You are on page 1of 70

ANO xxv edição 99 abr 2018

ANO XXV - edição 99 abril 2018


ANO XXV - Abril 2018 - Nº 99

O ESTADO DE ISRAEL,
SOBERANO, AOS SEUS 70 ANOS

www.morasha.com.br
morasha@uol.com.br
Rua Dr. Veiga Filho, 547
Tel: 11 2597 2812
01229 000 São Paulo SP
Carta ao leitor
O Estado de Israel completará 70 anos de existência, Nossa convicção de que retornaríamos ao nosso lar
este ano, em Yom Ha’Atzmaut, Dia da Independência. eterno e à “mais bela das cidades” manteve-nos vivos
Por um lado, o Estado Judeu é um país muito jovem. durante uma longa e dolorosa diáspora. Foi também
Por outro, o vínculo entre o Povo Judeu e a Terra de esse anseio que deu aos judeus a coragem para lutar
Israel é muito antigo: judeus vivem ininterruptamente e perseverar apesar de todos os sofrimentos aos quais
na Terra de Israel há mais de 4000 anos. Desde a queda fomos submetidos, mantendo nosso povo de pé até
da antiga Israel até a fundação do Estado renascido, a mesmo nos campos de extermínio.
Terra Santa nunca se tornou um estado independente e
Jerusalém nunca foi considerada a capital de nenhum O profeta Zacarias declarou: “Assim diz o Senhor dos
outro país. Assim como nosso povo sempre sonhou Exércitos: idosos e idosas voltarão a sentar-se nas ruas
em voltar à sua antiga pátria e capital, a Terra de Israel de Jerusalém... e as ruas da cidade estarão cheias de
e Jerusalém esperaram ansiosamente o retorno de seus meninos e meninas brincando” (Zacarias 8:4-5).
filhos. Esse sonho se tornou realidade há 70 anos.
Com a fundação do Estado de Israel, cumpriu-se
A geração que sofreu a maior catástrofe na história essa profecia. Hoje, judeus de todas as idades vivem
judaica – o assassinato de sete milhões de judeus, foi em Jerusalém e falam a mesma língua que falavam os
também a que testemunhou a realização de um sonho Profetas. O retorno do Povo Judeu a sua Terra ancestral
de 2000 anos: o retorno do Povo Judeu à Terra de Israel é prova de que as profecias bíblicas, cedo ou tarde,
e a Jerusalém. realizam-se.

A breve história do Estado de Israel é extraordinária – A fundação do Estado de Israel é, portanto, significativa
quase inacreditável. Somos um povo que se reergueu das não apenas para o Povo Judeu, mas para toda a
cinzas de Auschwitz para retornar à sua antiga pátria e lá humanidade, pois constitui o início de um processo que
construir um país moderno, forte e vibrante. levará à Era Messiânica – a tão sonhada utopia – o dia
em que haverá paz não apenas em Jerusalém, mas em
David Ben-Gurion, fundador do Estado de Israel, todo o mundo. Quando chegar esse dia, a humanidade
afirmou que “Em Israel, para ser realista, é necessário não mais conhecerá guerras ou conflitos: não haverá
acreditar em milagres”. É um milagre que um país nenhum tipo de sofrimento ou pobreza, e a morte será
desprovido de recursos naturais e que teve de lutar apagada do mundo.
tantas guerras e conflitos conseguisse absorver milhões
de imigrantes – a maioria deles, refugiados – enquanto Em poucas semanas, o jovem Estado de Israel celebrará
construía um estado próspero e democrático. seu 70º aniversário. No judaísmo, o número sete e todos
os seus múltiplos são altamente significativos.
Mas o Estado de Israel é muito mais do que uma O número sete indica o fim de um ciclo e o início de
superpotência militar e um país inovador e vibrante. outro. Simboliza, também, a paz. Nossa esperança é que
É, também, o lar eterno e o sonho coletivo de todo um um novo ciclo se inicie em Israel e se espalhe por todo o
povo. mundo: uma era de paz e segurança para todos os seus
habitantes.
Além de ser a pátria eterna do Povo Judeu, a Terra
de Israel está entrelaçada com a alma coletiva de seus Chag Pessach Sameach!
filhos. Há dois mil anos, todos os dias, sem exceção,
oramos pelo retorno de nosso povo à Terra de Israel e à
Jerusalém. Há dois mil anos concluímos todo Seder de
Pessach com as palavras, “Ano que vem, em Jerusalém”.
ÍNDICE

13 26

42 48

52 67
03 carta ao leitor 18 CAPA
Israel - 70 anos
por zevi ghivelder

06 NOSSAS GRANDES FESTAS


Os Quatro Filhos 26 nossas leis
do Seder de Pessach Os Quatro Guardiães:

um estudo talmúdico

13
SABEDORIA
34 shoá
A grandeza de ser judeu A resistência judaica

por rabino jonathan sacks durante o Holocausto

4
REVISTA MORASHÁ i 99

06

18
42
educação 48 destaque
Inovação A Polônia e a negação do passado


por JAIME SPITZCOVSKy
Escola Beit Yaacov fica novamente
entre as melhores escolas de São Paulo 52 comunidades
no ENEM A vida dos judeus em Fez

Vestibulares 2018 62 arte


Alunos da Escola Beit Yaacov A arte de Ilya Schor

conquistam excelentes resultados
Aluno da Escola Beit Yaacov conquista,
67 SHOÁ
O Levante do Gueto de Varsóvia

novamente, o 1º lugar no
Chidon HaTanach Nacional 75 cartas

5 ABRIL 2018
NOSSAS GRANDES FESTAS

Os Quatro Filhos
do Seder de Pessach
Um dos temas centrais do Seder de Pessach são os
quatro filhos - suas perguntas e as respostas fornecidas pela
Hagadá: o Chacham – filho sábio; o Rashá – filho malvado;
o Tam – filho tolo; e o She’einó Yodea Lishol – aquele que não
sabe perguntar.

S
ão inúmeras as interpretações do que o Eterno, nosso D’us, ordenou-lhes? A Hagadá
simbolismo de cada um dos quatro nos orienta a dar a ele a seguinte resposta: “De acordo
filhos. Neste trabalho, apresentaremos com as leis de Pessach, não nos é permitido comer nada
ideias que podem ser muito diferentes do depois do Corban Pessach, do sacrifício de Pessach”.
entendimento que muitas pessoas têm dessa
passagem tão conhecida da Hagadá. Ano após ano, lemos É importante observar que em nossos dias, na ausência
esse texto sagrado durante o Seder, mas muitos de nós do Templo Sagrado de Jerusalém, não há Corban
não dão grande atenção ao que o mesmo nos transmite. Pessach, sacrifício de Pessach. Comemos, em seu lugar,
Se analisarmos cuidadosamente as perguntas feitas uma quantidade adicional de Matzá, chamada de
pelos filhos e as respostas da Hagadá, perceberemos que Afikoman, ingerida após terminar o Shulchan Orech
são enigmáticas. Na verdade, é difícil entender o quão (a refeição festiva de Pessach). Após comer o Afikoman,
relevantes são as respostas às perguntas dos filhos e como não nos é permitido consumir nada além dos dois
respondem ao que eles parecem perguntar. copos adicionais do vinho do Seder – que tomamos
após recitar Birkat HaMazon, a Benção após as
Quem estuda a Hagadá em profundidade, percebe que Refeições, e ao término da leitura da Hagadá.
não se trata apenas de um texto sagrado, mas também O Afikoman é, pois, a última coisa que podemos comer
de uma obra genial. Como veremos adiante, a passagem antes de nos deitarmos.
que trata dos quatro filhos contém lições extraordinárias
e atemporais. Voltemos à pergunta do filho sábio. O que ele pergunta,
exatamente? Será que desconhece as leis de Pessach ou
O Filho Sábio as três categorias básicas de mandamentos da Torá:
Edot, Chukim e Mishpatim? Ainda mais enigmático: de
O primeiro a fazer uma pergunta é o Chacham – o que maneira a lei que proibe ingerir qualquer alimento
filho sábio. Ele pergunta: “Quais são os Testemunhos após comer o Afikoman responde à sua pergunta?
(Edot), os Decretos (Chukim) e as Leis (Mishpatim) Antes de responder, é importante observar que o

6
REVISTA MORASHÁ i 99

seder de pessach, séc. xviii, moses leib ben wolf

primeiro filho mencionado na “vocês”, em vez de “nós”. O filho alimentação casher) e Mishpatim
Hagadá não é chamado de Tzadik – sábio, no entanto, também fala na (os mandamentos racionais,
o ser humano justo; mas é chamado segunda pessoa do plural – não na cujas motivações qualquer pessoa
de Chacham – aquele que é sábio. primeira pessoa do plural. Pergunta: sensata pode entender). Contudo, a
O fato de alguém ser um Chacham “Quais os Testemunhos, Decretos e pergunta dele é simplista e ampla.
não o torna necessariamente um Leis que o Eterno ordenou a vocês?”. E deveria nos surpreender porque
Tzadik. A pessoa pode ser muito Como o filho malvado, ele também assim como o Rashá, ele também
sábia, mesmo em questões da Torá, não se inclui na pergunta, pois diz não se inclui nessa pergunta. Será
e ainda assim ser uma pessoa má. “vocês”, e não “nós”. que o Chacham acredita que as três
Contrariamente ao que a maioria categorias da Lei da Torá não se
pensa, o filho sábio não é a antítese É verdade que a pergunta do aplicam a ele? Se assim for, então o
do segundo filho do Seder, a quem a Chacham é mais elaborada do que a Chacham não é exatamente o judeu
Hagadá chama de Rashá – malvado. do Rashá. O filho sábio menciona ideal que muitos de nós pensamos
Se analisarmos com atenção D’us, a Ele se referindo como “nosso que seja. Então, quem ele é?
as perguntas que fazem o filho D’us”, ao passo que o malvado não
sábio e o malvado, veremos que faz menção ao Todo Poderoso. O filho sábio simboliza pessoas
as duas não são muito diferentes. A pergunta do primeiro filho que se julgam bem-informadas,
Consideremos o seguinte: a Hagadá também revela o fato de que ele esclarecidas e intelectualmente
critica o Rashá devido à maneira está ciente de que os mandamentos superiores. Para elas, o intelecto
como ele se expressa. Ele pergunta: da Torá se enquadram nestas três e a razão são fundamentais.
“O que este serviço significa para categorias: Edot (mandamentos Consequentemente, é possível
vocês?”, em vez de perguntar: “O referentes ao Shabat e às datas que o Chacham não aceite seguir
que este serviço significa para nós?”. sagradas), Chukim (quase sempre leis da Torá que não entende ou
Ele é considerado um filho “mau” mandamentos esotéricos, como com as quais não concorda. As que
por causa de uma única palavra – certas leis relacionadas à Cashrut – ele entende – sejam Edot, Chukim

7 abril 2018
NOSSAS GRANDES FESTAS

os decretos e determinações de um
Ser Infinito. Na verdade, são muitos
os mandamentos do Judaísmo –
Edot, Mishpatim e Chukim. Há
mandamentos bíblicos e rabínicos.
Alguns deles você entenderá e
apreciará, outros, não. Mas saiba que
todos são expressões da Vontade e
Sabedoria Divina. Talvez todas essas
leis pareçam sem importância para
você, mas elas constituem a ponte
que permite que o homem finito se
conecte com D’us Infinito.

O Filho Malvado
ou Mishpatim – ele as segue. Os rodeios, que o Judaísmo se define
mandamentos que ele não entende pelas leis da Torá – racionais e O Rashá, o filho “malvado”, é um
– os que ele julga irracionais ou lógicas, ou não – que D’us espera enigma menor do que o sábio.
ilógicos – talvez ele não os cumpra. que cumpramos. Um exemplo dessas Facilmente identificável, é a pessoa
leis é a proibição de ingerir o que que participa do Seder para causar
Agora que entendemos quem é quer que seja além dos dois copos de confusão. Argumenta, questiona
o filho sábio, podemos entender vinho depois de comer o Afikoman. e, às vezes, zomba do ritual e
sua pergunta. Ele vem ao Seder e Essa lei é simbólica de muitos dos dos que o conduzem. Pergunta
questiona por que razão esse ritual e mandamentos detalhados e técnicos aos que o rodeiam: “O que este
a festa de Pessach – que celebra nossa do Judaísmo, que nos ensinam que serviço significa para vocês?”. Ele
liberdade – são cercados de tantas D’us conhece todos os detalhes de não se inclui na pergunta porque,
leis tão minuciosas, tão complexas nossa vida, inclusive o que comemos, claramente, o Seder e tudo o que
e, aparentemente, tão sem lógica. como comemos, e quando comemos. representa nada significam para ele.
Ele não entende por que motivo o
judaísmo tem tantas leis, bíblicas Se o filho sábio crê que leis como a Antes de relatar a resposta da
e rabínicas. Por essa razão ele não do Afikoman não são importantes, Hagadá à pergunta desse filho,
se inclui quando pergunta sobre ele claramente não entende bem o é importante considerar o que
os mandamentos do Judaísmo - os propósito da Torá. O Judaísmo não faz um judeu voltar-se contra o
Edot, os Chukim e os Mishpatim. Na visa à meditação ou ao nirvana e Judaísmo. Há várias possibilidades.
verdade, o que ele está perguntando, não constitui uma filosofia de vida. Pode ser um grito pedindo atenção;
é: “Vocês realmente creem que um O Judaísmo visa à ligação com D’us mas, em muitos casos, o Rashá
D’us Infinito Se preocupa com Infinito mediante o cumprimento é alguém que já foi religioso e
as várias Leis e ramificações do de Sua vontade – e a única forma se desiludiu do Judaísmo que
Judaísmo, tão técnicas e detalhadas? de fazê-lo é estudando Sua Torá e lhe transmitiram. Esse filho é
Será que realmente faz diferença cumprindo Seus mandamentos. Isto geralmente aquele cujos pais,
para D’us se eu como 10 ou 30 é o que a Hagadá tenta transmitir ao professores ou rabinos ensinaram um
gramas de Matzá, e se me reclino, filho sábio: você pode ser inteligente Judaísmo opressivo e maçante – que
ao comer, ou não? Não deveríamos e questionador, você pode ler sufoca a alma em vez de libertá-la
estar mais preocupados com as ideias muito e ser um pensador; mas não e fortalecê-la – ou um Judaísmo
e ideais grandiosos do Judaísmo do ouse presumir o que D’us espera fraco, falso e inexpressivo, destituído
que com essas minúcias?”. Uma vez do homem. Abraçar o Judaísmo de verdade, subsistência, força e
entendida a linha de pensamento significa cumprir os mandamentos beleza. Isso pode ser extremamente
do Chacham, podemos apreciar a da Torá, muitos dos quais não nocivo, especialmente para os que
profunda sabedoria da resposta da são inteiramente compreensíveis, são mais sensíveis e questionadores.
Hagadá a ele. Ao mencionar a lei simplesmente porque o homem, ser Quem está espiritualmente ligado e
do Afikoman, a Hagadá ensina, sem finito, não pode jamais entender procura a Verdade pode ficar muito

8
REVISTA MORASHÁ i 99

desapontado em sua busca religiosa


– e isso faz com que seu amor pelo
Judaísmo se transforme no oposto.
Portanto, é um erro definir o Rashá
como malvado, apesar da tradução
literal ser essa. Devemos entender o
Rashá como o filho revoltado.

Como a Hagadá responde a esse


filho? Com uma ordem: “quebre
seus dentes”. Não é necessário ficar
chocado nem buscar desculpas,
tentando achar algum tipo de
justificativa pelo fato de a Hagadá se
expressar de tal forma. Certamente,
esse texto sagrado não está sugerindo Judeu não participaram do Êxodo; responde: “Com Mão forte, o Eterno
que empreguemos violência física eles pereceram durante a praga da nos tirou do Egito, da casa da
contra o Rashá. “Quebrar os dentes” escuridão. Temos que ser duros com escravidão”.
é uma metáfora usada no Talmud: o filho rebelde para o bem dele, para
significa forçar alguém a fazer algo que ele entenda que quem ele mais Quem é esse filho Tam? E como a
contra a sua vontade. “Quebrar os magoa e prejudica com sua revolta é resposta da Hagadá contempla a sua
dentes” desse filho significa forçá-lo a si mesmo. pergunta?
a abandonar suas atitudes nocivas
que só lhe fazem mal. Isso é bem A redenção é uma forma de Muitos de nós erroneamente
melhor do que ignorá-lo, expulsá- renascimento e, portanto, de acreditamos que o menos desejável
lo ou se recusar a convidá-lo para renovação. O Seder, que celebra a dos quatro filhos do Seder é o Rashá.
participar do Seder. Precisamos ser liberdade física e espiritual do Povo Bem verdade que ele é rebelde,
enérgicos e honestos: temos que Judeu, é a época mais propícia para provocador e perturbador, e até pode
lhe dizer que independentemente que o filho rebelde deixe o seu Egito dizer coisas ofensivas. Mas, pelo
de quão justificáveis sejam os seus pessoal para trás – as experiências menos, tem interesse em dialogar.
sentimentos, negar os princípios negativas que o estão acorrentando Já o Tam nem se preocupa em fazer
da fé judaica é o caminho da espiritualmente – e inicie uma nova uma pergunta bem formulada e
autodestruição espiritual. Temos jornada espiritual. significativa. Ma Zot? – “O que
que lhe transmitir que menosprezo, é isso?” – é uma pergunta que
raiva e comportamento antissocial O Tam nem uma criança pequena faria.
impedem uma comunicação Claramente, ele não está muito
inteligente e sensata, levando apenas O terceiro filho do Seder é o Tam. interessado no que transcorre
a mais sofrimento e frustração. São várias as definições para essa durante o Seder. Sua pergunta é
palavra hebraica. Ela pode ter uma superficial; ele fala apenas para não
A resposta da Hagadá ao Rashá é conotação positiva: é um adjetivo ser rude. Diferentemente do filho
que revoltar-se contra o Judaísmo, usado para descrever nosso patriarca sábio, ele não pergunta sobre o
especialmente na Diáspora, Yaacov, significando “íntegro”. Judaísmo e suas leis. Diferentemente
geralmente leva à alienação das Mas tem, também, uma conotação do rebelde, ele nem mesmo quer
sinagogas e da comunidade negativa: tolo e ingênuo. desafiar os presentes à mesa do Seder.
judaica – e isso quase sempre leva à O Tam pouco fala durante o Seder e
assimilação. A Hagadá nos ensina a A Hagadá não retrata esse filho, o permanece indiferente a tudo.
dizer ao filho revoltado que “se você Tam, de uma maneira lisonjeira. Ele
tivesse sido escravo no Egito, não parece ser desligado e ignorante, Ele representa o judeu que nem
teria sido redimido”. Isso porque, no e fala menos ainda que o filho é questionador nem rebelde, mas
Egito, os judeus que se rebelaram revoltado. Ele pergunta: Ma Zot indiferente, que não se envolve.
e se alienaram do destino do Povo (“O que é isso”?) e a Hagadá Nada lhe interessa. Não gosta de

9 abril 2018
NOSSAS GRANDES FESTAS

se comprometer com coisa alguma necessário agir de forma proativa. o verbo la’daat, (“saber”) não
e nas raras ocasiões em que o faz, A Hagadá ensina-lhe que a menos significa apenas saber algo, mas
geralmente não vai em frente. É fácil que aprenda a agir com “mão forte”, estar envolvido com esse algo. Por
identificar o Tam. Raramente vai à ele nunca será verdadeiramente livre: exemplo, é um eufemismo usado para
sinagoga. Pode ser que assista a uma continuará escravo, confinado pelas descrever as relações íntimas entre
aula de Torá uma ou outra vez, mas limitações da vida passiva e sem alma um homem e uma mulher. Portanto,
não retorna. Pode comprar livros que escolheu para si. a definição de She’einó Yodea Lishol
sobre Judaísmo, ler algumas páginas, é alguém que não tem interesse de
mas logo fechará o livro para nunca Aquele que Não perguntar. Ele está menos envolvido
mais tê-lo em mãos. Nada o comove, Sabe Perguntar no Seder do que o Tam. Pode estar
inspira ou estimula. Não é pró nem fisicamente presente, mas não está
contra o Judaísmo. Na verdade, isso O quarto filho, e último do Seder, é o nem remotamente interessado no
tudo se aplica a outras áreas de sua She’einó Yodea Lishol: aquele que não que acontece à sua volta.
vida: não tem entusiasmo por nada, sabe perguntar. Como ele está calado
nem senso de compromisso ou – pois nem se preocupa em fazer Diz-se que o contrário de amor não
disciplina. uma pergunta –, a Hagadá nos instrui é ódio, mas indiferença. Se isso é
a iniciar a conversa e lhe dizer que verdade, o filho mais problemático
Tendo entendido quem é o “D’us fez milagres para mim quando do Seder não é o Rashá nem é o Tam;
Tam, podemos apreciar com que deixei o Egito”. é o She’einó Yodea Lishol, o que não
brilhantismo a Hagadá se dirige a sabe perguntar. Para ele, o Judaísmo
ele, dizendo a esse terceiro filho que Enquanto o Chacham está em um não significa nada. Nada tem contra,
D’us não nos livrou simplesmente nível mais elevado do que o Rashá, mas nada tem a favor da Torá. Ele
do Egito, mas que o fez “com Mão e este, apesar de suas sérias falhas, está presente no Seder, mas nem se
forte”. é superior ao Tam, o quarto filho preocupa em discutir, argumentar,
– que não sabe perguntar – está no protestar ou questionar. O Judaísmo
O que a Hagadá transmite ao nível mais baixo de todos. O Tam não o inspira nem o incomoda.
Tam é que a salvação, a libertação é indiferente, mas ao menos se
e qualquer forma de progresso preocupa em fazer uma pergunta Por que há judeus que nem se dão ao
e realização na vida exige que no Seder. O filho que não sabe trabalho de perguntar? Talvez porque
ajamos com “mão forte”: com força, perguntar nem sequer se preocupa o único Judaísmo que estudaram
persistência, entusiasmo, paixão, em questionar algo. foi totalmente irrelevante para sua
comprometimento e esforço. vida. É bem possível que o filho que
A Hagadá alerta o filho Tam que Esse filho nem se preocupa em fazer não sabe perguntar tenha chegado
não se pode viver passivamente; é alguma pergunta. Em hebraico, a frequentar uma sinagoga, mas
sempre ouvia as mesmas prédicas
repetitivas e não inspiradoras, e
concluiu que o Judaísmo não era
para ele.

Tendo entendido quem é o quarto


filho, podemos apreciar a sabedoria
contida na forma como a Hagadá
lida com ele – impondo-nos não
meramente iniciar uma conversa com
ele, mas lhe contar como D’us
fez milagres “para mim, quando
saí do Egito”. Em outras palavras,
a Hagadá nos ensina que ao nos
dirigirmos a alguém que é indiferente
ao Judaísmo, não devemos falar
sobre assuntos acadêmicos – tópicos

10
REVISTA MORASHÁ i 99

complexos e teóricos, filigranas da


Lei Judaica ou História Judaica da
Antiguidade, mas sim, sobre D’us, a
Divina Providência e o que a Torá
representa para nós, pessoalmente e
em nossos dias. A maneira de atrair
o quarto filho ao Judaísmo é abrindo
nosso coração e compartilhando
com ele nossa jornada espiritual
pessoal: o que D’us fez “para mim”.
O quarto filho não quer ouvir
sobre os milagres que ocorreram
há mais de 3 milênios, mas sobre
os milagres que ocorrem hoje, em
nossos dias.

Se os judeus não entenderem que


D’us é uma Força presente e atuante
em sua vida pessoal; se não virem
a Torá pelo que é – a Sabedoria
Divina; se a oração não os inspirar,
alimentar e fortalecer... então é bem
possível que muitos deles também
se tornem filhos que não se
interessam em perguntar. Muitos
judeus perdem o interesse no
Judaísmo porque se cansaram de
frequentar uma escola judaica
ou uma sinagoga onde têm que
aguentar aulas ou prédicas maçantes
e irrelevantes. Para inspirá-los,
precisamos lhes ensinar como a Torá
é a ponte entre o homem finito e
D’us Infinito, e como é a fonte de
luz que pode guiá-los neste nosso Seder. Explicamos que nenhum deles verdade; o “malvado” é o rebelde;
mundo tão conturbado. Devemos é perfeito – nem mesmo o filho o Tam é passivo; e o que não sabe
ensinar-lhes que D’us não apenas sábio. E é por isso que a Hagadá traz perguntar é desinteressado. Contudo,
realizou milagres para nossos uma mensagem para cada um deles. desde que eles venham ao Seder, é
antepassados no Egito, mas que Contudo e a despeito de suas falhas possível engajá-los em conversas e
Ele faz milagres dia após dia, e que e desafios espirituais, todos os quatro tentar influenciá-los. No entanto,
os temas do Seder de Pessach são participam do Seder – mesmo aquele se um filho nem mesmo vem ao
contemporâneos e relevantes e se que não se preocupa em questionar. Seder, não há então nem mesmo a
aplicam a todas as pessoas. O Rebe de Lubavitch ensinou que possibilidade de tentar dialogar com
o verdadeiro problema não está em ele.
O Quinto e o nenhum dos quatro filhos, mas com
Sexto Filhos o quinto filho – aquele que nem Ao falar sobre o quinto filho, o
mesmo participa do Seder. Lubavitcher Rebe costumava pedir
Neste ensaio, compartilhamos ideias aos judeus que tentassem chegar até
transmitidas por Sábios, de nosso Cada um dos quatro filhos simboliza essas pessoas e as convidassem para o
passado e de nossos dias, sobre o uma forma diferente de problema Seder. Hoje, na Diáspora, a situação
que representam os quatro filhos do espiritual. O sábio é o dono da ficou ainda pior: hoje não temos

11 abril 2018
NOSSAS GRANDES FESTAS

apenas um quinto filho, mas também – filhos de nosso patriarca Yaacov. descobrir sua identidade e herança
um sexto. Enquanto o quinto filho Só nos tornamos uma nação quando espiritual. O Talmud Bavli (Tratado
não participa de um Seder, o sexto D’us nos libertou da escravidão Berachot, 3a) compara o exílio do
nem mesmo sabe que se faz o Seder. egípcia e nos deu a Torá, 50 dias Povo Judeu a filhos que já não
Infelizmente, há um excesso de depois, no Monte Sinai. Assim sentam mais à mesa de seu pai.
sextos filhos. São tantos os judeus sendo, Pessach é, indiscutivelmente, A Hagadá emprega a metáfora dos
fora de Israel, inclusive aqui no a mais judaica dentre todas as quatro filhos em torno da Mesa
Brasil, que não têm conhecimento nossas festas. Isso explica por que do Seder para nos ensinar que D’us
algum sobre o Judaísmo; muitos o quarto filho, aquele que não sabe deseja que todos os Seus filhos
deles nem mesmo sabem o que o perguntar – alguém que não liga estejam próximos a Ele – mesmo
Seder de Pessach representa. para o Judaísmo – participa do Seder. o filho rebelde, o desligado e o
Apesar de sua falta de interesse, algo desinteressado. A missão de cada
As estatísticas que seguem revelam dentro de si o força a comparecer. judeu é, portanto, trazer todos os
a importância do Seder de Pessach Enquanto ele está à mesa do Seder, filhos, inclusive o quinto e sexto
para o Povo Judeu: 94% dos judeus mesmo que fique em silêncio, talvez filhos, à Mesa de Seu Pai. Quando
que vivem em Israel participam dessa esteja atento ao que a Hagadá tem todos estiverem de volta, haverá
cerimônia. É muito maior o número a lhe dizer. De fato, a mensagem da salvação e redenção para os Filhos
de judeus em Israel que vão a um Hagadá a cada um dos quatro filhos de Israel e para o mundo inteiro.
Seder do que o daqueles que jejuam é simplesmente genial. No entanto,
em Yom Kipur ou vão à sinagoga mesmo esse texto sagrado e brilhante Que isso possa se concretizar logo:
em Rosh Hashaná. Isso porque não chega àqueles filhos que não bekarov be’yamenu. Amén, ken yehi
o Seder celebra o nascimento e a estão presentes na mesa do Seder: o ratsón.
independência do Povo Judeu. Talvez quinto e o sexto filhos.
Pessach não seja tão sagrado como
Yom Kipur nem tão alegre quanto Não há mandamento maior no
Bibliografia:
Sucot, mas é a festa que celebra a Judaísmo do que aproximar um
Rabbi Y.Y. Jacobson - How to Address the Four
origem de nosso povo. Antes do judeu de D´us e de seu povo, sua Sons in our own Homes and Communities - https://
Êxodo, éramos uma família no Egito história e sua religião, ajudando-o a www.theyeshiva.net/jewish/2763

12
SABEDORIA

A GRANDEZA DE SER JUDEU


por Rabino Jonathan Sacks

“Há muito tempo atrás, em um deserto árido, no sopé de uma


montanha no Sinai, D’us transmitiu a um povo pequeno,
fragmentado e obstinado, com nada que o pudesse distinguir
especificamente, um “algoritmo”. Era chamado de Torá,
e esse algoritmo fez deles o povo mais notável, tenaz e
inconformado com seu destino como jamais se viu...”.

Rabi J. Sacks
Cúpula 2017 da OLAMI, Londres, 4 de janeiro de 2018

A
migos, vocês constituem um grupo muito considerado hoje o ancestral em termos de religião de
especial e eu preciso confessar-lhes 2,4 bilhões de cristãos, 1,6 bilhão de muçulmanos e ...
algo. Eu me perguntava por que razão alguns de nós, a maioria dos quais aqui reunidos esta
Hashem havia arquitetado este encontro noite. Esse homem não usava coroa, não reinava sobre
do grupo Olami, Olam Ha’Yehudi, o nenhum império, não comandava nenhum exército
mundo judaico, aqui em Londres, às margens do poderoso, não realizava milagres nem profetizava –
Tâmisa. E, de repente, me dei conta de que devia ser mas ele mudou o mundo com sua fiel determinação
pelo fato de que, não muito longe daqui, também às de atender ao chamado de D’us. Nós somos os
margens do Tâmisa, um homem que não era judeu descendentes de Moshé Rabeinu, a quem Jean-Jacques
– alguém que eu realmente queria que tivesse sido Rousseau, a inspiração da Revolução Francesa, intitulou
judeu – William Shakespeare, aqui esteve. Por isso, “o maior legislador na história da humanidade”.
quero citar um verso de Shakespeare que julgo ser Tenho que lhes contar algo. Tenho assento, hoje em
capaz de transformar a vida da pessoa. É um verso dia, na House of Lords, Câmara dos Lordes; é difícil
da peça Twelfth Night (Noite dos Reis), que vai juntar um “minian”, como sabem aqueles que estão
diretamente ao âmago do que significa ser judeu. E acostumados a ouvir meus discursos. Costumam me
ele diz: “Alguns nascem grandes. Alguns alcançam perguntar qual é melhor: a House of Lords ou a “house
a grandeza. Mas alguns têm a grandeza imposta a of the Lord” – a sinagoga, a casa do Senhor? E eu
eles...”. Desde jovem eu percebi que não nascera respondo: “Sempre prefiro a sinagoga, porque nela o
grande nem iria alcançar a grandeza; mas em certo rabino é o único a fazer o sermão. Na House of Lords,
momento de minha vida, na faculdade, percebi que se Câmara dos Lordes, todos fazem sermões”. Mas tenho
você é judeu, você tem a grandeza imposta a você. que lhes contar que há um salão magnífico usado para
os trabalhos do comitê, chamado de Moses Chamber,
De que maneira? Como? Porque somos os herdeiros o aposento de Moshé. E quando meu predecessor,
dos descendentes do homem mais influente que já o saudoso Rabino Chefe Lord Jakobovits foi
existiu, Avraham Avinu, nosso Patriarca Avraham, apresentado à Câmara dos Lordes, eles lhe disseram:

13 abril 2018
SABEDORIA

“Congratulações. O Sr. é o primeiro a Sergey Brin da Google e Mark chineses. Quando eu estive lá, sob
rabino nesta Câmara”. Ao que o Zuckerberg do Facebook, e a maior domínio chinês, tive um encontro
Rabino Chefe, apontando para o invenção em tecnologia do mundo, com o delegado de Beijing em
enorme quadro que cobre toda a chamada Waze, conhecida como Hong Kong, Sr. Tung Chee-hwa,
parede, de Moshé Rabeinu trazendo Google Maps. Vocês sabem quantos primeiro governador, governador
os Dez Mandamentos do Monte casamentos o Waze salvou? Ou chinês de Hong Kong, um homem
Sinai, disse: “Não; ele foi o primeiro. quantos casamentos desmoronaram encantador que amava e admirava
Eu sou apenas o segundo”. porque ele disse a ela: “Por que você o judaísmo. Ele me disse: “Rabino
não olhou no mapa?”. E ela disse a Sacks, nós, chineses, sabemos que
Somos os descendentes de David ele: “Por que você não perguntou os judeus existem há longo tempo.
Ha-Melech, não apenas o maior como se chegava lá? ”. Amigos, Nós existimos há uns 5.000 anos.
rei de Israel, mas o maior poeta no mundo todo o Waze tem Vocês, há 6.000 anos. O que sempre
religioso em toda a História. contribuído para o Shalom Bayit, a quis saber é o que vocês faziam nos
Somos os herdeiros dos profetas, paz no lar... primeiros 1.000 anos, antes de existir
dos primeiros críticos sociais do delivery de comida chinesa casher???”.
mundo, do primeiro povo a dizer Digo-lhes algo mais. Os judeus E eu lhe disse: “Sr. Tung, nos
a verdade aos poderosos. Quando não inovaram apenas uma única primeiros 1.000 anos nós vivíamos
Martin Luther King, no Memorial vez. Eles inovaram geração após reclamando da comida...”.
de Lincoln, em Washington, fez seu geração. E apesar de que algumas
discurso “I have a dream”, “Eu tenho das personalidades citadas não E é isso aí. Nós já existimos há
um sonho”, no auge desse discurso fossem especialmente religiosas, mais tempo do que quase todos os
o que ele cita, palavra por palavra? cada uma delas manteve aquela ideia povos. Estivemos espalhados em
Nada menos do que dois pessukim, essencialmente judia de que você todos os países do mundo. Nesses
dois versos de Isaías da Haftará do transforma o mundo não pela ideia países, conhecemos todo tipo de
Shabat Nachamu. de poder, mas pelo poder das ideias sorte, do apogeu do triunfo às
– e isso é o que o judaísmo significa. profundezas da tragédia, e ainda
Somos seus herdeiros, e não apenas Somos o povo cujos heróis são assim, nunca antes na História
deles; mas em toda a História professores, cujas fortalezas são casas Judaica tivemos duas coisas que hoje
fomos inovadores no que quer que de estudo, cuja paixão é o estudo e a temos, simultaneamente: soberania
fosse, em qualquer disciplina, em vida da mente. E este é o problema. e independência em Medinat Israel,
Física, Ciências, Sociologia, ou com Vejam: é por isso que cada um de e liberdade e igualdade na Diáspora.
Durkheim e Levy-Strauss vocês é importante, porque hoje há, Houve épocas em que gozávamos
em Sociologia e Antropologia. que D’us nos proteja, por volta de 13 de uma, mas nunca antes, das duas.
Os judeus inventaram Hollywood. milhões de judeus. Isso é pouco, uma E hoje, quando todas as orações de
Os judeus inventaram a Psicanálise. minoria. Mas esse não é o problema. nossos avós e dos avós deles, há cem
O problema é que onde quer que se gerações atrás, quando cada uma
Tirando-se Jung, todos os olhe, mundo afora, um em cada dois, dessas preces foi respondida, ... o que
psicanalistas eram judeus. Mas nesse e dois em cada três jovens judeus nós estamos fazendo? Estamos nos
ponto eu sempre digo: se você não é estão-se afastando do judaísmo. E afastando...
judeu, para que Psicanálise??? Todos isso dói.
os grandes psicoterapeutas, ou Isso é mau. Isso dói. E é por isso
quase todos, Viktor Frankl; Aaron E lhes digo porque isso dói. Os que quando eu estava na faculdade,
Beck, o co-fundador da Terapia judeus existem há muito tempo. eu dizia: “Não posso ser parte disto.
Comportamental Cognitiva; Martin Existimos há mais que o dobro do Vou ser mais judeu, não menos”.
Seligman... Trinta e seis por cento tempo do que o Cristianismo; ao Eu não pretendia, nem em sonho,
dos Prêmios Nobel em Economia, triplo do tempo que o Islamismo. ser rabino, mas tomei uma decisão,
incluindo este último; os maiores Lembro-me de quando eu a de que não podia ser um daqueles
músicos, de Arnold Schoenberg era Rabino Chefe, eu e parte que se afastam. E se vocês tomarem
aos maiores poetas na música pop, da Commonwealth Britânica essa mesma decisão de serem mais
o saudoso Leonard Cohen, Paul costumávamos ser “Hong Kong” judeus, não menos, juntos vocês
Simon e Bob Dylan, até chegar até que tivemos que devolvê-lo aos mudarão o curso da História Judaica.

14
REVISTA MORASHÁ i 99

rabino jonathan sacks na sinagoga beit yaacov, são paulo

Bem, mas vocês sabem, e eu com. Havia milhares de mecanismos precisar de certas forças para se sair
também sei, que não é fácil ser de busca (search engines1) antes do bem, prosperar e ter sucesso.
judeu. Google, mas você descobre que é um Quero contar-lhes por experiência
Larry Page e um Sergey Brin e você própria o que esse algoritmo de
Há todas aquelas leis, todo descobre o algoritmo certo... e aí Torá fará em sua vida. Em primeiro
aquele estudo, todas aquelas você pode mudar o mundo. lugar, fortalecerá todos os seus
restrições; a quem você pode Há muito tempo atrás, em um relacionamentos importantes. Não
desposar, o que você pode comer, deserto árido, no sopé de uma há casamentos mais sólidos do que
quando você tem que descansar. montanha no Sinai, D’us transmitiu entre os judeus religiosos. Ninguém
Mas quero dizer-lhes algo. Sabem a um povo, um povo pequeno, tem sentimentos de comunidade
de uma coisa? Tudo hoje – foi fragmentado e obstinado, com mais fortes do que os judeus.
meu neto que me explicou o nada que o pudesse distinguir Ninguém tem o mesmo senso de
que vou-lhes contar. [É por isso especificamente... e Ele lhes responsabilidade coletiva que têm
que temos netos...]. Meu neto transmitiu um algoritmo. Era os judeus, no mundo todo, pois
me disse que “tudo hoje é um chamado de Torá, e esse algoritmo “Kol Yisrael Arevim Zé Ba’zé”
algoritmo”. O que é um algoritmo, fez deles o povo mais notável, tenaz – Todos os judeus são responsáveis
isso eu não faço a menor ideia. e inconformado com seu destino uns pelos outros. Shimon bar Yochai
Quando eu era pequeno, tínhamos como jamais se viu no mundo. disse: “Quando um judeu está ferido,
“ritmo”, mas não tínhamos ainda o Como isso funciona, não lhes sei todos os judeus sentem sua dor”.
“algo”, do “algoritmo”, isso eu sei. dizer. Mas sei que funciona, isso sim. Ninguém tem relacionamentos
E sei que sem o algoritmo você E vocês estão para embarcar num como os nossos. Creiam-me.
pode ter uma pequena livraria futuro; cada um de vocês tem sonhos Sozinhos, vocês não conseguirão
de bairro; mas se você tem o e planos; e estão para entrar em um viver e encontrar felicidade e sucesso.
algoritmo, você vira uma Amazon. futuro no qual nada é previsível; Todos os estudos demonstram
o mundo está mudando mais que seu sucesso e sua felicidade
1
Mecanismo na Internet que possibilita a rápido do que nunca, e essa rapidez dependem da intensidade e
busca de informações. aumenta a cada ano; e vocês vão qualidade desses relacionamentos

15 abril 2018
SABEDORIA

– e isso é a primeira coisa que o Olhem, isso faz você estudar e


judaísmo fará por vocês. crescer durante a vida toda.
Em segundo lugar, o sucesso Sexto: qualquer coisa que você
depende de hábitos de disciplina fizer na vida, exigirá que você
e força de vontade. A Halachá, a tenha um código interior de moral.
Lei Judaica, é o maior “seminário Nos últimos anos, nas últimas
ininterrupto”, no mundo, sobre semanas, temos visto como alguns
disciplina e força de vontade. dos empresários mais importantes,
Tentem levantar da cama, cedo, alguns dos maiores produtores de
todo dia, para as rezas de Shacharit, Hollywood conseguem - Rachmanu
e verão que qualquer outro desafio Yitzlan, que D’us não o permita –
parece fácil... acabar vergonhosamente com sua
carreira. E por quê? Porque achavam
Terceiro: se vocês quiserem evitar que poderiam sair impunes. Nunca
um esgotamento, um burnout, se pode. Precisamos daquela voz
no meio de sua carreira, devem interior que nos diz “não!”. E é isso o
descobrir e guardar o Shabat, que o judaísmo lhe ensina.
melhor seminário do mundo sobre
equilíbrio entre trabalho e lazer. Sétimo: Para ser feliz, ter sucesso, ter
escola beit yaacov, sp
Uma moça que trabalha no Vale do resiliência é preciso um sentimento
Silício me contatou e disse: “Rabino de identidade; é preciso saber
Sacks, estou preocupada que todos Quinto: o judaísmo manterá sua quem se é, e de que história se faz
os nossos filhos são viciados em mente ativa durante a vida toda, parte. Não somos um átomo livre
smartphones. Esses aparelhos estão porque ser judeu tem que ser um e independente, solto no espaço e
arruinando suas habilidades sociais; momento de aprendizado contínuo carregado ao sabor do vento. Ser
estão destruindo sua capacidade e vitalício. Vou lhes contar algo: Há judeu é ser parte da maior história
de atenção. Já não conseguem se muitos anos, fui levado, às pressas, da terra.
concentrar. Então, na minha casa, ... [Desculpa. Desculpa. Obrigado...
nossa família decidiu ter um dia A Siri acabou de fazer uma objeção Esses sete pontos não farão uma
“livre de telas”, por semana. Nada de ao que eu disse... Em Tosafot2 pequena diferença em sua vida;
smartphones, laptops, iPads”. E ela aparentemente a explicação é de eles farão toda a diferença em sua
continuou: “O Sr. vai adorar o nome outra forma. Obrigado, Siri, eu não vida. Todos eles são parte daquele
que demos para esse dia... Shabat!”. sabia que você também era judia. algoritmo notável que fez dos judeus
Esse é o poder do Shabat, em nossos o povo mais resiliente, criativo e
dias. No tempo de Moshé, era um Continuando, há 20 anos fui transformador que o mundo já
dia livre da escravidão do Faraó. levado às pressas para o hospital, conheceu. E sim, podemos não
Hoje, é a liberdade da tirania da com um problema grave que eu ter nascido grandes, podemos não
mídia social e do e-mail. desconhecia.... Imaginem, fui levado ter alcançado a grandeza, mas se
direto do consultório do médico somos judeus temos a grandeza
Em quarto lugar: felicidade é uma para o hospital; fui submetido a imposta sobre nós. E, sim, é difícil
questão de gratidão com atitude. uma cirurgia e salvaram minha vida. ser judeu; requer esforço e dedicação
Se você é judeu, viva como judeu. Quando eu voltava da anestesia, e vontade; mas são as coisas difíceis
Quais são as primeiras palavras que quase desperto, alguém bate à porta que nos fazem fortes, são as coisas
dizemos pela manhã? Modê Ani. do quarto. Era um judeu de 80 anos, difíceis que não dão orgulho; são
Você agradece antes mesmo de com um volume da Guemará debaixo elas que nos fazem sentir-nos mais
pensar. Vivendo dessa forma você do braço, que me diz: “Ah, ouvi intensamente vivos.
terá uma vida inteira de satisfação. dizer que o Sr. estava aqui, Rabino
Sacks. Pensei que talvez pudéssemos Amigos, quero terminar com uma
estudar Guemará juntos”. Bem, história; uma curiosa historinha.
2
Tosafot – comentários medievais do
Talmud. eu estava tentando morrer e ele Algum de vocês já ouviu falar de
querendo estudar Guemará.... um escritor chamado Dan Brown?

16
REVISTA MORASHÁ i 99

O Sr. Código da Vinci? Ele acaba


de escrever um best-seller chamado
Origin. Alguém já o leu? É o best-
seller da moda. Não farei aqui o que
o IMDb3 chama de spoiler4, mas vou
lhes dizer o seguinte. Trata-se de
uma descoberta revolucionária sobre
a origem da vida, e o autor menciona
o nome de uma figura da vida real,
um jovem e brilhante físico do MIT
chamado Jeremy England, que
descobriu uma maneira de explicar
como foi que a vida se iniciou. Dan
Brown também cita outro físico –
vocês verão isto se procurarem por
Jeremy England na Wikipedia –
outro grande cientista de nossa era,
que diz: “Se England estiver certo,
ele poderá ser o próximo Charles
Darwin”.

Bem, Dan Brown quer provar, a partir eventos no mundo moderno foi a e soberania de Medinat Israel, de
dessa teoria, que não é necessário descoberta da seleção natural por liberdade e igualdade na Diáspora,
acreditar em D’us para explicar a Charles Darwin e seu consequente e vivamos, realmente orgulhosos,
origem da vida. Vou dizer-lhes o abandono, da religião. Hoje, o como judeus, fieis à nossa fé,
que é fascinante nisso. O verdadeiro “próximo Charles Darwin” fez como uma bênção aos demais,
Jeremy England, pois ele existe, uma descoberta, possivelmente tão independentemente de sua religião.
respondeu o seguinte a Dan Brown grande quanto a da seleção natural, e E, juntos, vamos transformar o
em um artigo no The Wall Street encontrou a religião, e encontrou sua mundo!
Journal, há poucas semanas: “Dan fé como judeu crente e praticante.
Brown, não me use para refutar D’us
porque eu creio em D’us”. Jeremy Acredito que isto seja um ato de
England cresceu como judeu secular, Kidush Hashem, de Santificação
Palestra proferida em 4 de janeiro de
não praticante. Aos 20 anos de idade, do Nome de D’us. E lhes contei 2018 na reunião anual de cúpula da
ele tomou uma decisão: “Vou me esta história para mostrar que uma organização OLAMI. Presentes mais de
1.400 líderes judeus jovens, de mais de
tornar um judeu religioso”. Hoje decisão como essa pode mudar sua 100 organizações em mais de 20 países,
com a presença do Sr. Naftali Bennett,
ele vive e pratica o judaísmo com a vida e ajudar, de alguma maneira, Ministro para Assuntos da Diáspora de
crença de um judeu ortodoxo. E eu a mudar o mundo. O físico Jeremy Israel.

tenho que lhes dizer que para mim England tomou essa decisão
Tradução: Lilia Wachsmann
isso é um momento de pura poesia. quando tinha a idade de vocês.
Por quê? Porque um dos maiores Eu tomei essa decisão quando
tinha a idade de vocês; e agora
vocês precisam tomar essa decisão.
Transformem-se e vocês começarão
3
Internet Movie Database (ou Base de a transformar o mundo. Eu lhes Rabino Lorde Jonathan Sacks
Dados de Filmes na Internet) - uma prometo que daqui a alguns anos, Foi Rabino Chefe das Congregações
base de dados online de informação Hebraicas Unidas da Commonwealth
sobre música, cinema, filmes, programas olharão para trás e dirão que essa e presidente do Beth Din de 1991 a
e comerciais para televisão e jogos de foi a melhor decisão de sua vida. 2013. Desde 2009, membro da House of
computador, atualmente pertencente à Lords. Atua, hoje, como Professor
de Pensamento Judaico na New York
Amazon.com.
4
Spoiler (na mídia), é a revelação antecipada
Aproveitemos, juntos, este University e na Yeshiva University e
Professor de Direito, Ética e Bíblia no
do enredo de filmes e livros. momento único de independência King’s College de Londres.

17 abril 2018
CAPA

ISRAEL - 70 ANOS
POR Zevi Ghivelder

Queiram os historiadores ou não; queiram os acadêmicos ou


não; queiram os cientistas políticos, analistas, jornalistas e
intelectuais ou não; queiram os antissemitas ou não; queiram
os antissionistas ou não, mas o ressurgimento de um Estado
Judeu em sua terra de origem foi um dos mais extraordinários
acontecimentos históricos de todos os tempos.

O
parágrafo acima não é uma calorosa de cem anos atrás. Trata-se de uma carta elevada à
exaltação em busca de aplauso, mas o condição de documento, tanto assertiva quanto evasiva,
rigor de uma sóbria verdade. Agora, mas que causou impacto por dar legitimidade ao
quando o Estado Israel celebra os incipiente movimento sionista e, assim, promover a
primeiros 70 anos de sua soberania, sua inserção no cenário internacional. Por isso até hoje
identificado com judeus mundo afora, deve-se tecer suscita polêmicas, quase sempre redundantes.
uma importante consideração. De todos os países A terceira fundação se assentou na declaração também
que foram criados no planeta depois da 2ª Guerra centenária, da partilha da antiga Palestina, em 1947,
Mundial, nenhum deles, nenhum mesmo, com pouco pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, nessa
mais ou pouco menos de 70 anos de existência, crucial etapa ocorreu uma ainda irreparável fissura. Os
alcançou como Israel um nível tão elevado na países árabes rejeitaram a resolução. Impediram que
economia, na infraestrutura civil e militar, em múltiplas os palestinos residentes no território que lhes caberia
ciências, na tecnologia e na informática, nas artes e na criassem seu próprio estado independente e, dessa
cultura, na igualdade de gêneros, no bem-estar social e maneira, deram origem ao conflito que há 70 anos
na prática da democracia. perdura entre eles e Israel.

Conforme se procede em toda sólida construção, a Nos pilares individuais avulta um homem excepcional
recriação do Estado Judeu contou com fundações e e inigualável: Eliezer Ben Yehuda. Nascido Eliezer
pilares, sendo estes constituídos por ações individuais Perelman, na Lituânia, em 1858, ele foi o artífice do
e coletivas. A primeira fundação para o erguimento da renascimento do idioma hebraico, naquele tempo
morada ancestral do povo judeu foi fixada em agosto restrito aos rituais litúrgicos. Sionista ardente desde
de 1897 quando da realização do Primeiro Congresso a juventude, formulou um conceito tão simples
Mundial Sionista, na Suíça, sob a liderança de Theodor quanto imbatível: se o sionismo de fato viesse a
Herzl. A segunda fundação corresponde à emissão resultar numa nova nação judaica, era imperativo
pelo império britânico da Declaração Balfour, de mais que incorporasse à sua ideologia um novo idioma, ou

18
REVISTA MORASHÁ i 99

Tel Aviv

seja, o hebraico, antigo idioma dos visão do futuro para a nova nação: estímulo às pesquisas científicas e
patriarcas, profetas e reis do povo expansão das atividades agrícolas, uma postura política tão nacional
de Israel. Com vinte anos de idade, expansão da população produtiva, quanto universal. Ele começou
Ben Yehuda foi para Paris com a criação de raízes literárias a partir do a trabalhar na elaboração de um
finalidade de estudar medicina. ressurgimento do idioma hebraico, dicionário hebraico, mas foi expulso
Porém, contraiu tuberculose e foi de Jerusalém pelas autoridades
obrigado a abandonar a faculdade, turcas, como um “inimigo nacional”,
ao mesmo tempo em que se juntou ao eclodir a 1ª Guerra Mundial.
a um grupo de jovens sionistas. Ao
lado deles e junto com a mulher Passou um ano nos Estados Unidos
partiu para a antiga Palestina em e regressou à Palestina em 1919.
1881. Instalou-se em Jerusalém e em Participou, então, da criação da
sua casa só se falava hebraico. Seu Academia da Língua Hebraica
filho, mais tarde o escritor Itamar destinada a formular palavras em
Ben Avi, foi a primeira criança hebraico que se adaptassem às
daquela época a ter o hebraico modernidades do cotidiano. No ano
como idioma materno, fora poucos seguinte avistou-se com Sir Herbert
descendentes de antigas gerações Samuel, Alto Comissário britânico
de judeus que jamais emigraram para a Palestina, convencendo-o de
da Terra Santa. Ao lado de outros que a Palestina deveria adotar três
intelectuais, Ben Yehuda fundou línguas oficiais: inglês, árabe e
uma sociedade chamada Tehiat hebraico. Essa proposta consumou-se
Israel (Renascimento de Israel) Jovens de Jerusalém, celebram a
decisão da ONU de criar um Estado
num decreto dois anos depois.
cujo ideário tinha uma consistente Judeu, novembro de 1947 Nesse tempo Ben Yehuda trabalhava

19 ABRIL 2018
CAPA

dezoito horas por dia em seu hebraico; há veículos de imprensa


“Dicionário de Hebraico Antigo e no mesmo idioma e um intenso
Moderno” que foi concluído por sua movimento intelectual. A atividade
viúva e seus filhos, sendo publicado econômica desta comunidade é
em 1959 com um total de 17 crescente”.
volumes. No prefácio do dicionário, O ishuv se dividia informalmente
escreveu: “É como se os céus se em duas entidades que atuavam
tivessem subitamente aberto; uma em conjunto. De um lado, os
luz brilhou perante meus olhos e responsáveis eleitos para a
uma poderosa voz interior me disse administração pública com a
que haveria uma nova língua numa tarefa de preservar e ampliar a
nova pátria”. Sua obsessão frutificou ordem social e econômica. De
após cerca de 30 anos, chegando outro, a Organização Sionista
ao ápice de S.Y. Agnon, escritor no David Ben Gurion assinando a inserida no âmbito da Agência
idioma hebraico, ter sido agraciado declaração de Independência , Judaica, oficialmente reconhecida
maio de 1948
com o Prêmio Nobel de Literatura pelos mandatários como a única
em 1966. Eliezer Ben Yehuda representante dos judeus da
faleceu no dia 16 de dezembro de Palestina. Ambas tinham como
1922, em Jerusalém. comunidade composta por 80 mil objetivo o renascimento da nação
Um dos pilares coletivos da recriação habitantes, dos quais um quarto judaica. Na verdade, naquela quadra
de Israel tem como protagonista se dedica às atividades agrícolas. dos acontecimentos, os judeus já
o ishuv, ou seja, os judeus que se Esta comunidade tem suas próprias sedimentavam a estrutura de um
radicaram em Eretz Israel (Terra de instituições: uma assembleia país mesmo sem possuir um país.
Israel) ou ali nasceram durante a que trata dos assuntos internos; O ishuv se configurava como uma
ocupação otomana ou no Mandato conselhos eleitos em quase todas democracia parlamentar, abrigando
Britânico, e antigos residentes. as cidades; um Rabino Chefe uma assembleia nacional eleita para
Um relatório publicado pela incumbido das questões religiosas um mandato de quatro anos. Essa
autoridade imperial inglesa, datado junto com conselhos rabínicos eleição estendeu o direito de voto às
de 1922, é da maior relevância: regionais; um órgão controlador das mulheres, uma raridade no mundo
“Durante as últimas duas ou três escolas; os negócios são conduzidos da segunda década do século 20.
gerações os judeus criaram uma no idioma Havia também um poder executivo e
um sistema judiciário.

Este surpreendente cenário de


organização social e econômica
continha radicais controvérsias
políticas que, de forma esquemática,
podem ser rotuladas como esquerda,
centro e direita, a par de um bloco
religioso. Essas controvérsias
permaneceram até a recriação de
Israel e se desenvolvem até os dias
atuais nos mesmos formatos e
intensidade. Dentre os legados do
ishuv, um dos mais importantes é
a fundação, em 1920, da Histadrut,
a Federação dos Trabalhadores
Judeus da Palestina, depois dos
Trabalhadores de Israel. Com
quase cem anos de idade é uma das
Multidões aguardam a parada militar , Tel Aviv. Julho de 1948 organizações sindicais mais

20
REVISTA MORASHÁ i 99

1 2 3

1. Inauguração do primeiro aeroporto internacional, Aeroporto Internacional de Lydda. Novembro 1948 2. Chegada
de imigrantes no navio Atzmaut, (Independência ), 1949 3. Visitantes cumprimentam o Presidente Chaim Weizmann, na
presença do Ministro do Exterior Moshe Sharett. Maio 1959

bem-sucedidas do mundo em função árabes se não contasse com um perdão oficial ao presidente. Ele
da abrangência de suas atividades. mínimo de capacidade militar no se recusou. Disse que, como judeu,
ar. Foi mandado para a Califórnia ajudar a criação do Estado de Israel
Outro pilar coletivo muito onde, após artimanhas e superando era uma obrigação moral; quanto
importante corresponde à equipe complicadas burocracias, comprou ao contrabando, argumentou que
de agentes do ishuv que ocupou antigos aviões de diversos portes. se tratava de uma desobediência
diversos aposentos de um hotel Em seguida, recrutou um grupo de civil também baseada em princípios
situado no número 60 da rua 14 pilotos judeus, também veteranos morais. Em 1950, voltou para Israel
Leste, em Nova York. Era um grupo de guerra, e cumpriu a proeza, atendendo a um chamado de Ben
de rapazes empenhados na tarefa contrariando as leis americanas, de Gurion que o incumbiu de instalar a
de comprar armas e munições para fazê-los voar primeiro para o México, Israel Aerospace Industries (Indústrias
o estado que seria criado. Contido, uma escala no Panamá, outra escala e Aeroespaciais de Israel), até hoje uma
tratava-se uma operação secreta, reabastecimento referência mundial nessa modalidade.
obrigada a despistar o FBI, porque a no aeroporo de Natal, no Brasil, Schwimmer foi o diretor-executivo
legislação americana aceitava vender novos reabastecimentos na África e desta empresa durante meio século
equipamentos excedentes da 2ª na Europa, até concluir a viagem em e, nos anos 1980, atuou como
Guerra Mundial, porém proibia que Lidda, perto de Tel Aviv. conselheiro industrial e de tecnologia
fossem destinados a quaisquer outros do primeiro-ministro Shimon Peres
países. Entre sustos sofridos por A ação de Schwimmer resultou de quem se tornou íntimo amigo.
causa da vigilância das autoridades nos primórdios da Força Aérea Em 2001, recebeu um perdão oficial
americanas e missões bem de Israel, que cumpriu missões do presidente Bill Clinton e, em
finalizadas, a ação desses agentes do decisivas para assegurar a vitória 2006, o prestigioso Prêmio Israel.
“Hotel 14”, conforme chamavam seu judaica na Guerra da Independência, Faleceu em 2011, aos 94 anos de
quartel-general, foi fundamental para com destaque para uma delas, em idade, em sua residência em Ramat
abastecer o futuro exército de Israel. julho de 1948, quando os pilotos Gan. Se a expressão “pai da pátria”
A par do que ocorria em Nova York, de Schwimmer dizimaram uma deixar seu conceito abstrato e
um homem extraordinário, chamado coluna de blindados egípcios que se buscar um exemplo concreto, há de
Al (Adolf ) Schwimmer, agia na aproximava de Tel Aviv. encontrá-lo de sobra na figura de Al
Califórnia. Nascido no Brooklyn, Al Schwimmer regressou para os Schwimmer.
Nova York, em 1917, foi piloto da Estados Unidos no ano seguinte. Foi
Força Aérea dos Estados Unidos acusado como transgressor do Ato No dia 13 de maio de 1948, Ben
durante a 2ª Guerra Mundial. Judeu de Neutralidade Americano, por ter Gurion estava reunido em Tel Aviv
convicto, procurou por iniciativa contrabandeado aeronaves para fora com seu Estado Maior, o Conselho
própria o pessoal do “Hotel 14”. do país. Teve cassado seu direito de responsável pelos destinos do futuro
voto, dos benefícios como veterano país. Seus integrantes estavam
Custou a ganhar a confiança dos de guerra e condenado a pagar uma acabrunhados por causa do massacre
agentes até conseguir convencê- multa de 10 mil dólares, mas sem sofrido pela população judaica da
los de que o novo país não teria pena de prisão. Sugeriram-lhe que localidade de Etzion. Ben Gurion,
chance alguma de combater os tudo seria relevado se pedisse um entretanto, foi enfático:

21 ABRIL 2018
CAPA

Alguns membros do Conselho


propuseram Estado Judeu. Outros,
simplesmente Sion. Até que houve
consenso: Israel. Seguiu-se outro
debate: como incluir as fronteiras
do novo país na declaração, já que
estas ainda estavam indefinidas?
Mais uma vez prevaleceu a voz de
Ben Gurion: “Leiam a declaração de
independência dos Estados Unidos.
Verão que nela não há uma só alusão
a fronteiras territoriais. Depois que
derrotarmos os árabes poderemos
precisar nossas fronteiras”. Na
votação referente à questão das
Irrigando o deserto
fronteiras, cinco conselheiros foram
contra a definição, quatro a favor
e quatro se abstiveram. A reunião
“A catástrofe de Etzion não me com que contavam. Em seguida terminou de madrugada, ficando
abala. Eu já esperava derrotas e surgiram indagações cruciais. Onde decidido que um pequeno grupo,
receio que ainda enfrentaremos e como proclamar a independência? liderado por Moshe Sharret, se
maiores dificuldades. Tudo mudará No palco e plateia do Teatro encarregaria de redigir a declaração.
quando conseguirmos derrotar a Habima ou no Museu de Tel Aviv?
maior parte da Legião Árabe. É Alguém disse que embora o Habima Neste mesmo dia 13 de maio,
pelas armas que resolveremos todos fosse maior, o local oferecia pouco enquanto os mandatários ingleses
os problemas”. Parecia um exagero, sigilo e pouca segurança. Optou- fechavam suas bagagens para uma
mas aquelas palavras empolgaram se pelo Museu. Mas, qual seria o viagem sem retorno, a população
o Conselho, pessimista em face da nome do país? Como seria redigida de Tel Aviv era uma só ansiedade
evidente fragilidade da força militar a declaração de independência? por conta das expectativas
desdobradas nas semanas recentes
e sem saber como, quando e aonde
começariam os preparativos para o
histórico evento da proclamação da
independência. Sabia-se, tão somente,
que aconteceria assim que o último
militar inglês deixasse o porto de
Haifa. Havia um grande sentimento
de pressa por causa de um prazo
fatal: o Shabat (sábado sagrado) no
entardecer do dia seguinte.

Os convites para a cerimônia


começaram a ser distribuídos por
mensageiros na manhã do dia 14,
sendo endereçados a entidades e
instituições, sem menção a pessoas:
“Temos a honra de convidá-lo para
assistir à cerimônia da declaração
de Independência que será realizada
GENERAL ARIEL SHARON E O MINISTRO DA DEFESA MOSHE DAYAN FESTEJAM A PASSAGEM
no dia 5 de Yiar de 5708 (14 de
PELO CANAL DE SUEZ nos primeiros 10 dias da guerra de Yom Kipur maio de 1948), às 16 horas, no salão

22
REVISTA MORASHÁ i 99

do Museu de Tel Aviv, Boulevard Torá. Para isso buscou um escriba Eram panos brancos com duas
Rothschild, número 16. Pedimos na comunidade ortodoxa de B’nei linhas paralelas em azul e, no meio,
que mantenha em sigilo o conteúdo Barak, mas este declinou, dizendo uma estrela de David da mesma
deste convite quanto à hora e ao que não daria tempo de terminar cor. Não eram bandeiras oficiais
local. Os convidados deverão estar até as quatro da tarde porque cada porque a verdadeira só foi adotada
no Museu às três e meia da tarde. vez que escrevesse o nome de D’us pelo governo em outubro do mesmo
Atenciosamente, o Secretariado. seria obrigado a cumprir o ritual ano. Aquelas ali confeccionadas se
Este convite é pessoal. Traje: social de se levantar e lavar as mãos. Em destinavam a cobrir esculturas e
escuro”. seguida, Rifkind chamou um artista pinturas com nus artísticos, pouco
plástico seu amigo, deu-lhe uma apropriados para o local e para a
O secretariado era na verdade sofrida quantia em dinheiro, para ocasião. Enquanto isso, Rifkind
um só secretário, Zeev Sharef, que ele comprasse os materiais e procurava um pergaminho no qual
diretor administrativo da Agência
Judaica. Em condições normais o
convite deveria ser assinado por
Ben Gurion, mas o tempo era
exíguo. Ben Gurion não gostou
do texto que lhe foi submetido
pelo grupo de Sharret. Achou que
aquele primeiro rascunho se perdia
em excessos de diplomacia e ele
preferia algo mais contundente,
mais conciso e mais objetivo.
Fez as alterações que julgou
necessárias e mandou o texto para
Zeev Sharef, recomendando que
fosse feito um bom número de
cópias para serem posteriormente
entregues à mídia. Mas, não era
possível guardar um segredo
de tal magnitude. Os jornais
matutinos do dia 14 publicaram
que a Kol Israel, emissora oficial Rabin e Peres, adversários políticos e parceiros na construção do Estado de Israel
de rádio, transmitiria a sessão da
independência ao vivo, às quatro da
tarde. A polícia começou a isolar a
cercania do Museu uma hora antes. elaborasse adereços condizentes seria escrita a declaração e uma
Isto serviu para atrair a curiosidade com a solenidade que aconteceria fotografia de Herzl que deveria ser
da população que ali logo começou no salão do Museu. Recomendou colocada acima da mesa principal.
a se aglomerar. que o amigo não comprasse tudo Encontrou numa loja da Rua
numa só loja, para não levantar Dizengoff, onde encontrou um
De manhã cedo, Sharef havia suspeitas. No Museu os funcionários papel sintético, tipo pergaminho,
convocado o designer Abraham foram dispensados com ordem para que parecia genuíno e deu-se
Rifkind que, dois anos antes, tinha regressarem às 15 horas, sem terem ao preciosismo de levá-lo para
preparado um salão na Basiléia a menor noção do que iria acontecer. análise no Instituto de Padrões. Só
para a realização do 22o Congresso No salão, o artista contratado sossegou quando lhe garantiram
Mundial Sionista. Rifkind revelou trabalhava com um carpinteiro, um que o papel poderia durar alguns
numa entrevista, anos depois, pintor e também decorador, uma séculos. Obteve fotografias em
que a sua primeira ideia era que costureira e uma faxineira para polir tamanho pequeno de Herzl e a
a declaração fosse escrita num o assoalho. De início, mandou fazer maior de todas, em bom estado,
rolo de pergaminho, tal como a bandeiras de diversos tamanhos. carecia no seu entender de

23 ABRIL 2018
CAPA

mulher, Paula. Mostrava impetuoso


vigor a caminho de 62 aos de idade,
a serem completados em outubro.
Foi saudado por aplausos das pessoas
junto ao Museu. Por causa do sol
forte e dos flashes dos fotógrafos,
Paula tropeçou na escada e caiu,
machucando a vista. Por isso passou
todo o tempo da cerimônia com
um copo de água gelada na mão e
nele mergulhando um lenço que,
em seguida, levava ao olho direito.
Às 16 horas em ponto, Ben Gurion
começou a ler a declaração. Foram
17 minutos no decorrer dos quais
leu 979 palavras no idioma hebraico.
Em seguida, chamou o rabino
SOLDADOS FESTEJAM A LIBERtAÇÃO DE JERUSALÉM, 1967
Yehuda Fishman, de 74 anos, trazido
de Jerusalém para Tel Aviv, num
pequeno avião, porque a estrada
imponência. Assim, mandou fazer Os dois ficaram isolados no meio de entre as duas cidades já estava
uma grande moldura negra de modo uma rua e sem a menor chance de bloqueada pelo exército da Jordânia.
a aumentar a percepção visual da obter uma condução. Aflito, procurou O rabino recitou, embargado pela
fotografia. um policial e pediu-lhe emoção: “Bendito seja D’us, Rei
que parasse um táxi. Um motorista do Universo, que nos manteve, nos
O pergaminho contendo o texto obedeceu, mas se recusou a conduziu e nos trouxe até este dia”.
da declaração estava nas mãos de transportar o casal: “Desculpe, mas
Sharef no escritório da entidade eu tenho que estar em casa às quatro Finda a oração, Ben Gurion
Keren Kayemet, em Tel Aviv, de horas para ouvir no rádio a declaração anunciou o primeiro decreto que
onde ele providenciava táxis para da Independência”. Ao que Sharef seria emitido pelo novo país: estava
os líderes sionistas que deveriam respondeu: “Se você não nos levar até anulado o White Paper, o documento
comparecer à cerimônia. Só se o Museu não vai ouvir nada porque de 1939 que impedia a entrada de
esqueceu dele mesmo e da mulher a declaração está aqui comigo”. O judeus na sua própria terra. Tinha
que o acompanhava. taxista partiu em disparada e, como acabado de renascer, com plena
sempre, nessas horas os contratempos soberania, o Estado de Israel, pátria
se acumulam. Por causa do excesso de dos judeus. As manifestações de
velocidade, um policial mandou o táxi júbilo exalavam por todo o país, mas
parar e já ia aplicar a multa quando Ben Gurion sequer sorria. Avaliava
Sharef se deu conta da poderosa o débil potencial militar de que a
realidade que Eretz Israel estava nova nação dispunha e cedia ao
vivendo naquele momento: “Os pessimismo. À noite, em casa, disse
ingleses foram embora e aqui ainda para Paula: “Sou um consternado
não há um governo. Quem vai cobrar entre os exultantes”.
essa multa?”
Em seus 70 anos de vida, entre
Pouco antes das quatro da tarde, conflitos menores e nem por isso
dezenas de automóveis começaram desprezíveis, Israel enfrentou duas
a afluir ao Museu, com prioridade grandes guerras que traumatizaram o
para os signatários da declaração, país: a dos Seis Dias, em 1967, e a do
entregue por Sharef a Ben Gurion, Yom Kipur, em 1973. Sobre a Guerra
força Aérea de Israel, segurança
nos ares o último a chegar, acompanhado da dos Seis Dias circulam dezenas

24
REVISTA MORASHÁ i 99

de livros e milhares de ensaios,


entrevistas e reportagens. Há uma
corrente de analistas, jornalistas e
escritores que sustentam que este
conflito mudou o perfil sociológico
do país, na medida em que os
israelenses tomados pela euforia da
vitória em três frentes de batalhas e
em tão pouco tempo, passaram a se
superestimar e até mesmo a cultivar
arrogância. É pouca verdade.

Cheguei a Israel no sétimo dia da


guerra, no primeiro voo que partiu
de Paris para Tel Aviv. Presenciei,
sim, grandes manifestações de
alegria dos soldados que voltavam
Bandeiras de israel hasteadas em jerusalém
para suas casas nos mais diversos
veículos militares. Vi bandeiras
de Israel ornamentando fachadas,
janelas e varandas em Tel Aviv e o momento de maior perigo vivido porque já tinha estado em outros
Jerusalém. Porém, também vi os pelo Estado de Israel desde a sua hospitais, de norte a sul do país,
jornais com dezenas de páginas fundação. cumprindo a missão voluntária de
de anúncios fúnebres, nos quais levantar o moral dos militares fora
mulheres choravam as mortes de A propósito da travessia do canal de combate. Minha adolescência
maridos, pais choravam as mortes de de Suez, tomei conhecimento dessa tinha sido enriquecida pelos
filhos e filhos choravam as mortes audaciosa manobra militar através filmes estrelados por Danny Kaye
de pais. Vi, também, o país inteiro do porta-voz do exército com o (verdadeiro nome Daniel Kaminsky
angustiado com o pidion shvuim, o qual mantinha bom relacionamento. nascido no Brooklyn em 1911) e
resgate dos prisioneiros de guerra. Ele me disse que não divulgaria a foi emocionado que apertei sua
O povo judeu de Israel não havia notícia de imediato porque ainda mão. Passei a percorrer o hospital
perdido seu senso de humanidade e lhe faltavam dados mais precisos ao seu lado. Ele parava junto a um
solidariedade. e deu-me um conselho: “Vá até o leito onde havia um soldado ferido
Fiz a cobertura jornalística Hospital Hadassah, em Jerusalém, e dizia: “Vou falar com teu médico
da Guerra do Yom Kipur, que para onde foram levados soldados para te mandar para casa depois
praticamente acompanhei desde o feridos na travessia. Conversando de amanhã”. Ou então, para outro:
início, tendo permanecido, então, com eles, você terá uma boa ideia “Quando você tirar essa bandagem
40 dias em Israel. Como Ariel de como tudo aconteceu”. Na da cara vai ficar irresistível”. Até
Sharon, general de carreira e depois mesma hora rumei para o Hadassah, que paramos junto a um leito no
primeiro-ministro, ainda é uma onde fui recebido pelo diretor de qual estava deitado um rapaz de uns
personalidade controvertida, as relações públicas que me abriu todas vinte anos, sem o braço direito e
paixões ideológicas, tanto dentro as portas para as entrevistas que sem a metade da perna esquerda. No
como fora de Israel, relutam em precisava fazer. Eu já estava para ir primeiro momento, era uma visão
conferir-lhe o papel vital que ele embora, por volta de seis horas da tão dolorosa, que o Danny Kaye não
desempenhou naquele conflito. tarde, com pressa para escrever a soube o que dizer. Foi o jovem quem
Não é exagero afirmar que Sharon matéria, quando aquele funcionário falou: “Danny Kaye, que grande
salvou Israel de uma catástrofe, me parou: “Espere um pouco surpresa! Você é um artista que eu
quando atravessou com suas tropas porque o Danny Kaye está vindo adoro! Desculpe, mas sou obrigado a
o canal de Suez e se posicionou na aqui para entreter os soldados”. lhe dar a mão esquerda”.
direção do Cairo depois de capturar O grande comediante e astro do
a cidade egípcia de Suez. Aquele foi cinema chegou visivelmente cansado ZEVI GHIVELDER é escritor E JORNALISTA

25 ABRIL 2018
nossas leis

Os Quatro Guardiães:
Um Estudo Talmúdico
Na porção de Mishpatim, no Livro de Shemot (Êxodo),
a Torá apresenta as leis dos Quatro Shomrim
– os Quatro Guardiães. O Shomer é aquele que é
responsável por guardar a propriedade de outro.

A
Torá menciona sucintamente as leis dos compreensível: o mutuário recebe algo que pertence
Quatro Guardiães, ao passo que um dos a um terceiro, em seu próprio benefício, sem pagar ou
Tratados do Talmud Bavli, Bava Metzia, retribuir por isso. A Torá espera que ele devolva o que
discute-as e elucida: tomou emprestado – um objeto (ou animal) – intacto
“São quatro os guardiães: o não e sem danos. Se, enquanto estiver sob sua guarda, a
remunerado, o mutuário, o remunerado e o locatário. propriedade tomada por empréstimo for danificada,
O guardião não remunerado jura (sua inocência) e é perdida ou arruinada, o tomador deve substituí-la ou
completamente isento, desobrigado. O mutuário paga compensar pelo seu valor. Não importa a forma pela
integralmente. qual a propriedade foi danificada ou perdida. Também
O guardião remunerado e o locatário juram e ficam é irrelevante se estava ao alcance do tomador evitar essa
isentos de culpa pelo animal que quebrou a perna ou perda ou dano. Ainda que o dano ou perda tenha sido
morreu, mas eles pagam se o animal for perdido ou causado por um raio ou terremoto, cabe ao tomador
roubado” (Mishná, Bava Metzia 93a). reembolsar ao proprietário pela perda.

Neste artigo, explicaremos as leis básicas dos Quatro Exemplificando: Suponhamos que um homem de nome
Guardiães. Nosso propósito é introduzir nossos Shimon peça emprestado a seu vizinho Reuven o carro
leitores ao estudo do Talmud. Após discutirmos as leis deste último por uma semana.
dos Quatro Guardiães, exploraremos sua dimensão O vizinho concorda com o pedido. Shimon toma o
mística. carro emprestado, mas não paga nada a Reuven pelo
empréstimo. Se o carro for danificado, roubado, perdido
Shoel, o Mutuário ou tomador ou destruído enquanto estiver sob a guarda de Shimon,
este deverá reembolsar Reuven integralmente pela perda.
No grupo dos quatro guardiães, o Shoel, o mutuário, Como Shimon é o tomador, ele tem que pagar por
assume o nível mais alto de responsabilidade qualquer infortúnio com o carro, mesmo se ele for isento
pela propriedade de terceiros a seu cargo. Isso é de culpa no ocorrido.

26
REVISTA MORASHÁ i 99

Uma Discussão do Talmud: Pintura a óleo, Carl Schleicher

(Em certas circunstâncias, No Talmud, dois de seus maiores é o mesmo que o do guardião
a Torá isenta o tomador de Sábios – Rabi Yehudá e Rabi Meir remunerado. Quem é o guardião
responsabilidade. Estas leis, no (o Ba’al Haness) – discordam sobre remunerado? Ao contrário do
entanto, estão fora do escopo deste o grau de responsabilidade do Socher, locatário, ele não paga pelo uso
trabalho). o locatário. De acordo com Rabi da propriedade de terceiros mas
Yehudá, a Torá iguala o locatário com sim, recebe pagamento por cuidar
Socher, o locatário o guardião não remunerado (cujas leis da propriedade.
de responsabilidade veremos abaixo):
O locatário é semelhante ao o locatário é responsável apenas se Nos dois cenários acima
tomador, com uma diferença tiver agido com negligência. Rabi descritos, Shimon queria tomar
óbvia e significativa: ele paga pelo Meir discorda. Em sua opinião, o emprestado o carro de Reuven.
uso da propriedade de outrem. grau de responsabilidade do locatário Se ele tomar emprestado o
Suponhamos que Shimon tenha é o mesmo que o do guardião carro sem pagar por isso, ele é
pedido emprestado o carro de remunerado, que, como veremos um tomador; se ele pagar pelo
Reuven, com a condição de pagar adiante, é responsável pelo que o empréstimo, ele é um locatário.
uma taxa de aluguel. O que Talmud considera “danos evitáveis” Consideremos, agora, uma
ocorre se o carro for danificado – roubo e perda. O veredicto – a situação diferente: Shimon
ou destruído enquanto estiver sob Halachá – segue a opinião de Rabi não tem interesse no carro de
a responsabilidade de Shimon? Meir. Reuven – ele não quer pedi-lo
Como ele alugou o carro – pagando emprestado nem alugá-lo.
por seu uso –, a situação não é Shomer Sachar, o É Reuven que pede que Shimon
idêntica à descrita acima, em que Guardião remunerado o guarde. Talvez ele esteja saindo
o empréstimo tinha sido gratuito. de férias e quer que alguém
Neste caso, Shimon é um locatário, Na opinião de Rabi Meir, o grau cuide de seu carro enquanto
não um tomador. de responsabilidade do locatário ele estiver fora. Se Shimon

27 abril 2018
nossas leis

concordar em tomar conta do pago para cuidar da propriedade reembolsar totalmente Reuven pela
carro de Reuven, mas cobrar de terceiros. A Torá considera o perda. Mas, se bandidos armados
para fazê-lo, ele é um guardião guardião remunerado responsável roubarem o carro ou este for
remunerado. pelo que considera “danos evitáveis”, destruído ou danificado por um
como roubo e perda. Contudo, a desastre natural, Shimon não terá
A Lei da Torá reza que um Torá não o mantém responsável pelo que reembolsar Reuven pela perda
guardião remunerado assume que considera “danos não evitáveis” de seu carro.
uma medida significativa de – roubo à mão armada e eventos que
responsabilidade pela propriedade estão fora de seu controle, como os Shomer Chinam,
a seu cargo. Afinal, ele está sendo desastres naturais. o Guardião não
remunerado

O guardião não remunerado


cuida da propriedade de terceiros
como um favor e não recebe
pagamento ou recompensa por
fazê-lo. Suponhamos que Shimon
concorde em tomar conta do carro
de Reuven, mas se recuse a aceitar
pagamento. Ele está fazendo um
favor a Reuven. Ele ajuda os demais
e não crê que devamos praticar atos
de bondade esperando algo em
troca.

O que ocorre se o carro de Reuven


for danificado ou destruído
enquanto estiver sob a guarda
de Shimon? Pela lei da Torá,
como Shimon é um guardião não
remunerado – ele está cuidando da
propriedade de terceiros como um
favor, sem receber pagamento ou
recompensa por isso –, é mínima
a sua responsabilidade em caso
de infortúnio. O Talmud ensina
que contanto que ele tenha dado
uma atenção razoável ao objeto
D’us dá o livre Dissemos acima que o grau de sob sua guarda, ele afirma, sob
responsabilidade de um locatário juramento, não ter sido negligente
arbítrio a todos nós,
é o mesmo que o do guardião e é absolvido de qualquer
mas cada um de nós remunerado. Isso significa que responsabilidade pelo infortúnio.
tem que aprender este último é responsável, também,
pelos danos evitáveis; no entanto, Na qualidade de guardião não
a viver com as suas não é responsável por danos não remunerado, Shimon não tem que
escolhas. evitáveis. Uma vez compreendida reembolsar Reuven, proprietário
a lei do guardião remunerado, do carro, por perda ou roubo;
podemos agora voltar para o caso mas a Torá o declara responsável
do locatário. Se Shimon aluga pelos danos no caso de ter sido
o carro de Reuven, e o carro é negligente ou descuidado. Afinal,
roubado ou perdido, Shimon deve ele concordou em tomar conta

28
REVISTA MORASHÁ i 99

do carro de Reuven – algo que conveniências. Seu propósito na prazer, desfrutam deste mundo de
poderia ter-se recusado a fazer. vida é desfrutar do mundo ao D’us e de sua fartura, mas negam
Por exemplo, Shimon não pode máximo sem ter que pagar por isso. Sua existência ou O ignoram.
estacionar o carro de Reuven num O profeta Isaías assim descreve a Mesmo se reconhecem que este
local perigoso, sem travar as portas, filosofia de vida de tais pessoas: mundo a D’us pertence, elas não têm
deixando a chave no motor. Se agir “...Eis que há alegria e regozijo, e interesse em relacionar-se com Ele.
com negligência e, por esse motivo, são abatidos gado e ovelhas, carne “A vida é minha”, dizem a D’us, “e
a propriedade sob sua guarda for é consumida e vinho é bebido, farei com ela o que bem entender”.
danificada, perdida ou roubada, enquanto dizem; ‘Comei e bebei, Vivem como um dos Quatro
terá de recompensar o proprietário porque amanhã morreremos’! ” Guardiães, o tomador: só tomam –
por perdas e danos. (Isaías 22:13). de D’us e de Seu Mundo –, mas não
pagam nem retribuem de alguma
Os Quatro A maioria daqueles que apenas se maneira.
Guardiães do Mundo preocupam consigo próprios não
se sentem agradecidos a D’us pelo Segundo as leis dos Quatro
Um dos princípios fundamentais que recebem, pois do contrário Guardiães, como D’us Se relaciona
do Judaísmo é que cada versículo teriam menos liberdade de fazer o com tais pessoas? Vejamos
e palavra da Torá contém infinitas que quisessem, quando quisessem. as leis referentes ao grau de
camadas de significados. O mesmo As pessoas cujo único interesse na responsabilidade do tomador: ele é
é válido para o Talmud. Não se vida é aquilo que os beneficia e dá totalmente responsável pelos danos
trata apenas de uma enciclopédia
sagrada de leis, discussões,
análises e relatos. Cada uma de Portão de Beit El Yeshivá, em Jerusalém
suas passagens e ensinamentos
contém ensinamentos profundos e
esotéricos.

As leis relativas aos Quatro


Guardiães são relevantes e
atemporais, mas como veremos,
também possuem uma dimensão
mística. O Shelah HaKadosh
(1565-1630), Rabi Yeshaya
HaLevi Horowitz, autor do
clássico Shnei Luchot HaBrit,
escreve que “Assim como existem
os quatro guardiães entre o
homem e seu semelhante, eles
também existem entre o homem e
D’us, Bendito é Ele”.
Vejamos, agora, como as leis dos
Quatro Guardiães se aplicam ao
nosso relacionamento com D’us.

O Tomador

Muitas pessoas estão interessadas


em tomar e receber, mas não
em dar. Para elas, o mundo gira
em torno delas próprias – seus
prazeres, seus desejos e suas

29 abril 2018
nossas leis

e perdas, mesmo se não tiver culpa se e não pensavam duas vezes antes universo pessoal. Ele cumpre os
pelo ocorrido. Praticamente, isso de usar de desonestidade, violência mandamentos Divinos com o
significa que como o “tomador” ou imoralidade para obter o que mesmo sentimento com que as
tomou a seu encargo a sua vida e desejavam. Sabemos bem como pessoas pagam seus impostos – ele
se fechou completamente a D’us, termina a história. Veio o dilúvio os vê como um mal inevitável que
ele assume total responsabilidade e matou todos. Como aquela geração ele preferia não ter que cumprir.
por tudo o que lhe acontecer. tinha afastado D’us de
Se ele tiver perdas ou danos em sua vida, pereceram todos e eles eram Na Torá, Noé simboliza o locatário.
sua vida, ele terá que assumir a os únicos culpados. Mais ninguém. Comparado a seus contemporâneos
responsabilidade pelos mesmos. Eram todos tomadores, e, como que personificam o tomador, Noé
Se um trovão, um furacão ou um ensina o Talmud, um tomador é era um homem justo, íntegro.
terremoto o atingir – literal ou responsável por todos os danos e Contudo, a bem da verdade, ele não
figurativamente –, é problema e perdas – mesmo se se importava muito com o mundo
responsabilidade totalmente seu, e estes forem consequência de de D’us. Quando o Todo Poderoso
o único culpado é ele mesmo. desastres naturais – como foi o lhe ordena construir uma arca, ele
Dilúvio. o faz para salvar a si e aos seus – e
D’us dá o livre arbítrio a todos não se empenha em salvar os outros.
nós, mas cada um de nós tem O Locatário Quando D’us lhe ordena cuidar dos
que aprender a viver com as suas animais na Arca, ele o faz porque
escolhas. Se escolhermos ser o Contrariamente ao tomador, o percebe que essa tarefa difícil era
tomador – tomando e recebendo, locatário está disposto a pagar o o preço que ele teria que pagar por
sem dar nada em troca –, os Céus preço pelo uso da propriedade de viver e desfrutar do mundo de D’us.
nos tratarão de acordo a isso. um terceiro. Quando se trata do Em outras palavras, a construção
Como o tomador escolhe ser dono relacionamento entre o homem da Arca e o cuidado dos animais é
exclusivo de seu destino, quando os e o Todo Poderoso, o locatário é o aluguel que ele deveria pagar ao
problemas baterem à sua porta, ele aquele que, como o tomador, quer Proprietário.
não terá ninguém a quem recorrer, desfrutar do mundo Divino, mas,
mas a si próprio. Como ele optou contrariamente a ele, o locatário Noé não é tomador, mas ele é
pela total independência – como percebe que terá que pagar o seu meramente um locatário. Ele
ele não crê em nenhuma forma de preço. O dilema enfrentado pelo não se importa se D’us destruir
reciprocidade –, ele será totalmente locatário é saber o preço que terá que o Seu mundo e todos os seus
responsável por danos e perdas, pagar para desfrutar deste mundo de contemporâneos morrerem, desde
mesmo se estes surgirem do nada D’us. Algumas pessoas querem pagar que ele e sua família estejam a salvo.
e ocorrerem por culpa de terceiros. um pouco, mas não muito. Talvez o Seu relacionamento com D’us é
Ele não terá ninguém com quem preço que queiram pagar é jejuar em quase “comercial”: O Senhor me
compartilhar a perda. Ele expulsou Yom Kipur. Outros acreditam que deixa viver no Seu mundo e eu
D’us de sua vida quando tudo D’us espera um pouco mais. Para cumprirei Suas ordens.
lhe sorria. Quando as coisas estes, o preço a pagar talvez inclua Qual a lei do locatário? Ele é
desandarem, ele terá que arcar ir à sinagoga algumas vezes por ano, responsável pelos “danos evitáveis”
sozinho com tudo. ouvir o Shofar em Rosh Hashaná e – roubo e perda. É isento de
participar em um Seder de Pessach. responsabilidade apenas pelos
A geração que pereceu no dilúvio Outros, ainda, acreditam que D’us “danos inevitáveis” – eventos que
de Noé personifica o tomador. espera ainda mais, mas talvez seja estão além de seu controle, como
A Torá nos relata que à exceção suficiente eles irem à sinagoga em os desastres naturais. Como Noé
de Noé, toda aquela geração era todas as festas e nas sextas-feiras à era um locatário, não um tomador,
egoísta e corrupta; envolvia-se noite para cantar Lechá Dodi junto no tocante a D’us, ele não pereceu
em roubo e violência, e praticava com a congregação. em um desastre natural – o Dilúvio.
atos imorais. Não tinham respeito No entanto, como ele é nada mais
algum por D’us, por Seu mundo Como o tomador, a preocupação do que um locatário, quando ele
nem pelos outros seres humanos. de vida do locatário é seu bem- emerge da Arca e vê um mundo
Para eles, a vida era para divertir- estar. Ele está no centro de seu em escombros, D’us não ouve seu

30
REVISTA MORASHÁ i 99

grito nem sua reclamação sobre


toda a morte e destruição que ele
testemunha. Afinal, Noé é um
locatário, e como tal, é responsável
pelos danos evitáveis. A Torá
chama o Dilúvio de “as Águas
de Noé”, porque ele partilha da
responsabilidade por uma perda
que ele poderia ter evitado. Talvez
ele pudesse ter influenciado a sua
geração a se arrepender. Se ele
tivesse cuidado um pouco mais
do mundo de D’us, talvez tivesse
conseguido evitar a destruição da
humanidade.

O Guardião
Remunerado

A Lei Judaica, como ensina Rabi


Meir no Talmud, determina que
a responsabilidade do guardião
remunerado é idêntica à do locatário.
No relacionamento pessoal com
D’us, a diferença entre o locatário
e o guardião remunerado é que
o primeiro quer desfrutar deste
mundo de D’us, mas aceita pagar
por isso, ao passo que o guardião
remunerado aceita ajudar a tomar
conta do mundo, mas exige que
D’us lhe pague por seus serviços. A
lei da responsabilidade é a mesma mandamentos Divinos, mas eles remunerado tem um relacionamento
para o locatário e para o guardião cobrarão d’Ele um altíssimo preço tipo “olho por olho, dente por
remunerado porque, em ambos os para fazê-lo. Se D’us irá concordar dente” com D’us, a Corte Celestial
casos, há um tipo de relacionamento com um acordo desses ou não, é tem o direito de constantemente
comercial forjado entre eles e D’us. outra história... escrutinizá-lo e responsabilizá-lo por
O locatário tem que calcular o todos os danos evitáveis. Se violar
preço que deve pagar a D’us pelo Recordemos a lei do guardião o “contrato” de alguma maneira, ele
privilégio de desfrutar de Seu remunerado. O Talmud ensina terá que pagar multa ou penalidade
mundo, ao passo que o guardião que, como o locatário, ele também pela quebra de contrato.
remunerado tenta avaliar o escopo é responsável por danos evitáveis
de suas obrigações, bem como – roubo e perda. Ele só está isento Um exemplo de um guardião
quanto ele espera que D’us lhe de responsabilidade por danos remunerado foi o primeiro ser
pague pelos serviços que prestará. inevitáveis. Isso significa que alguém humano, Adão. Conta-nos a Torá:
Alguns esperam que D’us lhes que assume o papel de guardião “E o Eterno, D’us, tomou o homem
recompense neste mundo, enquanto remunerado é responsável por e o pôs no Jardim do Éden para
outros no Mundo Vindouro, transgressões evitáveis – pecados o cultivar e o guardar” (Gênese
e outros, ainda, em ambos os de comissão (roubo) e pecados 2:15). Adão foi o paradigma do
mundos. Alguns guardiães pagos de omissão (perda). Como o ser guardião remunerado: ele tinha
até se dispõem a cumprir todos os humano que personifica o guardião que trabalhar no Jardim do Éden e

31 abril 2018
nossas leis

cuidá-lo, e como pagamento por (perda) pela Serpente. Ambos próprio, mas apenas em cumprir
seus serviços, ele podia aproveitar os danos evitáveis. Poderiam a Vontade de seu Mestre, e o faz
de tudo o que o Jardim tinha para ter ignorado a Serpente e sua sem esperar qualquer recompensa,
oferecer – à exceção do fruto da oferta tentadora. Poderiam ter material ou espiritual, que seja.
Árvore Proibida. Infelizmente, optado por não comer o fruto Maimônides descreve tais seres
Adão e Eva não foram guardiães proibido. Consequentemente, humanos: “Aquele que serve a D’us
remunerados confiáveis – eles como guardiães remunerados, por puro amor altruísta – ele estuda
não cumpriram a sua parte no foram responsáveis pela quebra do a Torá e cumpre as Mitzvot e anda
acordo porque a Serpente lhes contrato. E D’us os expulsou do nos caminhos da sabedoria — não
prometeu um pagamento ainda Jardim do Éden. por temer o mal (castigo), e não para
melhor do que o oferecido por herdar o bem (recompensa). Mas
D’us. A Serpente – personificação ele age de acordo com a verdade
do Yetzer haRá, Inclinação para O Guardião não apenas por ser a verdade. No fim,
o Mal, mestre das mentiras e da remunerado o bem virá ao seu encontro. Essa
enganação – não cumpriu sua virtude é enorme e grandiosa, e nem
promessa. Como Adão e Eva eram O Guardião não remunerado todos os sábios a merecem, e esse é o
guardiães remunerados, eles eram é singular. Contrariamente aos nível alcançado por Avraham, nosso
responsáveis por perda e roubo, outros três guardiães, ele não está Patriarca, a quem D’us chamou de
ou seja, tomaram e consumiram interessado em receber, mas apenas ‘Aquele que Me ama’, porque ele
o fruto proibido, proscrito por em dar. Em seu relacionamento serviu a D’us unicamente por amor”
D’us (roubo), e foram enganados com D’us, ele não pensa em si (Leis do Arrependimento, 102).

Tais pessoas são raras, mas existem.


Elas fazem o que é certo, bom e
virtuoso simples e exclusivamente
por ser a maneira correta de se viver.
Como ensina Maimônides, nosso
patriarca Avraham, o primeiro
judeu, é o paradigma do guardião
não remunerado. Ele servia a D’us
por amor, e estava disposto a fazer
o que o Altíssimo dele exigisse,
independentemente de quão difícil
ou tortuoso. Avraham dedicou sua
vida a executar a Vontade Divina.
Consequentemente, desfrutou de
um nível extremamente elevado de
Graça Divina.

Recordemo-nos da lei do guardião


não remunerado: ele é isento de
qualquer responsabilidade, exceto
em caso de negligência. Como
ele não espera pagamento ou
recompensa por seu serviço a D’us,
os Céus o tratam com grande
compaixão, pois a Corte Celestial
percebe que quaisquer erros que ele
possa cometer são totalmente não
intencionais. Transgressões e pecados
não são parte de sua realidade.

32
REVISTA MORASHÁ i 99

Ele pode até cometer erros – que


podem ser perdas e danos não
intencionais –, mas recebe perdão
pelos mesmos, porque ele trabalha
incessantemente em favor de D’us
sem esperar nada em troca.

No entanto, a Torá determina


que o guardião não remunerado
é responsável em caso de
negligência. Isso significa que
mesmo esse guardião não pode
agir irresponsavelmente. O Talmud
nos ensina que “não dependemos
de milagres”. Ser um guardião não
remunerado – e, portanto, desfrutar
do cuidado e graças Divinas – não
significa que a pessoa pode pular
pela janela e esperar que a Divina
Providência a salve. Mesmo os
guardiães não remunerados não
podem negligenciar sua saúde, seu
trabalho e seu sustento, nem sua
segurança pessoal. Se agir com
negligência e irresponsabilidade,
ele será responsável por danos
e destruição, como determina a
lei do guardião não remunerado.
Mesmo um ser humano realmente
justo e íntegro, que serve a D’us
por amor e vive para cumprir Sua Os Talmudistas: Pintura a óleo, Max Weber, Museu Judaico, Nova Iorque

Vontade, deve viver com cuidado e


responsabilidade.
tomador pode dar uma meia-volta Como todos nós, judeus, somos
Os Quatro Guardiães de 180 graus em sua vida e se tornar não apenas os descendentes, mas
e o Livre Arbítrio um guardião não remunerado. também a personificação de nossos
Os três Patriarcas – Avraham, três Patriarcas, cada um de nós tem
Um dos princípios fundamentais Itzhak e Yaacov – foram paradigmas o potencial de ser um guardião não
da Torá é que D’us atribui o livre do guardião não remunerado. A remunerado. Trata-se do caminho
arbítrio aos seres humanos. Todos Cabalá se refere a eles como as mais nobre que um ser humano pode
podem escolher como viver e como “rodas da Carruagem Divina”. Assim percorrer em sua vida: servir a D’us
se relacionar com D’us e com o como as rodas de uma carruagem por amor e buscar a verdade apenas
Seu mundo. Podemos optar por não possuem vontade própria, e por ser verdadeira, e a virtude, apenas
ser tomadores, locatários, guardiães apenas seguem as ordens de seu por ser virtuosa.
remunerados ou guardiães não condutor, também os três Patriarcas
remunerados, e a Divina Providência viveram apenas para cumprir as
retribuirá conforme nossas opções. determinações do Condutor do Bibliografia:
Contudo, ter livre arbítrio também Universo e cumprir Sua Vontade. Rabi Menachem Mendel Schneerson, Likutei
significa que temos o poder de Amavam a D’us e O serviam com Sichot, Mishpatim (Volume 31:17)
transitar de uma categoria a outra de todo o seu coração e com toda a sua Rabbi Y.Y. Jacobson - Four Guardians and
their Psychological Application - https://www.
guardiães. Mesmo aquele que é um alma. theyeshiva.net/jewish/97

33 abril 2018
SHOÁ

A Resistência Judaica
durante o Holocausto
Recentemente os historiadores passaram a considerar o número
de judeus brutalmente assassinados pelo Terceiro Reich em
torno de 7milhões – e não mais 6 milhões. A pergunta muitas vezes
feita é por que estes não resistiram? Por que não lutaram? Por
que se deixaram levar “como ovelhas”? Quem pergunta tem a
objetividade do tempo transcorrido desde então e nenhuma
vivência pessoal de um horror que a mente humana não
consegue assimilar. Mas a pergunta precisa ser respondida.

U
ma guerra sem fronteiras havia sido ação armada? Historiadores concordam que há duas
declarada pela Alemanha de Hitler categorias básicas: a resistência civil, não violenta, e
contra o Povo Judeu, sem restrição a armada. E, mesmo a armada é subdividida entre
de homens ou armamentos. O fato a ofensiva e a chamada acorrentada. A resistência
colocava os judeus numa situação ofensiva inclui operações armadas não convencionais,
extremamente difícil. Eles não possuíam um Estado, ações de guerrilheiros ou de sabotagem. Um exemplo
tampouco forças de combate treinadas; e nem aliados. da resistência ofensiva foi a luta dos partisans1 nos
Eram uma minoria civil desarmada, espalhada em territórios sob domínio alemão. A acorrentada, por sua
todos os países da Europa. No Leste Europeu eram vez, implica em ações armadas em situações em que
desprezados. Hoje, temos provas e testemunhos de são praticamente nulas as esperanças de sobrevivência.
que houve centenas de atos, individuais e de grupo, de O Levante do Gueto de Varsóvia, há 75 anos, em abril
resistência judaica aos nazistas nos países da Europa de 1943, assim como os levantes ocorridos em outros
Ocidental e Oriental. Essa resistência se manifestou guetos e campos de concentração, são exemplos de
de forma diferente dependendo do país, do grau de resistência acorrentada.
antissemitismo da população local e do momento
histórico. Há testemunhos sobre centenas de atos individuais de
mulheres e homens judeus, que, sendo levados à morte,
Um dos grandes desafios na historiografia da tentaram ferir seus algozes com facadas e até mesmo
resistência judaica durante o Holocausto é a definição mordidas. E, é um fato histórico de que dezenas de
do que deve ser considerado como “resistência” a milhares de judeus participaram da resistência armada,
um poder opressor. Deve-se considerar apenas a engrossando as fileiras dos movimentos nacionais
de resistência, os partisans, na luta contra o inimigo
comum. (Apenas em território polonês, com raríssimas
1
A expressão é geralmente usada para se referir aos grupos
armados organizados que combatiam o domínio nazista exceções, os grupos de resistência não aceitavam judeus
na Europa ocupada, durante a 2ª Guerra Mundial. em suas fileiras).

34
REVISTA MORASHÁ i 99

yad vashem, israel. memorial em homenagem aos partisans e soldados judeus na 2ª guerra mundial

Nunca é demais enfatizar que os Na Polônia, trancafiados em França, Bélgica e assim por diante.
partisans operavam apenas em ações guetos, isolados e sem qualquer Sem ajuda era quase impossível se
de guerrilhas.Um enfrentamento meio de comunicação com o esconder, e sobreviver. A população
aberto, com armas em punho, contra exterior, os judeus criaram uma não judaica muitas vezes era hostil;
os alemães ocorreu em apenas ativa resistência civil, entre outras, no melhor dos casos, indiferente a
três ocasiões – em Varsóvia, Paris organizações assistenciais, religiosas eles e à sua sorte. Em sua caça aos
e Eslováquia, no final do verão e educacionais clandestinas. E judeus, os nazistas contavam com a
europeu de 1944. Nas três ocasiões conseguiram realizar levantes ajuda entusiasmada de ucranianos,
os resistentes sabiam que as forças armados em cinco dos principais lituanos e poloneses. E aquele que
Aliadas estavam próximas. guetos, em 45 dos menores, em decidisse ajudar um judeu, sabia que,
cinco campos de concentração e se descoberto, seria executado.
Em toda a Europa sob domínio extermínio, e em 18 campos de
nazista foram muito frequentes os trabalhos forçados. Ademais, qualquer tipo de
casos de ajuda por parte de judeus a resistência por parte de uma
seus correligionários “em perigo ou A fuga era uma maneira de resistir. nacionalidade qualquer era
em fuga”, de salvamento de crianças, Mas, mesmo quando os judeus fortemente inibido pela polícia
de proteção aos que se escondiam. tinham os meios e a oportunidade, nazista e seus métodos de terror.
E, enquanto aumentavam os as dificuldades eram enormes. Porém, aos judeus os nazistas
esforços nazistas para erradicar os A pergunta era “para onde ir? ”. reservavam um “tratamento
judeus da História, dia após dia eles Praticamente nenhum país lhes especial”. A punição a um não judeu
registravam a vida sob ocupação abrira suas portas. Os que tiveram suspeito de um ato de resistência
nazista, inclusive nos campos de tempo de escapar para outros países era, em muitos casos, a execução
concentração. Escrever era uma da Europa não foram rápido ou sumária; a tortura era usada para
forma de resistir, era deixar a prova longe o suficiente; judeus alemães extrair informações. Porém, para
dos crimes nazistas. e austríacos foram capturados na um resistente judeu a execução

35 abril 2018
SHOÁ

sumária era a melhor opção, pois, montaram lares de infância coletivos


via de regra, ele devia “ser morto no sul da França. Os Éclaireurs
da maneira que mais conduzisse à Israélites e outros movimentos
disciplina e que impedisse qualquer judaicos juvenis tiveram papel crucial
outro tipo de resistência”. O sadismo quando a perseguição ativa aos
nazista não teve limites. No Leste judeus chega ao país.
da Europa, os resistentes judeus
eram esfolados, queimados vivos, Por toda a Europa havia judeus
jovens judias recebiam injeções de engajados em ajudar seus
veneno que provocavam espasmos correligionários “em perigo ou em
musculares antes da morte. Em fuga”. A partir da França, a entidade
Minsk, o comandante das SS cegava judaica Oeuvre de Secours aux Enfants
os judeus capturados com ferro em (OSE), adotando o lema “Il faut
brasa e os enviava de volta para seus sauver les enfants! ” (É preciso salvar
companheiros, como um “alerta”. Emanuel Ringelblum as crianças), organizou uma rede
clandestina de resgate de crianças
Mas, acima de tudo, a resistência Portanto, a pergunta a ser feita é judias de toda Europa, que ficou
era inibida pela política alemã “como pôde haver uma resistência? ”. conhecida como Circuit Garel.
de “responsabilidade coletiva”. A OSE os transportava para o sul
Essa tática de retaliação atribuía Na Europa Ocidental da França, acomodando-os em
a responsabilidade a famílias, até lares e orfanatos. Em 1943, com
a comunidades inteiras por atos Nos países da Europa Ocidental a intensificação das deportações,
individuais de resistência. No caso são muitos os exemplos de conseguiram contrabandeá-las para
judaico, a retribuição podia atingir resistência judaica – individual a Suíça.
todos os habitantes de um gueto. e organizada, civil e armada. Na
Caso um judeu fosse encontrado França, por exemplo, às vésperas Como mencionamos acima, milhares
fugindo, de posse de um rádio, um da eclosão da 2ª Guerra, quando as de judeus combateram nas fileiras
telefone ou uma arma, dezenas autoridades francesas anunciaram dos movimentos nacionais de
ou até centenas de judeus eram que evacuariam crianças francesas resistência na França, Bélgica, Itália,
assassinados em represália. E, na de Paris, os líderes dos Éclaireurs Iugoslávia, Grécia e Eslováquia. Na
eventualidade de um judeu ferir Israélites, (Escoteiros Judeus) França, foi grande o número de
ou matar um alemão, os números organizaram a saída das crianças judeus na Resistência Francesa, La
chegavam a milhares. judias das famílias de imigrantes e Résistance. Muitos inclusive
ocuparam posições de liderança. Um
dos grupos da Résistance era a Armée
Juive (Exército Judeu), que operava
no sul da França.

Quando os britânicos criaram


a Special Operations Executive
(SOE) para espionar os inimigos
e organizar os movimentos de
resistência, entre os agentes de
campo infiltrados atrás das linhas
alemãs havia muitos judeus,
principalmente mulheres.
Na Grécia, o rabino Barzilai e os
líderes comunitários que faziam
parte do Judenrat de Atenas
decidiram não atender nenhuma
partisans judeus em vilna, entre eles Abba Kovner exigência nazista e agiram

36
REVISTA MORASHÁ i 99

rapidamente. Foram queimadas


todas as informações sobre a
comunidade, o rabino raspou a
barba, juntando-se aos partisans
nas montanhas e incentivando
todos os judeus a fugir. Entre
os que se juntaram aos partisans
gregos, destacam-se 40 indivíduos
integrantes do grupo que explodiu a
ponte da principal ferrovia, ligando o
norte ao sul da Grécia.

A resistência não
armada no Leste
Europeu

Os guetos no Leste Europeu eram


centros de morte lenta. Os judeus
morriam de fome e de frio, pois
a quantidade oficial de alimentos
e combustível que os nazistas shabat no gueto de varsóvia, 1943
destinavam a eles era ínfima e
constantemente reduzida. Morriam
nas ruas por nenhum motivo além de muros do gueto, muitas vezes por Em Varsóvia, os “comitês das
serem judeus. Em Varsóvia, a taxa de crianças. Era o contrabando que residências” atuavam para cuidar dos
mortalidade chegou a mil por semana. mantinha o gueto vivo. que moravam em seus complexos
habitacionais. Em muitos casos, as
Os judeus procuraram resistir A “comunidade paralela” criou atividades sociais davam cobertura a
à política nazista de inanição e refeitórios, orfanatos, clínicas movimentos políticos ilegais.
desumanização. No início do seu e abrigos para refugiados e os
confinamento – quando ninguém mais pobres. Organizava ensino Sendo a prática da religião judaica
podia sequer imaginar a possibilidade clandestino e atividades culturais. proibida, uma resistência religiosa
de um extermínio em massa ou de entra em ação para ajudar os
câmaras de gás – a preocupação judeus a observarem leis e feriados
girava em volta da sobrevivência religiosos. Em casa de orações
física, moral e espiritual. clandestinas havia diariamente
minyanim; apenas em Varsóvia
Na maioria dos guetos maiores, uma eram cerca de 600. Os rabinos
“comunidade paralela”, uma rede continuavam a lecionar, a escrever
de organizações sócias, assistências, comentários, a realizar casamentos,
e políticas underground, incluindo Brit milot, Bar Mitzvás. Jovens
movimentos juvenis, passou a continuaram a estudar em yeshivot
funcionar. Seus líderes haviam saído clandestinas.
das fileiras das instituições judaicas,
dos movimentos juvenis sionistas Os médicos judeus não tinham
e dos partidos de esquerda do pré- acesso a medicamentos para salvar
guerra. os doentes já enfraquecidos pela
fome. Ao se dar conta de que a
Alimentos, mercadorias guerra contra a fome estava perdida,
e medicamentos eram membros do grupo da “comunidade passaram a estudar os efeitos da
paralela” em przytyk, polônia,
contrabandeados para dentro dos durante distribuição de pão inanição em seu próprio corpo e nos

37 abril 2018
SHOÁ

cadáveres. Suas conclusões foram da política alemã em relação aos silenciada. Dia após dia, cidade
publicadas após a guerra, em Paris. judeus. Com a invasão, dá-se início à após cidade, os nazistas destruíram
matança rápida e indiscriminada de sistematicamente comunidades
Sob domínio nazista era “ilegal” que todo e qualquer judeu, independente judaicas inteiras. Não foram poucas
os judeus possuíssem rádio, telefone de idade ou sexo. Crianças de colo as vezes em que foram “ajudados”
ou que publicassem um jornal. não eram poupadas. pela população local. Os alemães
No entanto, a maioria dos grupos sabiam e exploraram ao máximo o
políticos clandestinos lutava contra A velocidade, e sigilo e ardis usados antissemitismo reinante no Leste
o isolamento judaico publicando pelos alemães e seus colaboradores europeu.
jornais e boletins clandestinos. eram essenciais para o “bom
As notícias eram compiladas de andamento das operações”. Quando Apesar do esforço alemão para
transmissões soviéticas ou da BBC, havia qualquer tipo de resistência, manter a “Solução Final” em sigilo
em rádios escondidos. esta era brutal e imediatamente absoluto, alguns judeus rastejaram

Muitos, judeus e não judeus,


registram a vida sob julgo nazista,
mas os arquivos mais completos
foram coletados pelo grupo
“Oyneg Shabbes “, fundado em
Varsóvia pelo historiador Emanuel
Ringelblum. As palavras de ordem
de Ringelblum eram “reunir material,
juntar impressões e registrá-las,
imediatamente”. Ele acreditava que
os arquivos permitiriam ao mundo
pós-guerra ouvir as vozes dos que
foram silenciados. Eram registros dos
crimes cometidos pelos nazistas, e da
vida, e morte dos judeus no gueto de
Varsóvia e no resto da Polônia.
resistência judaica na frança

Um parêntese precisa ser aberto a


respeito dos Judenrats, os Conselhos com vida das valas onde os nazistas
Judaicos criados pelos nazistas para os havia jogado junto com centenas
executarem suas ordens. As atitudes de outros que haviam sido mortos
de vários desses Conselhos são até a tiro. Eles revelavam aos judeus
hoje questionadas e criticadas, mas que os encontraram “o crime
não cabe aqui analisar suas ações ou sem nome” que vivenciaram. A
razões. Porém, é preciso ressaltar que princípio, a maioria dos líderes dos
muitos foram forçados a assumir movimentos judaicos clandestinos
o cargo, sob pena de morte, e que receberam os relatos dos assassinatos
os Conselhos eram impotentes em massa com ceticismo; os que
frente aos nazistas. Suas tentativas acreditaram não conseguiram
de aliviar as condições de vida nos interpretar o verdadeiro alcance
guetos raramente tinham sucesso. dos acontecimento. Em 1942, os
testemunhos de judeus que haviam
O ponto de inflexão fugido de campos de extermínio
fizeram-nos estremecer. A resistência
A operação Barbarossa, a invasão da polonesa também alertara seus
União Soviética iniciada em junho muitos dos que escaparam à morte
pelos einzatsgruppen filiaram-se aos
contatos em Varsóvia sobre o
de 1941, marcou o ponto de inflexão grupos de partisans, nas florestas que acontecia com os judeus em

38
REVISTA MORASHÁ i 99

Treblinka. Um dos membros do


Bund é então enviado para investigar,
e volta com a confirmação de que
se tratava de um campo de morte,
onde os judeus eram assassinados
em câmaras de gás. Outros couriers,
foram despachados para averiguar
e repassar as informações. Eles
também voltam com a confirmação
dos massacres. Esses jovens, em
sua maioria mulheres, haviam
criado uma rede de comunicação
para conectar vários guetos. Com
documentos falsos viajavam por
toda a Polônia levando informações,
jornais clandestinos e dinheiro; partisans do grupo de bielski
compravam e contrabandeavam
armas para dentro dos guetos e
organizavam rotas de fuga. Resistência armada Os inimigos eram implacáveis e as
represálias, selvagens. E, o crime
Ao receber confirmação dos Vimos acima que a ferramenta supremo – matar um alemão – era
assassinatos em massa e das câmaras nazista mais potente contra vingado com rios de sangue judaico.
de gás, as lideranças compreenderam a resistência era a tática da Os exemplos não terminam. Em
a realidade da “Solução Final”. “responsabilidade coletiva”. A Dolhyhnov, próximo a Vilna, toda a
Perceberam que para evitar uma pessoa podia estar decidida a lutar, população do gueto foi assassinada
revolta em massa, os judeus eram a enfrentar a tortura e a morte. após a fuga de dois meninos que
ludibriados de forma a pensar que Mas estaria preparado para ver que se recusaram a voltar atrás. Em
apenas estavam sendo levados a suas decisões levaram os nazistas Bialystok os alemães atiraram
campos de trabalho. Os nazistas a assassinar seus familiares, seus em 120 judeus, em plena rua do
eram “ajudados” pela tendência do amigos, quem sabe, o gueto inteiro? gueto, após um judeu ter matado
ser humano de racionalizar e de
negar o pior. “Por que os nazistas
nos matariam se podiam explorar
nossa mão de obra? Vamos trabalhar
nas piores condições possíveis, como
escravos, mas vamos sobreviver”.

Para os movimentos clandestinos,


a estratégia de não-provocação até
então adotada, facilitava os planos
dos nazistas. Decidiram que era
imprescindível convencer outros
judeus a resistir às deportações,
convencendo-os de que eram o passo
inicial para a liquidação judaica. E
decidiram que era preciso enviar
as informações para os Aliados, na
esperança de que algo fosse feito em
seu socorro. Iludiam-se pensando
que a falta de ajuda decorria da falta
de conhecimento... denise bloch, vulgo “ambroise muryel byck, vulgo “violette”

39 abril 2018
SHOÁ

um policial alemão, e ameaçaram Os que optaram pela fuga, que viviam no lado “ariano” tinham
destruir o gueto inteiro se ele procuraram abrigo nas florestas. que comprar ou roubar armas, e
não se rendesse – o que acabou Alguns juntaram-se às unidades contrabandeá-las para dentro dos
acontecendo... de partisans soviéticos, outros guetos sem serem detectados.
conseguiram formar grupos
Os movimentos juvenis e os partidos separados. Mas, muitos morreram No entanto, estavam preparados
de esquerda e o Judenrat – que de fome ou pelas mãos de partisans para lutar e morrer; sua honra e a
diferiam em muitos assuntos – ou camponeses poloneses: o ódio honra do Povo Judeu estavam em
estavam de acordo em que uma da população em relação aos judeus jogo. Sabiam que não sobreviveriam,
resistência armada só poderia era mais forte do que o ódio que mas “por que não resistir quando a
acabar em morte para os judeus. E, nutriam pelos alemães. alternativa era a morte em momento
enquanto houvesse a possibilidade e local escolhidos pelos nazistas?”,
de sobrevivência, ainda que para uma A situação dos que ficaram para escreveu um dos combatentes do
minoria, teriam que aguardar. Mas lutar era desesperadora e o tempo Levante do Gueto de Varsóvia,
eles se preparariam... corria contra eles. Rodeados por “Estamos sendo impelidos pelo
uma força militar alemã treinada e desespero aliado ao desejo de
Em 1942 são criadas organizações equipada estavam em inferioridade vingança. Nossos familiares foram
de resistência armada. A primeira numérica e seu “armamento” abatidos como gado e atirados
delas, a FPO, Organização dos era irrisório; e era extremamente em covas sem nome. O simples
Partisans Unidos, foi formada em difícil e perigoso obter armas. pensamento de dar um fim à vida de
Vilna. Um de seus comandantes, Os combatentes judeus não recebiam alguns alemães, que fosse, já é um
o poeta Abba Kovner, foi um dos armas, alimentos ou remédios poderoso incentivo”.
primeiros a entender as intenções “caídos dos céus”, jogados pelos
nazistas. Num discurso inflamado Aliados, como os demais grupos de Nos guetos maiores, os combatentes
em uma reunião underground, resistência. Os couriers ou os judeus das organizações clandestinas sabiam
Kovner conclama seus irmãos, que não podiam contar, de modo
judeus, a resistir. “Não acredite geral, com o apoio dos Judenrat, nem
naqueles que pretendem enganar- com a população geral do gueto.
nos.... O plano de Hitler é eliminar Muitos líderes desses conselhos
todos os judeus da Europa. eram ambivalentes quanto a ajudar a
É melhor cair como guerreiros do resistência porque esperavam que a
que viver à mercê dos assassinos. maior parte da população do gueto
Levantem-se! Ergam-se com suas pudesse ser salva com seu trabalho,
últimas forças!” e viam a rebelião armada como um
plano suicida. Apenas em Kovno
O ZOB (Zydowska Organizacja e Minsk, os líderes do Judenrat
Bojowa, Organização de cooperaram com o movimento
Combatentes Judeus, em polonês) clandestino.
deu seus primeiros passos em
Varsóvia, em 1942, após a Grande A resistência mais bem-sucedida,
Deportação. Esse movimento uma fuga em massa, ocorreu em
de resistência seria decisivo na Minsk. Entre 6 mil a 10 mil judeus
organização do Levante do Gueto de fugiram para as densas matas, e
Varsóvia. alguns milhares sobreviveram
até o final da guerra. Em muitos
A finalidade e velocidade da guetos menores, nos territórios
Solução Final deixava duas ocupados no leste da Polônia
opções aos grupos de resistência e da então URSS, os membros
– que sobreviveram às deportações: dos Judenrat eram atuantes no
organizar fugas em massa ou ficar movimento ou cooperavam com a
nos guetos e lutar. brit milá no gueto de varsóvia, 1943 resistência. Em muitos desses guetos

40
REVISTA MORASHÁ i 99

irromperam revoltas espontâneas


durante sua liquidação final.

O exemplo mais famoso e dramático


de resistência judaica armada
durante o Holocausto foi o Levante
do Gueto de Varsóvia, em abril
e maio de 1943, que assumiu um
significado muito além da revolta
em si. Tornou-se um momento
decisivo na História Judaica, como
reconheceu Mordechai Anielewicz,
líder da ZOB, ao escrever sua
derradeira carta duas semanas antes
de sua morte. Judeus do Gueto de Varsóvia sendo deportados

Revolta nos campos


pouca esperança de fuga. Quem na Universidade Hebraica de
Durante a Guerra, no período de tentava resistir ou fugir era morto de Jerusalém, e Consultor Acadêmico
1939-1945, milhões de pessoas imediato. no Yad Vashem, é um dos
passaram por uma extensa rede historiadores e pesquisadores que,
de milhares de diferentes campos Mas, apesar desses enormes em seu livro Rethinking the Holocaust
erguidos na Alemanha e nos países obstáculos, houve vários atos de (“Repensando o Holocausto”),
europeus ocupados por esse poder. resistência em diversos campos. respondeu à pergunta: “Por que
Mesmo nos de extermínio, à sombra os judeus não resistiram? ”. Ele
Acredita-se que 5,7 milhões de das câmaras de gás e crematórios, escreveu: “A análise sobre a reação
judeus, entre homens, mulheres e os judeus encontraram formas ativa judaica à opressão nazista
crianças foram mortos nos campos de resistir a seus opressores: lutar poderia resumir-se de maneira quase
nazistas. A maioria foi envenenada contra a desumanização. Havia triunfalista: havia uma resistência
por gás Zyklon-B logo após sua tentativas organizadas pelos não armada, havia a santificação da
chegada em um dos seis campos movimentos clandestinos para vida, havia a resistência armada...
de extermínio estabelecidos em informar ao mundo a brutalidade Ao se revoltar contra o regime
território polonês: Chelmno, Belzec, nazista, as cruéis condições físicas e hitlerista, que visava exterminar toda
Sobibor, Treblinka, Auschwitz- a sistemática aniquilação de judeus a população judaica, os judeus não se
Birkenau e Majdanek. nesses campos do inferno. Os judeus envolveram em um ato de heroísmo.
rezavam, acendiam velas de Chanucá; Eles simplesmente quiseram
A atmosfera de total terror e um par de tefilin era um bem preservar a substância moral e
isolamento, nos campos, bem como precioso... material de nosso povo. Seu sucesso
a inanição crônica da maioria dos lhes garantiu a imortalidade”.
prisioneiros inibiram completamente Três levantes corajosos e ousados
sua vontade e suas possibilidades ocorreram nos centros de morte de
de resistir. A rotina diária nos Treblinka, Sobibor e Auschwitz-
campos era organizada de forma Birkenau. De forma semelhante
BIBLIOGRAFIA
brutal. Incluía um sistema elaborado às rebeliões nos guetos, as revoltas Dawidowicz, Lucy, The War Against the
de duros castigos pelas menores organizadas nesses centros, onde Jews: 1933-1945
“infrações”, vigilância acirrada e a humanidade chegou ao seu Gutman, Israel, Resistência: O levante do
intermináveis chamadas para a nível mais baixo, surgiam do puro gueto de Varsóvia
contagem dos prisioneiros. desespero e desesperança. Kassow, Samuel D,Who Will Write Our
History?: Rediscovering a Hidden Archive
Cercas de arame farpado e de alta from the Warsaw Ghetto. Ebook Kindle
voltagem, cães selvagens amestrados Yehuda Bauer, Professor Emérito de Gilbert, Martin, The Holocaust. Ebook
e torres de segurança deixavam História e Estudos do Holocausto Kindle

41 abril 2018
DESTAQUE

A Polônia e a
negação do passado
POR JAIME SPITZCOVSKY

Com o objetivo de tentar apagar páginas trágicas da história


de seu país e de sufocar o debate e a pesquisa, o governo
polonês aprovou uma lei que prevê até 3 anos de prisão a quem
apontar cumplicidade polonesa em crimes cometidos durante o
Holocausto. A ofensiva provocou forte reação internacional,
capitaneada por Israel e entidades judaicas.

U
m “ato de obscuridade histórica e e, no começo de fevereiro, foi sancionada pelo
um ataque à democracia”, definiu presidente Andrzej Duda. O governo da Polônia
o Congresso Judaico Mundial. disparou também campanhas para defender sua
O primeiro-ministro Binyamin iniciativa e registrou aumento de popularidade no
Netanyahu descreveu a lei polonesa cenário doméstico. O índice de aprovação do premiê
como “distorção da verdade, um reescrever da história Mateusz Morawiecki, na pesquisa do instituto
e uma negação do Holocausto”. polonês IBRiS, subiu de 55% para 57%, enquanto
o presidente Andrzej Duda testemunhou sua taxa
Em Israel, sobreviventes do Holocausto protestaram alcançar 57%, um aumento de 8 pontos percentuais
diante da Embaixada da Polônia. Uma mulher em relação à sondagem do mês anterior.
segurava um cartaz: “Ainda tenho pesadelos
lembrando o que os poloneses fizeram”. Dos Desde 2015, a Polônia é governada pelo Partido
Estados Unidos, partiram pedidos para Washington da Lei e Justiça, dono de uma cartilha ideológica
suspender relações diplomáticas com Varsóvia. baseada no nacionalismo e no conservadorismo
católico. Seus líderes defendem plataformas anti-
A primeira votação da lei polonesa ocorreu na Câmara imigração e xenófobas, além de surfarem na onda
dos Deputados no dia 26 de janeiro, exatamente antiglobalização, em curso sobretudo na Europa
véspera do Dia Internacional em Memória das e nos Estados Unidos, após a crise financeira
Vítimas do Holocausto. A data foi escolhida pelas internacional de 2008-9.
Nações Unidas porque, a 27 de janeiro de 1945,
tropas soviéticas libertaram o campo de extermínio de No cenário europeu, o avanço de grupos de extrema
Auschwitz, localizado no sul da Polônia. direita, baseados em ideologias de exacerbado
nacionalismo, se verificou nas eleições presidenciais
Depois de aprovada pelo Sejm, a câmara baixa do francesas, nas quais, apesar da vitória de Emmanuel
Parlamento, a lei passou por aprovação do Senado, Macron, Marine Le Pen amealhou uma votação

48
REVISTA MORASHÁ i 99

campo de concentração de Auschwitz

histórica para seu partido, a Frente ascendente: Patryk Jaki, 32 anos, e argumenta que o projeto busca
Nacional. Áustria e Hungria, entre vice-ministro da Justiça e com acabar com a “cultura enganosa
outros países do velho continente, manifestas ambições de crescer na de vergonha” sobre o tratamento
também testemunharam o política local. Jaki é descrito como “a reservado aos judeus na Polônia
fortalecimento de partidos com figura por trás” da lei do Holocausto durante a 2ª Guerra Mundial.
plataformas anti-imigração, anti-
islâmica e antissemita. “Quem acusar, publicamente e
contra os fatos, a nação polonesa,
O governo polonês entrou em ou o Estado polonês, de ser
choque recentemente com outros responsável ou cúmplice dos
países europeus, que criticaram crimes nazistas cometidos pelo
uma série de medidas voltadas a Terceiro Reich alemão...ou
limitar a liberdade de imprensa outros crimes contra a paz e a
e a tentar restringir a autonomia humanidade, ou crimes de guerra,
do poder judiciário. Apesar dos ou, ao contrário, diminuir de
atritos, o Partido da Lei e Justiça forma extensiva os verdadeiros
deseja manter a Polônia na perpetradores, estará sujeito a
União Europeia, à qual Varsóvia uma multa ou a uma pena de
aderiu em 2004, mas critica o que prisão de até três anos”, sustenta
define como “excesso de poderes um dos trechos da lei patrocinada
concentrados” em Bruxelas. por Patryk Jaki.

Na sua ofensiva nacionalista e No começo do conflito, mais de


populista, o partido governista 3 milhões de judeus viviam na
polonês conta com uma estrela presidente Andrzej Duda Polônia, à época epicentro da vida

49 abril 2018
DESTAQUE

e Jan Grabowski, ambos


nascidos na Polônia, mas
vivendo no exterior. Gross
leciona em Princeton, nos EUA,
enquanto Grabowski trabalha
na Universidade de Ottawa, no
Canadá.

Os dois acadêmicos se dedicam a


estudar a relação entre poloneses
e judeus durante o Holocausto.
Em 2000, Gross publicou o livro
“Neighbours” (Vizinhos), no qual
relata o massacre da população
parlamento da polônia
judaica do vilarejo de Jedwabne,
em 1941, por outros habitantes
do local. Estimativas falam em até
Em meio à ofensiva judaica na Europa. Sobreviveram 1,6 mil mortos.
ao Holocausto apenas cerca de
nacionalista do 300 mil, menos de 10%. Após Gross teve sua obra traduzida
governo de Varsóvia, 1946 e com a instalação do para o polonês. Em 2001, numa
regime comunista imposto por cerimônia para marcar os 60 anos
é importante Moscou, a população judaica caiu da tragédia, o então presidente
também lembrar que para 100 mil. Atualmente, polonês, Aleksander Kwasniewski,
houve poloneses a comunidade contabiliza menos visitou Jedwabne e pediu
de 10 mil integrantes, segundo desculpas. “Isso foi um crime
empenhados em salvar dados do Congresso Judaico particularmente cruel”, declarou
judeus e que pagaram, Mundial. ele em discurso transmitido ao
vivo pela TV polonesa.
por suas iniciativas, Vários pesquisadores do A iniciativa presidencial enfrentou
com a própria vida. Holocausto e da 2ª Guerra forte resistência em meios
Mundial se empenham em políticos do país.
combater a ofensiva nacionalista
vinda de Varsóvia, em especial os As iniciativas de Kwasniewski
historiadores Jan Gross ficaram para trás, assim como
o diálogo do governo polonês
as crianças sobreviventes de Auschwitz
com o historiador Jan Gross.
Atualmente, o autor de
“Neighbours” enfrenta uma
campanha publicitaria contra seu
trabalho, apoiada por autoridades
em Varsóvia, ligadas ao Partido da
Lei e Justiça.

Em janeiro de 2016, o atual


presidente, Andrezj Duda, pediu a
“reavaliação” de uma condecoração
governamental outorgada a
Gross, sob o argumento de que
o historiador “buscava destruir o
bom nome da Polônia”.

50
REVISTA MORASHÁ i 99

A iniciativa não prosperou, após


intensa reação doméstica e,
sobretudo, internacional.

Mais um historiador polonês no


radar dos nacionalistas poloneses,
Jan Grabowski publicou o livro
“Caça aos Judeus: Traição e Morte
na Polônia ocupada pela Alemanha”.
Em entrevista recente à mídia
israelense, Grabowski disse que,
num “cálculo conservador”, 200
mil judeus foram assassinados por
iniciativa direta de poloneses, sem
participação de nazistas.
manifestantes em israel protestam contra a lei da retórica do holocausto

Após a guerra também foram


registrados trágicos episódios judeus e que pagaram, por suas durante a 2ª Guerra Mundial.
de violência contra judeus que iniciativas, com a própria vida. Tais ações do Yad Vashem são
sobreviveram ao Holocausto. Entre Em 30 de janeiro, logo após a altamente elogiáveis. Inadmissíveis,
os ataques, o Pogrom de Kielce, tramitação da lei do Holocausto no entanto, são as iniciativas
quando, a 4 de julho de 1946, na Câmara dos Deputados em recentes do governo polonês,
militares e civis poloneses atacaram Varsóvia, o Yad Vashem, em arquitetadas para ofuscar um
um centro de refugiados e mataram Jerusalém, realizou uma cerimônia capítulo trágico da história de seu
42 pessoas. Feriram mais de 40. para homenagear a família país.
Dziadosz, que se arriscou para salvar
Em meio à ofensiva nacionalista do judeus nos anos 1940.
governo de Varsóvia, é importante
também lembrar que houve O Yad Vashem já homenageou Jaime Spitzcovsky foi editor
internacional e correspondente da
poloneses empenhados em salvar 6.706 poloneses por suas ações Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim

O campo de concentração de Auschwitz

51 abril 2018
COMUNIDADES

A vida dos judeus em Fez


Os judeus figuravam entre os primeiros habitantes da recém-
criada Fez, no final do século 8. Rapidamente, se tornaram
parte integral da cidade, exercendo importante papel em todas
as áreas. Sua vida e bem-estar, no entanto, estavam sempre à
mercê dos governantes, e eles viveram períodos de estabilidade
e prosperidade e outros de grande sofrimento. Importantes
rabinos, sábios e cabalistas viveram em Fez, entre outros o
Rabi Yitshak Al-Fassi e o próprio Maimônides. Hoje, apenas cerca
de 150 judeus vivem na cidade.

F
ez é localizada no Centro-norte do consigo o idioma árabe e o Islã, surgido por volta do
atual Marrocos, entre as cordilheiras do ano 630. Embora fazendo parte do Império Islâmico,
Rife e Médio Atlas. Juntamente com Marrocos era uma província subsidiária da província de
Rabat, Meknès e Marraquesh, é uma Ifríquia1.
das Cidades Imperiais, assim chamadas
por terem sido capital das dinastias islâmicas que Para os judeus, a conquista árabe da região foi um
governaram o Reino de Marrocos através dos séculos. período de grande sofrimento. Inúmeras comunidades
foram devastadas, provocando a fuga de milhares de
A história da comunidade judaica de Fez se inicia judeus, que somente retornariam no início do século
no século 9, logo após a fundação da cidade. Mas a seguinte.
presença de judeus na região do atual Marrocos é bem
mais antiga. Há provas de que eles lá viviam a partir A primeira dinastia islâmica sunita estabelecida
da destruição do Segundo Templo, em 70 E.C., e há surgiu quando Idris I (Idris ibn Abdullah) tomou o
pesquisadores que acreditam que a presença judaica poder, em 788, e fundou o reino do Marrocos. Ele foi
remonte ao período do Primeiro Templo. fundamental para a islamização de seus domínios, não
poupando esforços na conversão de seus súditos ao Islã.
No século 7, quando o Norte da África foi Foi Idris I quem fundou a cidade de Fez, num wadi2 à
conquistado por exércitos árabes, certamente havia margem direita do Rio Fez, tornando-a capital de seu
judeus na região. A conquista muçulmana trouxe reino.

Seu filho e sucessor, Idris II, famoso por seus dons


1
Ifríquia ou Ifriquia é, na história do Islamismo medieval, um intelectuais, mantinha boas relações com os judeus do
território do Norte de África, e corresponde à atual Tunísia,
noroeste da Líbia e nordeste da Argélia. reino, o que permitiu o desenvolvimento do judaísmo
2
Wadi - um leito seco de rio no qual as águas correm apenas na marroquino. Vinte anos após seu pai ter fundado
estação das chuvas. a cidade, Idris II a funda novamente, dessa vez na

52
REVISTA MORASHÁ i 99

portão do palácio real, fez, Marrocos

margem à esquerda do Rio Fez. de 30 mil dinares – uma verdadeira tributos eram a maior fonte de
A chegada de 2 mil famílias árabes fortuna à época – referente ao jizya, ingresso nos cofres públicos e essa
atribuiu à cidade seu caráter árabe. a taxa anual que tinham que pagar. situação fiscal explica o interesse dos
A lei islâmica obrigava os não- governantes na prosperidade judaica.
Lá sediando seu governo, muçulmanos, os dhimmis, a pagar
Idris II começa a unificar o altos impostos para terem permissão Após a morte de Idris II, em 828,
Marrocos. Permite que os súditos de viver em terras islâmicas. Tais seu reino é dividido entre seus
judeus vivam em Fez e abre as herdeiros. Com a fragmentação do
portas da capital a judeus vindos de poder idríssida, o Marrocos entra
outros pontos do Norte da África, num período turbulento. Com isso,
e para um grande contingente a vida dos judeus se torna mais
vindo de Andaluzia, cujas aptidões difícil e, em várias ocasiões, eles são
comerciais e ampla rede de contatos alvo de violência.
regionais foram instrumentais para
enriquecer seu reino. Cedeu-lhes No decorrer dos séculos seguintes,
um bairro próprio, chamado de a região é palco de períodos de
al-Funduq al-Yahud, o Mercado instabilidade política e militar.
Judeu – garantindo-lhes proteção Com espantosa regularidade,
mediante pagamento de substancial uma dinastia suplantava outra e, na
quantia em ouro. transição de poder, os períodos
de paz eram substituídos por outros
Não tardou para que a comunidade de turbulência e matança.
judaica se tornasse numerosa, Caixa, com tampa arredondada. Toda a população era sujeita a
próspera e respeitada. Um sinal da Possivelmente utilizada para grande sofrimento, mas eram
guardar texto religioso.
riqueza dos judeus de Fez foi o valor Museu do Quai Branly, Paris os judeus os que mais sofriam.

53 abril 2018
COMUNIDADES

No mundo islâmico, os conflitos no século 11. Seu sobrenome Al- precária, mas, eventualmente
entre as dinastias eram exacerbados Fassi significa, em árabe, “o natural conseguiram reconquistar o
por disputas doutrinárias quanto de Fez”. tratamento favorável.
ao rigor da aplicação da lei islâmica.
E quando uma dinastia liberal era O RIF nasceu em 1013, em Kalat A relativa tranquilidade, porém,
substituída por uma mais extremista, ibn Hamad, uma aldeia próxima a chega ao fim, em 1147, quando os
os judeus eram expostos aos Fez, e, em 1045, mudou-se para a almôadas derrotam os almorávidas
riscos inerentes à sua condição de cidade, tornando-se líder e juiz da e conquistam o Marrocos. Tomam,
dhimmis. Sua vida e seu bem-estar comunidade judaica de Fez. Rabi sucessivamente, o Magrebe, grande
estavam sempre à total mercê dos Al-Fassi revolucionou a erudição parte da Península Ibérica e se
governantes, e o Marrocos e Fez não judaica e escreveu o Sefer haHalachot mantêm no poder até 1269.
foram exceções a essa regra. (Código de Leis), o primeiro códice
fundamental sobre as Leis da Torá. As invasões causaram destruição
Por volta do ano de 987, os Judeus vindos de todo o Norte e sofrimento para os judeus sob
governantes deportam parte da África acorriam para com ele domínio dos almôadas, (em
da comunidade judaica de Fez estudar na Yeshivá que portava seu árabe, al-Muwahhidun, ou seja,
para Ashir, na Argélia. E, em nome. Mas o Rabi Al-Fassi não “os monoteístas”), totalmente
1033, quando a tribo berbere dos passaria o restante de sua vida em intolerantes com os não-
Maghrawa, originária da região Fez. No ano de 1088, com 75 anos muçulmanos. Relatos da época
que hoje é o Norte do Marrocos de idade, foi forçado a fugir de sua falam de massacres, destruição e
e a Argélia, conquista a cidade, terra natal. conversões forçadas.
seis mil judeus são massacrados,
as mulheres judias deportadas e as Os Almorávidas Durante o terror dos almôadas Rabi
propriedades da população judaica e os Almôadas Moshe ben Maimon, Maimônides,
roubadas. Idêntica sorte caberia deixa Córdoba e vai para Fez, onde
aos que residiam em outras cidades Em 1068, os almorávidas permanece por cinco anos. Em um
marroquinas. conquistaram e saquearam Fez, de seus poemas, Rabi Ibn Ezra4
matando muitos judeus. De descreve a desgraça que se abateu
No entanto, a comunidade judaica temperamento violento, queriam sobre os judeus marroquinos, a quem
de Fez se reergue rapidamente. De aplicar com severidade a Lei os almôadas davam como opção
acordo com uma estimativa, 90 mil Islâmica (Sharia). Por algum tempo, a conversão, a morte ou o exílio.
judeus viviam na cidade no século a situação dos judeus se tornou Foi o único período na história
11. O viajante árabe al-Bakri3 relata marroquina em que os judeus
em sua obra que a cidade tem mais não podiam praticar sua religião.
judeus do que qualquer outra no Milhares deixam a região, muitos
Magrebe - em árabe, Al-Maghrib, encontrando refúgio em aldeias,
que significa “poente” ou “ocidente”, ao sul de Marrakesh, onde podiam
é a região noroeste da África. praticar o judaísmo abertamente.
Centenas dos que permaneceram
Um maiores Talmudistas de todos os sob julgo almôada, optam pela
tempos, Rabi Yitzhak Al- Fassi ha- morte.
Cohen, o RIF, viveu em Fez,
A maioria, no entanto, para salvar
a vida, aceita proforma o Islã,
3
 Al-Bakri (c. 1014-1094) foi um enquanto secretamente continua
historiador árabe de Andaluzia. praticando o judaísmo. Um dos
Considerado o maior geógrafo do mundo momentos mais dramáticos para
muçulmano.
a comunidade judaica marroquina
4
Rabi Ibn Ezra – Abraham ben Meir Ibn foi quando, consultado sobre a
Ezra (1089- 1167) viveu na Espanha e foi
grande erudito em Torá, conhecimento escolha feita, um sábio que vivia
artísticos e seculares. maimônides fora do Marrocos deu uma resposta

54
REVISTA MORASHÁ i 99

devastadora: teria sido melhor


escolher a morte à conversão.

Maimônides, que, à época, já residia


em Fez, levantou-se em defesa dos
criptojudeus. Ele escreve a famosa
“Carta sobre a Apostasia”, Igueret
ha-Chamad, na qual rechaça, com
veemência, a responsa do sábio. Na
Carta afirma que o sábio devia
desconhecer a realidade dos que
viviam sob o jugo almôada. Ademais,
afirma, no decorrer de nossa História
outros judeus haviam sido forçados
a aceitar, na aparência, uma fé que
não era a nossa, fato que, pela Lei
Judaica, não os transformara em não
judeus. No entanto, o ideal seria que
os judeus abandonassem os lugares
onde fosse difícil praticar a nossa Bab Bou Jeloud ou Portão Azul de Fez, principal entrada ocidental de Fez el-
religião, abertamente, o que ele Bali, Antiga Fez
próprio fez em 1165, quando deixa
Fez com sua família, indo para o palácio imperial e o méchouar, Em Fez e outras cidades importantes
Egito. um recinto a céu aberto onde os a segurança física e politica da
sultões reuniam os ministros ou comunidade judaica estava nas
Com o passar do tempo, de realizavam audiências públicas. mãos dos sultões, que por sua vez
fanáticos radicais os almôadas São também erguidos imponentes dependiam dos judeus para realizar
se transformam em governantes palácios, residências e jardins, serviços importantes,
refinados. A situação dos judeus mesquitas e madraças. Todas as como a cobrança dos impostos,
também melhora; no início do construções do período – suntuosas a cunhagem de moedas e os trâmites
século 13 cessam as perseguições e, e com rica decoração ornamental diplomáticos. Também funcionavam
aos poucos, o judaísmo marroquino – são o melhor exemplo dos estilos como mercadores reais, tendo
vai recuperando seu fôlego. arquitetônicos mouro e marroquino. o monopólio no comércio de
certas mercadorias em países
Os merínidas  Sob o governo dos merínidas, europeus.
os judeus vivem um período de
Em meados do século 13, há tranquilidade e prosperidade. Em Esse tratamento preferencial aos
mais uma mudança de política; os Fez, eles desempenhavam um papel judeus e os laços que mantinham
almôadas são removidos por uma importante na economia local, e a com o Sultão geram ressentimentos,
nova dinastia berbere islâmica, comunidade passa a atrair judeus ao ponto de incitarem um pogrom
os merínidas, que irá governar o vindos de outras partes do Marrocos em Fez no ano de 1276. Mas a
Marrocos até o século 15. e do Norte da África. paz volta a reinar na cidade e a
coexistência pacífica entre judeus e
Os novos governantes mudam a Um fato importante para a história muçulmanos no Marrocos volta a
capital do reino de Marrakesh de dos judeus marroquinos, é que, imperar até o século seguinte.
volta para Fez. A cidade é ampliada após o período almôada, não restam
e atinge seu apogeu. Em 1276, cristãos nativos no Marrocos. Sendo Em meados do século 15, os
fundam Fez Jdid (Nova Fez), assim, a interdependência entre os merínidas começam a perder
como um anexo murado a Fez sultões e os judeus – únicos dhimmis o controle sobre o país, tendo
el Bali (Antiga Fez). Na Nova restantes – torna-se especialmente dificuldade em manter a segurança
Fez, são erguidos o esplendido forte. das comunidades judaicas.

55 abril 2018
COMUNIDADES

A situação se torna insustentável jihad, “uma guerra santa”, contra Os sefaraditas, chamados de
quando em 1438, as massas Aaron ben Batash, vizir judeu megorashim,, “exilados” ou “expulsos”,
muçulmanas atacam, uma vez nomeado primeiro ministro pelo se estabelecem principalmente no
mais, a população judaica da cidade, Sultão Abu Muhammad Abd Al- litoral Norte, onde se tornam a
provocando muitas mortes. Haqq para colocar no prumo as maioria. Um grande número de
Os judeus são falsamente acusados finanças públicas. O Sultão e ben sefaraditas se estabelece em Fez. A
de ter introduzido garrafas de vinho Batash são assassinados e quase princípio, os toshavim, “habitantes
em uma mesquita. O sultão intervém toda a comunidade judaica, do lugar”, como eram chamados
e, para protegê-los de distúrbios dizimada. Esta somente iria se os judeus que viviam na região
recorrentes, realoca-os em Fez Jdid, recuperar com a chegada dos há séculos, tratam os megorashim
na parte murada da cidade, próxima refugiados da Espanha. com desconfiança. Estranham seus
ao palácio real. O bairro, construído hábitos, seus min’haguim; até o
sobre uma antiga mina de sal, era A chegada dos idioma era diferente, pois enquanto
chamado de mellah (sal, em árabe), Sefaradim os sefaraditas falavam espanhol
numa referência a jazidas de sal ou português, os toshavim se
ou pântanos de sal. As residências Em virtude da proximidade do comunicavam em judeu-árabe.
dentro do mellah se distinguiam das Marrocos com a Península Ibérica,
muçulmanas por suas janelas para seus governantes eram intimamente A sinagoga Ibn Danan, recentemente
o exterior e varandas de madeira e ligados aos acontecimentos na restaurada, foi fundada no século 17
de ferro batido. Durante um longo Espanha, onde, na Idade Média, vivia pelos megorashim e, de acordo com
período o mellah de Fez continuou a maior e mais próspera população uma tradição local, eles decidiram
a ser o único existente no Marrocos. judaica do mundo. Mas, com o construir uma sinagoga própria
Somente na segunda metade do avanço da Reconquista pelo Reis pois os judeus locais se recusavam
século 16 (por volta de 1557) é Católicos, os judeus foram sendo a deixá-los frequentar as suas. A
criado o segundo em Marrakesh. cada vez mais perseguidos. Após sinagoga Slat Alfassiyine (Oração
uma onda de violência antissemita dos habitantes de Fez) foi fundada
Quando o bairro judeu foi criado, em 1391, muitos deles buscaram no século 17 pelos judeus da cidade.
não havia nada de depreciativo refúgio no Marrocos, onde a dinastia As duas sinagogas ficavam a uma
no termo mellah. Pelo contrário, reinante merínida os favorecia. quadra de distância, uma da outra.
suas casas grandes e belas eram
as residências preferidas pelos Com o passar do tempo, a influência
“agentes e embaixadores de príncipes dos sefaraditas espalha-se por todo
estrangeiros”. Posteriormente, o país e muitos de seus costumes
contudo, a palavra mellah assumiu se tornam a regra. Em Fez, cabia
conotações pejorativas. A etimologia aos sefaradim a importante função
popular “transformou-a” em “terreno de Naguid5, criada na cidade no
salgado e amaldiçoado”, ou o local início do século 16. A maioria das
onde os judeus “salgavam a cabeça ieshivot eram dirigidas por eruditos
dos rebeldes que decapitavam”. sefarditas, entre os quais Rabi
Nachman B. Sunbal, Rabi Samuel
Com a queda dos sultões merínidas, Chaguiz, Rabi Judah Uzziel, Rabi
volta a anarquia política e o Shaul Judah, Rabi Chayyim Ibn
fanatismo. E nem no mellah os Atar e Rabi Samuel Sarfaty. Havia,
judeus de Fez estão a salvo. também, famosos dayanim, juízes
Em 14 de maio de 1465, os líderes das cortes religiosas. Muitos de seus
religiosos islâmicos organizam um rabinos lecionaram em comunidades
do exterior.

 Naguid – palavra hebraica para príncipe


5
Fez se torna, também, eminente
ou líder. Título aplicado ao líder religioso
nas comunidades sefarditas. rua dos merinídas, no mellah,
centro da Cabalá espanhola,
fez el jdid, pois renomados cabalistas lá

56
REVISTA MORASHÁ i 99

se estabelecem e produzem
importantes obras. As contribuições
mais duradouras à disseminação da
Cabalá se devem aos membros da
família Azulai, que se estabeleceu em
Fez após a expulsão da Espanha, em
especial a Abraham ben Mordechai
Azulai (l570-1644), já nascido na
cidade.

No Marrocos, difundiu-se o estudo


de partes do Zohar (literalmente,
“Esplendor” ou “Brilho”). A Cabalá
espanhola baseia -se na centralidade
dessa obra compilada por Rabi
Shimon bar Yochai. De acordo Interior da Sinagoga Ibn Danan, no Mellah. Fez El Jdid, Marrocos
com os ensinamentos cabalistas,
os Tzadikim, os “Justos”, são
considerados a “pedra fundamental Na segunda metade do século 16, A dinastia saadiana, que assume
do mundo”, e não pode ser Fez perde sua importância política o poder nesse século, é castigada
considerada completa nenhuma e econômica, o que faz com que por instabilidade política e ataques
discussão sobre os costumes muitos judeus sefarditas de posses militares, e continua a luta contra a
religiosos e o folclore do judaísmo deixem a cidade. A chegada de 1.300 dominação estrangeira, fazendo com
marroquino sem a compreensão da abastadas famílias de toshavim muda que o Marrocos continue a ser o
profunda convicção arraigada nesses a composição comunitária de Fez, único país do Norte da África a não
judeus: a veneração pelos Tzadikim. que perde seu caráter sefaradita. ser ocupado pelo Império Otomano.
A maioria de seus membros Para financiar suas atividades
Com o tempo, apesar da enorme trabalham como ourives, na militares, os sultões saadianos
influência dos oriundos de Sefarad manufatura de fio de ouro, impõem pesados tributos aos judeus.
sobre a vida religioso-cultural fabricação de rendas, confecção de E, para assegurar que eles tenham
das comunidades judaicas do bordados e na alfaiataria. recursos adequados para pagar
Marrocos, eles próprios acabam por esses impostos, dão aos mercadores
assimilar aspectos da cultura judaica judeus o monopólio das exportações
local, criando uma nova síntese de açúcar. Esses mercadores são
tipicamente marroquina, assim também responsáveis por um
como um novo dialeto hebreu- grande percentual das importações
hispano-marroquino, chamado de de tecidos e armas da Europa. Os
Haquitia. Uma curiosidade sobre o judeus também desempenham um
dialeto é a explicação para seu papel fundamental no comércio das
nome, que seria proveniente de caravanas com a África Subsaariana,
Haquito, diminutivo de Itzhakito, financiando as trocas comerciais de
do nome Itzhak, muito usado tecidos e cereais europeus por ouro,
pelos judeus de origem espanhola. penas de avestruz, goma arábica e
Seria, pois, a Haquitia, o idioma marfim.
dos “Yitzhaks”, ou seja, dos
judeus. Mas talvez a explicação A Era Moderna
mais correta seja mesmo a de
que o nome provenha de uma No século 17, instala-se no poder
palavra árabe, Haka, conversa, nova dinastia, originária do Sudeste
narração – com seu sufixo em marroquino, os alaouitas. Essa
castelhano. dinastia está no poder até hoje e é

57 abril 2018
COMUNIDADES

aos judeus de Fez e Meknès. Em


Fez, o sultão ordena a destruição
das sinagogas e a pilhagem da
comunidade, e a expulsão dos judeus
da cidade. Seu retorno é autorizado
dois anos depois, mas a comunidade
havia sido reduzida a um quarto do
que era, anteriormente.

À medida que a dinastia alouita


desenvolve ligações comerciais e
diplomáticas mais estreitas com
as nações da Europa Ocidental,
torna-se preponderante o papel
dos grandes comerciantes judeus.
Eles obtêm dos sultões o virtual
monopólio do comércio ultramarino
e se tornam responsáveis pela
diplomacia do país. Os judeus,
únicos intermediários plausíveis
Sinagoga Roben E. Sadoun (Reuven ben-Sa’adun) - última sinagoga em
funcionamento em Fez, construída em 1920 entre o mundo islâmico e o europeu,
também eram indispensáveis
considerada descendente do Profeta a importância econômica e política para os europeus. Dentre estes
Maomé. da comunidade judaica, seu filho, últimos, aqueles que viajavam a
Mulay al-Yazid, nutre intenso ódio a Fez ou lá viviam tinham contato
Moulay Rachid, primeiro eles. Mulay al-Yazid foi responsável mais próximo com os judeus do
mandatário alaouita, toma o poder pelo massacre de milhares deles em que com os muçulmanos, e quase
na década de 1660. Após colocar Tetuan, Marrakesh, Fez e Meknès. todos os relatos sobre Fez e o
as rotas de caravanas no Marrocos O pior tratamento é reservado Marrocos, em geral, nos séculos
Oriental e Ocidental, sob seu 18 e 19, contêm alguma menção
domínio ele consegue a cooperação aos judeus e seus costumes. Alguns
dos mercadores judeus no oferecem detalhadas descrições de
financiamento de seu novo reino. suas residências, joias, casamentos e
beleza das mulheres judias.
Fontes judaicas relatam a “dança”
das fortunas judaico-marroquinas Assim como em outros países do
na Era Moderna. Durante o Oriente Médio e do Norte da
reinado do sultão Moulay Ismail, África, para proteger seus interesses,
quando o Marrocos atinge seu as nações europeias instalam
apogeu, dois dos mais importantes consulados que podiam estender
conselheiros são judeus – Moshé sua proteção a representantes e
Ben Attar e Youssef Memran. funcionários locais, via de regra,
Mas, em 1727, com a morte de judeus. Tal “representação judaica”
Ismail, o país entra em um período dos poderes europeus provoca
de anarquia durante o qual são um forte ressentimento entre as
arrasadas comunidades judaicas massas islâmicas, fazendo com
inteiras. E, se sob o sultanato de que a comunidade passe a servir
Mulay Muhammed (1757-1790), de bode expiatório. “Estimulado”
os únicos diplomatas enviados a pelos europeus, em 1864 o Sultão
países ocidentais são judeus, e o Porta de entrada de uma antiga
Sidi Mohammed emite um decreto
Sultão aumenta constantemente sinagoga, Fez real ordenando que os judeus sejam

58
REVISTA MORASHÁ i 99

tratados como iguais perante a lei,


com justiça e imparcialidade, sob Em busca de um futuro melhor,
pena de condenação para quem a partir do século 19 inicia-se um
assim não proceder. intenso processo de emigração
para a Europa, América do Sul,
Nesse período, graças aos esforços destacadamente para a Amazônia, e
de Rabi Abner Sarfaty e Rabi para Eretz Israel.
Isaac Ibn Danan ressurge em Fez
o interesse pelos estudos judaicos. No início do século 20, a
Rabi Ibn Danan provinha de comunidade judaica de Fez contava
uma prestigiosa dinastia rabínica com 12 mil pessoas. Havia muitas
original de Granada, na Espanha. escolas judaicas, cinco ieshivot
Com o passar dos anos, essa e uma escola francesa, fundada
família de eruditos compilou pela Alliance Israëlite Universelle
os Divre ha-Yamim shel Fas e financiada pelos dignitários
(Crônicas de Fez), narrando a comunitários, além de uma
história da comunidade de Fez e importante sociedade beneficente.
de como judeus ibéricos haviam
sido expulsos da Espanha e se No dia 30 de março de 1912, o
tornado parte da comunidade sultão Abdelhafid assina o Tratado
judaica marroquina. de Fez, através do qual cedia a
RABI CHAIM SERERO na sinagoga “Slat
Alfassiyine”, FEZ soberania de partes do Marrocos
Na Era Moderna se tornam cada à França. Passadas cerca de duas
vez mais profundas as diferenças semanas, os judeus são alvo da fúria
econômicas e sociais entre os muçulmana.
membros da comunidade de
Fez. Enquanto os diplomatas ou Apesar dos avisos de uma revolta,
grandes comerciantes formavam a maior parte das tropas francesas
uma pequena, mas poderosa, é instruída para deixar Fez, e,
classe alta, a maioria da população estranhamente, a Autoridade Militar
era composta de vendedores Francesa confisca todas as armas em
ambulantes, pequenos artesãos posse de judeus.
e ourives, e vivia em grande
penúria, assim como seus vizinhos Na manhã de 17 de abril, as
muçulmanos. autoridades francesas anunciam as

1. 2. 3.

1. colar de múltiplas filas de coral, contas e moedas de prata 2. Vestido de casamento, em veludo verde, Fez 3. Colar
tipo peitoral “RIF”. Medalhão e contas em prata fundida

59 abril 2018
COMUNIDADES

A 2ª Guerra Mundial

Em agosto de 1941, o Governo


de Vichy, na França, promulga, no
Marrocos, leis que discriminam a
população judaica, determinando
quotas de médicos e advogados
judeus, expulsando os alunos judeus
das escolas francesas e obrigando
os judeus que viviam nos bairros
europeus a viver nos mellahs.

Quando as autoridades francesas


ordenam o recenseamento de
todas as propriedades judaicas no
país, a liderança judaica teme que
fosse isso fosse o precursor de um
confisco geral. Secretamente, o
sultão Mohammed V consegue
esconder no palácio um grupo de
judeus proeminentes, dentro de um
vagão coberto, para que pudesse
reunir-se com eles longe dos
olhos das autoridades francesas de
Vichy. Segundo relato de um dos
presentes, ele promete aos judeus
a sua proteção, assegurando-lhes
que aquele recenseamento não era
o primeiro passo de um plano para
Riad ou pátio típico das residências marroquinas. Fez

novas medidas para os soldados


muçulmanos. Muitas unidades
se amotinam causando total
perda de controle. Os soldados
atacam seus comandantes
franceses, e depois abandonam
seu quartel e atacam os bairros
europeus e judaicos da cidade.
Para os judeus, os eventos ficaram
conhecidos como o “Tritel”,
enquanto que para os franceses
como “Les Journées Sanglantes
de Fès” (Os dias sangrentos de
Fez). Milhares de soldados
marroquinos entram no mellah,
deixando um saldo de 50 judeus
mortos e suas propriedades,
saqueadas e incendiadas. Morrem
também nos distúrbios 66
europeus e 600 marroquinos. CEMITÉRIO JUDAICO EM FEZ

60
REVISTA MORASHÁ i 99

arquitetura em Fez Jdid

confiscar seus bens e propriedades. nacional e uma constituição de Oujda. Já em Djerrada, são 39
Porém, Mohammed V não podia democrática. Mas, a França somente mortos e 44 feridos.
agir totalmente conforme sua abriria mão de seu protetorado no
vontade, pois estava à mercê dos Marrocos em 7 de abril de 1956.  O Marrocos, que foi a pátria para
franceses de Vichy que controlavam mais de 250.000 judeus na primeira
seu reino. Com isso, acabaram por Em 1947 e 1948, em resposta à metade do século 20, hoje conta
ser aprovadas e postas em prática retórica árabe anti-judaica na esteira apenas com cerca de 3.000 judeus no
certas medidas discriminatórias e da criação do Estado de Israel, e a país, apenas 150 dos quais vivem na
os judeus foram deportados para irrupção do conflito árabe-israelense, outrora vibrante Fez.
campos de trabalho no Saara. o sultão Mohammed V alerta os
muçulmanos para que não Sem sombra de dúvidas, o Marrocos
Após a conclusão da Operação ataquem os judeus do Marrocos, é o país islâmico mais pró-Israel –
Tocha, em que as forças Aliadas lembrando-lhes que estes sempre apesar do fato de que vertentes
abrem uma nova frente de batalha tinham sido protegidos em seu cada vez mais expressivas da
contra os alemães ao desembarcarem reino e sempre haviam demonstrado sociedade conclamem à não-
na costa norte-africana, em sua devoção ao Trono. Enfatiza normalização das relações com o
novembro de 1942, que eles eram súditos respeitados governo de Jerusalém.
o Marrocos fica em mãos da França que apoiavam o Sultão. Seu
Livre, e as restrições contra os judeus pronunciamento é lido em todas as
são renovadas. sinagogas do país.
Bibliografia
Com o término da 2a Guerra, os Mas a tensão associada à Guerra dos Stillman, Norman A, The Jews of Arab
Lands: A History and Source, Jewish
marroquinos esperavam que as países árabes contra Israel e o início Publication Society of America
potências estrangeiras abandonassem da emigração marroquina para Israel Stillman, Norman A, Jews of Arab Lands
o Marrocos à sua independência. contribuem para a eclosão de pogroms in Modern Times, 2003
No entanto, isso não ocorre. Em nas cidades de Oujda e Djerrada, em Marglin, Jessica M., Across Legal Lines:
1944, o sultão Mohammed V apoia junho de 1948. Os ataques provocam Jews and Muslims in Modern Morocco,
2016. Ebook Kindle
um manifesto nacionalista, exigindo 8 mortes, 600 feridos e 900 pessoas Goldenberg, André, Art and the Jews of
independência plena, reunificação desabrigadas na comunidade judaica Morocco

61 abril 2018
arte

A ARTE DE ILYA SCHOR


Judeu polonês naturalizado americano, Ilya Schor foi um
artista de várias facetas. Pintor, escultor, ourives, ilustrador,
era conhecido por seu trabalho em peças de arte judaica,
entre as quais, coroas de Torá (Keter Torá), candelabros,
mezuzot e joias, e por suas ilustrações de valiosos textos de
filosofia judaica religiosa e literatura folclórica. Suas obras
estão expostas em museus do mundo todo, além de constarem
em coleções particulares.

I
lya, filho de Naftali e Kradja Schor, nasceu humildade da vida tradicional Chassídica é refletida
em 16 de abril de 1904 em Zolochiv, um dos com vigor”.
tantos shtetls na Galícia, à época parte do
Império Austro-húngaro. Seu pai, Naftali, Depois do Tratado de Paz de Riga, de 1921, Zolochiv,
era um pintor dedicado à arte popular, tornou-se parte da recém-criada República da Polônia.
que ganhava a vida pintando cartazes ilustrados em Em 1928 Ilya vai para Varsóvia estudar pintura na
muitas cores para os comerciantes locais. Ilya deu seus Academia de Belas Artes. Lá, dois anos mais tarde, ele
primeiros passos no mundo da arte com apenas conhece Resia, uma jovem judia originária de Lublin
16 anos aprendendo a fazer gravura em metal. que tinha-se matriculado para estudar pintura na
mesma instituição. Em 1936 ele se forma e, no ano
Seus pais, assim como a maioria dos judeus de seguinte, ganha uma bolsa do governo polonês para
Zolochiv, seguiam o movimento Chassídico e a continuar seus estudos em Paris e na Itália.
infância e juventude de Ilya foram profundamente
embebidas no mundo religioso dos judeus da Europa Chega em Paris em abril de 1937. Logo começa a
Oriental, sendo que esse tipo de vida teve uma grande trabalhar com um de seus professores na criação de
influência em seu trabalho. Ao descrever sua forma de um grande mural para o Pavilhão Polonês na Feira
expressar a arte, sua filha Mira escreveu: Mundial de Paris, a se realizar naquele ano. Terminado
“Cada uma de suas pinceladas carrega um DNA o mural, o professor o aconselha a permanecer em
artístico pertencente ao passado, e em cada um Paris, pois eram escassas as oportunidades para um
de seus traços vê-se a influência da leveza da cor artista judeu, na Polônia.
fugidia em Pierre Bonnard1, mas, em seu trabalho, a
Resia também se mudara para Paris, a Cidade-Luz. Os
dois jovens artistas usufruíam juntos da efervescência
1
Pierre Bonnard (1867-1947) pintor de peso para o nascimento criativa de sua geração de judeus, que tinham atingido
da Arte Moderna. Fundador do grupo simbolista dos “nabis“,
sua contribuição é fundamental para se entender a passagem a maioridade no entre-guerras e entraram, de cabeça,
entre o pós-impressionismo e o simbolismo. no mundo artístico da Paris do final da década de 1930.

62
REVISTA MORASHÁ i 99

casamento na aldeia. guache sobre cartão

Em 1938, Ilya participa do Salão tropas nazistas. De um grupo de


de Outono de Paris e, embora cerca de 11 judeus poloneses que
ainda desconhecido, seu trabalho conseguiram fugir, juntos, de Paris,
é muito elogiado pelos críticos. Ilya e Resia foram os únicos a
Apaixonados, Ilya e Resia queriam sobreviver à Shoá.
muito se casar, mas por serem
estrangeiros não podiam ter um O destino do casal foi Bordeaux,
casamento civil, apenas uma onde se reuniram com amigos que
cerimônia religiosa que não era trabalhavam no Joint Distribution
reconhecida pela lei francesa. Committee. Em seguida, vão até
Eles viviam em um sótão no Marselha para tentar conseguir
último andar de um edifício na vistos de emigração para os
Rua Charlot, no bairro judeu de Estados Unidos. Em Marselha
Paris – o Marais. Após a Polônia se encontram com outros jovens
ser invadida pela Alemanha, em artistas judeus: pintores, músicos
setembro de 1939, conseguem e outros membros da chamada
obter o status de residentes e se intelligentsia da Europa. Todos
casam em uma cerimônia civil, em lutavam para deixar a Europa e
Paris. conseguir vistos para os Estados
Unidos ou outros países das
Com o avanço das tropas alemãs Américas.
na Europa Ocidental e com medo
de que os nazistas tomassem Paris, Terminada a 2ª Guerra, já em
Resia insiste com o marido para 1955, ao preencher o formulário
deixarem a cidade. Conseguem para a compensação por bens
sair pouco antes da chegada das perdidos durante o período nazista ILYA SCHOR

63 abril 2018
arte

(Conference for Jewish Material O mundo artístico de


Claims against Germany), Ilya New York
descreve o período que passou em
Marselha: “Sou um artista judeu O casal Schor deixou a Europa
originário da Polônia. Perdi todas no final de 1941 e só retornaria à
as minhas obras e meu material França em 1958, acompanhado
artístico ao fugir, em 1941, da pelas filhas Mira e Naomi. Eles
França ocupada pelos nazistas chegam a Nova York via Lisboa
e ir para Marselha e de lá para em 3 de dezembro. Iniciava-se
os EUA. Fui duas vezes detido uma nova fase de sua vida pessoal
pelas forças policiais francesas de e artística.
Vichy e levado a um campo de
concentração próximo a Marselha. Estabelecem-se em Manhattan,
Só fui libertado quando recebi no chamado Upper West Side.
meu visto americano”. Resia passa a trabalhar com outros
Resia Schor
intelectuais e artistas refugiados
Muitos dos membros da recém-chegados, em uma pequena
família de Resia e de Ilya não fábrica de tijolos pintados à mão.
conseguiram fugir e pereceram
durante a Shoá. Ilya, por sua vez, volta a pintar.
Em seus trabalhos, ele reproduz
simchat torá. (assinado em hebraico),
óleo e guache sobre cartão as suas memórias da vida dos
judeus na Europa Oriental. Nas
palavras da segunda filha do casal,
Mira, “ele adorava desenhar e
pintar e todos ficavam encantados
com a delicadeza e perfeição de
suas linhas, com qualquer meio
que fosse… seus movimentos,
rápidos e precisos, seu toque,
extremamente hábil”.

Nova York descobre a arte de Ilya


quando, em 1944, o artista monta
sua “Exposição de Guaches de
Ilya Schor: Composições, Flores,
Paisagens, Estilo de Vida”, na
Biblioteca Pública da cidade,
na Rua 58. E, no mesmo ano,
ele participa de uma mostra
coletiva no Museu de Arte
Contemporânea de Boston.

Em 10 de outubro de 1944 nasce,


em Nova York, a primeira filha
do casal, Naomi. Acadêmica em
Teoria Literária, Naomi faleceu
em 2001, aos 57 anos.

Em 1947, mais uma exposição,


dessa vez na Galeria de Arte

64
REVISTA MORASHÁ i 99

Judaica, também em Nova York,


intitulada Pinturas sobre temas
iídiches. Seus trabalhos The Giving
of the Law e Ten Commandments
foram incluídos na exposição
inaugural do Museu Judaico,
na antiga mansão Warburg,
na Quinta Avenida. Em 29
de dezembro daquele ano Ilya
e Resia tornam-se cidadãos
americanos.

Em 1949, obras de Ilya passam a


integrar a The One Hundred and
Forty-Fourth Annual Exhibition
of Painting and Sculpture, da
Academia de Belas Artes da
Pensilvânia, na Filadélfia. E
é incumbido de ilustrar duas
importantes obras do renomado
filósofo e teólogo, Rabi Abraham
Joshua Heschel: The Earth is The
Lord’s: The Inner World of the Jew
in Eastern Europe”, publicada em
1950, e The Sabbath. O rabino
Heschel assim se referiria às
obras de Schor: “Na quietude
das preciosas imagens, Ilya Schor shabat (judeus com torá). óleo sobre cartão
trouxe à vida o espírito eterno
de Israel, e as gerações futuras
ouvirão a voz e a espiritualidade anualmente mostras individuais
de nosso povo na Europa e coletivas em várias galerias de
Oriental”. Ele também ilustrou Nova York, Boston e Chicago.
o livro Adventures of Mottel, the Entre suas obras está uma rara
Cantor’s Son, de Sholem Aleichem. coleção de objetos de Judaica em
As três obras ilustradas por Ilya ouro e prata. Em seus últimos
continuaram sendo impressas, anos, dedica-se à escultura,
há mais de 60 anos. Em junho produzindo obras abstratas
de 1950 nasce a segunda filha em bronze e cobre. Entre seus
do casal, Mira, que se tornaria principais trabalhos destacam-se
uma artista, escritora e feminista as portas do Aron HaCodesh do
renomada. Templo Beth-El, em Great Neck,
estado de Nova York.
Resia Schor também continuou
sua vida artística, participando Ilya Schor morre em Nova
de exposições em Nova York na York, em 1961. Sua filha Mira
década de 1950, sob o nome de escreve, na ocasião: “Meu pai
Resia Ain. desenhou, pintou e fez gravura, e
muito, muito mais, com a mesma
A fama de Ilya consolida-se cada facilidade com que respirava.
rabino com torá. assinado também em
vez mais e ele passa a realizar hebraico. óleo sobre tela E, na verdade, considerando-se

65 abril 2018
arte

sua morte prematura, com muito mostra Life of the Old Jewish Shtetl:
menos esforço do que respirava...”. Paintings and Silver by Ilya Schor,
no Museu da Yeshiva University.
Após a morte do marido, Resia Em 2000, é a vez da mostra Ilya
passa a trabalhar exclusivamente Schor and His Great Neck Patrons,
com metal, criando peças únicas de no Museu de Arte Judaica Elsie K.
joalheria e arte judaica, bem como Rudin, Great Neck, Nova York.
esculturas em multimídia – tudo
em seu ousado estilo abstrato- Suas obras fazem parte do acervo
modernista, com um grande senso do Museu Metropolitan de Arte,
pictórico de cor e textura. Ela só do Museu Judaico, da Grande
veio a falecer em 2006 Sinagoga de Nova York, da
Coleção de Mezuzot Jacob e Belle
broche em prata, ouro e brilhantes. Uma exposição retrospectiva da Rosenbaum, do Museu de Arte
coleção de mira schor, n. york. obra de Ilya foi realizada em 1965 da Carolina do Norte e do Museu
no Museu Judaico de Nova York. de Arte Judaica de Sidney, na
Dez anos depois, é realizada a Austrália, entre outros.

A Caixa de Casamento
é um dos trabalhos mais
representativos de Ilya
Schor. Feita em relevo em
ouro e prata, reproduz na
tampa a noiva, o noivo
e o rabino sob a chupá
erguida por crianças e
músicos klezmer. Na parte
da frente, um homem
e uma mulher carregam
bandejas também ladeados
por crianças. Em três círculos
há inscrições em iídiche: “Que
assim seja, com boa sorte”.

Do lado direito, há um painel


com inscrições em hebraico:
“Alegria e alegria, noivo e noiva”, noiva. Na base da caixa, desenhos Ilya Schor fez esta caixa para o
ladeadas com imagens do casal simétricos de um vaso com motivos pintor Mane Katz, em 1958, em
de noivos; o lado esquerdo com a florais ladeados por cercas e pássaros, Nova York. O estilo desse trabalho
inscrição hebraica: “Seu pai e sua e ao centro uma placa circular com lembra os recortes de papéis que
mãe devem se alegrar e aquela marcas do artista. No lado interno enfeitavam as janelas das casas nos
que a carregou deve estar feliz”, está a inscrição Mazaltov, em shtetls da Europa Oriental durante a
ladeada pelas imagens dos pais da hebraico. comemoração de Shavuot.

66
SHOÁ

O LEVANTE DO
GUETO DE VARSÓVIA
Varsóvia, abril de 1943, véspera de Pessach. Há 75 anos, jovens
judeus com poucas armas e sem experiência militar decidiram
não se curvar e enfrentar, de peito aberto, o poderio militar
alemão que colocara a Europa de joelhos. Sua escolha não
era entre viver ou morrer, mas “como morrer”. Lutaram até o
fim para preservar sua dignidade e a honra de nosso povo.

A
saga do Gueto de Varsóvia se inicia com escritores, rabinos e assistentes sociais. Hoje, a parte
sua criação, em 1939, e termina com descoberta dos Arquivos, com cerca de 6 mil documentos
o fim do Levante. Esse episódio foi e 35 mil páginas, está no Instituto Histórico Judaico, em
relatado infinitas vezes e o será muitas Varsóvia.
outras mais, pois o Gueto de Varsóvia se
tornou símbolo da tragédia e do heroísmo judeus. Nele, A criação do gueto
o mais numeroso dentre todos os guetos, os judeus – novembro de 1940
enfrentaram mais fome, mais falta de espaço, mais
doenças. E nenhum ato durante o Holocausto teve A saga teve início quando o exército alemão entra na
poder tão inflamatório quanto o levante que ocorreu Polônia, em 1º de setembro de 1939. Após romper as
dentro dos muros de Varsóvia, tornando-se símbolo da defesas polonesas, os alemães seguem rumo a Varsóvia e
resistência e determinação judaica. sitiam a cidade. O bairro judeu foi o mais assolado pelo
bombardeio alemão. No dia 29, as forças do Terceiro
Os acontecimentos durante o Levante e os que o Reich entram na cidade e Varsóvia se torna parte do
precederam estão relatados em inúmeros diários, relatos Governo Geral1 .
de sobreviventes, registros e estatísticas alemãs. As
informações mais detalhadas constam dos Arquivos A perseguição aos judeus é iniciada imediatamente,
“Oineg Shabbes”, em iídiche (Oneg Shabat, em hebraico) apesar dos comandantes da Wehrmacht terem
desenterrados após a 2ª Guerra. Este grupo, criado assegurado aos líderes comunitários que não havia o
pelo historiador Emanuel Ringelblum, incluía que temer. Decretos após decretos são promulgados,
todos visando humilhar, isolar e minar a capacidade de
sobrevivência judaica.
1
Após a invasão alemã e soviética, a Polônia é dividida em
três partes: uma é incorporada ao Reich (Wartheland), outra Uma das primeiras providências para garantir a
torna-se um protetorado alemão (Governo Geral) e a terceira é
incorporada à União Soviética. implementação de suas ordens é a criação, em Varsóvia e

67 abril 2018
SHOÁ

em outras cidades, do Judenrat2, um Para tentar entender a nova de Varsóvia é criada uma rede de
Conselho Judaico que seria dirigido realidade com que os judeus se instituições assistenciais e culturais,
por Adam Czerniakow, defrontavam, temos que ter em como uma “comunidade paralela”,
de outubro de 1939 até seu mente que o gueto nazista era independente do Judenrat, para
suicídio, em 23 de julho de 1943. um mundo por si só. Os nazistas tentar aliviar a vida da população.
No diário que manteve até seus haviam cortado qualquer meio A preocupação girava em torno
últimos momentos, ele revela que de comunicação com o mundo da sobrevivência física, moral
os Judenrat funcionavam em um exterior. Era uma situação além de e espiritual. A principal dessas
ambiente de incerteza, violência e qualquer imaginação: as pessoas instituições era Organização de
falta de poder. tentavam levar uma vida “normal” Autoajuda Judaica, que, no primeiro
para não enlouquecer ou perder ano, socorreu 160 mil judeus.
Devido aos interesses conflitantes as esperanças, ainda que as ruas (V. artigo “A Resistência Judaica”,
entre a administração civil alemã, o estivessem cheias de cadáveres. à pág. 34).
exército e as SS, o Conselho Judaico
consegue atrasar a criação do Gueto
por um ano.

No dia 12 de outubro de 1940,


eles recebem a notificação nazista
sobre a delimitação de um “bairro
residencial judaico em Varsóvia”. Era
Yom Kipur – os nazistas tinham uma
“predileção” por infligir os maiores
castigos nos dias mais sagrados do
calendário judaico. Dos 375 mil
judeus que viviam na cidade, cerca
de 140 mil não residiam nas áreas
delimitadas. Os nazistas deram
prazo até o final de outubro para
a transferência para o Gueto. Um
terço da população de Varsóvia seria
encurralada numa área de quatro Soldados do general Stroop e os edifícios em chamas durante a repressão ao
quilômetros quadrados... levante do gueto de varsõvia, 1943

Em 15 de novembro o Gueto é O dia-a-dia era uma mescla de As condições de vida pioram em


lacrado e cercado por um muro humilhação, dor e perigo. A escassez janeiro de 1941 devido ao frio intenso
alto; suas portas de saída vigiadas de alimento, aquecimento, condições e à chegada de cerca de 150 mil
por homens armados. Nenhum sanitárias e medicamentos, e as judeus das regiões vizinhas, Alemanha
judeu poderia entrar nem sair, a não epidemias decorrentes disso tudo, e Áustria. O número de habitantes
ser para os trabalhos forçados, a provocavam a morte de milhares. Os no Gueto chega a 500 mil, dos quais
deportação ou ser enterrado. judeus eram insultados, roubados, 200 mil esfomeados. O tifo varre o
espancados ou mortos pelos alemães. Gueto de Varsóvia e, até julho, mais
O trabalho forçado tornara-se de 45 mil judeus morrem de “causas
obrigatório e milhares de judeus naturais” - fome, frio e doenças.
2
Os Judenrat, palavra alemã para são enviados aos campos. Os que
“Conselho Judeu”, eram obrigados a
assegurar nos guetos, o cumprimento sobreviviam, voltavam quebrantados. Apesar do combate diário à
de todas as determinações alemãs, e degradação e desumanização, não
situavam-se como “intermediários” entre
os nazistas e a comunidade judaica. Ao ver que tudo desabava em sua havia uma resistência armada.
Aqueles que se recusavam a seguir ou volta, muitos judeus se agarraram a Todos as lideranças – do Judenrat,
cooperar com as ordens nazistas eram seus ideais, convicções religiosas ou da comunidade paralela, dos
assassinados ou deportados para os
campos de extermínio. políticas antes da guerra. No Gueto movimentos juvenis, concordavam

68
REVISTA MORASHÁ i 99

museu da história dos judeus poloneses, varsóvia. projeto do arquiteto finlandês rainer mahlamaki

em um ponto: enquanto houvesse comunidade paralela. Foram criadas executada pelos Einsatzgruppen.
possibilidade de sobrevivência, a células subterrâneas e estudados Apesar do “muro de silêncio” erguido
prioridade era salvar vidas ainda que os meios de romper o isolamento pelos alemães, chegam a Varsóvia
de uma minoria. Sabiam que um imposto pelos nazistas. Os esgotos, as primeiras notícias sobre o que
ato de violência provocaria a morte única via de saída do Gueto, foram ocorria com a população judaica em
de dezenas ou centenas de judeus, “mapeados” após dezenas de jovens Mielec, Lublin e Vilna.
e, talvez a liquidação “prematura” do terem morrido sufocados ou
Gueto. afogados. À custa de outras Os judeus não tinham como saber,
dezenas de vidas, estabeleceram mas na Conferência de Wannsee, em
Vamos ver, mais adiante, que em contatos com outros guetos através janeiro de 1942, os líderes nazistas
muitos aspectos a liderança do de couriers, em sua maioria haviam orquestrado o aniquilamento
Gueto passa para as mãos dos líderes mulheres ou jovens sem traços sistemático dos judeus da Europa –
dos movimentos juvenis. Altamente judaicos. A imprensa underground, tratava-se de um plano operacional
motivados, eles haviam retornado dirigida pelos movimentos juvenis coordenado em escala continental.
para Varsóvia. Eles haviam deixado e partidos políticos, desempenhou
a cidade antes de ser tomada pelos papel crucial no preparo dos Membros de movimentos juvenis
alemães, juntamente com as elites habitantes do Gueto para o levante de Vilna que chegam a Varsóvia
políticas polonesas e muitos líderes armado. Seus jornais foram os para conseguir fundos para a
da comunidade judaica. primeiros a noticiar os assassinatos organização de uma resistência
em massa em Treblinka, Sobibor, armada confirmam o massacre
Até que se dessem conta de que Chelmno e Maidanek. de 20 mil dos 57 mil judeus de sua
os nazistas visavam a aniquilação comunidade, na floresta de Ponar.
judaica, a preocupação dos A “Solução Final” Ele traziam, também, o alerta
movimentos juvenis era manter a de Abba Kovner,: um dos líderes
vida e a dignidade dos jovens. Seus A invasão da União Soviética, do Hashomer Hatzair: “Hitler
integrantes se reuniam em refeitórios em junho de 1941, deu início ao planeja destruir todos os judeus
e bibliotecas mantidos pela processo de matança sistemática da Europa”. As notícias são

69 abril 2018
SHOÁ

1 2 3

1. AS SS AGUARDAM JUDEU QUE SAI DE UM BUNKER. 2. JUDEUS CAPTURADOS NA REPRESSÃO AO LEVANTE 3. JUDEU PULA DO
4º ANDAR DE EDIFÍCIO EM CHAMAS

recebidas com cautela. As lideranças desperdiçados com trabalho cultural Apenas seriam poupados aqueles
comunitárias não acreditam que e educativo, quando podiam ter que trabalhavam no Gueto em
os massacres em Vilna eram o “treinado a juventude no manejo de indústrias alemãs ou os membros
prenúncio do cataclismo. armas”. do Judenrat. Ao receber a intimação,
Czerniakow se suicida, como vimos
As informações sobre campos de A Grande Deportação acima.
extermínio também chegam a
Varsóvia. Dois judeus, após fugir do A sexta-feira, 18 de abril, marca Milhares são levados diariamente
campo de Chelmno, revelam que o fim da relativa estabilidade no ao ponto de reunião, a
os nazistas estavam assassinando Gueto. Nessa “sexta-feira sangrenta”, Umschlagplatz, onde aguardam para
judeus em câmaras de gás. Era como passou a ser chamada, os serem jogados, sem água ou comida,
difícil acreditar e, mais difícil ainda, alemães assassinam 52 judeus, a nos vagões dos trens de gado.
assimilar a terrível verdade. O maioria envolvidos em publicações Em 7 de agosto, os nazistas levam
testemunho de um deles, tomado clandestinas. Em 12 de maio, quatro as 200 crianças do orfanato do
por um membro do Oineg Shabbes, o líderes da resistência são assassinados Dr. Janus Korczak. Apesar da
grupo de Ringelblum, é transmitido na prisão Paiwa. No mês seguinte, possibilidade de se salvar, o grande
para Londres, onde ficava o Governo mais dois são capturados e fuzilados, educador não abandonou “suas
Polonês no Exílio. sendo também capturadas as poucas crianças”. Marchou à frente dos
armas que a AFB conseguira juntar. órfãos, juntamente com sua equipe,
Os líderes do movimento até os trens da morte.
clandestino, no entanto, já não Estavam corretas as avaliações
nutriam ilusões sobre as intenções dos judeus de que aquelas ações Na época, o percurso entre Varsóvia
nazistas e compreenderam que a prenunciavam uma nova etapa. No e Treblinka, cerca de 78 km, levava
estratégia de não-provocação que início de julho, Heinrich Himmler, quase 12 horas. Ao chegar, os
vinha sendo adotada ajudava os comandante das SS, despacha aos judeus eram atirados dos vagões,
planos dos nazistas. Sionistas e comandantes em Varsóvia a ordem enfileirados, para passar por um
comunistas se unem para formar de “reinstalação” de toda a população portão, sobre o qual pendia a
o Bloco Anti-Fascista (AFB), de judaica até dezembro de 1942. cortina da Arca Sagrada da Grande
combate. Mordechai Anielewicz, Sinagoga de Varsóvia e onde se
do Hashomer Hatzair, era um dos A primeira fase da grande “Aktion”, lia “Por estes portões passam os
líderes. a deportação em massa dos judeus justos”. Em 12 de setembro as
de Varsóvia, tem início na noite de deportações cessam. De acordo
Anielewicz será lembrado para 22 de julho de 1942, véspera de 9 de com dados nazistas, 235.741
sempre por seu legado de coragem Av, dia de luto para o Povo Judeu. pessoas haviam sido enviadas ao
e idealismo, como veremos em Prossegue durante sete semanas. campo de extermínio de Treblinka.
seguida, e por sua liderança durante Os nazistas avisam ao Judenrat que Dez mil morreram nas ruas do
o Levante. Em suas anotações, “os judeus, sem distinção de idade Gueto e 12 mil foram enviadas
Ringelblum revela que Anielewicz ou sexo, salvo exceções específicas, a outros campos de trabalhos
lhe dissera lamentar os três anos serão deportados para o Leste”. forçados.

70
REVISTA MORASHÁ i 99

A rapidez e rigor da grande movimentam para conseguir fundos


deportação surpreenderam os para a compra de armamento, sendo
movimentos juvenis e o Bund3, alguns enviados para o lado ariano
deixando-os sem ação. Em meio à para pedir ajuda. A resposta da
primeira onda de deportações, resistência polonesa foi “Aguardem,
em 28 de julho, representantes não é chegada, ainda, a hora de nos
dos movimentos juvenis revoltarmos contra os nazistas”. Mas
Hashomer Hatzair, Dror e Bnei o tempo se esgotava para os judeus...
Akiva, e do Bund, formam a
Organização Judaica de Combate, Após inúmeros apelos, a resistência
conhecida por seu acrônimo polonesa lhes fornece dez pistolas
em polonês, ZOB - Zydowska e uma pequena quantidade
Organizacja Bojowa. Entre os de munições. O arraigado
participantes estavam Yitzhak antissemitismo polonês e o fato de
Zuckerman, Joseph Kaplan, Judeus do Gueto de Varsóvia se rendem não considerarem os judeus capazes
Mordechai Tennebaum-Tamarof aos soldados alemães após o Levante de levar a cabo um levante armado,
e Arie Wilner. Este último foi explicam, em parte, a atitude
enviado ao lado ariano para Tampouco seriam sua esposa e polonesa. A ZOB consegue comprar
contatar a clandestinidade e obter filhos. mais armas de desertores do exército
com urgência armas e orientação. italiano e de membros do Partido
Anielewicz não esteve presente No final de outubro, membros Comunista Polonês. Algumas são
durante a deportação, porque se do partido Poalei Tsion e os roubadas de alemães bêbados.
encontrava numa missão na área comunistas concordam em se juntar
de Zamglebie. à ZOB. Anielewicz foi designado Como vimos acima, a ZOB alertava
comandante da Organização dos os judeus “para não embarcar
A resistência polonesa alertara seus Combatentes, agora ampliada, e voluntariamente nos trens, pois
contatos sobre o que acontecia em Yitzhack Zuckerman, o segundo todas as promessas nazistas eram
Treblinka. O membro do Bund homem no comando. Apenas o mentiras. Os trens tinham um único
enviado para investigar volta com movimento juvenil Betar não se une, destino: Treblinka”. No caso de uma
a confirmação de que se tratava de fundando uma organização separada, nova “ação”, todos deveriam procurar
um campo de morte, onde judeus a ZZW, União Combatente esconderijo. A ZOB fazia, também,
eram assassinados, ao chegar, em Judaica. É também criado o o candente apelo: “Desperta, povo, e
câmaras de gás. Comitê Nacional Judaico, com luta por tua vida! ”.
representantes das forças políticas
A ZOB divulga um manifesto judaicas e dos movimentos juvenis, Os colaboracionistas que viviam
com as intenções dos alemães para atuar como representante dos dentro do Gueto se tornam alvo da
e o destino dos deportados: judeus junto à resistência polonesa. ZOB, particularmente os da Polícia
“Massas judaicas, aproxima-se Judaica e os gerentes das oficinas.
a hora. Deveis estar preparados Alguns grupos combatentes “Iniciamos uma campanha impiedosa
para resistir. Nem um só judeu defendiam a ideia de que seria contra todos os traidores...”, diz
deve entrar nos vagões”. Passam a melhor organizar a resistência fora um de seus comunicados. E, em
forjar cartões que atestavam que do Gueto. Anielewicz e outros, no 20 de agosto de 1942, Israel Kanal,
o seu portador era um “elemento entanto, defendiam a organização infiltrado na Polícia Judaica pelos
produtivo”. Em teoria, quem de uma oposição armada dentro movimentos juvenis, executa o chefe
estivesse de posse de um “cartão do Gueto, pois acreditavam que os de polícia, Joseph Szerynski, um
de vida”, não era deportado. judeus que lá viviam não poderiam judeu convertido ao catolicismo.
ser abandonados. Segue-se uma série de outras
execuções. A eliminação de
Os jovens sabiam que para uma colaboracionistas levanta o moral dos
3
Bund foi um movimento político de ação militar eram necessárias remanescentes no Gueto e afirma a
operários judeus, surgido entre a partir
de 1890 na Europa. armas e ajuda. Imediatamente se autoridade da ZOB.

71 abril 2018
SHOÁ

A resistência de primeira vez, os nazistas caem nas revolta. Os membros da organização


janeiro de 1943 ruas do Gueto, uns mortos, outros combatente superam as divisões
feridos. Mas, recuperando-se do ideológicas e a ZOB se unifica;
No final de 1942, dos 380 mil judeus choque, eles revidam. A maioria estratégias são planejadas. Marek
que viviam no Gueto restavam dos combatentes judeus tomba Edelman, membro do partido
apenas 70 mil. Ironicamente, a vida se e o próprio Anielewicz se salva Bund e combatente da ZOB relatou
tornara mais fácil. Os sobreviventes por um triz. Apesar do luto pelos em seu livro, The Ghetto Fights:
das deportações eram os mais jovens amigos, a sensação de realização é “Nunca antes houve tamanho grau
e fortes. Não havia mais crianças, grande. Dissipava-se a frustração e de unanimidade e coordenação
idosos ou doentes. Porém, os que a impotência sentidas até então e o entre pessoas de diferentes partidos
haviam ficado eram atormentados sonho de lutar contra os assassinos políticos, como aquela colaboração
por um sentimento de culpa por de suas famílias e de seu povo já não dos vários grupos, naquele período.
terem sobrevivido, permitindo lhes parece tão impossível. Lutávamos todos pela mesma causa
que sua família fosse levada sem justa, igual frente à história e à
qualquer tentativa de oposição. No entanto, os nazistas continuam morte. Cada gota de sangue tinha
Um ódio profundo e um grande com as deportações, conseguindo exatamente o mesmo valor”.
desejo de vingança os corroía. A
desesperança torna-se pré-requisito
para a resistência. Os nazistas não
tinham conseguido levá-los, mas logo
voltariam. E, dessa vez, pagariam caro
pela vida de cada judeu.

Em janeiro, após uma visita ao


Gueto de Varsóvia, Himmler ordena
a redução de sua população. Quando,
na manhã do dia 18, os alemães
entram no Gueto para reiniciar
as deportações, pegam a ZOB de
surpresa. Os grupos armados não
têm tempo de se organizar e entram
em ação de forma independente.

O primeiro tiro é disparado por Arie


Wilner contra nazistas que tentavam RETIRADOS À FORÇA DOS ESCONDERIJOS, JUDEUS CAPTURADOS, SÃO LEVADOS PELAS SS
entrar em uma das moradias da PARA UMshlagplatz PARA DEPORTAÇÃO

ZOB. Zuckerman lidera outro grupo.


Anielewicz é mais “ambicioso” e matar ou colocar nos trens de 5.000 Abrigos subterrâneos, túneis e
traça um plano. Liderando uma a 6.500 judeus. passagens são construídos ligando
dúzia de combatentes armados os terraços das casas e edifícios do
com pistolas, junta-se às fileiras de Estas batalhas iniciais mostraram Gueto. Os judeus do Gueto de
judeus levados ao ponto de reunião, ser o momento de decisão para Varsóvia se preparam para lutar
o Umshlagplatz. Ao se aproximarem os judeus. “A ações eletrizaram o até o fim. Compram armas do
da rua Mila, numa ação simultânea, Gueto; os combatentes eram tratados movimento clandestino polonês.
cada combatente ataca o alemão como salvadores, por toda a parte; Os não-combatentes também se
mais próximo. Ao ouvir os disparos, a Organização Combatente Judaica preparam para enfrentar os nazistas.
milhares de judeus correm em recrutou centenas de adeptos”. Centenas de bunkers subterrâneos
todas as direções. Os alemães são são construídos.
surpreendidos, pois esperavam que Encorajados pelos resultados das
as deportações acontecessem sem ações de resistência, os judeus A ZOB tornara-se a única
problemas, como de costume. Pela fazem planos para organizar uma autoridade dentro do Gueto.

72
REVISTA MORASHÁ i 99

Seu lema era “Nem mais um aquela noite: “Na esquina das ruas sempre na ofensiva. E, novamente,
judeu deverá encontrar seu fim em Zamenhof e Mila os combatentes ao anoitecer, os alemães se retiram.
Treblinka! Enquanto a vida de um atacaram a coluna alemã que entrara
único judeu estiver ameaçada - ainda no Gueto. Após o primeiro ataque No terceiro dia, os nazistas
que uma única vida - temos que bem-sucedido, com metralhadoras mudam de estratégia, não mais
estar prontos para lutar”. Contavam, e granadas sobre os SS, a rua ficou enfrentando os judeus de frente.
então, com 22 unidades de combate. deserta. .... Quinze minutos depois, O fogo se incumbiria de desalojá-
os tanques cruzaram o posto de los. Começam, sistematicamente,
Em fevereiro de 1943, espalha-se a controle, avançando com força total a incendiar o Gueto. O calor
notícia do reinício das deportações. sobre a posição dos combatentes. insuportável força muitos judeus a
Os alemães tentam convencer os Garrafas incendiárias foram deixarem seus esconderijos. Marek
judeus remanescentes a se reunir arremessadas com precisão e calma, Edelman descreveu: “Ruas inteiras
para a “reinstalação” em outro acertando em cheio um tanque. Uma ficaram bloqueadas por incêndios
lugar. Visando persuadi-los a partir, explosão. O tanque foi imobilizado. .... O mar de chamas inundava
nomeiam o gerente da fábrica Os outros dois tanques bateram casas e pátios ... Não havia ar,
Taebbens – e não a SS – para chefiar em retirada, seguidos por alemães uma fumaça preta sufocante e
o grupo de “reassentamento”. Em apressados, sob a mira de granadas um calor ardente irradiavam dos
represália, a ZOB incendeia a e artilharia certeiras. Eles perderam muros vermelho-incandescentes...”.
Fábrica de Marcenaria Habbermans, perto de 200 homens, entre mortos Centenas de judeus, aprisionados
atacando os guardas alemães, que e feridos. Nossas baixas: um nos edifícios em chamas, saltam
fogem, apavorados. Nenhum dos combatente”. para a morte.
3.500 operários daquela fábrica se
apresenta para o “reassentamento”. Às cinco da tarde, os alemães batem A ZOB viu-se forçada a também
em retirada. Naquela noite, os mudar de tática. Enquanto
O início do Levante combatentes e o remanescente da combatiam os nazistas, tentavam
comunidade judaica de Varsóvia salvar judeus que as chamas
A ação final contra o Gueto se inicia festejam. Os judeus haviam provado haviam levado às ruas. Ao fim
em 18 de abril de 1943. O plano era a si mesmos e ao resto do mundo da primeira semana, os alemães
apresentar Varsóvia como “Judenfrei” que enfrentariam os alemães com trazem artilharia pesada e aviões da
(livre de judeus) no dia 30 de abril, armas em punho. Luftwaffe e bombardeiam o Gueto.
aniversário de Hitler. Agora, todo o Gueto ardia em
Na madrugada do segundo dia, chamas.
Durante a madrugada, dois os alemães voltam ao Gueto. A
mil nazistas e colaboradores, ZOB explode as minas colocadas A ZOB adota, então, táticas de
pesadamente armados, cercam o anteriormente, matando uma guerrilha. Preparam emboscadas
Gueto com tanques e caminhões centena de nazistas. Os combates para os alemães; as batalhas
carregados de munição. Alertados seguem durante todo o dia, a ZOB alastram-se dia e noite. Forçam,
sobre os planos nazistas, 750 assim, os alemães a lutar rua por
combatentes judeus estão a postos rua, edifício por edifício, judeu por
para recebê-los à bala. À espreita, judeu...
concentram-se em três postos-chave
que controlam o acesso ao Gueto. Mas, após uma semana de luta
Os que não podem lutar escondem- ininterrupta, a situação se torna
se nos bunkers. insustentável para os combatentes.
Haviam sofrido poucas baixas, mas
O Levante do Gueto de Varsóvia estavam exaustos – combatentes
tem início assim que entram os e judeus. O fogo consumira as
alemães. A primeira batalha ocorre reservas de alimento e os escombros
na rua Nieweski, com vitória total entulhavam a maioria dos poços de
da ZOB. Yitzhack Zuckerman, água do Gueto. E, o pior, a munição
um dos sobreviventes, descreveu chegava ao fim.

73 abril 2018
SHOÁ

MONUMENTO AOS HERÓIS DO GUETO. CRIADO EM 1948 POR Nathan Jakow Rappaport. VARSÓVIA

O último dos principais focos de nazistas explodem a Sinagoga de


resistência era o bunker de comando Varsóvia, às 20:15h daquela noite.
da rua Mila 18, onde estavam
baseados 120 combatentes. Em 8 As palavras de Mordechai
de maio, os alemães bombardeiam Anielewicz, na carta que enviou
sua entrada durante duas horas, em 23 de abril, são as que melhor
mas como os combatentes não se transmitem a mensagem dos
rendiam, injetam gás venenoso combatentes às gerações futuras:
dentro do bunker, pelos bueiros
dos esgotos. Um dos combatentes “É impossível colocar em palavras o que
descobre uma saída oculta; mas temos suportado. Ficou muito claro, no
poucos conseguem escapar. Os entanto, que o que ocorreu, suplantou
outros, pouco a pouco, morrem nossos sonhos mais ousados. Com a
sufocados pelo gás, ou dão cabo ajuda de nosso transmissor, ouvimos
da própria vida. Uma centena de Mordechai Anielewicz pela estação de rádio Shavit o relato
bravos combatentes judeus perecem maravilhoso de nossos combatentes.
na batalha pelo Mila 18, entre eles, O fato de sermos lembrados além dos
Mordechai Anielewicz, o heroico e represento, estiverem sendo muros do Gueto nos incentiva em nossa
destemido comandante da ZOB. assassinados. Meus camaradas luta. Que a paz o acompanhe, amigo,
no Gueto de Varsóvia tombaram talvez ainda voltemos a nos encontrar.
Em 12 de maio, Shmuel Zygelboym, empunhando suas armas, na O sonho de minha vida despertou para
representante do Bund no Governo derradeira batalha heroica. Não me ser realidade. A autodefesa no gueto
Polonês no Exílio, se suicida. Deixa foi permitido tombar como eles, terá sido uma verdade. Verdadeiros
uma carta na qual diz que apesar mas sou parte deles em seu túmulo também são a resistência judaica
de a culpa pelo Holocausto ser dos coletivo. Com minha morte, dou armada e nossos atos de vingança. Fui
alemães, nem a resistência polonesa, expressão ao mais profundo protesto testemunha da magnífica e heroica luta
o Governo polonês ou os aliados contra a inércia com que o mundo de homens judeus combatentes”.
tinham feito o necessário para evitar assiste e consente no extermínio do
a matança dos judeus. Ninguém Povo Judeu”.
os havia ajudado. Os habitantes de BIBLIOGRAFIA
Varsóvia, indiferentes, assistiram Mesmo sem lideranças, os Dawidowicz, Lucy, The War Against the
o Gueto arder, seus moradores combatentes lutam até 16 de maio Jews: 1933-1945
saltando pelas janelas. de 1943. Nesse dia, o comandante Gutman, Israel, Resistência: O levante do
Stroop, responsável pela liquidação gueto de Varsóvia
do Gueto, comunica a Berlim Kassow, Samuel D,Who Will Write Our
Zygelboym escreveu: “Não posso History?: Rediscovering a Hidden Archive
continuar vivendo e silenciar que o Gueto de Varsóvia “deixara from the Warsaw Ghetto. Ebook Kindle
enquanto os remanescentes de existir”. A ação, de grandes Gilbert, Martin, The Holocaust. Ebook
do judaísmo polonês, a quem proporções, termina quando os Kindle

74
REVISTA MORASHÁ i 93

Recebo esta maravilhosa revista! Ao receber a edição


de dezembro de 2017 deliciei-me com tantos artigos
interessantes, atualizados, cheios de inteligência. Leio da
primeira à última folha. São artigos muito bem selecionados,
super-interessantes, que até minhas amigas que não são
judias gostam de ler. Muito obrigada a todos vocês por me
proporcionarem tanta alegria com esta magnífica publicação.
Ita Drucker
São Paulo - SP

Morashá presta um grande serviço Tenho imenso prazer em receber Recebemos o material enviado a
cultural e humanitário ao Brasil e ao os números impressos da Morashá. esta Fundação, em cumprimento
mundo todo por seu conteúdo. Sinto Continuem com este trabalho de à legislação vigente de Depósito
falta de um link para fazer a tradução qualidade e produtividade. Shaná Tová! Legal. Agradecemos esta importante
das palavras para o português Tulio Bryk
contribuição para a preservação
para saber o seu significado, o que Beer Sheva - Israel e a guarda da Coleção “Memória
facilitaria muito a compreensão e não Nacional”, composta pela produção
interrupção das leituras. Parabéns, Queremos agradecer por receber esta intelectual do País.
D’us continue os abençoando. extraordinária revista. Seus artigos são Alessandra Moraes
Shalom! muitos significativos tanto na parte Chefe da Divisão de Depósito Legal
Fundação Biblioteca Nacional
Marcos Alexandre Kowarick
cultural, quanto no que diz respeito a Ministério da Cultura
Maranhão - MA nossa religião. Rio de Janeiro - RJ

Bernardo e Sueli Lichewitz


Os artigos publicados no site Por e-mail Agradeço o envio do artigo sobre
Morashá têm sido muito úteis Damasco publicado na edição 8
em minhas pesquisas históricas e Parabéns por mais uma edição (98) da da Morashá, de abril de 1995, em
cotidianas. revista Morashá. Aliás, não poderia ter que meu bisavô Indibo, que era
Josef Sager
outro nome. Curioso o artigo sobre o rabino nessa cidade, é mencionado.
Por e-mail “Ano das Árvores”, que despertou em Vou guardar com muito carinho e
nós a reflexão sobre o que às vezes nos transmitir para meus filhos.
A toda Equipe que produz esta é invisível: a mensagem que a natureza Jayme Endebo
revista maravilhosa, que Hashem envia para nossa alma proporcionando Rio de Janeiro - RJ
continue os inspirando e iluminando o equilíbrio entre saúde física e mental.
continuamente. De todo coração. A perseverança, a tradição e a esperança Frequento a Biblioteca de Araras
Aida Lerner
nunca deixaram de fazer parte da nossa onde me deparei com a revista
Modiin - Israel vida, historicamente confirmadas nos Morashá, a qual gostei muito. Tudo
artigos sobre “Os Pergaminhos do o que e refere a Israel eu gosto de
Queremos parabenizar a direção da Mar Morto” e “Os Judeus na Polônia”. ler. Já li as edições 96, 97 e 98. Em
maravilhosa revista Morashá pela Gratidão, sempre! maio Israel fará 70 anos, que seja um
publicação do artigo “Ética Médica Janete Haber Fajntuch número especial.
Nazista” escrito pelo Dr. Morton Por e-mail
Luiz Salvador de Oliveira
Scheinberg na edição 97, Ano 34, Araras - SP
de setembro de 2017. A leitura deste A historia de Chanucá narrada na
artigo é de grande valor informativo, última edição, nos ensina que apesar A matéria sobre os 70 anos
conscientizou-nos ainda mais das dos nossos inimigos tentarem nos da Partilha é uma verdadeira
atrocidades do regime nazista. tirar o direito de existir e de seguir os enciclopédia para que possamos
Enea Wainstok
ensinamentos da Torá, a resistência de ter argumentos precisos sobre
Raanana - Israel nosso povo é tenaz os verdadeiros fatos históricos
e as luzes das Chanuquiót acontecidos naquela época. Parabéns
Leitura maravilhosa. permanecerão para sempre acesas. ao Morashá.
Pinkus Salomão Rozenbojm Flavio Shwartzman Sara Atun
São Paulo - SP Por e-mail Por e-mail

75 ABRIL 2018
ANO XXV - edição 99 abril 2018

You might also like