
— Tolice, David: se ele é o melhor construtor da região, que faça o trabalho. Contanto
que se limite a olhar pra mim, não ligue.
— Ele que experimente tocar em você!
— Esqueça-o David — e aconchegou-se em seus braços.
Liz ficou lisonjeada com a preocupação e a primeira mostra de ciúme de David.
Enquanto ele fora até a cozinha buscar uma garrafa de champanha, sentou-se em frente
à penteadeira e se pôs a escovar os cabelos com um sorriso mais bonito.
Conhecera o ciúme com Barney, seu primeiro amor. Durante um ano mal ousara trocar
meia-dúzia de palavras com outro estudante na escola de arte. Barney tinha ciúmes de
suas amigas e até da amizade dela com o pai. E justamente por isso acabaram rompendo.
Barney vivia suspeitando de todos, espionando seus atos, não deixava-lhe espaço
sequer para respirar.
Era bem provável que, diante desse exagero, considerasse a atitude de David uma
irritação justificada frente ao comportamento inconveniente do outro. Como reagiria se
um tipo mais sutil do que Toni flertasse com ela? Deixaria que ela mesma demonstrasse
que não estava interessada ou explodiria num rompante de fúria possessiva?
Liz não podia responder a essa pergunta, bem como a tantas outras. Não conhecia
todos os lados de sua personalidade.
Na verdade, mal o conhecia. E só iria descobrir certos detalhes com o tempo, se é que
o teria suficiente.
Os dias dourados passavam, cheios de sol, coisas gostosas para comer, trabalho, vinho,
risos e noites de amor maravilhosas.
Quanto tempo duraria essa felicidade? Ocasionalmente Liz formulava essa questão e
teve de admitir que sentia medo de que tudo isso acabasse. Mas deixava-se embalar pela
alegria do presente.

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Inspirada pelos variados e intrigantes objetos colecionados por David durante os anos
vividos na Villa, pintava sem parar, produzindo alguns de seus melhores trabalhos.
E sua aparência também refletia essa felicidade; seus olhos brilhavam, a pele adquiria
uma textura mais acetinada, esplendidamente saudável. Nunca se sentira melhor em toda
sua vida.
— A Itália está me fazendo bem — disse a David. Depois de ele ter comentado sua
mudança.
Eram quase seis horas. David trabalhara o dia todo sem interrupção e tinha todo o
direito de estar cansado, disposto apenas a uma hora de lazer com um drinque e o jornal
local.
Em vez disso, terminou o vinho que restava no copo e abraçou Liz. Depois, num impulso,
ergueu-a do chão e jogou-a no ombro, enquanto ela protestava, rindo.
— David! Ponha-me no chão.
Mas ele a carregou escadaria acima e jogou-a em cima da cama com força. Depois
despiu-se rapidamente, fitando-a com ardor nos olhos azuis.
— Tire a roupa, Liz. — Ordenou com voz rouca.
Rindo, ela tentou se livrar da blusa e do short branco enfeitado apenas por um lenço
de algodão verde na cintura. Ensaiou gestos exageradamente vagarosos, que teve efeito
imediato. David tomou-a nos braços, mostrando a urgência de seu desejo enquanto a
ajudava na tarefa e a deitava sobre o colchão.
Uma hora depois, mexeu-se em seus braços e começou a beijá-la suavemente na testa
e no pescoço. Um dos brincos de esmalte verde que Liz comprara numa aldeia atrapalhou
seu caminho e ele o tirou cuidadosamente.
— Quando furou as orelhas?
— Há uns dez anos quando comecei a me interessar por jóias antigas. Infelizmente;
hoje em dia os joalheiros tiram os ganchos originais dos brincos e os substituem por
enfeites modernos que, em minha opinião, só estragam tudo.
— Com esse pescocinho adorável pode usar pingentes bem compridos.
— Tenho um par desses aqui, que comprei numa joalheria minúscula na Espanha, mas
não servem para ir comer no Luigi's.
— Está cansada de comer lá? Gostaria de ir até o hotel? Assim poderá usar seus
brincos.
— Eu adoro o Luigi's.

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E continuaram deitados, preguiçosamente, conversando sobre assuntos banais.


— Tenho um rubi que caberia direitinho no seu umbigo — comentou David, com a
cabeça apoiada nos seios dela. — Ou prefere uma ametista?
— Acho que prefiro uma água-marinha, uma daquelas de um azul-profundo que mais
parecem água do mar cristalizada — respondeu com voz sonhadora, acariciando os
cabelos dele.
— Que pena que os homens não usem mais jóias.
— Alguns usam medalhões de ouro.
— Que horror! Mas você ficaria lindo com aqueles braceletes e um colar de ouro como
os que usavam os antigos fenícios. Ou eram os trácios? Não, é sério, ficaria bonito mesmo
insistiu, sentindo que ele se sacudia de rir. — Não para usar em público, claro, só aqui
comigo. Tem um peito maravilhoso, David, me dá até vontade de esculpir.
— Estive pensando naquela sua sugestão de pintarmos um ao outro na cama, mas o
melhor seria eu pintar você. Se incomodaria de posar nua para um retrato de corpo
inteiro?
— Por que me importaria, já que passo a maior parte do tempo sem roupa? — brincou.
— Mas se ficar bom, gostaria de incluí-lo em minha próxima exposição em Londres.
Talvez não goste de ser vista pelo mundo inteiro, despertaria comentários sobre nosso
relacionamento e isso poderia prejudicar sua reputação profissional.
— Seria uma honra ser pintada pelo grande David Warren. Mas existe uma condição.
— Qual?
— Antes de cada sessão vai ter de fazer amor comigo.
- É exatamente minha intenção; pois há em você um ar especial nesses momentos. É
isso que quero captar.
— Não tenho idéia do que está dizendo, David.
— Não sei explicar com palavras. Espero transmitir esse mistério na tela. Espere e
verá.
Inclinou-se e beijou-a. A vontade de amor era insaciável.
Quando Liz terminou o livro sobre o Casimir, o gato de navio mostrou-o a David.
Durante vinte minutos ele leu cuidadosamente o texto e olhou as ilustrações baseadas em
esboços de gatos de Portofino, feitas quando morava no porto.

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— É um livro delicioso, Liz, vai fazer um enorme sucesso. Não pode confiá-lo ao
correio, melhor levá-lo pessoalmente. Vamos para Londres amanhã, também tenho
negócios a resolver lá. Vou ligar para o aeroporto imediatamente.
— Mas eu não tenho pressa, David.
Liz temia que se quebrasse o clima idílico do verão. Longe da Villa Delphini, em outro
ambiente, poderiam ver um ao outro sob uma luz menos generosa.
— Claro que tem. Nós dois já passamos tempo demais trancafiados aqui. Precisamos
descobrir o que está acontecendo lá fora, precisamos de mais ação.
— Mas você acaba de voltar de uma viagem longuíssima. Não me diga que já está
aborrecido. . .
— Não é isso. Mas não existe uma regra que determine que todo mundo deva fincar
raízes para sempre. Veja Germaine Greer, por exemplo: depois de adquirir uma reputação
internacional, a escritora nunca mais voltou ao lar. Comprou uma casa de campo na
Toscana e viaja constantemente entre a Europa e a América.
— Você gosta de Germaine Greer?
— Ela é muito engraçada e não têm medo de dizer em alto e bom tom suas opiniões. É
eu gosto dela sim. Deve ter lido A Corrida de Obstáculos não? O livro sobre as mulheres
pintoras.
— Não li.
— Vou comprar um exemplar para você em Londres; é fascinante.
— Ainda não consigo acreditar que goste dela. A maioria dos homens fica vermelho e
engole em seco só de ouvir o seu nome.
— São os que têm medo das mulheres com poder e influência. As mulheres que
realmente me assustam são as que não sabem se virar. Prefiro as independentes.
Talvez porque sejam mais fáceis de despachar quando a festa acabou, pensou Liz com
amargura.
David conseguiu lugares num dos primeiros vôos da manhã e telefonou para um hotel
para reservar um quarto.
— Espero que esteja de acordo, Liz, reservei um quarto no Cavendish. Não é um Ritz
ou Savoy, mas é confortável e bem localizado. Desculpe não consultar você, mas é duro
perder o hábito de tomar a iniciativa.
— Por mim está ótimo. Mas não vou permitir que pague minha viagem ou estada. Se
não concordar em dividir as despesas, eu não. . . volto para cá.

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Prendeu a respiração, temendo ter estragado tudo. E se ele aproveitasse a dica para
dizer que seria melhor mesmo que ela não voltasse?
— Está bem, vamos rachar as despesas. Prefere quartos separados? Assim só a
camareira vai saber que não dormiu sozinha.
— Não me incomodo que saibam sobre nosso "pecado".
Ao meio-dia já estavam no centro de Londres. David sugeriu que almoçassem na
Overseas League, cujo restaurante dava para o Green Park.
Seguiram a pé pela Jermyn Street, e durante o percurso Liz começou a recapitular a
excitação de seus primeiros meses em Londres como estudante. Naquela época, não podia
comprar nada do que via nas vitrinas. Contentava-se em olhar e admirar, educando o
espírito para o dia em que tivesse dinheiro.
A Liga, da qual David era membro, ficava numa antiga mansão no fim da St. James
Street, berço dos mais famosos clubes para homens da cidade.
O interior era exatamente como ela sempre imaginara: o balcão do porteiro, um lobby
acarpetado que permitia vislumbrar o restaurante e alguns degraus que conduziam a um
grande saguão com colunas e uma escadaria com balaústre de ferro trabalhado, além de
uma tela de origem oriental no patamar.
— Como estamos na Inglaterra, vou tomar cerveja. E você? — perguntou David. —
Gim tônico?
— Está ótimo para mim.
As outras pessoas no restaurante não estavam particularmente bem vestidas. Os
homens usavam ternos de boa qualidade e corte impecável, mas um tanto fora de moda.
Uma única moça chamou a atenção de Liz, despertando-lhe a vontade de visitar butiques
londrinas e fazer loucuras. Ela e David ainda usavam as roupas com que haviam viajado,
mas vira David colocar um terno na mala e estava disposta a mostrar-lhe que também
sabia ser chique em lugares e horas ideais.
Viu David conversar com o garçom, sua pele bronzeada destacando-se no meio de
todas aquelas pessoas que não viam o sol há muito tempo. O motorista do táxi lhes
contara que era o primeiro dia de sol depois de três semanas inteiras de chuva.
— Daqui se tem a melhor vista de Londres — declarou David quando voltou para a
mesa. — Melhor ainda do que no Ritz, porque está mais afastado do barulho de Piccadilly.
Afastou a cadeira para poder ver melhor as árvores e gramados do jardim da Liga e
Liz perguntou-se se estaria recordando as paisagens de Blackmead, e se a volta à
Inglaterra não seria uma experiência dolorosa para ele.

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Uma hora depois seguiram caminhos diferentes: David foi visitar as galerias de arte
nas vizinhanças e Liz fazer compras em Knightsbridge.
Era a noite em que Harrods e as lojas de Sloane Street ficavam abertas até mais
tarde, e ela só voltou para o hotel depois das seis.
Pensou que encontraria David à sua espera, mas o quarto estava vazio e sobre a cama
havia um embrulho com o bilhete:
"Vou encontrar um velho amigo para um drinque depois do trabalho. Devo estar de
volta às sete. Não consegui lugares decentes para nenhuma das boas peças, e por isso
sugiro que experimentemos o requinto do jantar londrino. Reservei dois lugares no teatro
para amanhã".
Estava assinado D, seguido por seis pequenas cruzes e uma maior, representando sete
beijos.
O pacote continha A Corrida de Obstáculos, e Liz sentiu-se tentada a mergulhar no
livro imediatamente, mas não havia tempo ia uns quarenta minutos para aprontar-se.
Foi até a geladeira e abriu uma meia-garrafa de champanha. Levou-a para o banheiro,
tomando uns goles enquanto tirava a maquilagem.
Minutos depois saía do chuveiro revigorada do cansaço. A tarde tinha sido divertida,
pois há muito não fazia compras visando agradar a um homem, mas a vida urbana, com
seu trânsito e agitação em nada se assemelhava à tranqüilidade de Portofino.
David chegou um pouco antes das sete e encontrou-a pronta, indecisa se devia abrir
outra garrafa de champanha ou não.
— Liz, você está usando um perfume novo — foi seu primeiro comentário.
Ela se levantou, mostrando a exuberância do novo vestido de seda cor-de-mel. Era um
modelo que provava o porquê da moda londrina ser uma das mais procuradas pelas
mulheres de todo o mundo.
O cabelo, que tingira na noite anterior, brilhava arranjado em um coque sofisticado
que raramente usava.
— Meu Deus, Liz! Você está de tirar o fôlego.
— Obrigada. O perfume é Chamade; achei que estava cansado de Shalimar.
— Nada em você me cansa — respondeu ele docemente, segurando-lhe as mãos e
beijando-as. — Reservo-me o direito de beijá-la toda, mais tarde. Agora não quero
amassar seu vestido. E preciso tomar um banho; devo estar cheirando a cigarro, pois o
bar onde estive estava impregnado de fumaça.

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Ele usava uma jaqueta de antílope, quase tão fina quanto o vestido de Liz, que
aprovaria aquela roupa para o jantar mais fino. Tirou do bolso um estojo de couro.
— Já ia esquecendo: vi uma coisa que pareceu de seu gosto, mas pode trocá-la, se não
lhe agradar.
Abriu o estojo e mostrou-lhe uma pulseira com camafeus delicadamente esculpidos e
um par de brincos combinando.
Liz conhecia bem jóias antigas e reconhecia imediatamente a qualidade do conjunto,
imaginando também o preço exorbitante que devia ter custado.
— David. . . é uma maravilha. . . mas extravagante demais! Não devia comprar uma
coisa tão cara!
Ele se aproximou dela e colocou-lhe a pulseira no braço.
— Procurei águas-marinhas, mas as únicas que achei eram claras demais. Nenhuma
delas possuía a cor da água do mar.
Recordando a conversa à qual ele aludia, ela protestou.
— David, eu só estava brincando. . . — E sem se incomodar com o que podia
acontecer com sua maquilagem elaborada abraçou-o carinhosamente. — Não quero que
pense que espero algo de você, David: sem laços, sem compromissos.
— Eu sei, minha jovem, mas não podemos trocar presentes de vez em quando? Você
nunca vai me dar um presente de aniversário? — reclamou com uma careta.
— Claro. . . até já comprei. Mas é só uma camisa, nada tão divino quanto estes
camafeus. Obrigada, meu. . . querido amigo. — Ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o,
manchando-o com o batom.
Naquela tarde não tivera tempo de ir buscar suas jóias. Estava usando um colar de
pérolas Harvey Nichols, sua joalheria preferida. Era um simples fio de pérola para usar
bem junto do pescoço.
No cofre do banco tinha um colar de pérolas cultivadas, enviadas pela mãe no seu
vigésimo - primeiro aniversário.
"Um colar de pérolas de uma só volta é essencial no estojo de jóias de qualquer
mulher", escrevera a sra. Eugene P. Thornwell, de Boston, para a filha.
Naquela época, influenciada por Zandra Rhodes, uma estrela ascendente do grafismo
inglês, Liz tingia o cabelo de lilás e usava roupas compradas em lojas de artigos usados.
As pérolas, símbolo da devoção quase fanática da mãe por tudo que era de bom gosto e
convencional, foram o presente mais descabido que podia receber naquela fase.

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Mas alguns anos depois, começou a apreciá-las e habituou-se a usar o colar com as
camisas de seda e calças bem-feitas, que gradualmente substituíram as excentricidades
dos dias de estudante.
Enquanto punha os brincos de camafeu, o espelho refletia uma imagem que até sua
mãe aprovaria.
Mas o que a sra. Thornwell não toleraria facilmente era o relacionamento da filha com
David. Com poucas exceções, todas as filhas de suas amigas fizeram casamentos
socialmente bem-sucedidos logo depois de formadas. E mesmo que agora estivessem
divorciadas, a sra. Thornwell achava isso preferível a ter uma filha de vinte e oito anos
que morava sozinha e ainda por cima tinha um amante.
Não que Liz contasse à mãe particularidades sobre sua vida privada; nas cartas que
trocavam, limitava-se a falar de seu trabalho, proporcionando assunto para as reuniões
beneficentes de que a mãe participava com as amigas.
— Onde vamos jantar? — perguntou a David.
— Em Sloane Street, não é?
— Era lá, quando os irmãos Roux abriram o restaurante. Agora fica na Upper Book
Street, perto da Embaixada Americana. O guia Michelin deu-lhe a terceira estrela há
pouco tempo, o que muitas pessoas consideram como "os franceses aplaudindo a cozinha
francesa". Podemos tirar a prova.
David secou os cabelos com o secador de Liz, sem se importar muito com o efeito,
ajeitando-os com os dedos. Depois de seco, usou rapidamente o pente.
— Quer um drinque enquanto espera Liz?
E abriu uma garrafa de champanha, que tomaram enquanto ele terminava de vestir-se.
O terno cinza, de corte impecável, a camisa creme, a gravata bege e rosa conferiam-lhe
um ar aristocrático, completamente diferente do que ela costumava ver em Portofino.
Ela sentiu que não estava mais diante de David Warren, o artista, mas sim de sir David
Castle que, se um dia voltasse a Blackmead, não teria mais lugar para ela em sua vida.
— Está pronta?
A frase despertou-a de seus devaneios, mas sua expressão não negava o espanto
daquela descoberta. Por sorte, ele não notou ou pelo menos não demonstrou ter notado.
Passearam de mãos dadas pela Bond Street, parando para olhar as vitrinas de Maud
Frizon, Chanel e Asprey's. Liz esqueceu suas preocupações anteriores cedendo ao prazer
que isso lhe dava.

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Entraram na Book Street, dirigindo-se para os jardins muito verdes de Grosvenor


Square. Diante da entrada do Claridge Hotel, um homem que saía dirigiu-se a David
parecendo eufórico.
— David. . . mas que surpresa!
— Olá, Miles.
Há anos que não nos vemos meu velho. Como vai? Bem, nem preciso perguntar, pelo
bronzeado. . . — Sorriu para Liz
— Liz este é Miles Dacre. Nossos pais eram vizinhos. A srta. Redwood é uma colega
pintora.
— Como vai, srta. Redwood? Pela sua cor fantástica, vejo que também mora na Itália,
como esse cara de sorte.
— No momento, sim.
— Como invejo vocês! Temos tido um ano horrível, mas vocês trouxeram o sol. Quanto
tempo vai ficar, David?
A conversa se estendeu por alguns minutos, limitando-se a assuntos banais. Depois, os
três se despediram.
— Agora ele vai ter algo interessante para contar à mulher: "Sabe com quem
encontrei em Londres, Elizabeth? O patife do irmão do Castle, e com uma mulher
lindíssima". . .
Liz riu com a imitação da voz e do jeito de Miles Dacre.
— Por que ele o trataria como patife?
— Miles é um fazendeiro nada dotado intelectualmente. Considera todos os artistas
uns patifes a menos que sejam do sexo feminino.
Mas a resposta de David não a satisfez. Parecia haver outra razão para Miles usar
uma expressão tão grosseira.
Nesse momento, Liz lembrou-se que David, no passado, amara uma mulher casada.
Talvez o caso tivesse sido de domínio público. Contudo, ninguém o chamaria de patife, a
menos que tivesse realmente ocorrido o adultério. . .
David segurou-a pelo braço enquanto atravessavam a rua, obrigando-a a voltar à
realidade.
— Por que esse ar distante?
— Estava tentando imaginar como é Elizabeth Dacre. . . que tipo de mulher. . .

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— Enorme e pouco feminina.


Liz não gostou do comentário. Aludiu à situação de sua melhor amiga na escola de arte
cuja personalidade era apaixonante, mas, por ser gorda, sofria terrivelmente.
— Tenho pena dela.
— Tenho pena de Miles! Imagine o que significa ir para a cama com uma mulher
dessas!
— Não seja cruel, David, não é do seu feitio.
— Você nunca é má, não é, Liz? Sua personalidade é como seu rosto, mas eu posso
parecer bonzinho, mas não sou. A vida é curta demais para ser desperdiçada com tolos,
chatos e mulheres que não fazem o mínimo esforço para melhorar, como dizem os
franceses.
— Anna não se arruma e, no entanto você já gastou bastante tempo com ela.
— Anna não é nenhuma boba e ela me diverte. E tem uma beleza diferente, como a de
uma velha oliveira ou uma escadaria de pedra gasta pelo tempo. Você vê rostos como o
dela nas cenas de multidão dos grandes mestres.
Liz murmurou, concordando, e voltou a mergulhar em seus pensamentos. Suas teorias
sobre a infelicidade secreta de David pareciam ajustar-se como um quebra-cabeça. No
entanto, algumas peças precisariam ser encontradas e encaixadas.
O que ainda não entendia era a relação entre sua paixão de juventude pela mulher de
outro homem e os motivos que o mantinham afastados do lar ancestral.
Se seguisse a lógica, só existia uma ligação entre esses dois fatos e que explicava
tudo: a mulher amada seria a viúva de seu irmão. Por amá-la, não podia pedir-lhe que
deixasse Blackmead e tampouco podia viver com ela, pois serviria apenas para reavivar
uma dor que o exílio abrandava, já que não tinha cura.
Pobre David pensou com compaixão.
E "pobre de mim" foi seu pensamento seguinte

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A Mulher e o Sonho Anne Weale

CAPÍTULO V

Liz pareceu ter entrado em transe. Quando finalmente recuperou o ânimo, já estavam
sentados em uma requintada mesa num canto especial do restaurante, tomando cherry e
examinando o cardápio.
Estranhamente, não se lembrava de como fora parar lá. Devia estar agindo
normalmente porque David não fez qualquer comentário sobre seu comportamento. .Mas
uma parte de sua mente continuava pensando no que significava amar profundamente um
homem que não podia ser seu no sentido mais completo.
O esforço para escolher a comida era demais para seus nervos exaustos e tanto fazia
pedir Papillote de saumon fume Claudine ou Oeufs froids Carême.
Tinha certeza de que David escolheria os vinhos, mas ouviu horrorizada que ele pedia
outra carta de vinho ao garçom.
— David, pode escolher você mesmo.
— Não é uma atitude que Steinam e Greer aprovariam.
— Talvez não, mas neste exato momento estou me sentindo inclinada a aceitar o que
você quiser, portanto trate de aproveitar a oportunidade.
— Ora, não exagere, Liz.
— Passei uma parte de minha vida com um homem cujo amor próprio dependia em
grande parte do jogo de escolher vinhos. Não tive muita chance de desenvolver opinião
própria a respeito.
A referência deliberada a Richard era uma forma de defender-se do rompimento que
acreditava próximo. Mas ele demonstrou profundo desgosto diante do comentário, como
se fosse uma piada racista ou de mau gosto.
— Creio que chegou o momento de aprender.
Suas palavras não foram rudes, mas Liz abriu a lista de vinhos tentando ler os nomes
complicados entre as lágrimas que ameaçavam saltar dos olhos tristes.
— Desculpe, Liz, foi grosseria de minha parte — apertou a mão dela sobre a mesa. —
É que não consigo pensar nesse cara que a fez sofrer. . . Mas isso não é motivo para
agredir você, não é doçura?
Sem se incomodar se alguém os observava, beijou os dedos delicados, e por pouco ela
não se derreteu em lágrimas, comovida com a ternura de suas palavras.

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A Mulher e o Sonho Anne Weale

Felizmente o suflê chegou com uma cesta de torradas feitas na hora.


— Foram Albert e Michel Roux que trouxeram a nouvelle cuisine para a Inglaterra; ou
pelo menos, foram os primeiros a lançar esse tipo de cozinha deste lado do Canal —
explicou David, enquanto saboreavam o suflê de legumes.
Pela primeira vez desde que chegaram ao restaurante, Liz observou o lugar onde
estavam.
Na decoração dominavam tonalidades de verde-escuro e o aspecto mais característico
eram as longas tiras de bambu que contornavam as extremidades das paredes e alcovas.
— Gostaria de saber quem foi o decorador — comentou Liz, reconhecendo o trabalho
de um profissional de alto nível.
— David Mlinaric. Tenho visto vários trabalhos dele, realmente incríveis. Se um dia...
David interrompeu a frase. Liz imaginou que ele provavelmente ia acrescentar que se um
dia voltasse a Blackmead e quisesse redecorar o ambiente chamaria Mlinaric.
Foram servidos de papillote de salmão defumado e quando o prato chegou Liz
fitou extasiada o rosa-coral do salmão enfeitado com fatias de trutas pretas e
brancas, montadas como se fossem as facetas de um diamante. Logo descobriu que por
dentro do invólucro do salmão, fino como papel, havia um purê de salmão, truta defumada
e creme de leite. Comido com as torradas crocantes, acompanhado pelo vinho que haviam
escolhido, foi uma refeição memorável.
Olhando em volta, ela notou um homem com uniforme de chef, mas sem o alto chapéu
na cabeça, que ia passando pelas mesas e cumprimentando as pessoas.
— Deve ser um dos irmãos Roux, não é? — murmurou para David.
— É Albert Roux.
— Como sabe? Pensei que nunca tivesse vindo aqui.
— É verdade, mas os dois são muito conhecidos no mundo da gastronomia, e Michel
recebeu até o título de Meilleur Ouvrier de france do presidente Giscard d'Estaing.
Albert começou sua carreira na Embaixada Francesa em Londres e depois cozinhou
também na Embaixada Inglesa em Paris.
Depois que os pratos já haviam sido retirados, o francês se aproximou da mesa deles e
sorriu afavelmente.
— Boa-noite, Sr. Varren. Sou um admirador de seus quadros. É um prazer recebê-lo
no Le Gavroche.
David levantou-se e apertou a mão do chef.

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— O prazer é todo meu por estar aqui, Monsieur Roux. Esta é Miss Redwood uma
colega muito talentosa.
— Enchanté, mademoisclle. — O famoso chef inclinou-se diante de sua mão com
elegância gaulesa, admirando-a com gentileza.
Trocaram mais algumas palavras e Monsieur Roux despediu-se, continuando seu
trabalho.
A elegância de David fora esplêndida. Seu pai e ele se dariam bem, pensou Liz. Não
por pertencerem ambos a famílias de origem aristocrática, mas porque seu pai não
considerava os empregados de qualquer lugar simples robôs e sim seres humanos, antes
de mais nada.
Mais tarde, para refrescar o paladar, escolheram sorbet de champanha.
— David ainda não agradeci pelo livro. Foi muito atencioso por lembrar que eu gostaria
de lê-lo.
— Não faça nenhum plano de começar a leitura hoje à noite: tenho outros planos para
você, caríssima — disse ele, com jeito brincalhão.
O sorbet foi seguido pelo prato principal, um leque de pato assado arranjado sobre
salsa de espinafre, guarnecido com ervilhas e cebolinha picada.
— A que horas vai ver sua empresária amanhã, Liz?
— Vamos almoçar juntas. E você, quais são seus planos para amanhã?
— Estou pensando em ver a exposição na Academia Real. Quer ir comigo ou prefere
fazer compras?
— Já comprei tudo o que queria, adoraria ir com você. E à tarde?
— Marquei consulta com o dentista para as duas, mas não vai demorar, devo estar
livre meia hora depois. A que horas você acha que termina seu almoço?
— Não muito tarde: Jane é uma pessoa muito ocupada; devo estar livre à mesma hora
que você.
Quando saíram do Le Gavroche, depois de uma torta de amoras com creme, ambos
estavam precisando de um passeio.
De braços dados, deram a volta à praça em direção à Carlos Place.
— Meus pais sempre ficavam aí quando vinham a Londres — comentou David,
apontando para a fachada estilo eduardino do Hotel Connaught.

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E ele devia ficar junto, pensou Liz, sabendo que o hotel era "o lar longe do lar" para
muitas famílias aristocráticas inglesas, que preferiam cair mortas a ficar em lugares
ostensivamente luxuosos como o Dorchester e Grosvenor House. Mas agora ele ficava no
Cavendish. Será por causa do preço ou porque tinha companhia?
— Se eu ainda fosse sócio do Annabel’s poderíamos dançar — disse ele — em
Berkeley Square. Há uns vinte anos que não entro lá; alguns dos freqüentadores de hoje
nem tinham nascido na época em que eu costumava ir.
O tom dele era despreocupado, como se não guardasse lembranças marcantes.
Provavelmente nunca estivera lá com a cunhada, vendo-a dançar com o irmão e desejando
tê-la nos braços.
— Não está excitada com a perspectiva de mostrar Casimir à sua gente? — indagou
ele, mudando de assunto.
Ela afirmou que sim, mas sua resposta não parecia convincente. Ele mais nada
comentou e caminharam silenciosamente até o hotel.
Quando chegaram ao quarto, as cortinas tinham sido fechadas e as colchas de cama
retiradas.
— David, foi um jantar inesquecível. Obrigada, pela noite maravilhosa.
— Eu que devo agradecer por ter à minha mesa a mulher mais bonita e elegante de
todo o restaurante. — Abraçou-a delicadamente. — Parece um pouco cansada agora, Liz.
Por que não deita e lê um pouco?
— Você é bom demais para mim, David.
— Se não fosse, não estaria comigo; é preciso tomar muito cuidado com vocês,
mulheres independentes. . .
"Mas agora não sou mais independente", ela teve vontade de dizer. "Preciso de você
em minha vida; não existe felicidade sem você."
— Vou ver se há alguma coisa que valha a pena na televisão — disse ele, soltando-a.
Liz preparou-se com especial atenção para dormir aquela noite. Vestiu a camisola
extravagante e glamourosa que comprara, importada de Paris; o corpinho de renda
branca, preso em baixo do busto por um grande laço de cetim branco, era discretamente
transparente e provocante. Ela sabia que assim que David a visse, ia querer tirá-la
imediatamente. Vestiu o robe que a acompanhava.
Ao retornar do banheiro, David estava concentrado num debate político sobre a crise
do mundo financeiro, já praticamente despido.

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Sem dizer uma palavra, ela tirou o penhoar e deitou-se, iniciando a leitura da A
Corrida de Obstáculos. David foi para o banheiro, mas não desligou a televisão. Logo
depois Liz ouviu vagamente o leão da Metro rugindo para apresentar um filme, mas
estava mais interessada na introdução do livro da feminista Germaine Greer.
— Vou tomar um drinque antes de dormir. Quer um querida?
— Quero sim, obrigada — respondeu, erguendo os olhos do livro.
Viu-o servindo uma dose de mantell. Estava com o dorso nu, vestindo uma calça de
pijama de seda azul-marinho com pequenos desenhos geométricos em branco. Ele lhe
ofereceu o copo e, em seguida, deitou-se ao seu lado, pondo uma das mãos sobre sua
coxa.
Na TV tinha início um drama ambientado na França, na Segunda Guerra Mundial. Aos
poucos Liz deixou-se arrebatar pela trágica história de amor.
Se estivesse sozinha, teria deixado às lágrimas correrem livremente nas cenas de
maior emoção. Mas com David a seu lado, fez um esforço enorme para engolir as lágrimas.
Ao término do filme, Liz estava a ponto de explodir. Sem nada perceber, David
desligou o aparelho e saiu do quarto em direção ao banheiro. Sozinha, ela desatou a
chorar convulsivamente, sacudindo os ombros delicados.
Sabia por que o filme a abalara tanto: vira expresso no rosto da jovem, destruído pela
tragédia, seus próprios sentimentos retratados assim que chegasse a hora de separar-se
de David. Isso era inevitável, ele jamais poderia amá-la.
Ouviu, alarmada, o ruído da porta do banheiro se abrindo. Tentou esconder o rosto
molhado, mas foi em vão.
—- Liz! — exclamou David aproximando-se. — Liz o que aconteceu?
—- Nada. . . nada. . . Quero, ir ao banheiro — gaguejou.
— Está chorando. . . O que houve?
— Foi um filme tão triste. . .
Sem que pudesse conter-se, as lágrimas continuaram a rolar. Lia como se chorasse as
mágoas de todas as moças que perderam seus amados na tolice de urna guerra.
David abraçou-a e deixou que desabafasse. Quando os soluços se acalmaram,
carregou-a para a cama e sentou-a no colo, secou-lhe .os olhos com lenços de papel.
— Sinto muito, David. Nunca devia ter assistido a esse filme. Sou a maior chorona do
mundo!

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— Não precisa desculpar-se, meu anjo. Eu também estava com um nó na garganta em


certas cenas.
— Mas você não se derreteu. Devo estar horrorosa.
— Não está não. Parece uma garotinha que acabou de perder o ursinho. . . os cílios
grudados, as faces coradas e brilhantes. — Beijou os lábios entreabertos. — Só que
garotinhas não têm essa linda boca de Botticelli.
— David eu... atirou os braços em volta do pescoço dele. — Eu. . . — Queria tanto
confessar seu amor mas não podia, não queria fazer papel de tola. — O que quer dizer
com "boca de Botticelli"? — indagou afinal.
— Nunca estudou os quadros de Botticelli? Todas aquelas lindas jovens dançando
descalças têm uma pequena curva no centro do lábio inferior. . . como essa que você tem.
— Tocou-lhe os lábios com a ponta do dedo. — Foi uma das primeiras coisas que notei
em você.
— A primeira coisa que notei foram seus olhos. . . azuis como o mar de que eu gosto
tanto.
Ele afastou-a de si, encarando-a com ternura. Depois, foi baixando os olhos, sedento.
— Eu nunca vi esta camisola, não é?
Ela balançou a cabeça, negando, sentindo o contato de sua mão nas alcinhas de cetim
para descobrir como tirá-la. Segundos mais tarde, mergulhava o rosto no vale entre os
seios.
Liz fechou os olhos, sem saber se conseguiria retribuir à paixão; mas bastaram alguns
beijos e carícias sensuais para fazê-la reviver nos braços dele.
Ocasionalmente, entre as cartas que enviava no Natal ou em seu aniversário, a sra.
Eugene P. Thornwell escrevia um bilhete para a filha solicitando que ajudasse algum
americano de passagem por Londres.
Normalmente o resultado era um encontro para um drinque no hotel dos visitantes e
dicas sobre os melhores lugares para comprar cashmeres, sapatos, tweeds e o que mais
houvesse de "tipicamente inglês".
Os cashmeres menos caros podiam ser encontrados em Marks & Spencer, embora os
modelos não agradassem muito, como Liz fazia questão de explicar, já que americanos
preferiam suéteres mais curtos.
De frente à loja havia o Selfridges Hotel, onde era possível experimentar as roupas
recém-compradas, costume de muitas clientes conhecidas, incluindo Liz, que aproveitava
depois para tomar um café ou almoçar no restaurante do hotel.

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Foi lá que marcou encontro, no dia seguinte, com Jane Cobb Adams, que pretendia
antes dar um pulo à loja em frente para comprar alguns artigos de lã.
Jane era uma americana, casada pela segunda vez com um arquiteto inglês. De uma
vitalidade incomum, conseguia combinar seus afazeres de esposa, mãe e empresária sem
esforço aparente. Mas várias vezes confessou a Liz que sofria de enxaquecas terríveis
após períodos de atividade intensa.
— Mas acho que é um preço pequeno por tudo que tenho — explicara numa dessas
ocasiões. — Embora na hora da dor não concorde absolutamente. á teve enxaqueca?
Então, louve aos céus: é terrível!
Assim que se encontraram, Jane começou a falar animadamente.
— O que aconteceu com você? Está ótima. Não diga nada, deixe-me adivinhar... Deixou
de bancar a boba com aquele chato e egoísta do Richard?
— Acertou.
— Já não era sem tempo, não é? É a melhor notícia que ouvi este mês, desde que não
deixe seu novo amor abusar de você também.
— O que a faz pensar que há alguém em minha vida?
— Estou errada?
— Não.
— Onde o conheceu? Na Itália, não é? Obrigada pelos cartões, mas uma carta teria
sido melhor. Andei preocupada com você. Para falar a verdade, sabia que você e Richard
tinham terminado. Ele me telefonou e contou tudo.
É mesmo? E o que foi que ele disse?
— Pediu que eu fosse buscar suas coisas na casa dele.
— Não acredito! Como pôde ser tão grosseiro? Ele sabia muito bem que a sra. Dewis,
nossa empregada, poderia ter cuidado de tudo sozinha! Escrevi para ela, fazendo uma
lista de tudo que era meu — livros, fitas, coisas assim. Ele não tinha o direito de
incomodar você, Jane. Acho que estava furioso comigo e, para vingar-se, perturbou uma
de minhas amigas. Realmente, não consigo entender o que foi que vi nele — admitiu
arrependida pelo tempo perdido. — E, no entanto, ele parecia tão... — não terminou a
frase, para evitar lamentações.
— Posso dizer o mesmo sobre meu primeiro marido, Bob. E acho que a maioria das
mulheres tem uma história parecida para contar. Você não foi a única a confundir um sapo
com um príncipe, Liz. Mas deixemos esse triste assunto de lado. Conte-me sobre seu
novo amor. É italiano?

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— Não. . . é um artista inglês. Conhece David Warren?


Jane ouviu-a boquiaberta, sem fazer comentários.
— Aluguei a casa dele em Portofino enquanto estava fora, em viagem pelo mundo.
Voltou para casa inesperadamente e como seria difícil conseguir outro lugar para morar,
sugeriu que ficasse na casa. É uma casa enorme, cheia de quartos. E eu que já estava
apaixonada pela Villa Delphini, logo senti o mesmo por seu proprietário.
— Sei que sempre admirou os trabalhos dele. E eu também. E como é ele? Nunca
sequer o vi em fotos; é um sujeito de pouquíssima publicidade, aliás, nem precisa.
— É alto. . . loiro. . . olhos azuis — Liz sentiu que carregava demais o tom de voz. Não
queria exagerar no charme de David. — Jane, vamos falar do Cruzeiro de Casimir ou já
esqueceu?
— Claro que não.
Estavam sentadas em um canto do saguão antes de entrar no restaurante. Da pasta de
couro que continha meia dúzia de suas minúsculas telas, Liz tirou o álbum com as capas de
celulose que protegiam as ilustrações e as páginas do texto que compunham o livro.
Jane entreteu-se na leitura do material. Quando olhou para ela, seus olhos cinzentos
brilhavam.
— Mas é maravilhoso, Liz! O concurso da mamãe Gansa entrega um prêmio — um ovo
de bronze e um cheque — anualmente ao mais promissor estreante na ilustração de livros
infantis na Inglaterra. Acho que tem chance no próximo ano. Este trabalho com pincel e
pena é de primeira categoria, e você sempre teve um senso da cor incrível. Deve ter
passado horas observando gatos. Teve tempo também para suas pinturas habituais?
— Claro, trouxe seis para mostrar a você. A casa de Portofino é um tesouro
abarrotado das coisas que eu adoro pintar. O fundo desta cena, por exemplo, é um pedaço
de seda antiga usada como cortina atrás da bancada do sapateiro. Só Deus sabe como foi
parar lá, mas David o reconheceu e o salvou. E continuou contando a Jane a história de
alguns dos objetos que incluíra nos quadros.
Depois foram para o restaurante e pediram salada de queijo e uma jarra de vinho
branco gelado.
— Parece que você e David Warren foram feitos um para o outro.
— Tomara.
— Qual é o problema? Uma esposa no pedaço?
— Não, ele nunca foi casado, e acho que nunca vai casar. Deve estar beirando os
quarenta e nem sei se gostaria de ter filhos. Para que casar?

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— Nesse caso, minha querida, é melhor você pensar no futuro. Nenhuma mulher
solteira deveria encontrar-se na posição de não ter para onde ir quando um caso termina.
Por coincidência, um de meus clientes está indo para a Grécia para dividir um
apartamento com a namorada. Acho que está louco — assim como pensei que você também
estava quando foi morar com Richard — mas Lambert está decidido a deixar o
apartamento e não consigo fazê-lo mudar de idéia. Tem um quarto só, imenso,
esplendidamente decorado. Por que não vai dar uma olhada? Precisa ter um lugar certo
para morar, Liz todos precisam.
A princípio ela resistiu à sugestão da amiga, alegando que só estava em Londres de
passagem e já havia combinado encontrar-se com David para o chá no Fortuirfs
e não teria tempo para ver o apartamento.
— Ora, Liz, o apartamento de Lambert é perfeito para você é uma chance em mil e não
vou permitir que a perca. Qual- j quer coisa que aconteça no futuro, não estará na rua,
como aconteceu quando rompeu com Richard.
Depois de muita hesitação, Liz acabou se convencendo de; que Jane estava certa.
Telefonaram para Lambert e marcaram um encontro no apartamento dele para depois do
almoço.
Passava das seis quando Liz voltou ao Cavendish, depois de ter concordado em
subalugar o apartamento por um ano, com a opção de assumir os restantes seis anos de
contrato, caso fosse do interesse dos dois.
Lambert tinha uma personalidade interessante, era simpático e divertido, e
conversaram muito sem se perceber o avanço das horas.
Não tinha certeza se encontraria David no hotel e tem-pouco se deveria contar-lhe
que alugara o apartamento. Deixara vários recados no hotel e no local do encontro para
não deixá-lo preocupado, mas agora ia precisar de uma justificativa.
Se alegasse algum motivo fútil iria decepcioná-lo e essa era uma coisa que detestaria
fazer, principalmente com alguém que amava. Por outro lado, qual seria a reação dele
quando soubesse a verdade?
A última coisa que desejava no mundo era introduzir idéia da separação entre eles. Ao
mesmo tempo, precisava reconhecer que se sentia mais à vontade na relação
descompromissada dos dois tendo um teto em algum lugar. Além disso, quando voltassem
a Londres poderiam ficar na casa dela.
Abriu a porta e deu com ele, assistindo TV, já pronto para ir ao teatro.
Sendo por natureza sensível aos mínimos sinais que traíam as emoções das pessoas,
percebeu imediatamente que estava aborrecido. O jeito como se levantou da cadeira para

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desligar a televisão e, principalmente, o fato de não sorrir para ela, advertiram-na


de que algo havia mudado desde que se separaram antes do almoço.
— Da próxima vez que mudar seus planos, seria uma boa idéia avisar a pessoa com
quem ia se encontrar. Só recebi seu recado depois de uma hora que estava no Fortum's
pensando que tivesse sido atropelada ou raptada.
— Mas eu deixei dois recados, um aqui e outro no Fortum's! Telefonei assim que
terminei meu almoço com Jane e garantiram que o avisariam.
— É, mas não avisaram.
— Perguntou se havia um recado para você?
— Claro, às quatro e vinte quando vi que não aparecia, fui perguntar no balcão de
informações. Depois resolvi voltar para cá.
— Sinto muito, David, mas a culpa não foi minha realmente. Quem recebeu o recado
deve ter ido embora, sem passá-lo a quem o substituiu. Que loucura!
— E posso saber onde esteve?
A pergunta feita num tom incisivo fez Liz lembrar de Barney exigindo o relato de cada
minuto que passava longe dele.
— David — chamou ela pausadamente. — Tive que vir de Chelsea até aqui a pé porque
foi impossível conseguir um táxi. Se não se importa, gostaria de um drinque antes de
responder ao seu interrogatório.
Por alguns segundos teve a impressão de que ele ia agarrá-la e sacudi-la, tal a fúria
que lia nos olhos azuis e na expressão tensa do rosto. Recuou instintivamente ao vê-lo
mover-se, mas ele estava simplesmente a caminho da geladeira.
— O que quer gim-tônica ou vodca?
— Gim-tônica, por favor.
Com dedos trêmulos, começou a desabotoar o vestido. Teria gostado de um banho, mas
não havia mais tempo, se iam jantar antes do teatro. Não devia ter ficado conversando
com Lambert depois de acertados os detalhes do aluguel.
— O que pensou que ia fazer? Bater em você? — perguntou David com voz irônica
— Claro que não, embora esteja com cara de quem gostaria de dar-me umas
sacudidas.
— Por mais furioso que fique, não é meu costume agredir mulheres. Foi por isso que
deixou seu último amante?

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— Claro que não! Richard não era violento; se fosse, não passaria com ele nem três
semanas, quanto mais três anos!
— Algumas mulheres ficam com homens brutos.
— Só se não tiverem para onde ir. Nunca ouvi dizer que uma mulher que pudesse
arranjar-se sozinha ficasse com um homem desse tipo.
— Pois já soube de casos mais estranhos ainda: mulheres que agüentam qualquer
tipo de punição, mental ou física, se estão apaixonadas. Parecem incapazes de discernir o
certo do errado.
Estaria pensando em alguém que conhecia? Seria possível que a cunhada sofresse
algum tipo de coerção nas mãos do marido e David soubesse, o que o teria levado a odiar
o : irmão, até mesmo a querer matá-lo?
Estivera a ponto de retrucar o comentário dele, explicando que esse tipo de mulher
devia ser masoquista ou doente, mas mudou de idéia, tomada de uma onda de compaixão
pelo que ele devia ter sofrido se suas suposições fossem verdadeiras.
— David, não vai me dar um beijo? — Aproximou-se dele e fitou-o com ternura.
Mas ele continuava retraído.
— Quanto tempo vai levar para trocar de roupa?
— Não mais que dez minutos. Ora, querido, não precisa ficar tão zangado. —
A palavra carinhosa escapou-lhe dos lábios e Liz notou que a expressão dele se
suavizava mesmo : ignorando a sugestão de dar-lhe um beijo.
— Como foi seu almoço? Jane gostou do livro?
— Está entusiasmada. . . e gostou de todos os quadros, principalmente do que tem a
seda no fundo. Depois do almoço quis que eu conhecesse Lambert Radley, um de seus
clientes, que está de partida para a Grécia, e hoje era minha única chance de conhecê-lo.
É comprometido e está apaixonadíssimo. Portanto, pudemos ir ao apartamento dele sem o
risco de sermos agarradas.
Era uma parte da verdade; o resto ficaria para quando David estivesse de mais bom
humor. O instinto avisou-a de que não era o momento ideal para contar tudo.
— Então você me trocou por outro artista!
— Você ia gostar dele, David. Não faça essa cara! Ele tem um bom gosto incrível. . . O
apartamento dele é minha idéia mais próxima do paraíso. . . depois de sua Villa.

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Vinte e quatro horas depois, estavam de volta ao terraço da Villa Delphini. A visita a
Londres agora já era um passado que, com exceção do conflito entre os dois, poderiam
recordar com alegria.
— Estou feliz por estar de volta, você não? — perguntou David, apoiado à amurada,
observando um barco a motor cortando o mar azul. — Dois dias numa cidade como
Londres já é tempo suficiente.
— Também estou contente; senti falta da piscina, da vista, da paz disto tudo. Esse
lugar me inspira. Amanhã mesmo vou começar a trabalhar na próxima aventura de Casimir.
Nos dias que se seguiram, o casal encontrou novamente o ritmo normal de trabalho,
conversa leitura, jantares no Luigi's e dos momentos de amor nos braços um do outro. Liz
se sentia segura do amor dele ali, mas não poderia afirmar que continuariam se amando
em qualquer outro lugar como Londres, por exemplo.
Anna ainda não retornara à atividade. Apesar da rápida recuperação da operação, a
sua convalescença em Pisa "se alongava mais que o normal. Os netinhos tiveram sarampo e
ela também. Intransigente como, era, Anna quis voltar ao trabalho, mas a filha tentou
convencê-la a ficar em Pisa para sempre.
— Ela está velha demais para trabalhar, signore; mamãe precisa descansar o resto da
vida — disse a David.
— Não é exatamente minha idéia de descanso, com crianças pela casa toda, televisão
em alto volume o dia inteiro e vizinhas entrando e saindo a qualquer hora — comentou
David com Liz, ao voltarem de uma visita.
— Mesmo assim é bom que a queiram com eles.
Pensou em si mesma na idade de Anna. Perguntando-se onde estaria
morando. Mas a velhice estava tão distante ainda que era quase impossível imaginar como
seria. O futuro poderia tomar conta de si mesmo; o ano seguinte já lhe parecia distante
demais para conjecturas. Hoje, essa tarde, essa hora, era tudo em que queria pensar.
Estar com David, ser feliz. . . agora.
Às vezes, no entanto, o correio trazia lembretes de que havia mundo menos pacífico
além de seu porto ensolarado. Jane escreveu que uma editora inglesa estava
interessada em publicar Casimir e Liz discutiu o assunto com David.
Quando recebeu uma carta de seu advogado, incluindo papéis para serem assinados,
ainda não contara a ele sobre o apartamento de Lambert.
David era educado demais para mostrar interesse por sua correspondência, a menos
que ela lhe chamasse a atenção. Mesmo assim sentia-se culpada por esconder dele algo
tão importante.

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Depois de pensar muito, decidiu que faria uma surpresa na próxima vez que fossem a
Londres. Antes que ele telefonasse para o Cavendish, diria que não era necessário ficar
num hotel, porque ela possuía um apartamento à disposição deles.
Havia muito de familiar no relacionamento deles e quase todos os dias agiam da mesma
forma.
Por causa de seus hábitos noturnos, David usava um relógio de pulso como despertador
para acordá-lo cedo. Depois de desligar o zumbido, ele abraçava Liz e ficavam assim
algum tempo. Às vezes, faziam amor ainda envolvidos pelo sono.
Juntos, prepararavam e tomavam o desjejum quando o sol já começava a aquecer o
lado leste do terraço.
Depois do café separavam-se para trabalhar até o meio-dia. Às vezes David não
parava, mas, nos últimos dias, tendo terminado a catalogação de seus esboços de viagem,
ia ao encontro de Liz para nadarem juntos antes do almoço. O correio chegava sempre
pouco antes desse horário, trazendo as diversas revistas de arte e atualidades que ele
assinava.
Mas, naquela manhã, o correio trouxe mais que simples revistas: trouxe a tristeza e a
dor para Liz.
Liz acordou alegre naquela manhã, pois à noite iriam a uma festa numa das Villas
vizinhas, lugar de veraneio de uma rica família de Milão. Seria uma oportunidade para
usar o conjunto que comprara em Londres e que ainda não mostrara a David.
Era a primeira festa a que iam juntos e ela esperara a ocasião ansiosamente. Embora
os Salviati fossem imensamente ricos e a Villa decorada em estilo ultra moderno, sua
fortuna fora iniciada duas gerações antes e tinham olho apurado para o bom design
moderno, dissera David, certo de que gostaria deles.
Depois do desjejum, como sempre faziam, ambos se recolheram em seus estúdio e se
encontram novamente pouco antes do almoço, na piscina.
Ele já subira para o terraço quando ela saiu da água e o alcançou; Teresa estava
acabando de arranjar a refeição leve e David estava lendo uma carta.
O fato de não levantar ao vê-la chegar, já era um sinal de que havia algo errado.
Normalmente era um homem extremamente gentil, que apreciava dispensar-lhe as mais
delicadas cortesias. Mas estava imerso na leitura e a julgar pelas rugas de sua testa, não
estava gostando nada da notícia.
Antes de sentar, Liz tirou o limão que servia como tampa de garrafa do leve vinho que
costumavam tomar na refeição.

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O uso de limões como tampas era uma idéia que David copiara de Madame Romain
Gary, mais conhecida como Lesley Blanch, viajante e escritora, cujos livros com títulos
românticos estavam entre os preferidos de Liz.
Ao descobrir que David fora convidado para uma ceia íntima na casa de Madame Gary,
na França, perto da fronteira italiana, ficou morta de inveja. Pelo modo como a
descreveu, a casa da escritora, abarrotada de maravilhas coletadas durante uma vida
inteira de viagens e aventuras, parecia-se muito com a casa dele. Tudo que lhe contara
sobre Lesley Blanch — desde a comida que servira aos hóspedes até o modo como estava
vestida — só serviu para intensificar sua admiração por uma das mulheres mais
interessantes do mundo.
Encheu dois copos e sentou, esticando o guardanapo sobre as pernas nuas. Extasiado,
David dobrou a carta e guardou-a no mesmo envelope, com ar ausente.
— Algo errado, David?
Antes que ele respondesse, a expressão de seus olhos encheu-a de medo, fazendo-a
perceber que seu mundo dourado estava a ponto de desintegrar-se. Aquele brilho intenso
advertia que daquele momento em diante nunca mais seriam os mesmos.
— Vou ter de ir para a Inglaterra amanhã cedo; aconteceu uma coisa inesperada. . .
acho que vai mudar minha vida completamente. . .
— Em Blackmead?
— Sim, mas como adivinhou?

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CAPITULO VI

Uma vespa voou sobre a salada e David espantou-a. Liz não respondeu à pergunta dele;
apesar do calor, sentia-se gelada dos pés à cabeça.
— O que houve? — ousou perguntar novamente, o coração aos pulos.
— Margaret, minha cunhada, recebeu uma proposta de casamento e decidiu aceitar.
Isso significa que vai sair de Blackmead. A propriedade sempre foi minha oficialmente,
mas eu não podia viver lá enquanto ela estivesse na casa. Agora, se eu quiser, posso voltar
e assumir. Houve uma época em que não queria, mas agora. . . acho que mudei de idéia.
Preciso pensar muito sobre isso antes de tomar uma decisão.
Liz fitou-o, espantada. A notícia do próximo casamento de Margaret Castle não o
atingira minimamente. Estaria curado desse amor impossível?
— Com quem ela vai casar?
— Com um dos companheiros de caça de meu irmão, cuja esposa morreu há alguns
meses. A casa dele é muito maior e mais imponente do que Blackmead; ela está fazendo
uma mudança para melhor. Bob é um chato, mas Margaret não se incomoda com sutilezas,
desde que esteja melhorando sua posição social e financeira.
O tom de desprezo com que se referia à cunhada mostrou que Liz estava enganada em
suas suposições. Mas então quem seria a mulher de sua vida? Alguém devia ter existido.
— Antigamente Bob só pensaria em casar depois de um ano que a mulher tivesse
morrido, mas parece que as coisas mudaram, mesmo na geração dele. É um velho bruto e
pelo que se pode ler nas entrelinhas, Margaret já está esquentando a cama dele e quer
tornar tudo oficial.
Pegou os talheres da salada e ofereceu-os a Liz, que perdera completamente o
apetite. Tentou manter-se calma, como se nada de crucial estivesse acontecendo.
— Quanto tempo acha que vai passar lá?
— Por enquanto, ainda não sei. Você vai comigo, não é? Gostaria muito.
— Não seria melhor ir sozinho? Sou uma estranha na família e posso até atrapalhar
você.
— Entendo que não queira sair daqui mesmo porque o tempo ainda está maravilhoso.
Reconheço que no momento a troca não é justa, mas em setembro o lugar é muito
agradável. Não há piscina, mas é possível fazer boas caminhadas pelo campo. Acho que

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não dá para morrer de tédio. — Sorriu. — Mesmo que não passemos o dia inteiro juntos,
estaremos juntos à noite, o que é muito importante para mim. Espero que sinta o mesmo.
Ela manteve o olhar baixo para que ele não pudesse perceber o quanto era importante.
— Bob não é o único que gosta de cama quentinha, não é? — brincou ela. — Muito bem,
vou com você. Fica perto de Coventry? Sempre quis ver a tapeçaria de Graham
Sutherland na Catedral.
— Não é muito longe. O lugar mais interessante por perto é Althorp, a mansão do
Conde Spencer. Na minha infância era uma meca de turistas, mas isso foi antes de a
filha tornar-se queridinha da Inglaterra.
— Conhece a Princesinha de Gales?
— Eu não, mas Margaret deve conhecê-la. E ficaria impressionada mesmo que ela
fosse um monstro.
— Tenho certeza de que é encantadora pelo menos à distância.
— Estava na Austrália quando o Sydney Morning Herald publicou um artigo de um
escritor chamado Patrick Whiteem que se referia à Diana como a "esposa do Príncipe,
que mais parece uma figura mal-vestida de museu de cera". Embora fosse um artigo muito
interessante sobre o patriotismo australiano, o que o estragara era o comentário
ofensivo sobre Diana. Uma semana depois o jornal publicou diversas cartas indignadas, de
leitores que reclamavam de tamanha grosseria.
— Você é monarquista?
Ainda havia tanto para aprender sobre ele. . . tantos meandros de sua mente que não
conhecia. E, no entanto quantas pessoas, depois de alguns anos de casamento, não tinham
mais nada a dizer uma à outra? Liz sentia que poderia passar a vida inteira conversando
com ele que, mesmo assim, sempre teriam o que contar ou comentar.
Mas talvez ele não pensasse o mesmo.
Foram recebidos na festa dos Salviati por Giancarlo, o atraente filho dos donos da
casa. Ao saber que Liz também era artista, perguntou-lhe se queria ver a coleção de
pinturas do pai, do italiano Giorgio Morandi, o mestre italiano da natureza morta.
Liz ficara fascinada com as obras e com a vida do próprio artista quando de uma visita
ao Museu Guggenhein em Nova York, no evento "Retrospectiva Morandi".
Morandi nunca se casara. Até sua morte em 1964 viveu em Bolonha, onde ensinava
gravação, com as três irmãs, também solteironas. Nunca se preocupou com dinheiro:
mesmo quando ficou famoso, cobrava pouquíssimo por seus trabalhos. Costumava pintar

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garrafas que comprava nos becos das cidades. Seu estúdio fora famoso pela poeira, a
poeira que recobria tudo, suavizando a luz e a cor.
O pai de Giancarlo possuía quadros que datavam de 1925, quando Morandi começara a
concentrar-se em estudos de jarros, garrafas e vasos. Estavam todos reunidos num salão
e Giancarlo ficou conversando com Liz, sem a menor pressa de voltar a seus deveres de
anfitrião. Talvez tivesse sido encarregado pelo pai de descobrir coisas sobre ela.
Voltaram para o salão principal algum tempo depois, contrando-o repleto de
convidados animados. Vários garçons serviam champanha e petiscos deliciosos.
De vez em quando, Liz via David conversando e rindo em grupos variados, uma ou duas
vezes os olhares dos dois se encontraram. Vendo-a cercada de italianos galantes,
piscava e sorria para ela.
Em dado momento, uma bela e elegante mulher aproximou-se de Liz e se apresentou.
— Sou Natasha Lunardi.
— Sempre gostei desse nome: Natasha. Tem alguma ascendência russa?
— Meus pais eram russos. Eu nasci em Londres e sou casada com um italiano.
— Como vai? Sou Liz Redwood, meio americana, meio inglesa.
— É a nova namorada de David, não é?
— Sou sim — respondeu, sem saber o que pretendia com aquela observação.
— Bem-vinda ao clube: eu mesma já pertenci a ele há alguns anos, mas não
conte ao meu marido, por favor. Andréa é loucamente ciumento e não ia gostar de saber
que tive um envolvimento, mesmo passageiro, com um homem com a reputação de David.
Mas não precisa ter ciúme, querida, pelo menos não de mim.
Liz não sabia o que retrucar, indecisa entre o desejo de ver a outra desaparecer e a
vontade de saber o que queria dizer com "a reputação de David". A moça lhe pareceu
pouco conveniente.
— Parece uma boa moça, Liz; detestaria vê-la ferida como aconteceu comigo, portanto
vou intrometer-me e contar umas coisinhas que outros não ousariam. David é um
conquistador inveterado, interessado em qualquer mulher que atravesse seu caminho.
Está tentando esquecer um caso que teve aqui há uns anos; um caso escandaloso é o
mínimo que se possa dizer com uma garota de dezenove anos, sobrinha dele, ainda por
cima. Veio para cá aprender italiano e ele a seduziu. Tinha um nome diferente. . . Bethany.
. . Bethany Castle creio pergunte a ele.
A essa altura, um homem de meia-idade, indiscutivelmente o pai de Giancarlo,
aproximou-se com um sorriso.

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— Srta. Redwood, sou Salviati. É um prazer conhecê-la. Meu filho me contou que
também é admiradora de Morandi. Gostaria de ver outros quadros, srta. Redwood? Com
licença, sra. Lunardi, sei que prefere escultura.
E carregou Liz para ver algumas pinturas abstratas. Mais tarde apresentou-a à
esposa, cujos olhos atentos examinavam rapidamente a roupa e os ornamentos de Liz.
Por mais que achasse difícil concentrar-se, depois da bomba detonada por Natasha,
fez o que pôde para prestar atenção à explicação da Signora Salviati sobre o porquê de
Milão ter substituído Roma como a capital do design na Itália.
— Valentino continua desfilando suas coleções em Roma, mas é alta moda para
mulheres muito ricas. Os estilistas que lançam a moda prêt-à-porter são os que têm
maior influência e estão todos em Milão. . . Giorgio Armani, Gianfranço Ferre, Gianni
Versace e muitos outros. E como a moda começava nos tecidos, Milão leva vantagem
também porque está perto das fábricas do lago di Como, onde são manufaturados alguns
dos nossos mais belos tecidos.
— É esse o ramo de seu marido, signora?
— Sim. Talvez nunca tenha ouvido falar em firmas como Bini, Raroni e Salviati, mas
para os connoisseurs de tecidos são tão famosos quanto Da Vinci e Canaletto no mundo da
arte. O que está usando? É de um estilista inglês?
Liz deu uma olhada em suas roupas: calça e camisa de linho, ambas pretas, combinando
com um blazer branco e preto de voil de linho.
— Sim, é de Caroline Charles, uma das melhores estilistas do prêt-à-porter inglês.
— Permite. . . ?
A dona da casa tocou com as unhas impecáveis uma das amplas mangas de Liz e
apreciou a textura.
— Mas talvez ela compre os tecidos na Itália.
Continuaram conversando sobre moda até que Giancarlo apareceu ao lado delas.
— Mama, já cumpri meu dever e conversei com todas as velhas senhoras presentes.
Agora quero divertir-me um pouco, mostrando a esta linda jovem o jardim, já pedi licença
a David.
— Espero que venham jantar conosco logo, sra. Redwood. Gostaria muito de
continuar nossa conversa.
— Eu também, signora. . . mas pode me chamar de Liz.
A anfitriã sorriu e afastou-se.

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— Eu também posso chamá-la pelo primeiro nome? — perguntou Giancarlo, pegando o


braço de Liz e conduzindo-a para as amplas portas que davam para o jardim.
— Claro, Giancarlo. Costuma ser sempre tão formal?
— Depende. . . mas é que tenho uma fama injustificada de conquistador e faço
questão de comportar-me corretamente com belas jovens que estejam acompanhadas.
— Então vou dar-lhe um conselho: nunca peça permissão ao marido da signora Lunardi
para levá-la a algum lugar, pois ela acabou de contar-me que é tremendamente ciumento.
— É compreensível; ele tem trinta e seis anos mais que ela e ainda por cima sabe que
Natasha só casou com ele por sua fortuna, o velho trouxa. Eu a vi conversando com ela.
Não acho que seja uma pessoa com quem deva fazer amizade, Liz. Para ser franco, ela
jamais seria convidada para vir aqui se o velho Lunardi não fosse um antigo amigo da
família, que não pode ser excluído dos ambientes só porque casou com uma aventureira.
— Uma aventureira? Pensei que fosse amiga de David.
— Bem que ela gostaria, mas não foi. Nunca morou sob o mesmo teto com ele. Eu
estava presente no dia em que percebeu que não ia conseguir nada e mostrou sua
verdadeira personalidade. Deu um show! Depois voltou para o hotel, onde agarrou
Lunardi.
Como o terraço, os jardins em volta eram mais luxuosos dm que os da Villa Delphini,
mas Liz preferia as roseiras perfumadas, buganvílias e jardineiras com gerânios do
jardim de David à ordem e ostentação desse jardim dos Salviati.
Passeavam em volta da grande piscina romana e Liz resolveu soltar sua curiosidade..—
Chegou a conhecer a sobrinha de David, Bethany?
— Muito bem. Costumávamos sair juntos às vezes. Era muito jovem. . . dezessete anos.
Nunca tinha saído com um homem antes de sair comigo. David me avisou que me mataria
se eu não me comportasse adequadamente — riu maliciosamente. — Era uma moça muito
querida, a Bethany. Quando a conhecer, concordará comigo.
— Onde ela está morando agora?
— Num famoso castelo no sul da Inglaterra. O sogro dela é o Duque de Dorset.
Bethany e o marido têm um apartamento no próprio castelo. Já fui convidado para passar
uns dias lá, mas ainda não me decidi. No inverno gosto de esquiar e no verão vou a Cavallo.
Cavallo era uma ilha no Mediterrâneo entre a Córsega e a Sardenha, explicou ele, onde
tinha um estúdio-apartamento no estilo de uma cabana de pastor e onde passava a maior
parte do tempo mergulhando em volta dos vários navios ancorados na ilha.
No meio da história, David reuniu-se a eles.

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— Vou levar Liz para casa agora, Giancarlo. Vamos viajar para Inglaterra amanhã cedo
e ainda não terminamos de arrumar as malas.
Voltaram para o salão e o casal iniciou as despedidas. Pela maneira como a trataram,
Liz percebeu que havia sido "aceita" pelo grupo. O único momento de tensão foi quando se
aproximou da Natasha para se despedir. David, que a acompanhava, foi chamado por um
amigo, de modo que as duas ficaram sozinhas por um minuto. No meio do tumulto,
Natasha puxou-a para perto e sussurrou-lhe no ouvido:
— Não esqueça do que lhe disse. . . querida.
Liz devolveu-lhe um olhar frio, mas foi incapaz de trocar uma palavra com David
durante todo o caminho de volta.
— Vou subir para trocar de roupa — conseguiu dizer, asS1ni que chegaram em casa.
— Enquanto isso, eu esquento a sopa e preparo a bandeja.
Quando chegou ao alto da escada, porém, Liz não resistiu à tentação de entrar no
quarto que pertencera a Bethany durante sua permanência na Villa.
Nem por um segundo acreditara na acusação feita por Natasha. Por mais conquistador
que fosse, não era o tipo de homem que se aproveitaria de uma jovem de dezessete anos
só porque estavam debaixo do mesmo teto, e muito menos a filha de seu próprio irmão.
Mas não era impossível que tivesse se apaixonado por ela, mesmo irmãos e irmãs que
não crescem juntos, podem se apaixonar; uma relação de sangue não vacina as pessoas
contra o amor, e se a moça era realmente encantadora como dizia Giancarlo. . .
Suspirou e fechou a porta atrás de si. O alto número de divórcios atestava a
permissibilidade do amor no casamento. Mas quando impossível, o amor parecia
fortalecer-se ainda mais.
O trem que fazia o percurso Milão-Bolonha deixou a Porta Garibaldi às nove da noite.
A Ferrari tinha embarcado primeiro, deixando-lhes tempo de jantar num restaurante
indicado por Giancarlo, antes de se encaminharem para o camarote de primeira classe.
O compartimento tinha um beliche e uma pequena pia. Era a primeira vez que dormiam
separados desde que haviam começado o relacionamento. David beijou-a, desejando-lhe
boa-noite e deitou na caminha de baixo, para deixar-lhe mais espaço.
Liz estava com sono por causa do vinho que haviam tomado no começo da viagem que os
levaria através da Europa. Acordou no meio da noite com sede e não conseguiu mais pegar
no sono.
Ela e David um dia voltariam a Portofino ou tudo chegara ao fim, finito como diria
Anna?

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Tinha sido como uma longa e maravilhosa lua-de-mel, que talvez ainda não tivesse
terminado. David estaria gostando dela?
Sabia como as mulheres apaixonadas se iludiam facilmente. Cansou de ouvir amigas
contarem o que os namorados diziam para convencê-las de que as amavam. Mas é fácil
julgar os outros, difícil é encarar sua própria vida.
Ficou contente quando David disse que em Blackmead passariam a noite juntos, que
isso era importante para ele. Mas talvez quisesse apenas provar alguma coisa a alguém.
Não conseguia esclarecer suas dúvidas e estava cansada de adivinhar o que tinha
ocorrido no passado na vida de David e de que maneira isso influenciava o seu
relacionamento. Toda a sua teoria havia caído por terra com as declarações de Natasha,
mas uma coisa ainda parecia óbvia: havia uma mulher presente, embora não fisicamente.
Tinham levado frutas para complementar o café da manhã servido no trem e livros
para ler quando se cansassem do cenário.
Atravessaram a França e chegaram a Bolonha por volta do meio-dia. O carro foi
descarregado a tempo de pegarem o Hovercraft que alcançou Dover logo depois das duas.
Liberados na alfândega, puseram-se a caminho de Londres.
— David, tem certeza de que não seria melhor deixar-me em Londres e passar as
primeiras noites em Blackmead sozinho?
— Não para mim. Está querendo me dizer que prefere ficar em Londres? Precisa falar
com Jane?
— Não, posso falar com ela pelo telefone. A verdade é que estou nervosa por
conhecer sua cunhada.
— Ela é horrível, mas não será desagradável com você.
— Tenho certeza de que não vai aprovar nosso relacionamento.
— E daí? Não ligo a mínima para a opinião de Margaret, ela quase matou Bethany de
dor ao deixar destruírem seu gato quando estava na escola. Foi uma madrasta desalmada,
talvez por ter ciúme da primeira esposa de meu irmão, com a qual Bethany se parece
muito.
Aos poucos, a verdade ia aparecendo. Liz não imaginava que o irmão dele casara-se
duas vezes.
— Já estamos perto, Liz. Deve estar morrendo de cansaço, não é? Infelizmente, não
posso prometer-lhe um bom jantar, da última vez que estive aqui, o cozinheiro fazia
doces deliciosos, mas não entendia nada de carnes e legumes.

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Ele já teria decidido deixar a casa de Portofino e voltar ao clima incerto de


Northampton? O lugar não lhe pareceu muito agradável, mas era melhor estar com David
em qualquer lugar do que viver sem ele.
Uma hora depois, deitada numa banheira de água quente com um gim na beirada, seu
ânimo melhorou um pouco.
David estava no quarto desfazendo as malas. O jantar em Blackmead era servido às
sete e meia e, portanto, não houvera tempo para uma conversa muito longa com Lady
Castle, Recebeu-os amavelmente, mas ficou bem claro que nutria pelo cunhado os mesmos
sentimentos que ele por ela.
— Não tire a tampa da banheira. Liz. Vou entrar também. Quer que esfregue suas
costas?
— Adoraria.
Ele pegou a esponja e começou a ensaboar suas costas, enquanto Liz murmurava de
prazer. Depois ele enfiou a mão dentro da água para acariciar os seios imersos.
A água transbordava ao se acomodarem na ampla banheira vitoriana.
— Senti sua falta ontem à noite — murmurou ele tomando-a nos braços.
Envolvidos com a maravilhosa sensação de estarem juntos dentro d'água, acabaram
esquecendo do horário. Tiveram que se aprontar depressa para o jantar, aliás, bem pior
do que David profetizara.
Começou com uma sopa rala, que lembrava sopa de pacote, servida por uma senhora
idosa, srta. Evans, que Lady Castle chamava de Nanny.
Depois foi a vez de um carneiro assado, servido por outra pessoa, a srta. Herring, a
cozinheira, que aproveitou para dar uma boa olhada em Liz.
Margaret Castle levantou-se para cortar a carne, com Nanny a seu lado, esperando
para servir os pratos. Horrorizada, Liz viu três fatias enormes com gordura em volta
serem colocadas no primeiro prato.
— Pode me dar esse, Nanny. Só uma fatia bem fina para Liz, Margaret. Ela come
muito pouco — David apressou-se em explicar.
A cunhada lançou um olhar de censura para Liz.
As ervilhas estavam geladas, o purê de batata passara do ponto ou era reconstituído.
Lady Castle comia as calamidades da cozinha da sra. Herring como se estivessem nas
mãos de Albert Roux, comentando sobre as duas filhas, Susan e Júlia, que ainda estavam

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na escola. Ficou surpresa ao saber que Liz estudara na mesma escola e ainda mais
surpresa quando David lhe contou que a casa pertencera ao avô de Liz.
— Minha filha mais velha, Bethany, é casada — prossegui ela. Depois para David: —
Sabia que o filho mais velho dos Dorset morreu daquela doença horrível logo depois do
casamento de Bethany?
— Sim, ela me escreveu. — Olhou para Liz. — O cunhado de Bethany sofria de uma
doença para a qual ainda não existe tratamento. Sua morte aos trinta e poucos anos foi
um golpe duro para os pais, mas o nascimento do primeiro filho de Bethany e Robert
ajudou a amenizar a tristeza pela morte de James.
Liz imaginou o que David sentia com o casamento de Bethany; só um homem apaixonado
seria capaz de lembrar o nome de um bichinho de estimação depois de tantos anos.
A sobremesa, manjar com ameixas, era tão insípida quanto o resto; Blackmead devia
ser a última casa da Inglaterra onde se suportava uma cozinheira sem talento.
— As ameixas são de nosso próprio pomar. Claro que já não é o mesmo. Você vai ter de
substituir Jackson, David, isto é, se conseguir, porque hoje em dia se fala muito em
desemprego, mas é impossível encontrar mão-de-obra decente.
— Quanto você paga para ele? — Ao ouvir a quantia, franziu a testa. — É de espantar
que ele ainda trabalhe; é o que ganharia se estivesse aposentado. Então para que
trabalhar? Você aceitaria, Margaret?
— Eu nunca me aposentaria se pudesse trabalhar, É isso que está errado no mundo de
hoje
— Acho que se eu oferecer um salário razoável, poderei substituir Jackson. Há
muitos jovens voltando para o campo.
— Parece que você não tem idéia do custo de manter uma casa como esta, meu caro
David.
Liz esperou até a anfitriã tomar fôlego e pediu licença para. ir deitar.
— Espero que não se incomode, Lady Castle, mas estou exausta.
— Ora, fique à vontade, srta. Redwood. David acompanhou-a até a porta.
— Não demoro — piscou para ela.
O quarto tinha dois aquecedores, mas estava gelado. Liz lembrou da conversa que
David tivera com a cunhada ao telefone quando pedira um quarto de casal para os dois.
Nanny e a cozinheira deviam considerá-la uma mulher perdida.

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Fazia muito tempo que não deitava numa cama tão gelada, mas resignou-se a esperar
por David para aquecê-la um pouco. Talvez ele não tivesse realmente idéia do que
significava administrar uma casa como aquela, principalmente porque estava precisando
de muitas melhorias e atrativos.
O solar era basicamente uma casa do século XVIII, habitada por diversas gerações de
pessoas sem o menor senso estético. O modo como Margaret Castle se vestia e a comida
que permitia chegar a sua mesa provavam que não era uma mulher de classe e gosto pela
decoração; bem ao avesso de Liz.
Redecorar Blackmead poderia ser uma tarefa muito interessante, se tivesse tempo e
incentivo, mas significaria sacrificar seu próprio trabalho. Estaria preparada para tanta
abnegação, principalmente por um homem que não se entregava inteiramente a ela e
talvez nunca o fizesse?
Profundamente perturbada com as mudanças ocorridas nas últimas quarenta e oito
horas, apagou a luz e enrolando-se nos cobertores, tentou aquecer-se e dormir.
Acordou na manhã seguinte com o sol brilhando. Ela estava sozinha na cama. A única
prova de que David passara a noite ali era a marca de sua cabeça no travesseiro.
Quando olhou pela janela, ficou surpresa ao vê-lo cavalgando em direção aos estábulos
que ficavam atrás da casa.
Apressou-se em se vestir, mas antes que terminasse ele já estava no quarto.
— Nunca pensei que cavalgasse, David.
— Nenhum filho do meu pai poderia ter crescido sem aprender a andar de cavalo, mas
nunca foi meu esporte predileto. Margaret vai passar o dia inteiro fora, portanto
podemos passear por aí à vontade. Que tal descer e descobrir como é o café da manhã da
srta. Herring?
Depois do café saíram para explorar o solar do celeiro ao sótão, da olaria à despensa.
Só não entraram nos aposentos de Lady Castle e das filhas.
— Aqui dormia Bethany — disse David, diante de um dos quartos no sótão. — Como
Cinderela, coitadinha.
— Não é tão tétrico assim.
Mas como o próprio Giancarlo lhe contara, a "coitadinha" que dormia aí, como
Cinderela, teria um final feliz. Talvez David desejasse ser seu Príncipe Encantado.
Uma semana depois foram para Londres para que Liz pudesse encontrar os editores
que desejavam comprar O Cruzeiro de Casimir e David, os advogados da família.

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No dia seguinte estavam na Jermya Street quando um homem que saía de uma loja
dirigiu-se a David.
— Olá, Warren. Que ventos o trazem à Inglaterra?
O homem mais parecia um italiano, alto e moreno com olhos também escuros e um
rosto vagamente familiar a Liz; uns dez anos mais jovem que David, usava um terno leve
de tweed e uma camisa xadrez bem ousada, o que sugeria que devia passar a maior parte
do tempo no campo.
— Robert. . . como vai? Liz, este é Lord Hartigan, o marido de Bethany. A srta. Liz
Redwood.
— Como vai? Por acaso é Liz Redwood, a pintora?
Nunca se considerara uma pessoa conhecida e a pergunta a surpreendeu. Fez um
sinal afirmativo com a cabeça.
— É uma das pintoras favoritas de minha esposa. Já lhe presenteei com alguns
de seus quadros e minha mãe também tem um. Felicito-a pelo seu quadro. Por que não
almoçamos juntos? Vou encontrar Bethany e ela ficará encantada.
— Na realidade, fico muito contente com a oportunidade de conversarmos, Robert:
preciso de conselhos, íamos comer no Fountain, mas será ótimo estarmos com vocês.
Onde vai encontrar Bethany?
— Nesta rua mesmo. . . uma pequena caminhada.
Ladeada pelos dois homens de aparência tão contrastante, Liz encaminhou-se para a
St. James.
Estava confusa ante a perspectiva de conhecer a jovem que tanto perturbava seus
pensamentos. E a rapidez com que David aceitara o convite sem nem consultá-la, lhe
pareceu sinal de ansiedade. Mas de que adiantava amar a mulher de outro homem?
Quando chegaram ao fim da rua, os dois homens a seguraram pelo braço para
atravessar.
Minutos depois, subiam as escadas do Ritz Hotel e os dois a deixaram passar à frente
no lobby acarpetado. Viam-se ao fundo as árvores altíssimas do Green Park, através das
janelas do corredor.
— Bethany já deve ter chegado — comentou Robert. — É incrivelmente pontual.
— Bom-dia, Milord — cumprimentou o porteiro de libre escura.

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Quando chegaram ao salão Palm Court, a esposa estava realmente à espera dele,
sentada num sofá de brocado, a cabeça inclinada sobre um livro. O cabelo tinha tom
avermelhado e era evidente que devia ser muito alta.
Entretida na leitura, não percebeu que se aproximavam, e só ergueu os olhos quando
ouviu a voz do marido.
— Olá, querida.
Seus olhos se iluminaram quando ergueu o rosto para ele. Só então viu quem o
acompanhava, assumindo uma expressão de surpresa.
Jogou o livro de lado e atirou-se nos braços de David.
— David! Não acredito!
Refletido no espelho, o rosto de David, cheio de emoção, indicava que estava no sétimo
céu, o que para Liz significava a antecâmara do inferno.
— E David não é a única surpresa que trouxe — disse Lord Hartigan, quando os dois se
separaram. — Eis alguém que você sempre quis conhecer, minha querida: a srta.
Liz Redwood. Bethany ficou extasiada e segurou as mãos de Liz, sorrindo calorosamente.
— Mas que dia maravilhoso! Este é meu terceiro presente dos deuses! Robert já lhe
disse o quanto aprecio seus quadros?
— Sim e fico muito lisonjeada, Lady Hartigan.
Liz sorria, mas por dentro seu coração parecia prestes a rachar. Como algum homem
poderia deixar de amar essa moça fascinante, não só bonita na aparência, mas que
transmitia a doçura de caráter com a mesma intensidade que emanava um delicioso
perfume francês?
— Acabou de chegar, Bethany? — perguntou o marido, notando a ausência de um
drinque na mesinha de mármore.
— Não, cheguei às doze e trinta, mas disse ao sr. Twomey que esperaria por você. Lá
vem ele.
David contou animadamente que conhecia o sr. Twomey desde criança, dos chás que
tomava no Ritz com a avó. Liz ouvia, mas sua atenção estava voltada para Robert.
Percebeu porque o achara familiar: lembrava o retrato de Lorenzo de Médici no quarto
que fora de Bethany na Villa Delphini.
— Twomey conhece todos os hábitos das pessoas que são ou eram habitueis do Ritz —
prosseguiu David. Para mim, ele personifica o hotel. Espero que escreva suas memórias
um dia.

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Devem ser incríveis.


— Nunca estive aqui antes — disse Liz, enquanto seus olhos treinados observavam a
decoração grega do chão de mármore, os pés intricados das colunas e os delfins
dourados, meninos com rabo de peixe que tocavam flautas de concha sobre uma ninfa nua,
também dourada, do outro lado do Palm Court.
— Não é a expressão do princípio do século? — perguntou Bethany, sentada a seu lado
no sofá, notando que ela admira a decoração.
Liz concordou, imaginando o salão povoado por mulheres cheias de jóias, escoltadas
por homens usando elegantes sobrecasacas.
Bethany começou a falar sobre os Redwood que possuía. Com aquele jeitinho gracioso,
seria impossível não gostar dela.
Foram sentar na sala de jantar, cujo teto azul proporcionava uma deliciosa atmosfera
de tranqüilidade. David perguntou a Bethany:
— Qual foi seu primeiro presente dos deuses hoje, Bethany?
— Ah. . . — lançou um suave olhar ao marido. — Viemos hoje para eu consultar meu
ginecologista, pois o parto de Sylvie, nosso segundo bebê, não foi tão fácil como o de
Tom. Mas já estou bem novamente: como dizem pronta para outra. . .
Liz imaginou se David teria entendido o significado daquela última frase. Devia sofrer
ao pensar em Robert e Bethany fazendo, amor.
Seguindo a indicação de Robert, todos começaram o almoço com ostras com gelo e
limão, servidas em pratos octogonais de prata maciça. David explicou que estava
pensando em voltar a Blackrnead e desejava o conselho de Robert sobre a viabilidade ou
não desse projeto.
— Mas é impossível tratarmos desse assunto em tão pouco tempo, David. Por que você
e Liz não vêm a Cranmer passar o fim de semana? — propôs Bethany, depois de ter
descoberto sutilmente, que Liz e David estavam morando juntos.
— Obrigado, eu bem que gostaria, mas não posso responder por Liz.
Isso significaria que ele preferia ir a Cranmer sozinho?, pensou Liz, angustiada.
— Venha, Liz; sei que a mãe de Robert adoraria conhecê-la e você vai apreciar sua
coleção de jóias antigas, que ela adquiriu por uma ninharia quando ainda era jovem.
Liz acabou sucumbindo ao convite. Ficou combinado que, em vez de voltarem a
Blackrnead quando terminassem os compromissos em Londres, ela e David iriam para o
Castelo de Cranmer.

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No fim da semana a jovem babá, que cuidava de Lord Lyndn e sua


irmãzinha, teve vários dias de folga para ser dama de honra no casamento da
irmã. Portanto, Bethany estava tomando conta dos filhos sozinha e conseqüentemente Liz
ficou mais com as crianças do que teria acontecido se a babá estivesse lá. Quando era
criança, sempre preferira brincar com animais vivos ou de pelúcia a bonecas. No
que dizia respeito aos filhos dos outros, não adorava segurar bebês ou brincar com
criancinhas. Adolescentes desajeitados eram interessantes e gostava de ouvir seus
projetos e problemas. Mas em geral preferia a companhia dos adultos, embora sempre
tivesse tido vontade de ter vários filhos um dia.
No domingo à tarde, quando Bethany de repente lhe entregou o bebê para socorrer o
mais velho de um tombo, Liz ficou surpresa por gostar tanto de embalar aquele pingo de
gente quase careca que o mundo conhecia como Lady Sylvie Rathbone.
Depois de beijar o joelho machucado de Tom, Bethany pegou o bebê dos braços de Liz
e colocou-a no velho carrinho, que fora ocupado pelo marido muitos anos atrás.
Bethany adorava os filhos, embora poucos minutos antes tivesse contado a Liz que,
tendo tido um depois do outro, pretendia agora deixar passar algum tempo antes de
produzir o que ela chamava de "minha segunda fornada".
— Antes de casar trabalhava numa floricultura em Chelsea, mas agora preciso achar
alguma coisa para fazer em casa. Não quero que Robert fique entediado com uma mulher
cujo único interesse seja ele e os filhos, principalmente porque Nanny me alivia em
grande parte a tarefa de mãe. Quando estava estudando, teria gostado de aprender
línguas e sempre me dei muito bem em francês. Em Portofino aprendi italiano com
facilidade. David já lhe contou como me salvou de Blackrnead?
— Disse apenas que sua madrasta era má com você.
— Sim, mas como disse Madame de Stàel: "Entender tudo é perdoar tudo". Naquela
época eu não sabia que meu pai não era meu pai. Nem David. Nós dois pensávamos que
David fosse meu tio, o que tornou tudo mais complicado quando me apaixonei
por ele.
Um leve gemido provindo do carrinho fez com que se levantasse para dar uma olhada
no bebê.
Liz continuou sentada, tensa, esperando que Sylvie não começasse a chorar, pondo um
fim às revelações da mãe.
Bethany passou algum tempo olhando para a filhinha, antes de voltar a sentar no
banco.

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— David foi meu primeiro amor. Fiquei de coração partido quando me mandou de volta
à Inglaterra. Naquela época, eu pensava que ele me amava, mas não queria admiti-lo
porque éramos parentes, além de ele ser muito mais velho que eu.
— Como descobriu que não eram parentes?
— No meu vigésimo aniversário recebi uma carta de minha mãe escrita antes de
morrer, contando a respeito de meu verdadeiro pai.
— Qual foi a reação de David?
— Não tínhamos mais contato e eu já estava noiva de Robert. Mais tarde, quando vi
David novamente, ele explicou que tinha estado apaixonado por minha mãe quando era
mais jovem. Mas isso foi há mais de vinte anos e agora ele tem você — Bethany sorriu.
— Bem. . , por enquanto.
— Só por enquanto? Mas vocês parecem ter tanto em comum. . . se dão tão bem...
— Até agora tem dado certo, mas acho que David concordaria comigo que nosso
principal interesse é a arte, nosso trabalho. Nós dois sempre colocaríamos nosso trabalho
à frente de qualquer relacionamento pessoal.
Liz achou melhor não confiar totalmente na discrição de Bethany: pelo modo como
olhava para o marido, era difícil que tivesse segredos para com ele, e Robert poderia
contar alguma coisa a David.
Os dois homens voltaram para perto delas, e Tom correu para os braços do pai.
Ao ver Robert e o filho, Liz teve inveja de Bethany: esposa e mãe, com um futuro
tranqüilo e feliz. Apesar do que dissera há pouco, um amor como esse era mais
importante do que seu trabalho.
Aquela noite, no quarto, depois de um jantar íntimo com os hóspedes e os sogros,
Bethany conversava com o marido, enquanto tirava a maquilagem.
— Acha que David está apaixonado por Liz, Robert?
— Como vou saber?
— Ele não falou nada durante o passeio de hoje?
— Não, falamos sobre Blackmead — se ele tem meios de manter a propriedade.
— E ele quer voltar à Inglaterra?
— Se não o levar à falência, sim.
— O que pode significar que está pensando em casar e ter filhos. Tomara. Gosto
muito de Liz. E você?

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Já pronto para deitar, Robert estava tentando ler um artigo numa revista rural, mas
resignou-se a conversar sobre os hóspedes, já que Bethany insistia.
— Não passei muito tempo com eles, querida. É uma moça muito bonita e uma pintora
de talento, mas me parece um pouco convencida.
— Nada disso. Deve ser só com você, para evitar mal-entendidos. Afinal, você é muito
atraente, meu amor. O que me intriga é a atitude dela com David. Se a gente não
soubesse que são amantes, nunca adivinharia: não fazem nenhuma demonstração em
público.
— Nós também não. . . de dia — comentou Robert. Vendo a mulher soltar o cabelo.
— Eu sei, mas nós trocamos olhares e eles nem isso fazem.
— Quando estava conversando com ela no jardim, falou do relacionamento com David
como se fosse passageiro.
— já deve estar perto dos trinta. Quem sabe há um marido nos bastidores?
— Ela tem vinte e oito anos e nunca foi casada, eu perguntei. Mas deve ter tido
outros homens, é atraente demais para nunca ter tido outros amantes.
—Está arrependida por ter um só? — perguntou com aquele sorrisinho enigmático, que
o fazia parecer-se com Lorenzo de Mediei.
— Nem por um segundo; sei muito bem que poucos homens são tão maravilhosos como
você, meu querido.
— Se é que existem outros. — Falou com expressão séria, depois riu e aproximou-se
dela. — Se realmente acredita no que está dizendo, por que não estamos na cama? —
Abraçou-a pela cintura.
— Querido, você acha que David ainda gosta de minha mãe?
— Lembro daquele dia em Portofino quando tudo ficou esclarecido entre nós, entre
mim e você, que David disse que minha mãe fora sua outra metade. . . que nunca a
esqueceria. . . que nunca mais amaria ninguém. Mas isso foi há séculos, não é?
— O fantasma de uma mulher morta quando tinha vinte anos não pode continuar
atormentando sua vida para sempre.
A opinião de Robert Rathbone — e uma das poucas que nunca compartilhara nem com a
mulher — era de que David mentira naquele dia memorável em Portofino.
A história completa da paixão juvenil de David pela primeira mulher do irmão, que
poderia ter-se transformado em adultério se o marido ciumento não tivesse expulsado

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David de casa, era conhecida de toda a família Rathbone, assim como todos sabiam da
relação ilícita de Clare Castle com um violinista, Benedict Laurence, o pai de Bethany.
Fora a semelhança física de Bethany com a mãe e a certeza de que nunca substituiria
Clare no coração de John Castle, q fizeram de Margaret Castle uma madrasta cruel.
Robert sentia profunda gratidão pelo homem que resgatara a jovem Bethany desse lar
infeliz em Blackmead e estava convencido de que David se apaixonara por ela na época e
que a tinha sob seus cuidados. A história de que ainda amava mãe fora inventada quando
David perdeu Bethany para uM homem mais jovem.
Assim como a esposa, Robert se lembrava do dia em que ele E David saíram de
Londres para ir ao encontro dela na Villa Delphini. Embora já estivessem noivos,
Robert suara frio durante toda a viagem, temendo perdê-la para o outro. E na sua
opinião, David sentira o mesmo.
E se, depois de tanto tempo, David continuava apaixonado por Bethany, era algo que
Robert não sabia, e nem estava muito interessado nas emoções do outro.
— Não sei — respondeu a ela. — É pouco provável. — Beijou-lhe a mão. — Vamos para a
cama, querida.
Em seu quarto, em outra ala do Castelo, David e Liz já haviam apagado a luz, mas não
estavam deitados juntos na grande cama de casal.
O quarto ficava na parte superior de uma das várias torres do prédio, cujas janelas
estreitas filtravam suavemente a luz da lua, revelando que os ocupantes do quarto
estavam distantes um do outro.
Quase como dois estranhos, pensou Liz, com um nó na garganta. David lhe dera um
beijo de boa-noite, apenas por obrigação, depois virou para o outro lado, sem vontade de
fazer amor com ela.
Não lhe fizera um único carinho desde que chegaram a Cranmer e Liz estava
arrependida de ter ido para lá. Apesar do que Bethany lhe contara sobre a paixão de
David pela mãe, tinha certeza de que o amor de sua vida era a jovem Bethany.
Liz sentiu vontade de fazer como Bethany, segura da devoção do marido, do amor dos
sogros, para quem o casal e os netos compensavam a morte do filho mais velho. Bethany
podia demonstrar seu amor, não só durante um ato noturno, mas também nos pequenos
gestos do dia-a-dia.
Nesse fim de semana fora obrigada a conter cada gesto, cada olhar que pudesse trair
o quanto amava David, pois para ele devia ser um fardo esse amor, a menos que chegasse
a amá-la também.

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Na manhã seguinte, voltaram para Blackmead, parando para um almoço tipo piquenique,
preparado pelo cozinheiro da duquesa. David passou a viagem toda tenso e calado.
Lady Castle não estava quando chegaram, e David pediu a Nanny Evans que servisse o
chá na biblioteca.
— Robert me encorajou a encarar a possibilidade de ficar aqui sem ir à falência. O
que acharia de viver aqui, Liz? — perguntou ele, de súbito.
— Precisaria se privar da Villa se viesse para cá? — pega de surpresa, Liz não sabia o
que responder. Por isso, desviou o assunto.
— Não necessariamente. Por quê?
— É uma casa tão maravilhosa. . . Se eu fosse você não suportaria separar-me dela —
nem que fosse pela casa de meus ancestrais. Sei que esta casa também poderia ser
transformada, por exemplo, por alguém como David Mlinaric, mas não vai ser fácil. A
única parte perfeita é esta biblioteca.
Olhou em volta para as paredes cobertas de livros que lhe davam esse ar tão especial.
A maioria dos Castle fora gente que apreciava o ar livre, mais feliz a cavalo ou com uma
arma de caça. Mas um deles, talvez por status, mandara construir a biblioteca, escolhera
os livros e na atual geração, David poderia mandar restaurar os quadros antigos e
introduzir outros contemporâneos.
— Não posso contratar um decorador como ele; terei de confiar no meu próprio
gosto, já que não parece muito disposta a dar-me uma ajuda, não é?
— Claro que vou ajudá-lo, David, enquanto estiver com você. Mas devo confessar que
prefiro seu estilo de vida italiano. Não sente saudade da piscina, da vista e dos jantares
no Luigi's?
— Claro que sim, mas não se pode ter tudo na vida. Aqui há outras coisas de que gosto
também.
Liz não entendia o que podia ser. Se ele não pudesse compreender o italiano ou se
fosse um intelectual que precisasse de bibliotecas de consulta, poderia entender seu
desejo de voltar à Inglaterra. Mas do jeito que as coisas eram, o único motivo que podia
haver para voltar, seria a obrigação de perpetuar a estirpe.
Mas a mulher que ele queria estava fora do alcance e por mais que o amasse, Liz não
poderia casar com um homem que a quisesse apenas com o objetivo de ter herdeiros e
alguém para ajudá-lo a reformar a casa. Por mais que sofresse com uma separação, jamais
ela admitiria tal tratamento.

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Nos dias que se seguiram, a depressão foi tomando conta dela. As refeições, tão
alegres na Itália, tornaram-se insuportáveis, não só por causa da comida, mas também
pela presença de Margaret Castle.
O tempo era horrível e sentia saudade do sol de Portofino.
Um dia foi sozinha visitar Conventry para ver a tapeçaria de Sutherland. Lá lembrou-
se de ter lido que Graham Sutherland e a esposa, Katharine, se conheceram na escola de
arte quando eram muito jovens. Sete anos depois se casaram, iniciando uma vida de rara
felicidade, passada em sua maioria em Villa Blanche, nas colinas da Cote d'Azur, na
França. Liz ouvira dizer também que Sutherland adorava presentear a esposa com
lembranças românticas, como metros de antiga seda veneziana para as paredes de seu
quarto.
Ficou angustiada ao pensar que ela e David poderiam desfrutar também de uma vida à
beira do Mediterrâneo, se não fosse por Blackmead e Bethany.
Alguns dias depois, saiu em outra expedição para Woburn Abbey, habitação dos
duques de Bedford. Convidou David, mas ele respondeu secamente que estava ocupado
demais para perder tempo com a casa dos outros.
— Vá você, já que pode dar-se ao luxo de tirar um dia de folga.
O comentário desagradável — ela mesma sabia como trabalhara pouco desde que
estava na Inglaterra — provocou uma discussão acalorada, que terminou com David
jogando as chaves do carro em cima da mesa e saindo do quarto.
Ao chegar a Woburn, a raiva de Liz havia esfriado, deixando-a consciente de como,
dia-a-dia, o relacionamento deles deteriorava. Era quase como se na Villa Delphini
tivessem sido duas pessoas diferentes.

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CAPÍTULO VII

De volta de Woburn, correu à procura de David, ansiosa por fazer as pazes com ele.
— Sabe onde está sir David, Nanny?
— Não sei, srta. Redwood; não o vi mais depois do almoço. Não o encontrou em parte
alguma da propriedade e voltou para o quarto, desanimada. Deitou-se na cama e dormiu,
exausta depois das noites de insônia em Granmer.
Acordou quando ouviu o barulho da porta do banheiro. Ainda tonta de sono, estendeu
os braços para ele, mas David não esboçou a menor reação.
— Preciso tomar banho: estou todo suado.
Mesmo assim, podia ter sorrido, pensou Liz, quando o viu fechar a porta do banheiro.
Estaria ainda zangado por causa da briga da manhã? Ou por ter ficado sem o carro?
Ou, pior ainda, por que começava a cansar-se dela?
"Meu Deus", pensou Liz. "Pude sobreviver ao rompimento com Barney e Richard, mas
com David é diferente. Eu o amo mais profundamente, mais completamente. . . Meu
coração não agüentará afastar-se dele."
Para afastar a angústia, sentou-se no patamar da janela, distraindo-se com a bela
visão.
— Que tal Woburn? — indagou David, ao deixar o banho rápido.
— Interessante. O que você andou fazendo para ficar tão suado?
— Fui correr um pouco; sem a piscina, estou começando a perder a forma.
— Não concordo, mas entendo o que quer dizer: também sinto falta de exercício. Por
que não entra para uma academia?
— Não é má idéia.
Embora estivessem falando, a conversa não era mais tão espontânea: a discussão de
poucas horas antes espreitava como um inimigo oculto nas sombras.
— Vou tomar um copo de vinho. Quer um, Liz?
— Adoraria.
Ele abriu a garrafa de vinho italiano que guardava no armário, e serviu a bebida.
— Alia salute — disse, antes de experimentar o vinho.

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— Alia salute.
— Andei pensando bem e acho que posso contratar um profissional para reformar
Blackmead. Talvez possa vender algumas peças num leilão e contratar Mlinaric.
— Mas por que vender tesouros da família? Você tem um bom gosto incrível, não
precisa de um decorador. Eu. . .
— Eu sei, mas pouparia tempo e energia. Depois que você saiu, telefonei para Cranmer
para conseguir o número de Mlinaric, pois já trabalhou para eles. Entrei em contato com
ele, mas não estava. Deixei um recado.
Com quem falara? Com Bethany? Teria sido uma desculpa para falar com ela? Estava
casada com outro, mas a mãe também era casada e isso não impedira que se apaixonasse
por ela.
Talvez fosse do tipo de homem que prefere o fruto proibido, pensou, já sentindo os
efeitos do vinho no estômago vazio.
David aproximou-se e tirou-lhe o copo da mão.
— Depois você termina. — E tomou-a nos braços.
Meia hora depois, Liz sabia perfeitamente que o que acabara de acontecer não
restaurou o relacionamento que tivera cm Portofino.
Até o modo como ele fazia amor estava diferente depois que foram para Cranmer:
possuiu-a com força e sensualidade, sem a menor ternura. Tampouco a acariciara como
costumava fazer na Itália. Desde o primeiro beijo lascivo até o gozo final, deixou bem
claro que o que havia entre eles era apenas sexo. Uma impressão confirmada quando ele
se levantou da cama ainda ofegante e foi para o banheiro.
E agora, enquanto o via encher novamente os copos, percebeu como era pouca a
satisfação de um ato de amor que não passa de desejo físico. Seu corpo estava
satisfeito, mas sua alma continuava tensa e perturbada.
— Obrigada.
Apoiou-se nos cotovelos para sentar e pegar o copo de vinho e o movimento realçou os
seios, molhados de um leve suor e pelos lábios e língua de David.
Em muitas ocasiões na Villa, ao ver os seios reluzentes depois do amor, David beijava
cada uma das mamas, num gesto carinhoso que a comovia muito. Mas nesse dia não fez
nada e talvez nunca mais fizesse. Faltava alguma coisa no relacionamento deles. . . ou
alguém interferira.

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Durante dez dias depois da visita a Woburn, Liz tentou convencer-se de que as coisas
iam bem entre eles, mas isso era impossível, assim como as folhas de outono não
conseguem mais o verde da primavera.
Seu verão italiano estava acabado e, com ele, o grande amor de sua vida. David era,
sem sombra de dúvida, o homem perfeito para ela, embora ele não pensasse o mesmo.
Depois de aceitar o fato, não via mais sentido em prolongar a agonia. Fechada na
biblioteca, fingindo pintar, compôs uma carta de adeus.
"David,
Nosso verão em Portofino será uma das lembranças mais felizes da minha
vida, mas chegou a hora de nos separarmos. Acho que você agora precisa de
uma esposa, alguém que tenha crescido numa casa como Blackmead e que
poderá ser 'a senhora do solar'. Quanto a mim, não sei onde é meu futuro;
talvez não haja um lugar permanente. Como você disse uma vez, o mundo está
cheio de maravilhas e seria uma pena desperdiçá-las todas. Agradeço os bons
tempos que passamos juntos. Vou deixar-lhe um de meus quadros como
lembrança."
Liz.
Na manhã seguinte, David e Margaret saíram para resolver alguns problemas. Liz
aproveitou-se da ausência, arrumou suas coisas e pegou o ônibus que passava pelo Solar
às onze em direção a Northampton. De lá telefonou para Jane, avisando que estava
voltando para Londres e que se recebesse um telefonema de David, não devia dizer-lhe
nada sobre o apartamento.
— Mas o que aconteceu, Liz? Não me diga que acabou?
— Acabou, mas não posso falar agora. Até logo, Jane.
Ao desligar o telefone, as lágrimas rolavam por seu rosto, e em vão tentou conter a
explosão de dor que a dilacerava.
— A senhorita precisa de alguma coisa? — perguntou o homem que esperava para usar
o telefone.
— Não, obrigada.
Mas ela sabia que seu mundo acabava de desmoronar.
— Ele telefonou uma hora depois de você — disse Jane, quando foi vê-la no
apartamento naquela mesma noite.
— Se contar a ele onde estou não é mais minha empresária, entendeu bem? Não quero
mais vê-lo nem falar com ele. Diga que viajei para o exterior e não deixei o endereço.

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— Se prefere assim. . . Mas o que foi que ele fez?


— Não se ofenda, mas não quero falar sobre isso. Pelo menos no momento.
Os dias que se seguiram foram cheios de dor, semelhantes àqueles que passara por
ocasião da morte do pai, com a única diferença de que naquela ocasião chorava pelo
passado e agora, pelo futuro.
Se não estivesse tão triste, o apartamento de Lambert em Chelsea teria sido
delicioso: um grande estúdio com cozinha e banheiro minúsculo e um pequeno terraço,
decorado com o gosto inconfundível dos artistas.
Durante dias não saiu de casa, alimentando-se só de frutas e iogurte, pensando "no
que podia ter sido" e chorando.
A perspectiva de viver sem David era tão insuportável que só agora entendia por que
tantas pessoas cometiam suicídio, embora não chegasse a tanto. Depois de ter visto o pai
e outros pacientes na casa de repousos morrer sem o desejar, não podia tirar sua própria
vida. E ainda tinha seu trabalho; aos poucos tudo iria adquirir outra dimensão e a vida
continuaria.
Começou a sair para dar longas caminhadas, a princípio para cansar-se e poder dormir.
Perdeu alguns quilos, mas como ainda estava bronzeada, não parecia doente.
As lembranças de David eram dolorosas, mas um dia talvez pudesse lembrar dele com
prazer.
Uma semana depois da volta de Liz a Londres, Jane e o marido saíram de férias por
três semanas. Jane não mais recebera ligações de David. A essa altura devia estar
convencido de que era o melhor meio de terminar o relacionamento, passado o choque da
partida de Liz.
O outono estava lindo: dias de céu azul e pôr-do-sol colorido. As folhas mortas jaziam
douradas ao longo das ruas e praças de Chelsea e South Kensington.
Aos poucos, seus olhos de artista voltaram a se interessar pelo que via e Liz passava
longas horas sentada nos bancos dos jardins esboçando detalhes arquitetônicos, gatos e
cachorros, tudo que despertasse sua atenção.
Certo dia assustou-se ao ouvir uma voz de homem chamá-la enquanto caminhava por
Fulham Road. Por um segundo pensou que fosse David e foi tomada por um misto de
alegria e pânico. Mas o homem que a chamava no outro lado da rua não era David; a
princípio não o reconheceu embora lhe parecesse vagamente familiar o jeito como
atravessava correndo a rua.
— É você mesma, Liz: não me reconhece?

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Após alguns segundos de hesitação, sorriu pela primeira vez depois de tanto tempo.
— Barney! Meu Deus, como você mudou!
— Você também, mas eu reconheceria essas pernas em qual quer lugar do mundo —
disse ele brincalhão. — Não vai me dar um abraço, em nome dos bons tempos?
Abriu os braços para ele e abraçaram-se efusivamente. Resolveram tomar um café
num bar perto dali.
— Barney, como foi que se transformou de um rebelde barbudo nesse homem
tranqüilo?
— E quando foi que a garota de cabelo lilás se transformou nessa mulher maravilhosa?
Nós crescemos, Liz. Você conquistou um nome como pintora e eu me contento em ser um
desenhista bem-sucedido.
Levaram mais de meia hora para pôr em dia os detalhes de tantos anos. Barney tinha
dois filhos mas estava divorciado, e Liz limitou-se a contar que tivera um longo
relacionamento, mas estava novamente sozinha.
— Olhe, preciso ir, mas será que tem uma noite livre num futuro bem próximo? Vamos
jantar juntos, Liz.
— Todas as minhas noites estão livres: escolha a que quiser.
— Então, hoje.
Naquela noite, pela primeira vez desde que deixara Blackmead, sentiu-se animada para
sair. Arrependeu-se de certa forma, de ter contado a Barney que estava sozinha; era
bem provável que acabasse querendo ir para a cama com ela. Mas isso não aconteceria e
deixaria claro antes mesmo de jantar.
Quando Barney chegou, ofereceu-lhe um drinque e sentou-se diante dele.
— Barney, posso ser muito franca? Estou sozinha e solitária, mas tudo que quero é
amizade, nada mais.
— Tudo bem, Liz. Já que você quer, assim será embora me espante receber um "não"
antes mesmo de fazer a pergunta.
Foram jantar num restaurante que também pertencia aos irmãos Roux, mas era menos
sofisticado do que o outro, com preços mais acessíveis.
— Embora digam que a comida é a mesma do Le Gavroche, que tem três estrelas —
comentou Barney.
O lugar era freqüentado na sua maioria por jovens, e a conversa nas mesas era
animada. Barney então pôde contar à vontade a história de seu casamento fracassado.

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— Acho que casei com Elaine para esquecer você, o que é uma estupidez, não é? Durou
seis meses, mas aí ela estava grávida. Começamos a perceber que não tínhamos nada em
comum, mesmo assim tentamos dar um jeito e ela ficou grávida pela segunda vez. Depois
disso, Elaine conheceu o homem de sua vida, que se propôs a ficar com as crianças, então
fizemos um divórcio amigável.
Parou para tomar um pouco de vinho branco antes de prosseguir.
— Vejo as crianças regularmente, mas não ligo muito para eles, para ser franco. Elaine
é que insistiu em tê-los. Sua maior ambição é ter os filhos mais limpos do mundo e manter
a casa em ordem, e Tim é o marido ideal para ela: adora passar o domingo lavando o carro
e jogando bilhar. Eu prefiro ler o jornal; meu exterior mudou um pouco, mas por dentro
contínuo o mesmo cara enrolado.
— Nem tanto, Barney: ainda lembro de que seria capaz de assassinar sua mulher se
olhasse para outro.
— Tem razão; se eu não fosse tão ciumento, talvez ainda estivéssemos juntos, você e
eu, mas eu morria de medo de perdê-la. Sabe, tudo que lhe contei sobre minha família era
mentira; minha família consistia de trinta outros moleques e o pessoal pago para tomar
conta da gente.
— Cresceu num orfanato?
— Exatamente; onde éramos mais bem tratados do que com pais horríveis. O grande
problema era que tínhamos de dividir tudo, nunca tive nada meu. Por isso não gostava de
que tivesse outros amigos; queria que fosse só minha.
— Mas eu era. . . naquele tempo — disse ela suavemente — Por que não me contou a
verdade?
— Por causa de sua família; você nunca falou sobre ela, eu sabia que era diferente da
maioria: gente da alta. Enquanto os caras da minha idade só queriam se aproveitar das
garota eu queria ter uma casa. Loucura, não é? Por isso casei com Elaine.
— Teria sido melhor se você tivesse contado a verdade. . .
Só agora entendia a preocupação de Barney de que ela engravidasse; os outros
rapazes nem ligavam, mas ele era diferente. Não queria ter um filho se não fosse capaz
de ser pai.
— Como sabemos pouco sobre as pessoas que pensamos conhecer bem... — disse Liz. —
Acho que eu era bem boba quando tinha dezoito anos; devia ter percebido que havia
algum motivo especial para você ser como era. Dez anos! E, no entanto passaram tão
depressa!

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"E daqui a dez anos, onde estarei? Ainda sozinha? Ainda apaixonada por David?"
Voltaram a pé para o apartamento.
— Não vou convidá-lo para um último drinque, Barney, mas que tal vir jantar na
quinta? Agora sou uma ótima cozinheira.
— Esplêndida idéia. Liz.
— Obrigada pela noite, Barney; fiquei muito contente por tê-lo encontrado.
— Eu também. Boa-noite, gatinha.
Beijou-a de leve, mas o que a perturbou foi o nome carinhoso que costumava usar há
dez anos. Não contara a ele sobre David, mas seria bom fazê-lo na quinta para que não se
sentisse disposto a reacender a velha chama.
Liz nunca esquecera Barney porque foi seu primeiro amor, mas agora ela era outra
pessoa. Tudo o que tinham em comum eram "lembranças do passado", uma boa base para
amizade, mas não para um envolvimento.
Além disso. Barney não saberia lidar com uma mulher que ganhasse mais do que ele ou
tivesse mais sucesso. Durante o jantar, se referira algumas vezes a mulheres que
trabalhavam em sua firma, deixando bem claro que nunca deveriam ocupar cargos de
chefia.
Uma das coisas que mais lhe agradava em David era que não fazia distinção entre
homens e mulheres. Para ele, as pessoas eram dotadas, trabalhadeiras ou não.
Voltou a pensar na triste infância de Barney e desejou estar carregando no ventre o
filho de David. Poderia sustentá-lo sozinha e sua carreira permitia perfeitamente
conciliar trabalho e maternidade. Imaginou um menino loiro, com olhos azul-cobalto para
quem seria a mãe que sempre sonhara ser.
Como fora tola em tomar cuidado para não engravidar quando percebeu que ele não
queria casar. Um filho de seu amor por ele mudaria completamente seu futuro solitário.
Mas agora era tarde demais, pensou tristemente.
No domingo à noite Jane telefonou e marcaram um almoço para o dia seguinte.
Surpresa, Liz recebeu um telefonema dela durante a manhã.
— Adivinhe quem acampou na porta do meu escritório? David Warren. Disse que está
decidido a descobrir onde você está.
O coração de Liz bateu forte: David em Londres, à sua procura!
— Disse por que quer ver-me?

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— Não, só disse que é urgente. Acho que está sentindo saudade e quer você de volta.
— Pode ser: pessoas acostumadas com cama quente sentem frio quando estão
sozinhas. Mas não quero o que ele tem a oferecer. Não me traia, Jane.
— Já que insiste, mas se quer que continue mentindo, precisa contar-me o que
aconteceu.
— Olhe, Jane, acho que não vou sair para almoçar. Você também deve ter uma porção
de coisas para fazer. Marcamos outro dia, está bem? Obrigada por ligar. Até logo. — E
antes que a outra pudesse discordar, desligou.
A tarde a campainha tocou e Liz ficou em pânico pensando que pudesse ser David. Mas
eram apenas caixas que mandara vir com seus pertences. Enquanto abria as caixas,
revendo coisas que não via há muito tempo, sentia-se morder pela curiosidade pelos
motivos que levaram David a procurá-la. Estaria furioso por ter sido abandonado? Não
parecia ser o tipo. O único outro motivo — que seu coração imaginava foi logo rejeitado
pela frieza da razão.
No dia seguinte, surpresa, recebeu a visita de Gil, o marido de Jane.
Devido ao entusiasmo de Liz pela região, os Adams tinham passado as férias na
Andaluzia, explorando velhas cidades, como Ronda e Arcos de Ia Frontera. Passaram
também um dia em Tânger, do outro lado do estreito que separa o norte da África f do
Sul da Europa. O motivo aparente da visita de Gil era entregar um cáften que Jane
trouxera para ela.
— Eu vim porque Jane acha que David a está seguindo — disse depois de conversarem
um pouco.
— Ele não é maluco!
— Ela acha que parece transtornado. Deve ser por sua causa não é?
— Nada disso, Gil. Ele nem desconfia que eu esteja aqui; deve pensar que estou nas
ilhas gregas. Olhe Gil, se está com medo de que ele ataque Jane ou coisa parecida, não se
preocupe: não é um homem violento.
— Ora, nem pensei nisso. Aliás, Jane me contou que ele é extremamente educado, mas
é que ela não sabe mentir muito bem e ele já deve ter desconfiado que sabe onde você
está.
— Nesse caso, basta dizer que ela recebeu uma carta minha, mas sem o endereço.
Não quero vê-lo, Gil, não posso.
Seus olhos se encheram de lágrimas. Gil preparou dois gins-tônicas e sentou
novamente.

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— Olhe, Liz, Jane e eu gostamos muito de você e detesta mos vê-la sofrer. Se pelo
menos você contasse a ela por que deixou Warren, seria mais fácil lidar com ele.
O instinto preveniu-a de que era melhor não contar que amava David, senão os dois
bancariam o cupido, tentando reuni-los novamente.
— Sinto muito, Gil mas é muito pessoal. . . algo que não posso contar nem a meus
melhores amigos. E se ele continuar insistindo, vou realmente para o exterior, assim Jane
poderá dizer a verdade.
Gil viu como estava magra, despojada da antiga vitalidade, despreparada para qualquer
tipo de viagem.
— Não vai ser necessário, querida: Jane se arranja com ele.
Liz acordou na quinta-feira com um peso no peito. David vinha-lhe a mente a cada
segundo, e o simples fato de lembrar que, naquela noite, estaria com companhia de outra
pessoa provocava-lhe angústia: não era com Barney que desejava estar. Contudo, depois
de feito o convite, o que tinha a fazer era esforçar-se para tornar a noite, no mínimo,
suportável. Resolveu fazer umas compras para tentar se distrair. Quando voltava do
supermercado o porteiro a abordou, entregando-lhe um recado de Gil: "David Warren
está demonstrando que precisa falar-lhe. Aconselhei-o a escrever uma carta, que será
enviada por mensageiro."
Liz passou o resto do dia preparando o jantar para Barney, tentando não pensar na
possível carta de David.
Barney chegou com uma lata e .uma garrafa de vodca, que puseram logo no gelo.
Comeram o caviar e tomaram a vodca e quando Liz foi para a cozinha, a campainha
tocou. Seria o mensageiro com a carta de David? Liz foi atender a porta, ansiosa.
— Boa-noite, Liz — disse o próprio David. — Posso entrar?
Em vez de sentir-se chocada, traída, quase desmaiou de alegria. Ele parecia cansado,
como se também tivesse atravessado o inferno.
Sem esperar resposta, entrou e olhou em volta, notando a mesa posta para dois.
Barney levantara do sofá, visivelmente contrariado.
— Pelo que vejo, não foi difícil achar consolo — disse David, furioso.
— Este é um velho amigo da escola de arte: Barney Lucas. . . David Warren.
Os dois se olharam com antagonismo palpável e nenhum dos dois estendeu a mão.
— Sinto muito interromper a festinha, mas quero conversar com Liz. Sozinho.

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— Espere um pouco, Warren, não pode ir entrando e calou-se quando David se


aproximou dele, ameaçador.
— David, por favor. . . não precisa ser tão agressivo.
— Saia daqui — disse entre dentes, ignorando Liz. Barney estava nervoso e
tinha todos os motivos para isso.
Liz aproximou-se.
— Sinto muito por tudo, Barney, mas é melhor você ir.
Ele hesitou por alguns segundos, depois encaminhou-se para a porta.
— Tem certeza de que não há problemas, Liz?
— Depois eu telefono para você:
— Não precisa levar-me até a porta — havia ironia e humilhação em sua voz.
— David, o que você fez foi injustificável!
— Não mais injustificável do que o que você fez!
— Foi para isso que veio? Para desabafar seu orgulho de macho ferido? Os homens
têm abandonado as mulheres desde o início dos tempos!
Não era nada disso que queria dizer, mas sentimentos contraditórios a dominavam:
alegria, indignação, mágoa.
David estava furioso: os olhos azuis brilhavam perigosamente, uma veia pulsava no
pescoço. Aproximou-se dela com os punhos fechados.
— Consegui convencer sua empresária a dar-me seu endereço quando disse que a
amava e queria casar com você. Ela me perguntou se eu tinha dito isso a você e respondi
que não. Mas é o que eu quero. Liz, uma esposa e filhos, enquanto você cansou de declarar
que não queria amarrar-se, que seu trabalho é o que mais importa no mundo. E eu queria
ter certeza de que ambos queremos o mesmo: compartilhar nossas vidas, dar força um ao
outro, porque é isso que o casamento significa para duas pessoas adultas, que sabem o
que são e o que desejam da vida. Se tivesse dado o menor sinal de que sentia o mesmo, eu
a teria pedido em casamento. Mas desde que saímos da Itália, senti que se afastava cada
vez mais de mim. Nem sei por que estou aqui, a não ser que queria vê-la novamente. . .
para ter uma última chance de fazê-la mudar de idéia.
Deixou-se cair no sofá e cobriu os olhos com as mãos, um gesto de cansaço supremo,
como se tivesse perdido toda vitalidade. Podia ser até que houvesse lágrimas atrás das
pálpebras fechadas, assim como nos de Liz quando ele terminou seu discurso.
Aproximou-se dele e tocou levemente seu braço.

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— Pensei que ainda amava Bethany, por isso fui embora. Não agüentava amá-lo
sabendo que desejava outra mulher.
David fitou-a e Liz entendeu imediatamente que estivera errada o tempo todo.
— Eu amei Bethany por algum tempo há muitos anos. Nenhum homem normal chega a
minha idade sem ter amado várias mulheres. Mas amor e união nem sempre andam juntos;
Bethany era muito mais jovem que eu e o que ela sentia por mim não durou muito. Agora,
quer repetir o que disse há pouco. . . que me ama?
— Amo você há séculos, David, mas não ousava dizer. E atirou-se em seus braços.
Mais tarde, David tomou o lugar reservado a Barney. Liz preparava um assado que fora
esquecido no forno com a confusão. Entretanto, ainda conseguiram comê-lo.
— Estou morrendo de fome — declarou. — Ontem à noite seus amigos, Jane e Gil, me
ofereceram um jantar excelente em sua casa de Highgate, mas foi como comer areia.
— Por que levou tanto tempo para vir até aqui?
— Eles não me deram seu endereço; disseram que devia escrever-lhe. Eu ainda insisti,
mas de nada adiantou. Hoje à tarde ele telefonou para o hotel e disse que decidira
quebrar a promessa feita a você, já que eu a amava.
— Abençoada Jane preciso telefonar para tranqüilizá-la.
— Não será necessário: combinei com ela que se não telefonasse em duas horas, era
porque ia passar a noite aqui. Não que tivesse muita certeza disso, mas. . .
— Mas David, se não gostava mais de Bethany, por que ficou tão diferente depois do
fim de semana em Cranmer?
— Ao ver Bethany e Robert tão felizes juntos, com as crianças, percebi como nossa
relação era pobre comparada à deles. Ate mesmo fazer amor perdeu um pouco a graça
sem as palavras que realmente importam. Uma vez você me chamou de "querido" e achei
que era bom sinal, mas não o suficiente para um bom homem ávido por ouvir todas as
coisas que me disse agora, meu amor.
— Eu também sentia o mesmo. Quando percebeu que me amava?
— No dia em que não apareceu para o chá no Fortum's. Cheguei a pensar que tivesse
encontrado Richard e ele estivesse tentando convencê-la a voltar para ele.
— Depois de me apaixonar por você, percebi como era insignificante o que sentia por
ele, David.
Fizeram uma pausa. Ambos estavam emocionados.

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— Sei que não está entusiasmada em morar em Blackmead, mas talvez possamos achar
um meio termo: o verão e o Natal em Blackmead e o inverno e a primavera em Portofino.
Que tal?
— Parece maravilhoso, mas muito caro.
— Se os seus livros de Casimir tiverem o sucesso esperado e minha próxima exposição
der certo, acho que podemos arriscar.
A exposição de David Warren, em Londres, aconteceu na primavera e não só foi
apreciada pelos melhores críticos de arte, mas também elogiada nos jornais.
O foco de todas as atenções foi Jovem numa cama dourada um retrato de corpo
inteiro da esposa do pintor.
O marido de Bethany estava fora da Inglaterra, participando de um seminário
internacional sobre métodos agrícolas, na época da vernissage. Mas leu nos jornais e
ouviu os comentários da esposa quando voltou para casa.
A maioria dos quadros foi vendida logo no primeiro dia, mas, no catálogo, jovem numa
cama dourada trazia a observação: Não está à venda.
Enquanto saíam da galeria em direção ao Ritz, Bethany conversava com o marido.
— Se você fosse um artista e pintasse um retrato meu como aquele, ia querer que os
outros o vissem?
— Acho que sim; é sem dúvida a obra-prima de David. a obra que o identificará pelo
resto da vida e após sua morte. Liz não se incomodou por tê-lo incluído na mostra, não é?
— Acho que não. Ela está tão feliz que não consegue pensar em mais nada. Eu não
gostaria de ser vista assim, nua em pêlo. Por outro lado, está tão bonita entre os lençóis
desarrumados, com aquele meio-sorriso no rosto, que o quadro é um antídoto contra
todos esses nus comercializados que temos visto por aí.
Ao atravessarem a rua, Robert pegou-a pelo braço.
— Você devia ter visto a vernissage, querido. Foi muito interessante todas aquelas
pessoas observando o quadro: principalmente as mulheres. Percebeu-se que todas
queriam ter uma cama dourada em suas vidas. Pobrezinhas. . .
— Mas você também não tem
— Não estou falando ao pé da letra, querido: é o homem que importa não a cama.
— Ah, agora entendi — brincou ele, divertido.
À noite, sentado no terraço da Villa Delphini, David acariciava o ventre da mulher,
para sentir o bebê mexer-se. Liz deixara de tomar bebidas alcoólicas desde que a

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gravidez fora confirmada; sentia-se feliz por fazer o melhor para seu bebê. Até perder a
cinturinha fina não a aborrecia, já que David continuava a achá-la cada vez mais
desejável.
— Minha mãe está decidida a vir para cá — anunciou, referindo-se a uma carta da sra.
Eugene P. Thomwell, que chegara à Villa naquela manhã. — Não sei como vou impedir.
— Ora, querida, nem tente; deixe que venha.
— Mas você não vai gostar dela, David. É a rainha dos esnobes. Só se lembrou de que
é minha mãe porque agarrei um baronete. O fato de você ser um amor, para ela não tem a
menor importância.
— Talvez seja melhor como avó do que como mãe.
— Pode ser.
Liz aproximou-se do balaústre e olhou para as luzes do porto abaixo deles.
— Não me importo mais que tenha sido um desastre como mãe: você compensou tudo
que houve de ruim na minha vida.
Tive mais felicidade nos últimos seis meses do que a maioria das pessoas numa vida
inteira.
— Eu também. Valeu a pena esperar por você — murmurou, beijando o rosto da
esposa.
Abraçados à luz avermelhada do pôr-do-sol, ele repetiu as palavras inscritas na torre
do outro lado do mar.
— "O que há de mais sagrado do que deixar as preocupa ações de lado, enquanto a
mente descansa seu fardo e. . . "
Liz recordava o final do verso e os dois pronunciaram as últimas palavras a uma só voz.
— "... cansados do trabalho e viagens distantes, voltamos para nosso próprio lar”.

FIM

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