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NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
THEOTONIO DOS SANTOS
1 – CRISE ESTRUTURAL E LONGA DURAÇÃO
A ideia de uma crise estrutural de um modo de produção tem sua origem no prólogo de Marx à
Contribuição à crítica da economia política. Depois de expor suas descobertas teóricas mais
importantes, Marx se refere a uma situação histórica que ele qualifica como uma era de
revolução social, isto é, uma crise de “longo” prazo definida estruturalmente. Nas palavras de
Marx, neste documento tão importante:
Pode-se visualizar neste (e em outros) textos que Marx não imaginava uma mudança de modo
de produção imediato, mas sim em um processo histórico secular. Isto fica cada vez mais claro
quando diz mais adiante:
“Uma sociedade não desaparece nunca antes que sejam desenvolvidas todas as forças
produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não a substituem
jamais antes que as condições materiais de existência dessas relações hajam sido incubadas no
seio da velha sociedade.”ii
Está claro neste texto tão sintético e tão cuidadosamente elaborado que Marx não poderia
aceitar a ideia de uma “derrubada final” do capitalismo, tal como começou a ser discutido no
final do século XIX e começo do século XX na Internacional Socialista (II Internacional). O
processo de superação histórica do modo de produção capitalista por um novo modo de
produção, baseado na propriedade coletiva dos meios de produção, na superação do trabalho
assalariado, na superação da divisão entre trabalho intelectual e manual, na superação do Estado
e da política, na extinção das classes sociais, seria precedido por uma formação social
intermediária, que se passou a chamar socialismo. Nesta formação social intermediária ainda
existiria o Estado para obrigar pela coerção (para os comunistas e anarquistas, todo o Estado é
uma ditadura, para Marx, uma ditadura de classes), a transformação de todo o sistema jurídico,
de todas as instituições ideológicas, do sistema educacional, das relações de produção
capitalistas e, para alcançar o mais alto estado de desenvolvimento das forças produtivas, de
maneira a permitir uma economia da abundância que substituiria as formas socioeconômicas
conhecidas, fundadas na escassez. No entendimento de Marx, a superação do capitalismo será a
superação da pré-história humana e o início da história da humanidade. É evidente que uma
transformação tão radical da sociedade em escala mundial não poderia ser realizada de uma
maneira imediata, tampouco as formações sociais que articulariam esta transformação não
poderiam ser um modelo único, mas sim um resultado de distintas tradições culturais e
civilizatórias, distintas correlações de força e distintas formas de organização política. Também
não podemos retirar deste plano histórico a ideia de um único e simultâneo processo de
transformação. É evidente que se supõe avanços e retrocessos de uma luta de classes que se
desenvolve em interação com os mais distintos sistemas sociais locais, nacionais ou regionais.
Devemos supor, portanto, que o sistema social capitalista e as formas pré-capitalistas que com
ele convivem devem procurar se adaptar ao avanço das forças sociais revolucionárias, para que
possa estender no tempo sua sobrevivência. Marx e Engels chegaram a prever no Capital, nos
Grundrisse e em vários textos programáticos, algumas das possíveis formas que adotaria esta
crescente adaptação do capitalismo à socialização crescente das forças produtivas, ao qual era
arrastado sistematicamente como conseqüência do funcionamento histórico do modo de
produção capitalista.iii
Três eram os mecanismos centrais identificados por Marx para que o modo de produção
capitalista pudesse sobreviver se opondo (sempre de maneira precária) à tendência da queda da
taxa de lucro, ao qual era inevitavelmente arrastada pela competição capitalista e pelo
desenvolvimento das forças produtivas impelidas pelas necessidades da acumulação do capital.
Em primeiro lugar, a necessidade de impor o domínio monopólico dos mercados. Somente
através dele, o capital pode gerar taxas de lucro elevadas, concentradas nas empresas
monopólicas. Ele gera um tipo novo de empresa, no qual o capital delegava cada vez mais a
gestão a profissionais, cuja função contraditória provocava crescentes contradições dentro das
próprias unidades de produção entre a valorização do capital e a apropriação do lucro. A
implantação de um mercado monopólico e oligopólico já se apresentavam no Capital, como a
evolução inexorável do capitalismo histórico. Em segundo lugar, para manter uma taxa de lucro
elevada em condições monopolistas, é necessário se apoiar em forças produtivas cada vez mais
socializadas, que diminuem drasticamente a quantidade de trabalho socialmente necessário vivo
em relação ao trabalho morto, incorporado nas instalações, nas maquinarias, nas matérias-
primas gigantescas que o trabalhador passava a transformar. Tudo isto leva a uma necessidade
de aumentar cada vez mais a inovação tecnológica e a buscar se apropriar dos conhecimentos
técnicos e científicos, para colocá-los sob o domínio da propriedade privada, na qual se funda o
capital. Marx, e posteriormente Engels, chamavam a atenção para a necessidade de socializar a
propriedade privada dos meios de produção, através das sociedades anônimas que iniciaram em
sua época, assim como previa a extensão do monopólio capitalista a todo o sistema econômico,
como de fato ocorreu. Ficou claro ainda que os setores de pequenos proprietários que
sobrevivem e se recriam no capitalismo estão sob o controle do capitalismo monopólico.
Esboçavam-se assim os fenômenos da concentração e da centralização do capital como
necessidade fundamental do sistema capitalista de produção para sobreviver nas condições de
um crescente desenvolvimento das forças produtivas, no qual diminui drasticamente a
quantidade de valor incorporada nas mercadorias e aumenta a pressão histórica em direção a
uma queda crescente da taxa de lucro, ao mesmo tempo em que aumenta drasticamente os
enormes excedentes de produção em relação ao valor da força de trabalho.Crescimento do
excedente econômico em função do aumento de produtividade, diminuição do valor dos
produtos, preços administrados, negação da lei do valor, mercados monopólicos, luta pelo
controle dos avanços do conhecimento. Nesta dinâmica dialética se anuncia a auto-destruição da
propriedade privada como resultado da lei de acumulação do capital. O crescimento dos
assalariados e sua organização é a contraparte necessária desta lógica.iv
Já estava claro também para Marx e Engels que somente o Estado poderia resistir a estas
tendências do desenvolvimento capitalista, ao negar sua própria superestrutura social e
ideológica. Engels chamou o Estado de “capitalista coletivo”. No final de suas vidas, tanto Marx
como Engels já haviam superado aquela imagem de um Estado encarregado somente de
preservar a superestrutura do sistema social. As mudanças em curso e as leis da acumulação
capitalista que descobriram teoricamente indicavam claramente que o Estado Moderno se
convertia em um agente direto do processo de produção capitalista. Marx esboçou também o
papel do comércio exterior e do sistema colonial como fatores que resistem a tendência à queda
da taxa de lucro. Mas nem ele nem Engels chegaram a sistematizar o aparecimento do
imperialismo como etapa superior do capitalismo. Foram os excelentes trabalhos do
institucionalista Hobson, de um lado, e do marxista Hilferding, do outro, que abriram caminho à
sistematização desta nova realidade, trabalhos que influenciaram definitivamente os livros sobre
imperialismo de Lênin e Bukharin. v
O mundo colonial se levantava e iniciava uma nova frente de luta mundial: as lutas de libertação
nacional e a instalação de Estados nacional-democráticos no mundo dominado pelas potências
imperialistas. Esta nova frente partia com mais clareza ainda de uma valorização do capitalismo
de Estado, que já se revelara extremamente eficaz nas políticas de acumulação primitiva na
União Soviética, além de demonstrar uma eficácia militar impressionante. O período posterior à
Segunda Guerra Mundial aprofundou a crise estrutural do modo de produção capitalista de uma
maneira avassaladora. A vitória da revolução chinesa, a coreana, a vietnamita, a expansão da
revolução social na América Latina desde a Bolívia (1952), Guatemala (1954), Cuba (1958),
estimulavam novas vitórias da versão socialista da luta anticolonial. A Índia de Gandhi, a
Indonésia de Sukarno, a Iugoslávia de Tito, anunciavam, entre outros, o aparecimento de um
novo sujeito histórico, que se inspirava no México revolucionário, nos “novos turcos”, e em
outras experiências que apontavam em direção ao exemplo de um Estado poderoso para
conduzir à acumulação primitiva, seja ela capitalista ou socialista. Depois da histórica reunião
de Bandung em 1955, esses novos sujeitos sociais adquiriram aspecto e programa que deu
origem ao exitoso Movimento dos Não-Alinhados, cujo programa contrário à “Guerra Fria”,
que os Estados Unidos e a Inglaterra forjaram para deter uma falsa ameaça soviética, terminou
por se impor nos anos 90 com o fim da “guerra fria”. Esta estratégia de paz foi conduzida,
entretanto, na URSS por uma elite privatista submissa ao projeto reacionário e delirante do
pensamento único neoliberal. A ofensiva dos anos oitenta e noventa do grande capital deu
origem a ideia do fracasso do socialismo e da vitória total do capitalismo; mas qualquer um que
examinar com cuidado os fundamentos teóricos e práticos deste programa poderia demonstrar
seu inevitável fracasso, como eu disse tantas vezes. ix
Era também evidente que o processo de transição a uma sociedade superior socialista tinha que
abandonar a formulação stalinista que apresentava, não como uma modalidade de transição
cheia de limitações, mas sim como um modelo a ser seguido por toda a humanidade. A intenção
de preservar as estruturas de estratificação social criadas no período de acumulação primitiva e
reforçadas pelas dificuldades das duas guerras mundiais e pela guerra civil em defesa da
revolução, e mais deformado ainda pelas exigências e os custos absurdos da II Guerra Mundial
e da Guerra Fria, teria que abrir caminho a uma nova modalidade de transição para o
socialismo, que ficou profundamente sacrificado pelas aventuras econômicas impostas pelos
neoliberais nestes países. A extensão de uma etapa de hegemonia ideológica de um sistema
econômico, social e político em crise elevou a um grau extremamente agudo sua inseguridade.
Se, através de duas guerras mundiais e da experiência totalitária do nazismo, o capitalismo
havia destruído brutalmente grande parte da população do planeta, com o avanço revolucionário
das forças produtivas através da revolução científico-tecnológica iniciada na década de 1940
esta ameaça ganha dimensões enormes. A ameaça do holocausto nuclear, controlado
precariamente através da criação de um grupo de potências nucleares, expande a capacidade
destrutiva do meio ambiente, assumindo o caráter de uma ameaça de autodestruição do planeta
Terra. O mundo do mercado e da propriedade privada se converte em uma ameaça a
sobrevivência da humanidade. Este quadro reacionário impediu perceber a extensão da crise
estrutural do capitalismo para muitos, infelizmente a maioria dos cientistas sociais. Aqui devo
fazer uma reivindicação pessoal. Seguindo uma linha de pensamento apoiada em uma releitura
sistemática e crítica de Marx e da tradição do pensamento marxista, sem ignorar a contribuição
de economistas não marxistas, como Kondratiev, Keynes, Schumpeter, e tantos outros,
particularmente a contribuição da teoria crítica do desenvolvimento da CEPAL e dos autores
chamados de terceiro-mundistas, sem deixar de afirmar e dar continuidade a nossas conquistas
teóricas da teoria da dependência, sobretudo em sua versão marxista, sem deixar de resgatar o
pensamento nacional-democrático dos líderes da revolução democrática latino-americana,
podemos manter uma elaboração teórica e analítica que resistiu a ofensiva neoliberal e que se
ligou a linha de pensamento iniciada por Immanuel Wallerstein, em torno de um campo de
análise apoiado no poder heurístico do conceito do sistema mundial. Devemos ressaltar também
os famosos autores marxistas e não marxistas que demonstram o vínculo profundo da crise do
capital, com a ameaça da sobrevivência da humanidade e do planeta Terra.
Pude demonstrar ainda em vários estudos sobre o tema como havia uma oportunidade para a
integração latino-americana, na medida em que o processo de regionalização era o caminho
inevitável da globalização capitalista e obrigava as regiões culturalmente articuladas – como a
América Latina e o Caribe – a se integrar para se defender da globalização. x
Por fim, chegamos ao livro com o título Do Terror À Esperança: Auge e Declínio do
Neoliberalismo, editado em 2008, em castelhano, por Monte Ávila, Caracas. Ele estabelece duas
teses centrais que creio ser uma contribuição importante ao estudo da etapa atual do capitalismo
como sistema econômico e ideologia. A primeira é a afirmação sobre a petição de principio –
falácia utilizada para demonstrar uma tese partindo do principio que a mesma é válida - do
pensamento teórico neoliberal. Este pretende voltar às premissas básicas do liberalismo,
estabelecidas no século XVIII. Pretende demonstrar que o “livre” mercado é um produto da
natureza humana, fundada na ideia do individuo possessivo como plena expressão da natureza
humana. Além do conteúdo ideológico evidente desta construção teórica, demonstrado por
vários autores, ela entra em choque com o caráter monopolista e o aprofundamento do
capitalismo de Estado, que caracterizam o capitalismo contemporâneo. Se a hipótese do livre
mercado podia ter algum sentido prático no século XIX para impor o domínio do capital sobre a
economia mundial, no século XX e mais ainda no século XXI é uma aberração inútil e
equivocada que entra em choque com os fatos a cada dia. Daí o fracasso do neoliberalismo e do
pensamento único para inspirar políticas econômicas coerentes. Em meu estudo da prática do
neoliberalismo, demonstro como as políticas econômicas de inspiração neoliberal aumentaram o
déficit público, e, portanto, a intervenção do Estado na economia (diminuindo o gasto social,
mas aumentando de maneira explosiva os gastos financeiros e militares). Ao mesmo tempo, os
governos neoliberais criaram déficits comerciais, de um lado, e superávits, do outro, que
introduziram um desequilíbrio fantástico na economia mundial. É evidente que estes
desequilíbrios fiscais e comerciais conduziram também a um desequilíbrio monetário e a uma
oscilação das divisas internacionais completamente dependentes das intervenções estatais e dos
jogos monopolistas e especulativos que nenhum mercado “livre” pode nem de longe regular.
A segunda tese que apresentamos neste livro se refere a relação entre os regimes de força,
fascistas e para-fascistas, com o domínio ideológico e político do neoliberalismo. Não foi uma
coincidência que, no desmoralizado grupo da Universidade de Chicago se encontra o primeiro
governo que inseriu o neoliberalismo no mundo econômico real através do regime fascista de
Augusto Pinochett, no Chile; nem é menos verdade que os governos de Thatcher e Reagan, que
os propagaram em todo o mundo, se fundaram em violentas confrontações com o movimento
sindical de seus países, com a intenção desesperada de destruir o “Estado de bem estar” e os
regimes socialistas. Estabelecemos assim em uma cuidadosa análise a correlação direta entre o
terror de Estado e as políticas neoliberais, que retiraram dos trabalhadores direitos
historicamente conquistados, rebaixando drasticamente seus salários ao combinar repressão
estatal com repressão econômica através das recessões, com um acompanhamento de
desemprego e desesperança. Do Terror À Esperança: Auge e Declínio do Neoliberalismo
contribui, assim, para uma compreensão significativa do período recessivo da economia
mundial entre 1967 e 1994, tema que analisamos no quadro das ondas longas de Kondratiev,
contribuição teórica e econométrica do economista russo, cuja vigência restabelecemos na
década de 1970, junto com Ernest Mandel, André Gunder Frank, Cristopher Freeman, e tantos
outros.
Cabe-nos agora avançar na análise da nova fase da economia capitalista mundial iniciada com a
recessão de 2008-2009, na qual entram em crise definitiva as soluções provisórias impostas no
período do auge neoliberal. Estas análises ganharam uma evidência enorme com a crise
desatada no segundo semestre de 2008. Ela demonstrou com enorme violência algumas das
teses desse livro:
3) A crise atual tem dois lados: em parte ela torna visível o fracasso da famosa
capacidade de equilíbrio que se poderia alcançar por um “mercado livre”, que não existe e que
jamais poderia regular processos tão fundamentais. Mas, por outro lado, um manejo midiático
impressionante da “crise” permite confundir as pessoas para justificar a violenta e deficitária
intervenção estatal a favor da sobrevivência do capital financeiro para impedir a “crise
sistemática” que, segundo eles, destruiria todos.
7) Podemos esperar que os próximos dez anos serão de avanço social e econômico com
maior ou menor avanço político, dependendo da consciência da forças sociais emergentes e da
capacidade de suas lideranças políticas de expressar e sintetizar suas necessidades e aspirações.
Creio que os livros que compõem esta trilogia poderão ajudar nesta tarefa. Agrada-me pensar
que a vanguarda política da China possa dialogar com meu esforço teórico, como vem fazendo
desde a tradução ao mandarim de Imperialismo e Dependência, em 1992, seguida de mais cinco
livros. xi