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CUIDADO E PROTEÇÃO DOS ADULTOS INCAPAZES: APONTAMENTOS

CRÍTICOS SOBRE O REGIME JURÍDICO DA CURATELA∗

Gustavo Pereira Leite Ribeiro & Ana Carolina Brochado Teixeira

SUMÁRIO: 1. Breve nota contextual; 2. Curatela e seus destinatários; 3. Procedimento de


interdição; 4. Nomeação do curador; 5. Exercício da curatela; 5.1. Aproximação conceitual
da tutela; 5.2. Entre incapacidade e autonomia; 5.3. Gestão dos interesses existenciais; 5.4.
Gestão dos interesses patrimoniais; 5.5. Extinção e prestação de contas; 5.6. Alguns outros
aspectos; 6. Curatela especial, sem interdição; 7. Designações futuras sobre a própria
incapacidade.

1. Breve nota contextual

Ninguém parece duvidar que o direito civil contemporâneo seja alvo de profundas
transformações, que atingem sua estrutura e seu conteúdo.1 No que tange à sua estrutura, presencia-
se o declínio dos dogmas basilares do movimento clássico de codificação, como a completude, a
coerência e, obviamente, a segurança jurídica, entendida simplesmente como elevado grau de
previsibilidade dos comportamentos que podem ser assumidos pelos parceiros negociais.2 Acredita-
se que a proliferação das leis especiais ameaça a unidade do sistema privado, acabando por exigir o


Este texto é resultado do projeto de pesquisa “Incapacidade versus curatela: reflexões sobre a autonomia privada dos
deficientes mentais”, empreendido sob coordenação dos autores, com financiamento do Programa de Iniciação
Científica do Centro Universitário UNA.
1
Seja consentido remeter ao nosso RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Direito Civil (em crise) e a busca de sua razão
antropocêntrica. Revista Seqüência. Florianópolis, v. 28, n. 57, 2008, p. 285-297.
2
Para exame dos aspectos teóricos e filosóficos do fenômeno da codificação do direito civil, vale a pena, entre nós,
consultar AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa.
Brasília, v. 31, n. 121, 1994, p. 233-243; ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da codificação: crônica de um conceito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. Pode-se também cfr. MARQUES, Mário Reis. Codificação e paradigmas
da modernidade. Coimbra: Coimbra, 2003; GROSSI, Paolo. Mitologie giuridiche della modernità. Milano: Giuffrè,
2001. Sobre os delineamentos da teoria da descodificação do direito civil, recomendamos a leitura de IRTI, Natalino.
L’etá della decodificazione. 3. ed. Milano: Giuffré, 1989. Ademais, não deixe de consultar a revisão promovida pelo
autor italiano em alguns de seus posicionamentos, que pode ser encontrada em IRTI, Natalino. Codice civile e società
política. 4. ed. Roma: Laterza, 2003. Entre nós, pode-se cfr. AMARAL, Francisco. A descodificação do direito civil.
Revista Direito e Justiça. Lisboa, v. 13, n. 1, 1999, p. 130-148.
desenvolvimento de instrumental que facilite a compreensão e manipulação das possíveis relações
entre os vários núcleos normativos fragmentados.3

Evidencia-se a fragilidade da técnica legislativa rígida e casuística, que definitivamente


não consegue dar tratamento adequado às novas situações que emergem das complexas relações
sociais. A seu turno, ganham prestígio as cláusulas gerais, que não utilizam termos de conteúdo pré-
fixado, mas de conteúdo determinável, o que acarreta uma maior possibilidade de adaptar a norma
às situações de fato.4 Reconhece-se também a relevância e a prevalência normativa dos princípios
jurídicos, especialmente daqueles de índole constitucional, na solução concreta dos litígios
privados.5

Enfim, as mudanças estruturais convergem para a valorização da atividade do intérprete,


que não se limita mais à rasa e literal exegese.6 O intérprete passa a contribuir efetivamente para a
construção da decisão justa em cada litígio concreto, participando ativamente do preenchimento do
conteúdo da norma jurídica. Mais que isso, evidencia-se que somente por meio da atividade
interpretativa é possível criar as condições necessárias para o diálogo e harmonização das diversas
fontes normativas.

No que tange ao seu conteúdo, parece-nos que as transformações são também


significativas.7 Percebe-se o declínio da proteção abstrata da pessoa, típica das primeiras
codificações modernas, implementando-se a promoção da igualdade substancial, que reconhece as
desigualdades fáticas e legitima o tratamento diferenciado como medida de inclusão. Projeta-se a
ampliação da proteção dos direitos de personalidade, com a conseqüente valorização da autonomia
privada nas relações de cunho existencial, para além de uma série de mudanças relevantes no
âmbito da família, da herança, da propriedade, do contrato, entre outros, que revelam

3
Recomendamos a leitura de MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo
brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Revista da Escola
Superior da Magistratura de Sergipe. Aracajú, n. 7, 2004, p. 15-54.
4
Sugerimos a leitora de MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um sistema em construção: as cláusulas
gerais no projeto do código civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 35, n. 139, 1998, p. 5-22.
5
Recomendamos a leitura de BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova
interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 327-378; GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios
jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Revista de Informação Legislativa.
Brasília, v. 36, n. 143, 1999, p. 191-209.
6
Recomendamos a leitura de GALUPPO, Marcelo Campos. A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-
positivismo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre, v. 1, n. 3, 2005, p. 195-206.
7
Recomendamos a leitura de PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. De acordo com o autor italiano, a exaltação axiológica da dignidade da pessoa humana tem levado o
direito civil a sofrer um processo de despatrimonialização, por meio do qual se evidencia a sua maior sensibilidade às
situações existenciais, que recolhem dados não confináveis nos esquemas normativos de índole econômica. Sobre o
fenômeno em questão, pode-se também cfr. DONISI, Carmine. Verso la depatrimonializzazione del diritto privato.
Rassegna di Diritto Civile. Napoli, n. 80, 1980, p. 649-650.

2
progressivamente a maior importância atribuída aos interesses personalíssimos em detrimentos dos
interesses patrimoniais. Não se determina, contudo, a expulsão ou a redução quantitativa do
conteúdo patrimonial do sistema jurídico civilístico, mas se reconhece que os bens e os interesses
patrimoniais não constituem fins em si mesmos, devendo ser tratados como meios para a realização
da pessoa humana, ou melhor, como justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento
da pessoa.8

Sob o manto de uma pretensa neutralidade, o nosso primeiro Código Civil acabou
privilegiando o patrimônio como valor necessário da plena realização da pessoa. Luiz Edson Fachin
assinala que a “codificação civil brasileira tomou para si o lugar jurídico do governo das relações
privadas sob os influxos do patrimônio como noção nuclear”,9 considerando-o, verdadeiramente,
um atributo ou uma projeção da personalidade humana.10 No mesmo sentido, Paulo Luiz Netto
Lôbo leciona que a codificação civil brasileira possuía “como valor necessário da realização da
pessoa humana, a propriedade, em torno da qual gravitavam os demais interesses privados,
juridicamente tutelados. O patrimônio, o domínio incontrastável sobre os bens, inclusive em face do
arbítrio dos mandatários do poder político, realizava a pessoa humana”.11 Acrescenta o autor: “a
prevalência do patrimônio, como valor individual a ser tutelado nos códigos, submergiu a pessoa
humana, que passou a figurar como pólo de relação jurídica, como sujeito abstraído de sua
dimensão real”.12 E conclui: “a patrimonialização das relações civis, que persiste nos códigos, é
incompatível com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotado pelas constituições
modernas, inclusive pela brasileira. A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da
emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil, passando o
patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário”.13

O ser humano era valorizado pela sua aptidão para ter patrimônio e não por sua dignidade
como tal.14 Assim, o Código serviu para atender aos interesses de uma classe social bem definida,
que pretendia essencialmente otimizar com segurança suas relações de aquisição, transmissão e

8
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 122-123
9
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 61.
10
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 42.
11
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 36,
n. 141, 1999, p. 103
12
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 36,
n. 141, 1999, p. 103
13
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 36,
n. 141, 1999, p. 103
14
Indicamos a leitura de CARVALHO, Orlando de. Para uma teoria da relação jurídica civil. Coimbra: Centelha,
1981. Entre nós, cfr. MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura
patrimonial. In FACHIN, Luiz Edson (org.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 87-114.

3
manutenção de bens, aparecendo como protetor dos valores econômicos, especialmente daqueles
incidentes sobre bens corpóreos, não guardando espaço adequado para a tutela dos valores
existenciais do ser humano.

O Código Civil reconheceu a pessoa como “um homem que resume todos os seus direitos a
possuir e a saber como possuir”, assim ignorando o “homem concreto, o homem de carne, sujeito a
debilidades, presa de necessidades, esmagado por forças econômicas”.15 A própria sistemática de
exposição de suas normas evidenciou esse certo desprezo pela dimensão concreta do ser humano,
reduzindo-o, tal como as coisas e os fatos, sem qualquer específica posição de privilégio, a um
simples elemento da categoria abstrata da relação jurídica.16 Ser sujeito de direito dependia do
enquadramento do indivíduo naquelas hipóteses previamente dispostas na lei, que coordenavam e
limitavam sua atuação nas relações sociais.17

No que diz respeito ao regime legal das incapacidades, mesmo sob a ratio da proteção dos
sujeitos que, presumivelmente, não apresentavam discernimento suficiente para administrar seus
interesses, promoveu-se uma radical exclusão.18 Clóvis Beviláqua, por exemplo, afirma que os
absolutamente incapazes compreendem as pessoas que o direito afasta, inteiramente, da atividade
jurídica, pondo, ao seu lado, alguém que as represente, e, em nome delas, exercite os atos da vida
civil;19 enquanto os relativamente incapazes reúnem as pessoas que podem praticar, por si, os

15
CARVALHO, Orlando de. Para uma teoria da relação jurídica civil. Coimbra: Centelha, 1981, p. 33-34.
16
CARVALHO, Orlando de. Para uma teoria da relação jurídica civil. Coimbra: Centelha, 1981, p. 48.
17
Neste sentido, Jussara Meirelles assinala que “a redução da ordem jurídica a verdadeiro estatuto patrimonial e a
categorização da pessoa como sujeito que contrata, que constitui formalmente uma família, que tem um patrimônio e
que se apresenta, enfim, como sujeito dos direitos estabelecidos no sistema, faz com que a personalidade civil se
distancie mais e mais da dignidade humana, em razão da qual os indivíduos merecem proteção e amparo; e, aproxime-
se, de maneira a sinonimizar-se, da titularidade contratual e patrimonial. Em suma, é a pessoa quem é titular; e só é
titular quem a lei define como tal” (MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual
à clausura patrimonial. In FACHIN, Luiz Edson (org.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 98).
18
De acordo com Caio Mário da Silva, o instituto das incapacidades “foi imaginado e construído sobre uma razão
moralmente elevada, que é a proteção dos que são portadores de uma deficiência juridicamente apreciável. Esta é a
idéia fundamental que o inspira, e acentuá-lo é de suma importância para a sua projeção na vida civil, seja no tocante à
aplicação dos princípios legais definidores, seja na apreciação dos efeitos respectivos ou no aproveitamento e na
ineficácia dos atos jurídicos praticados pelos incapazes. A lei não institui o regime das incapacidades com o propósito
de prejudicar aquelas pessoas que delas padecem, mas, ao contrário, com o intuito de lhes oferecer proteção, atendendo
a que uma falta de discernimento, de que sejam portadores, aconselha tratamento especial, por cujo intermédio o
ordenamento jurídico procura restabelecer um equilíbrio psíquico, rompido em conseqüência das condições peculiares
dos mentalmente deficitários. As deficiências podem ser mais ou menos profundas: alcançar a totalidade do
discernimento; ou, ao revés, mais superficiais, aproximar o seu portador da plena normalidade psíquica. O direito
observa estas diferenças, e em razão delas gradua a extensão da incapacidade, considerando, de um lado, aqueles que se
mostrem inaptos para o exercício dos direitos, seja em conseqüência de um distúrbio da mente, seja em razão da total
inexperiência, seja em função da impossibilidade material de participação no comércio civil; de outro lado, os que são
mais adequados à vida civil, portadores de um déficit psíquico menos pronunciado, ou já mais esclarecidos por uma
experiência relativamente ponderável” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, v. 1, p. 168).
19
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p. 96.

4
poucos atos da vida civil que lhes são expressamente permitidos, devendo praticar todos os demais
mediante autorização prestada por outrem.20

Os códigos de matriz oitocentista, baseando-se nos estreitos conhecimentos de psiquiatria


então existentes, relacionaram de forma sistemática a doença mental com a ausência de
discernimento.21 O indivíduo acometido por enfermidade mental era reputado por essa circunstância
uma pessoa sem discernimento, isto é, carente da aptidão para querer e entender,
independentemente do grau de complexidade, assim como da licitude ou não, do ato jurídico em
causa.22 Em conseqüência da deficiência de ordem psíquica, que era suficiente para pressupor um
grave comprometimento de discernimento, justificava-se a instituição de regimes especiais de
proteção aos indivíduos em questão.

Importa assinalar que mesmo a idéia de discernimento foi pouco explorada por parcela
significativa dos civilistas de outrora, passando até despercebida por alguns, o que pode ser tomado
como fator bastante revelador do caráter patrimonial com o qual as incapacidades foram cobertas.
Hoje, sabemos que “a existência da enfermidade mental não exclui, em muitas situações, a
existência de discernimento, ao menos, para uma parcela mais ou menos limitada de atos, cuja
extensão varia segundo as características de cada caso”,23 o que é suficiente para exigir nossa
atenção.24 Há, inclusive, quem pleiteie ser necessário redefinir o conceito de discernimento como
uma realidade desvinculada da enfermidade mental.25 Mais do que isso, afirma-se, com razão, que
“as capacidades de entender, de escolher, de querer são expressões da gradual evolução da pessoa
que, como titular de direitos fundamentais, por definição não transferíveis a terceiros, deve ser
colocada na condição de exercê-los paralelamente à sua efetiva idoneidade, não se justificando a

20
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p. 102.
21
TOBÍAS, José. La enfermedad mental y su tratamiento por el derecho privado: debates y tendencias actualizadoras.
In BORDA, Guilhermo Antonio (dir.). La persona humana. Buenos Aires: La Ley, 2001, p. 197.
22
TOBÍAS, José. La enfermedad mental y su tratamiento por el derecho privado: debates y tendencias actualizadoras.
In BORDA, Guilhermo Antonio (dir.). La persona humana. Buenos Aires: La Ley, 2001, p. 197.
23
TOBÍAS, José. La enfermedad mental y su tratamiento por el derecho privado: debates y tendencias actualizadoras.
In BORDA, Guilhermo Antonio (dir.). La persona humana. Buenos Aires: La Ley, 2001, p. 198.
24
Cfr. SERRA, Adriano Vaz. Manipulação ou liberdade na terapêutica psiquiátrica. Cadernos de Bioética. Coimbra, n.
20, 1999, p. 37-49, assim também COELHO, Rui; RAMOS, Sónia. Aspectos éticos da saúde mental: primeira parte.
Cadernos de Bioética. Coimbra, n. 38, 2005, p. 171-200; COELHO, Rui; RAMOS, Sónia. Aspectos éticos da saúde
mental: segunda parte. Cadernos de Bioética. Coimbra, n. 39, 2005, p. 325-358.
25
VISINTINI, Giovanna. La nozione di incapacità serve ancora? In CENDON, Paolo (a cura di). Un altri diritto per il
malato di mente. Napoli: Scientifiche Italiane, 1988, p. 94 apud TOBÍAS, José. La enfermedad mental y su tratamiento
por el derecho privado: debates y tendências actualizadoras. In BORDA, Guilhermo Antonio (dir.). La persona
humana. Buenos Aires: La Ley, 2001, p. 198. Para algumas considerações críticas sobre a tutela jurídica da pessoa
acometida por doença mental, destacando inclusive os desafios que se impõem, vale a pena consultar LOUREIRO, João
Carlos. Pessoa e doença mental. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra. Coimbra, v. 81, 2005, p.
145-187.

5
presença de obstáculos de direito e de fato que impedem o seu exercício”.26 Assim, parece-nos
necessário reconhecer que, no contexto de uma sociedade democrática e pluralista, comprometida
com a plena realização da pessoa humana, a verificação do discernimento individual deve ser capaz
de legitimar a atuação pessoal do sujeito de direito, especialmente naquelas situações envolvendo
interesses existenciais.

Teixeira de Freitas foi uma exceção. Em seu Esboço, ficou consignado, expressamente,
que o discernimento da pessoa humana era qualidade constitutiva da capacidade de exercício.27 Por
discernimento entendia-se a “faculdade de conhecer em geral, a faculdade que fornece motivos à
vontade em todas as suas deliberações, e não o conhecimento em particular de qualquer agente em
relação a um ato por ele praticado, cuja moralidade seja necessário apreciar. [...] O discernimento
ou a faculdade de conhecer constitui a regra geral da nossa existência na plenitude de seu
desenvolvimento, a privação desta faculdade é um caso excepcional; e a legislação conta com o
estado normal da natureza, supõe o que ordinariamente acontece. Dado um fato humano em acordo
ou discordância com as suas disposições, ela o considera efeito de uma causa inteligente e livre que
podia ou não produzi-lo, e manda que se impute ao agente, que tenha lugar as conseqüências
jurídicas, enquanto não se comprovar que o caso é de exceção”.28

De acordo com o autor, nenhum ato teria caráter voluntário, com a conseqüente projeção
de efeitos jurídicos, sem que o agente o tivesse praticado com discernimento, intenção e
liberdade.29 “O discernimento aplicado a um ato, que se praticou, é, como já disse, o que chamo de
intenção. Se o fato é voluntário, houve certo a intenção de o praticar, isto é, a tendência ou direção
da vontade esclarecida pelo discernimento para esse fato, que exteriormente se manifestou. O
discernimento indica a causa capaz de produzir estes efeitos, a intenção ocasiona estes efeitos; e os
ocasiona porque a faculdade de discernir tem funcionado, e a vontade tem propendido para o ato,
que aparece. Se o ato foi praticado com intenção, é certo que o agente tem obrado com

26
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 260.
27
TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil. Esboço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1952, v. 1, p. 249.
28
TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil. Esboço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1952, v. 1, p. 247.
Na doutrina italiana, lê-se que “a capacidade de entender, posta na base da capacidade legal e natural de agir, é
expressão da idoneidade do sujeito, de ter consciência não apenas dos resultados de uma ação [da sua] vontade, mas
também das situações da realidade que precedem a assunção de qualquer comportamento, com o objetivo de ter
presentes os dados, à luz dos quais será valorizado o resultado da ação. A capacidade de agir pressupõe, em alguma
circunstância, a existência e o conhecimento dos fatos que levam à ação possível ou necessária do sujeito” (ARENA,
Giacomo. Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, 1958, v. 20, p. 920). A seu turno, na doutrina argentina, lê-se que
“a capacidade refere-se à aptidão das pessoas para adquirir direitos e contrair obrigações, e se sustenta em sua
maturidade, que lhe permite distinguir o conveniente do inconveniente aos seus interesses, tendo em contrapartida a
incapacidade. Por sua vez, o discernimento é a aptidão das pessoas para distinguir o bom do mau, também sustentada na
maturidade ou saúde mental, mas cuja contrapartida é a falta de razão” (RIVERA, Julio César. Instituciones de derecho
civil. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2004, v. 1, p. 394).
29
TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil. Esboço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1952, v. 1, p. 240.

6
discernimento; e portanto a falta de discernimento exclui a possibilidade de intenção. Se, porém, o
ato foi praticado sem intenção, já observamos que o agente pode estar no inteiro gozo de suas
faculdades intelectuais; e agora acrescentamos que é isso o que sempre se supõe, quando se diz que
a intenção falta”.30

A seu turno, como adverte Pasquale Stanzione, a “análise da capacidade de agir é


constantemente realizada em uma perspectiva economista, raramente o estudo desta se destaca do
perfil patrimonial para investir em outros aspectos da pessoa, como confirma as origens históricas
do instituto. Em termos doutrinários, a prova desta afirmação é representada pela existência de
teóricos que, em sede de definição, ligam a concessão da capacidade de agir ao sujeito que possui a
maturidade suficiente para avaliar a conveniência econômica dos atos realizados”.31

Em nome de uma suposta segurança do tráfico jurídico, legitimou-se a completa


desconsideração das manifestações de vontade dos incapazes sobre quaisquer espécies de seus
interesses, mesmo que contassem com discernimento. Submeter o acervo patrimonial de pessoa
debilitada à sua simples manifestação de vontade acarretaria ruína, além de prejudicar a
previsibilidade incidente sobre as relações socioeconômicas.32 Com razão, Rafael Garcia Rodrigues
assinalou que "o excesso de proteção por parte do ordenamento jurídico para com o incapaz pode
redundar na verdadeira supressão da subjetividade deste, na medida em que decisões sobre o
desenvolvimento de sua própria personalidade fiquem a cargo de terceiros".33

Em conclusão, nota-se que o instituo das incapacidades foi utilizada pela civilística
clássica não apenas como um conceito técnico, mas também ideológico, servindo, em regra, para
somente designar a aptidão do sujeito de direito para gerir um acervo patrimonial, bem como para
favorecer a segurança jurídica no tráfego das relações patrimoniais.

Na atualidade, não pode ser mais assim.34 Os diversos abusos do poder econômico,
cometidos à sombra do antigo sistema constitucional, que causaram a intensa exploração de grande

30
TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil. Esboço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1952, v. 1, p. 250.
31
STANZIONE, Pasquale. Enciclopedia giuridica. Rorma: Istituto della Enciclopedia Italiana, 1988, v. 5, p. 10.
32
RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no Código Civil. In TEPEDINO, Gustavo (org.). A parte
geral do novo código civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 14-15.
33
RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no Código Civil. In TEPEDINO, Gustavo (org.). A parte
geral do novo código civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 26.
34
Recomendamos a leitura de MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. Direito,
Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 1, 1991, p. 59-73; RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Constitucionalização do direito
civil. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra. Coimbra, v. 74, 1998, p. 729-755; LÔBO, Paulo
Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 36, n. 141, 1999, p.
99-109; MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e direito civil: tendências. Direito, Estado e Sociedade. Rio de
Janeiro, n. 15, 1999, p. 95-113; TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito
civil. In TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, v. 1, p. 1-22; TEPEDINO,
Gustavo. Normas constitucionais e relações de direito civil na experiência brasileira. In TEPEDINO, Gustavo. Temas de

7
parcela da população, com um inimaginável desrespeito aos aspectos mais fundamentais da
subsistência do ser humano, permitem compreender a emergência de uma nova sistemática
constitucional, mais aberta para a realização da justiça distributiva e do bem-estar social.

Assim, desde os pós-guerras, verifica-se uma gradual mutação na fisionomia dos textos
constitucionais, que incorporam diversas matérias afeitas à ordem econômica e social. Além do
elenco dos direitos individuais que delimita uma esfera de proteção das pessoas em face dos entes
políticos, as normas constitucionais passam a exprimir regras e princípios destinados a intervir nos
planos econômico e social, objetivando proteger o indivíduo não apenas das ingerências dos
poderes estatais, mas também contra o poder econômico e os desequilíbrios dele advindos.

As normas constitucionais positivam novos direitos sociais, assim chamados por visarem à
melhoria das condições materiais e espirituais de subsistência das pessoas, tratando de assuntos
como o trabalho, a saúde, a educação, a cultura, o meio ambiente, a família. Mais do que isso,
algumas normas constitucionais indicam metas sociais e econômicas a serem alcançadas, por meio
do estabelecimento de programas de ação direcionados aos poderes públicos e aos poderes privados.
E não se pode esquecer o relevante movimento em favor do reconhecimento da imperatividade
jurídica das regras e dos princípios inseridos nos textos constitucionais, abandonando-se a
concepção de que encerravam apenas diretrizes de caráter político.35

Neste contexto, insere-se a vigente Constituição brasileira. Interessa-nos mais de perto


verificar que algumas normas constitucionais incorporam princípios e regras de direito civil, não
raro de conteúdo discordante das normas jurídicas do Código, antigo e novo. Todos os grandes
setores que integram o conteúdo do direito civil passam a estar presentes, em maior ou menor
medida, mas sempre de forma relevante e básica, no texto constitucional.

As normas constitucionais tratam da função social da propriedade, da usucapião de


imóveis rural e urbano, da pluralidade das entidades familiares, da igualdade entre filhos e entre
cônjuges, da relativização da autoridade parental, da dissolubilidade do casamento, do planejamento
familiar, dos direitos da personalidade, da proteção prioritária das crianças e dos idosos, da
atividade econômica privada.

Mais do que isso, assumem-se compromissos para a construção de uma sociedade mais
justa, livre e solidária (art. 3º, inc. I, CR/88), bem como para a erradicação da pobreza e redução das

direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, v. 2, p. 21-46; VILLELA, João Baptista. Entre decodificação e
constitucionalização. Liber Amicorum per Francesco Donato Busnelli. Milano: Giuffrè, 2008, v. 2, p. 25-41;
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 1-48.
35
Recomendamos a leitura de HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Safe, 1991.

8
desigualdades (art. 3º, inc. II, CR/88), buscando-se alcançar o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inc. IV, CR/88).
Obviamente, como lembra-nos Clèmerson Merlin Clève, o constituinte não pretendeu ser retórico
ou hipócrita, uma vez que tais postulados são contrariados pela realidade crua do cotidiano. No
entanto, quer-se apostar na e exigir a superação da referida situação.36
Lembre-se que as normas constitucionais possuem prevalência hierárquica sobre as demais
normas jurídicas, estendendo suas escolhas axiológicas por todos os recantos do ordenamento
jurídico. Toda norma ordinária, por mais simples que pareça, deve encontrar seu fundamento de
validade nas disposições constitucionais vigentes, assim respeitando os alicerces da nova ordem
jurídica e contribuindo para a operacionalização dos objetivos lançados pelo constituinte. Com a
promulgação da atual Constituição, instaura-se uma nova ordem jurídica comprometida com a
proteção e o pleno desenvolvimento da pessoa humana, bem como com a efetivação da cidadania.
Na autorizada lição de Gustavo Tepedino, a Constituição acaba por definir a tábua de valores de
todo o ordenamento jurídico brasileiro.37

A Constituição impõe então a releitura, sob nova ótica, das categorias e dos institutos
tradicionais do direito civil, elaborados em outro contexto social e axiológico. De modo contrário ao
Código Civil, que conserva os valores da sociedade liberal burguesa, a Constituição vigente projeta
e estimula a fundação de uma nova sociedade: antes preponderava o individualismo, agora, o
solidarismo; antes se protegia prioritariamente a propriedade, agora, a dignidade da pessoa
humana.38

36
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A teoria constitucional e o direito alternativo. Revista Advocacia Dinâmica. Rio de
Janeiro, n. 1, 1994, p. 47.
37
TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas privadas. In TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito
civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 67-68.
38
Parece-nos que o novo Código Civil também conserva os valores liberais da sociedade burguesa, articulando-se a
partir da proteção prioritária do patrimônio, o que, obviamente, exige do intérprete cuidado redobrado ao manuseá-lo,
sob pena de afastar-se das diretrizes constitucionais vigentes. No mesmo sentido, Gustavo Tepedino adverte que “o
novo Código nasce velho principalmente por não levar em conta a história constitucional brasileira e a corajosa
experiência jurisprudencial, que protegem a personalidade humana mais do que a propriedade, o ser mais do que o ter,
os valores existenciais mais do que os patrimoniais. E é demagógico porque, engenheiro de obras feitas, pretende
consagrar direitos que, na verdade, estão tutelados em nossa cultura jurídica pelo menos desde o pacto político de
outubro de 1988” (TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do
novo código. In FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (coord.). Direito
civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, v. 1, p. 128). Para análise crítica da adequação do novo Código Civil,
recomendamos a leitura também de ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da
codificação: uma análise do novo código civil. 2.e d. Belo Horizonte: Del Rey, 2008; FACHIN, Luiz Edson. Sobre o
projeto do código civil brasileiro: crítica à racionalidade patrimonialista e conceitualista. Boletim da Faculdade de
Direito. Universidade de Coimbra. Coimbra, n. 76, 2000, p. 129-151. Sobre as premissas teóricas e metodológicas que
orientaram a elaboração do novo Código Civil, não deixe de consultar REALE, Miguel. História do novo Código Civil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, além de MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos.
Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.

9
Ela não pode ser considerada mero limite negativo ao legislador ordinário, como, de fato,
ocorreu tempos atrás. Conforme assevera Gustavo Tepedino, “a Constituição não teria um rol de
princípios fundamentais não fosse para, no plano hermenêutico, condicionar e conformar todo o
tecido normativo: tanto o corpo constitucional, no mesmo plano hierárquico, bem como o inteiro
ordenamento infraconstitucional, com supremacia sobre todas as demais normas jurídicas”.39 Dessa
forma, Clèmerson Merlin Clève adverte que o conteúdo da norma ordinária deve concretizar a idéia
de direito lançada na Constituição.40
Ao enunciar no seu dispositivo introdutório que a dignidade da pessoa humana constitui o
fundamento de nossa sociedade, o texto constitucional exaltou o suporte normativo que possibilita a
reconstrução sistemática do direito civil.41 Afinal, como bem observou Orlando de Carvalho, um
direito civil que não arranque da pessoa humana é um direito civil sem sentido, tornando-se mesmo
imprescindível acentuar sua raiz antropocêntrica, sua ligação visceral com a pessoa e as suas
intrínsecas necessidades.42

Paulo Luiz Netto Lôbo salienta que "o desafio que se coloca aos civilistas é a capacidade
de ver as pessoas em toda a sua dimensão ontológica e, através dela, seu patrimônio. Impõem-se a

39
TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas privadas. In TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito
civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 67.
40
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A teoria constitucional e o direito alternativo. Revista Advocacia Dinâmica. Rio de
Janeiro, n. 1, 1994, p. 49.
41
A propósito, Luiz Edson Fachin assinala: “a Constituição Federal de 1988 erigiu como fundamento da República a
dignidade da pessoa humana. Tal opção colocou a pessoa como centro das preocupações do ordenamento jurídico, de
modo que todo o sistema, que tem na Constituição sua orientação e seu fundamento, se direciona para a sua proteção.
As normas constitucionais (compostas de princípios e regras), centradas nessa perspectiva, conferem unidade a todo o
ordenamento jurídico. A Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da postura patrimonialista
herdada do século XIX, em especial, do Código de Napoleão, migrando para uma concepção em que privilegia o
desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas relações interpessoais, visando à
sua emancipação. Nesse contexto, à luz do sistema constitucional, o aspecto patrimonial, que era elemento de maior
destaque, é deixado sem segundo plano” (FACHIN, Luiz Edson. Sobre o projeto do código civil brasileiro: crítica à
racionalidade patrimonialista e conceitualista. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra. Coimbra, n.
76, 2000, p. 130). Na mesma direção, Maria Celina Bodin de Moraes destaca: “ao contrário do que pode parecer, elevar
a dignidade da pessoa humana (e o desenvolvimento de sua personalidade) ao posto máximo do ordenamento jurídico
constitui opção metodológica oposta ao individualismo das codificações. A pessoa humana, no que se difere
diametralmente da concepção jurídica de indivíduo, há de ser apreciada a partir da sua inserção no meio social, e nunca
como uma célula autônoma, um microcosmo cujo destino e cujas atitudes pudessem ser indiferentes às demais. [...]
Afinal, assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir, não conseguimos compreender quem somos sem
o olhar e a resposta do outro. É o outro, é o seu olhar, que nos define e nos forma (MORAES, Maria Celina Bodin de. O
princípio da solidariedade. In PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly
(org.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 177 e p. 189). E acrescenta Ingo
Wolfgang Sarlet: “temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distinta de cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além
de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos” (SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas em torno da relação entre o
princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In LEITE,
George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 213-214)
42
CARVALHO, Orlando de. Para uma teoria da relação jurídica civil. Coimbra: Centelha, 1981, p. 90-91.

10
materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da
primazia da pessoa humana, nas relações civis, é condição primeira de adequação do direito civil à
realidade e aos fundamentos constitucionais".43

Com razão, Pietro Perlingieri afirma que “para o civilista apresenta-se um amplo e
sugestivo programa de investigação que se proponha à atuação de objetivos qualificados: individuar
um sistema do direito civil mais harmonizado aos princípios fundamentais e, em especial, às
necessidades existenciais da pessoa; redefinir o fundamento e a extensão dos institutos jurídicos e,
principalmente, daqueles civilísticos, evidenciando os seus perfis funcionais, numa tentativa de
revitalização de cada normativa à luz de um renovado juízo de valor; verificar e adaptar as técnicas
e as noções tradicionais (da situação subjetiva à relação jurídica, da capacidade de exercício à
legitimação, etc), em um esforço de modernização dos instrumentos e, em especial, da teoria da
interpretação".44

Por todo o exposto, resta-nos enfrentar o desafio de como compreender a finalidade e o


conteúdo da curatela, no contexto do direito civil constitucionalizado.

2. Curatela e seus destinatários

A curatela, leciona Caio Mário da Silva Pereira, é um encargo cometido a alguém para
dirigir a pessoa e administrar os bens de maiores incapazes.45 No mesmo sentido, Luiz Edson
Fachin assinala que a curatela se apresenta como um ofício em favor das pessoas maiores de idade
que não se acham em condições de agir juridicamente por si próprios.46 Para Orlando Gomes,
“destina-se a regência de pessoas incapazes, mas se organiza para a defesa e proteção”.47 De acordo
com Rodrigo da Cunha Pereira, é “um dos institutos de proteção aos incapazes, compondo a trilogia
assistencial, ao lado da tutela e do poder familiar”.48 Trata da proteção aos maiores incapazes, cuja

43
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 36,
n. 141, 1999, p. 103.
44
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.12.
45
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 5, p. 265.
46
FACHIN, Luiz Edson. Direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 278-279.
47
GOMES, Orlando. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 417.
48
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Comentário ao novo código civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 20, 2004, p. 385.

11
“incapacidade, em geral, é decorrente de um estado mental que produz uma certa loucura, que
inviabiliza o discernimento e entendimento, comprometendo o elemento volitivo do sujeito”.49
Parece-nos que a curatela deve ser compreendida como um dos instrumentos ordinários
para efetivação dos postulados constitucionais da dignidade da pessoa humana50 (art. 1º, inc. III,
CR/88) e da solidariedade51 (art. 3º, inc. I, CR/88), no contexto de uma família democrática,52 razão
pela qual “seu principal objetivo é o cuidado e a recuperação do interdito e, em segundo plano, a
gestão patrimonial, pois o curatelado deve ser, tanto quanto possível, recuperado e reinserido na
vida jurídica cotidiana”.53
Como todo instituto de proteção, só deve ser implementada quando, de fato, houver
necessidade.54 Por isso, o art. 1.767, do Código Civil, estabelece que os destinatários da curatela são

49
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Comentário ao novo código civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 20, 2004, p. 385.
50
Recomendamos a leitura de TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional
brasileiro. In TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 23-54; AZEVEDO,
Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio
de Janeiro, v. 2, n. 9, 2002, p. 3-24; MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito jurídico de dignidade da pessoa
humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos
fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 105-174; FACHIN, Luiz Edson;
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil. In
SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 87-104; SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da
dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In LEITE, George Salomão
(org.). Dos princípios constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 198-236; FACHIN, Luiz Edson. Direito civil e
dignidade da pessoa humana: um diálogo constitucional contemporâneo. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 102, n.
385, 2006, p. 113-125; VILLELA, João Baptista. Variações impopulares sobre a dignidade humana. Doutrina. Superior
Tribunal de Justiça. Edição Comemorativa, 20 Anos. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 2009, p. 561-581.
51
Recomendamos a leitura de MORAES, Maria Celina Bodin. O princípio da solidariedade. In PEIXINHO, Manoel
Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (org.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 167-190.
52
Recomendamos a leitura de MORAES, Maria Celina Bodin. A família democrática. In PEREIRA, Rodrigo da Cunha
(org.). Família e dignidade humana. São Paulo: IOB Thomson, 2006, p. 613-640;
53
ESTEVES, Rafael; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Curatela. In ALVES, Leonardo Barreto (org.). Código das
famílias comentado. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 651. Em recente julgado, o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro reforçou nosso posicionamento: “DECISÃO MONOCRÁTICA. APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO.
CONFLITO FAMILIAR. AUSÊNCIA DE FATOS E PROVAS A AUTORIZAR A MUDANÇA DA SENTENÇA. O
instituto da curatela é norteado pelo paradigma civil-constitucional em que o valor maior é a dignidade da pessoa
humana, devendo ser concedida àquele que tenha condições de garantir o melhor interesse do interditando, promovendo
a realização plena de sua pessoa no plano pessoal e social, respeitadas as limitações acarretadas pela incapacidade. A
interdição é medida extrema, pelo que só está ela autorizada legalmente quando existentes provas suficientes a
demonstrarem que o interditando está privado de seu pleno discernimento e entendimento, com o comprometimento de
sua vontade. Fulcrada a pretensão à interdição na prodigalidade do requerido, faz-se essencial a existência de elementos
probatórios de vulto a indicar, com quase certeza, estar aquele que se pretende interditar dilapidando, de forma
irresponsável e desmedida, o seu patrimônio. Ausente essas provas, saliente-se que, ainda que tenha havido má
administração do patrimônio do requerido, tal conduta não se pode confundir com prodigalidade. No direito pátrio vige
o princípio do livre convencimento motivado, não estando o magistrado adstrito a laudo pericial, desde que fundamente
sua decisão. Tendo entendido o juiz sentenciante que o recorrido não poderia ser enquadrado no conceito de
prodigalidade e sendo razoáveis e convincentes suas razões, apesar da conclusão do laudo pericial, a decisão deve ser
mantida” (TJRJ, Apelação Cível nº 2009.001.46300, Relatora Desembargadora Maria Augusta Vaz de Figueiredo,
julgado em 18/03/2010).
54
“INTERDIÇÃO. INEXISTÊNCIA DE PROVA DA INCAPACIDADE CIVIL. IMPROCEDÊNCIA. 1. Tratando-se
de decisão sobre a capacidade civil da pessoa, com gravíssimas conseqüências para o interditando e para terceiros,
imprescindível prova cabal da incapacidade. Somente quando comprovado o comprometimento das faculdades mentais

12
os portadores de algum tipo de deficiência, em regra, mental, que impossibilita o indivíduo de
cuidar de si e de seu patrimônio.

A primeira hipótese refere-se às pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental, não
apresentem o necessário discernimento para os atos da vida civil.55 Inova o legislador ao criar uma
categoria de incapacidade mais ampla para abarcar aquelas pessoas atingidas por doença ou

é que se justifica a interdição, que é instituto com caráter nitidamente protetivo da pessoa. 2. A impressão pessoal do
julgador corroborada por exame médico confere certeza sobre a plena capacidade civil do interditando” (TJRS,
Apelação Cível nº 70027103126, Relator Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em
13/05/2009); “AÇÃO DE INTERDIÇÃO. CURATELA. TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR. REQUISITOS
AUSENTES. Uma vez consagrado como regra a capacidade das pessoas para serem titulares de direitos e obrigações, a
interdição, medida excepcional e extrema, somente será imposta se efetivamente demonstrada a incapacidade do
indivíduo reger os atos da vida civil decorrente de deficiência mental ou outras causas previstas no art. 1.767, CCB/02”
(TJMG, Apelação Cível n° 1.0024.05.627515-9/001, Relatora Desembargadora Albergaria Costa, julgado em
11/05/2006); “INTERDIÇÃO. MEDIDA EXTREMA. PROVA ROBUSTA E INEQUÍVOCA. AUDIÊNCIA.
INTERROGATÓRIO. FORMAÇÃO DO CONVENCIMENTO. PERÍCIA JUDICIAL CONCLUINDO PELA
APTIDÃO DA INTERDITANDA EM GERIR SEUS PRÓPRIOS ATOS. Verifica-se que o processo de interdição traz
em si forte conteúdo de interesse público, no sentido de que o interditando, salvo prova robusta em contrário, não deve
ser privado da regência de sua pessoa e de seus bens. A curatela é um instituto protetivo daquelas pessoas que não estão
em condições de reger sua vida, nem administrar seu patrimônio, assim, traduz-se em uma restrição ao princípio da
personalidade do ser humano (art. 1º, III da CR), exigindo prova inequívoca de suas hipóteses permissivas, previstas no
art. 1.767 do Código Civil” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.03.056040-3/001, Relator Desembargador Batista
Franco, julgado em 24/05/2005); “INTERDIÇÃO. INCAPACIDADE DO INTERDITANDO PARA A PRÁTICA DE
ATOS DA VIDA CIVIL E PARA GERIR SEUS PRÓPRIOS BENS. INEXISTÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DO
PEDIDO. A interdição se destina a proteger aqueles que, embora maiores, não têm capacidade para gerir seus próprios
bens e praticar atos da vida civil. Demonstrado nos autos que a moléstia apresentada pela parte não a incapacita para
tais atos, descabe decretar a interdição. A incapacidade laborativa não constitui fundamento para a interdição” (TJMG,
Apelação Cível nº 1.0487.05.017270-8/001, Relatora Desembargadora Heloisa Combat, julgado em 30/10/2007);
“CURATELA. INTERDIÇÃO. REQUISITOS ESSENCIAIS AUSENTES. INCAPACIDADE DO INTERDITANDO
APENAS PARA A VIDA LABORATIVA. DEPRESSÃO ANSIOSA PASSÍVEL DE TRATAMENTO E
RECUPERAÇÃO. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A incapacidade laborativa não implica,
necessariamente, a perda da capacidade para gerir sua pessoa e bens. 2. Uma vez consagrado como regra a capacidade
das pessoas para serem titulares de direitos e obrigações, a interdição, medida excepcional e extrema, somente será
imposta se efetivamente demonstrada a incapacidade do indivíduo reger os atos da vida civil” (TJMG, Apelação Cível
nº 1.0701.05.099847-8/001, Relator Desembargador Célio César Paduani, julgado em 09/08/2007).
55
“AÇÃO DE INTERDIÇÃO. TRANSTORNO BIPOLAR. CAPACIDADE DE DISCERNIMENTO PREJUDICADA.
FALTA DE CONTROLE DOS PRÓPRIOS ATOS. TENTATIVA DE AUTO-EXTERMÍNIO. COMPULSORIEDADE
POR ALIMENTOS, BEBIDAS ALCÓOLICAS E COMPRAS. DEPENDÊNCIA EMOCIONAL. Pode ser decretada a
curatela da pessoa que por enfermidade ou deficiência mental não possui o necessário discernimento para os atos da
vida civil. Estando demonstrado que o quadro de transtorno bipolar de que padece a interditada não apenas prejudica
sua capacidade de administrar o seu próprio patrimônio, mas compromete o seu discernimento e a impede de tomar
decisões bem ponderadas e de agir de acordo com a razão, pois não consegue manter o controle de seus afetos e
impulsos, impõe-se o reconhecimento da sua incapacidade total, decretando-se sua interdição” (TJMG, Apelação Cível
nº 1.0024.06.191291-1/001, Relatora Desembargadora Heloisa Combat, julgado 06/10/2009); “FAMÍLIA.
INTERDIÇÃO E CURATELA. TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR. INCAPACIDADE. INTERVALOS DE
LUCIDEZ QUE NÃO OBSTAM A INTERDIÇÃO. INTERDIÇÃO LIMITADA. POSSIBILIDADE. Demonstrado e
comprovado diagnóstico de doença mental crônica, caracterizada por estágios cíclicos de perturbação, com inegável
prejuízo cognitivo nestes períodos e insegurança psíquica nos intervalos de lucidez, prudente se faz a interdição e
curatela para proteção do enfermo nos atos da vida civil de natureza negocial (TJMG, Apelação Cível n°
1.0024.04.501124-4/001, Relator Desembargador Armando Freire, julgado em 29/01/2008); “DEMÊNCIA POR
MÚLTIPLAS ETIOLOGIAS. TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR E ALCOOLISMO. INCAPACIDADE TOTAL.
Se o interditando apresentava quadro demencial de diversas etiologias, o que lhe comprometia a capacidade mental,
sendo interditado, e se a reavaliação feita mostra que ele continua sem condições mínimas de reger a sua pessoa e
praticar atos da vida civil, imperiosa a sua interdição total, pois o instituto da interdição tem caráter eminentemente
protetivo da pessoa” (TJRS, Apelação Cível nº 70016969214, Relator Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos
Chaves, julgado em 29/11/2006).

13
insuficiência psíquica, abandonando a criticada expressão loucos de todo gênero, utilizada pela
legislação revogada, que não respeitava as nuances da debilidade mental.56
Entenda-se por enfermidade toda anomalia que comprometa as funções psíquicas do
indivíduo, enquanto por deficiência mental o atraso no desenvolvimento psíquico.57 É necessário
ressaltar que não basta que a pessoa seja portadora de uma moléstia qualquer para que tenha sua
capacidade totalmente limitada, pois somente será considerada absolutamente incapaz se, em
decorrência da enfermidade ou do retardo, não puder discernir o que lhe convém ou não. Caso tenha
preservado grau de discernimento suficiente para determinar e defender alguns de seus interesses na
ordem civil, o enfermo deverá ser considerado relativamente incapaz. Neste sentido, já afirmava
Clóvis Beviláqua que são os “casos de insanidade mental permanente ou duradoura que determinam
a incapacidade, desde que se caracterizem por uma grave alteração nas faculdades mentais, seja a
inteligência, a emotividade ou o querer”.58 E “se a alteração das faculdades mentais não é grave,
embora duradoura, e permite ao paciente reger a sua pessoa e os seus bens, não há necessidade nem
conveniência de feri-lo com a incapacidade absoluta”.59 Assim, o portador de enfermidade mental
que tenha apenas minimizada a sua capacidade de entendimento e autodeterminação poderá ser
considerado somente relativamente incapaz.

A segunda hipótese diz respeito às pessoas que, por qualquer outra causa duradoura, não
conseguem manifestar sua vontade, se encontrando, dessa forma, impossibilitadas de comunicar-se
com outrem, como os que se acham em estados de coma e agonia. Também pode ser referenciado
aquele que não consegue manifestar-se livremente e, portanto, carece de plena capacidade volitiva,
em razão de acidente vascular cerebral ou de doenças degenerativas do sistema nervoso.60

56
Sobre a terminologia empregada na legislação revogada, vale a pena cfr. BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil
comentado. Rio de Janeiro: Rio, 1984, v. 1, p. 183-185. Veja também VIANA, Marco Aurélio. Curatela, interdição e
loucos de todo gênero. In PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del
Rey, 1999, p. 99-106; DÍAZ, Julio Alberto. Para uma nova hermenêutica dos intervalos lúcidos. In PEREIRA, Rodrigo
da Cunha (org.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 107-116.
57
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Das pessoas naturais. In REBELO, Nuno Miguel Branco de Sá Viana. Direito civil:
parte geral. Belo Horizonte: Leiditathi, 2009, p. 23.
58
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. Rio de Janeiro: Rio, 1984, v. 1, p. 184.
59
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. Rio de Janeiro: Rio, 1984, v. 1, p. 184.
60
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Das pessoas naturais. In REBELO, Nuno Miguel Branco de Sá Viana. Direito civil:
parte geral. Belo Horizonte: Leiditathi, 2009, p. 24. Note-se que os surdos-mudos foram excluídos da lista dos
incapazes. De acordo com Clóvis Beviláqua, “se o surdo-mudo pode exprimir a sua vontade, de modo satisfatório, é
porque possui uma inteligência normal, capaz de discernimento e de adaptação ao meio social; se não consegue
exprimir-se, de modo satisfatório, é porque sofre de uma lesão central, que o isola do mundo e o torna alienado”
(BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, v. 1, p. 185). “Se a surdo-
mudez depende de perturbações mentais, deve o indivíduo ser declarado incapaz por este motivo e não pelo primeiro.
Porém, se a surdo-mudez é devida a causas locais, ocorridas após o nascimento, as quais constituem a maioria dos
casos, então o indivíduo não é incapaz de modo algum, e terá apenas a impossibilidade de fato de celebrar certos atos e
contratos, impossibilidade que pode remover, autorizando alguém a representá-lo” (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral
do direito civil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p. 102). Não devemos esquecer que com o enorme
desenvolvimento tecnológico criaram-se vários suportes que possibilitam a manifestação da vontade pelo surdo-mudo,

14
A terceira hipótese engloba os ébrios habituais e os viciados em tóxicos, desde que o uso
freqüente dessas substâncias reduza seu discernimento.61 A situação aqui é sobremaneira difícil,
pois, em regra, a utilização de álcool e de tóxicos pode ser resultado de um ato de autonomia
privada e, por essa razão, é necessário apurar até que ponto resta comprometido o juízo valorativo
da pessoa.62 Note-se que não é o simples uso de álcool ou de tóxico que determina o enquadramento
na hipótese de incapacidade, mas o grau de dependência destes expedientes ao qual está submetido
o indivíduo.63

A quarta hipótese refere-se aos excepcionais sem desenvolvimento mental completo.


Interessante assinalar que o legislador percebeu que a pessoa acometida por anomalia congênita
prejudicial ao seu pleno desenvolvimento mental pode ser considerada relativamente incapaz, na
medida em que apresente reduzida percepção da realidade, assim exigindo-se que seja apenas
assistida nos atos da vida civil.

Também podem ser submetidos ao regime da curatela os pródigos.64 Considera-se pródigo


“aquele que desordenadamente gasta e destrói a sua fazenda, reduzindo-se à miséria por sua

por exemplo, os computadores. Pelo exposto, parece-nos inútil o elenco de uma hipótese exclusiva de incapacidade para
o surdo-mudo, o que, de fato, acabou corrigido no novo Código Civil.
61
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Das pessoas naturais. In REBELO, Nuno Miguel Branco de Sá Viana. Direito civil:
parte geral. Belo Horizonte: Leiditathi, 2009, p. 25-26.
62
TJMG, Apelação Cível nº 1.0702.05.192501-5/001, Relatora Desembargadora Albergaria Costa, julgado em
23/08/2007, “APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO. CURATELA. SÍNDROME DE DEPENDÊNCIA ALCOÓLICA.
INEXISTÊNCIA DE PROVAS ACERCA DA IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA ABSTINÊNCIA.
PRESUNÇÃO DA CAPACIDADE. Inexistindo provas de que o portador de síndrome de dependência alcoólica é
incapaz de manter a abstinência e expressar de forma consciente sua vontade, julga-se improcedente o pedido de
interdição, visto que a incapacidade não se presume”.
63
“AÇÃO DE INTERDIÇÃO. REQUISITOS. COMPROVAÇÃO. Na ação de interdição, restando comprovado que o
interditando não possui condições para gerir a sua pessoa e administrar os seus bens, tendo em vista que é portador de
alcoolismo crônico, a interdição deve ser decretada” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.01.595597-4/001, Relator
Desembargador Eduardo Andrade, julgado em 25/11/2003); “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE
INDEFERIU PEDIDO DE CURATELA PROVISÓRIA EM AÇÃO DE INTERDIÇÃO. Apesar de o interditando ter
admitido ser dependente de bebida alcoólica na audiência de impressão pessoal, não restou demonstrada a redução do
seu discernimento ou de haver fraqueza mental. A prodigalidade do interditando, no caso concreto, também não restou
provada, já que o empréstimo contraído não foi para sustentar o seu vício e tampouco decorreu de dilapidação de sua
renda. Ao contrário, com parte do dinheiro desse empréstimo foi possível ajudar financeiramente sua filha que reside
em outro município e com a outra parte, comprar mantimentos para sua casa e pagar algumas contas que estavam em
atraso. Laudo médico que instruiu a inicial, não conclusivo, vez que não subscrito por psiquiatra capaz de atestar a
saúde mental do interditando e não se restrito ao exame das condições de saúde do interditando, enveredando por seara
estranha à medicina” (TJRJ, Apelação Cível nº 2007.002.27029, Relatora Desembargadora Célia Meliga Pessoa,
julgado em 18/03/2008); INTERDIÇÃO. ALCOOLISMO. LIMITAÇÃO PARCIAL PARA ESTABELECER A
PROIBIÇÃO DE ALIENAÇÃO DE BENS. DECISÃO DE CARÁTER PROTETIVO DOS INTERESSES DO
INTERDITANDO. Se o interditando apresenta quadro de alcoolismo capaz de lhe comprometer a capacidade mental,
havendo risco de que venha a dilapidar o seu patrimônio, mostra-se adequada, pelo seu caráter protetivo, a interdição
parcial deferida, estabelecendo a proibição de alienar ou onerar bens imóveis. (TJRS, Apelação Cível nº 70012181947,
Relator Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 24/08/2005).
64
Na doutrina, encontramos dúvidas sobre a existência de motivo legítimo para justificar a incapacidade do pródigo.
Segundo Clóvis Beviláqua, a prodigalidade pode ser considerada um caso manifesto de alienação mental, não havendo
necessidade de destacá-la para constituir uma classe distinta de incapacidade. Os pródigos alienados devem ser
interditados, pois possuem deficiência mental; por outro lado, os pródigos de espírito lúcido e razão íntegra devem ser

15
culpa”.65 Os pródigos são “pessoas que, por irreprimível impulso, desfazem de seus bens, mediante
gastos injustificáveis, compras ou vendas desastrosas, esbanjando o seu patrimônio”.66 Carvalho
Santos ressalta que a prodigalidade pressupõe a habitualidade de desperdícios e gastos imoderados,
de modo que alguém somente será considerado pródigo quando não se mostrar apto para resistir ao
desejo de dissipar sua fortuna, em medida que não corresponda às reservas pecuniárias, pondo em
perigo sua situação econômica.67 A prodigalidade é tratada como um desvio comportamental, que
acarreta repercussões negativas no patrimônio de uma pessoa, razão pela qual a incapacidade dela
decorrente, conforme dispõe o art. 1.782, do Código Civil, alcança somente os atos jurídicos de
natureza patrimonial, por exemplo, empréstimo, quitação, venda, troca ou doação.68 O pródigo não
fica impedido de praticar, sem assistência do curador, atos jurídicos existenciais e de mera
administração.69

Além das hipóteses mencionadas, encontramos a possibilidade de os deficientes físicos


(art. 1.780, CC) serem submetidos a um regime diferenciado de curatela, sobre o qual traçaremos
breves comentários em outro tópico deste estudo.

respeitados na sua liberdade moral, sob pena de ofensa gravíssima ao direito de propriedade e à dignidade humana
(BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p. 113-114). Em seu
Esboço, Teixeira de Freitas excluiu o pródigo da lista dos incapazes. Na prodigalidade, o autor não identificava
alteração das faculdades mentais da pessoa, além de reputar inexistente um critério que pudesse distinguir com certeza o
pródigo daquele que não o é, assumindo que o arbítrio judicial é grande, nesta matéria, e perigoso. Ademais, adverte
que a liberdade individual é um bem tão precioso, que não deve ser restringida senão em casos de evidente necessidade
(TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil. Esboço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1952, v. 1, p. 45).
Pelas razões expostas, parece-nos que não andou bem, o legislador, ao manter os pródigos entre os relativamente
incapazes.
65
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p. 111.
66
NADER, Paulo. Curso de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 198.
67
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código Civil brasileiro interpretado. 15. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1992, p. 272-273.
68
“INTERDIÇÃO. PRÓDIGO. É considerada pródiga, para efeitos de interdição, a pessoa que, mercê de deficiências
próprias da idade e da pobreza intelectual, se mostra suscetível a influências de terceiros, tendo, sob sua administração,
significativo patrimônio” (TJRS, Apelação Cível nº 592060115, Relator Desembargador João Andrades Carvalho,
julgado em 05/11/1992); “INTERDIÇÃO. CURATELA PROVISÓRIA. DOAÇÕES. HIGIDEZ MENTAL. A curatela
é medida que deve ser deferida com prudência. É razoável quando o interditando revela sinais de prodigalidade com
seus bens, doados a parentes próximos ou entidades religiosas” (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70001154715, Relator
Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 06/12/2000); “INTERDIÇÃO. PRODIGALIDADE. PROVA
INÁBIL. O fato de o pai, com oitenta e três anos, namorar uma jovem de vinte anos, não o configura pessoa pródiga,
passível de interdição. Aliás, sequer o fato de o pai idoso, que namora uma jovem, haver alienado parte de seus bens, é
motivo para o pedido de interdição por prodigalidade, sobretudo quando a prova de cunho dissipador não veio para os
autos” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0042.04.005687-3/001, Relator Desembargador Nilson Reis, julgado em
17/05/2005); “INTERDIÇÃO. PRODIGALIDADE. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. 1. A prodigalidade
caracteriza-se pelo gasto desordenado dos recursos financeiros, uma situação objetiva que demonstre um
comprometimento na capacidade de administração do patrimônio. 2. E o ordenamento positivo, ao considerar o pródigo
como relativamente incapaz, autoriza sua interdição. 3. Neste aspecto, o pedido do filho de interdição de seu pai, sob o
fundamento deste ser pródigo, afigura-se juridicamente possível e permite a apreciação do mérito deste conflito de
interesse” (TJRJ, Apelação Cível nº 2005.001.13168, Relator Desembargador Milton Fernandes de Souza, julgado em
02/08/2005).
69
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Das pessoas naturais. In REBELO, Nuno Miguel Branco de Sá Viana. Direito civil:
parte geral. Belo Horizonte: Leiditathi, 2009, p. 26.

16
3. Procedimento de interdição

Caio Mário da Silva Pereira adverte que o pressuposto fático da curatela é a incapacidade,
enquanto o pressuposto jurídico, uma decisão judicial.70 É por meio do procedimento de interdição
que se obtém o reconhecimento judicial da incapacidade de uma pessoa maior de dezoito anos,71
além de se conferir poderes suficientes a outrem para representar ou assistir o incapaz.72 A
disciplina legal do expediente se encontra nos artigos 1.767 a 1.783, do Código Civil, assim como
nos artigos 1.177 a 1.186, do Código de Processo Civil. Trata-se de um procedimento relevante para
se verificar , de fato, o escopo do processo de curatela é a efetiva proteção ao suposto incapaz ou se
terceiros objetivam aproveitar-se de alguma situação ou inibir atos de autonomia patrimonial que
porventura discordem.

A ação de interdição pode ser proposta por cônjuge, companheiro, pais, irmãos, tutor ou
algum parente próximo (art. 1.177, CPC). Paulo Luiz Netto Lôbo assinala que a iniciativa pode
partir de qualquer dos legitimados, sem observância de ordem de preferência, pois a interdição do

70
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 5, p. 266.
71
Admite-se, entretanto, a interdição de pessoa maior de dezesseis anos e maior de dezoito anos, em razão de
deficiência ou enfermidade que determine elevado comprometido de seu discernimento, exigindo seu enquadramento
entre os incapazes, cabendo, assim, ao curador, em regra, atos de representação e não de assistência: “INTERDIÇÃO.
MENOR RELATIVAMENTE INCAPAZ. INTERESSE DE AGIR. CARACTERIZAÇÃO. PROVA DA
INCAPACIDADE. RETARDO MENTAL. CARACTERIZAÇÃO. Tratando-se de menor relativamente incapaz
portador de deficiência mental não há falar na ausência de interesse de agir da mãe que requer a sua interdição,
porquanto, de acordo com o disposto na legislação civil, os maiores de dezesseis anos têm capacidade para a prática de
atos jurídicos, havendo somente a exigência de estarem assistidos. Não há que se falar em ausência de interesse
processual, quando se encontra presente o binômio necessidade-utilidade do provimento jurisdicional. Havendo prova
nos autos a demonstrar que a menor relativamente incapaz não possui condições de reger a sua pessoa e seus bens,
sendo portadora de retardo mental moderado, a sua interdição é medida que se impõe” (TJMG, Apelação Cível n°
1.0028.07.013353-4/001, Relator Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula, julgado em 03/03/2008). Por outro lado,
não há que se cogitar a interdição de pessoa que não tenha completado os dezesseis anos: “INTERDIÇÃO. PESSOA
MENOR E ABSOLUTAMENTE INCAPAZ. PEDIDO JURIDICAMENTE IMPOSSÍVEL. 1. Considerando que a
interdição é ação destinada a retirar ou limitar a capacidade civil de alguém para reger sua pessoa e administrar os seus
bens, descabe interditar quem naturalmente não possui a capacidade civil, como é o caso da pessoa menor, que é
absolutamente incapaz ex vi legis. 2. Se a genitora do infante é doente mental e este carece de representação civil,
cabível processar a ação como pedido de guarda, com o que estará legitimada a avó materna a pleitear o benefício
previdenciário, que é, alegadamente o objetivo da presente ação. Recurso provido em parte” (TJRS, Apelação Cível nº
70011687886, Relator Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 22/06/2005).
72
A propósito, assinala Luiz Edson Fachin: “a maioridade etária não prova por si só a capacidade. Marcar esse modo de
alcançar o status é uma das tarefas da norma jurídica, e o faz congruente com seu tempo e circunstância. Nessa acepção
civil, a privação desse patamar abriga-se sob o manto da interdição. A interdição é o ato pelo qual o juiz declara a
incapacidade real e efetiva de pessoa maior, para a prática de certos atos da vida civil e para a regência de si mesma e de
seus bens” (FACHIN, Luiz Edson. Em nome do pai: estudo sobre o sentido e o alcance do lugar jurídico ocupado no
pátrio poder, na tutela e na curatela. In PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família contemporâneo. Belo
Horizonte: Del Rey, 1997, p. 599).

17
incapaz é considerada de interesse público.73 Também pode ser promovida pelo Ministério Público
(art. 1.178, CPC).74
Em termos simples, requerida a interdição, por meio de petição manejada por interessado,
este deverá demonstrar a sua legitimidade e especificar fatos que revelem a incapacidade do
interditando para reger a sua pessoa e administrar os seus bens (art. 1.180, CPC). Recebida a
petição, o juiz determinará a citação do interditando, convocando-o para uma entrevista na qual
realizará um interrogatório sobre sua vida, seus negócios e o que mais lhe parecer razoável para
atestar eventual comprometimento da capacidade (art. 1.181, CPC),75 situação que tem a finalidade
de o juiz formar impressões pessoais acerca do curatelando, importante principalmente para o caso
de se verificar pedido liminar de curatela provisória.
A seguir, será concedido ao interditando prazo para apresentar defesa técnica, na qual
poderá contestar o pedido formulado pelo autor (art. 1.182, CPC). Ressalte-se que, durante todo o
processo, devem ser concedidas ao interditando as garantias processuais e materiais
correspondentes à gravidade do ato de interdição.76 Decorrido o prazo, o juiz designará perito
médico para realizar avaliação completa da situação psíquico-física do interditando (art. 1.183,
CPC). Este laudo, previsto também no art. 1.771, do Código Civil, é relevante porque a doença que,
eventualmente, atinge o interditando pode ser imperceptível ao juiz, tornando imprescindível o
trabalho de especialistas para comprovar a existência da enfermidade e sua extensão, levando em
conta o comprometimento da sanidade mental ou da capacidade de querer e entender do sujeito em

73
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 395.
74
Dispõe o art. 1.769, do Código Civil, que o Ministério Público só promoverá a interdição: (i) em caso de doença
mental grave; (ii) se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do art.
1.768; (iii) se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no inciso antecedente. Por sua vez, dispõe o art.
1.770, do Código Civil, que nos casos em que a interdição for promovida pelo Ministério Público, o juiz nomeará
defensor ao suposto incapaz.
75
A propósito, assinala Rolf Madaleno: "Antes de pronunciar-se acerca da interdição, o juiz, assistido por especialistas,
examinará pessoalmente o argüido de incapacidade (art. 1.771 do CC), tendo em linha de consideração a defesa dos
interesses do interdito e não daqueles que buscam a sua interdição, muitas vezes embalados pelo propósito de inibir a
livre disposição de vontade do curatelando, cujo patrimônio pessoal já vai sendo monitorado para assegurar potencial
herança, que querem proteger pelo temor de uma dilapidação por haver o interdito dado sinais de disposição de seus
bens, ou por estar exercendo atos de generosidade e de doação das suas riquezas, notadamente ao travar novas relações
afetivas. Nessas ocasiões tem sido bastante comum os potenciais herdeiros demonstrarem preocupações pessoais com a
sanidade do interditando, tratando de enquadrá-lo na categoria dos pródigos quando ele passa a fazer uso de suas
riquezas em razão de uma relação afetiva com uma nova pessoa que surgiu em sua vida pessoal. De qualquer modo, o
juiz deve buscar o auxílio de especialistas como médicos, psiquiatras e psicólogos, para assessorá-lo profissionalmente,
no sentido de apurar a efetiva existência de causa de interdição, considerando, ademais de tudo, indispensável o contato
do juiz com o suposto incapaz, como ordena o artigo 1.181 do CPC deva o interditando comparecer perante o juiz para
ser minuciosamente interrogado acerca de sua vida, negócios, bens e do mais que parecer ao magistrado necessário para
avaliar o estado mental do curatelado. Entretanto, é essencial a perícia técnica, porque nem sempre os sintomas da
incapacidade estão visíveis e perceptíveis, necessitando o julgador do indispensável apuro profissional, mesmo quando
o curatelado possa lhe parecer visivelmente incapaz, ou, ao contrário, claramente capaz, porque certas doenças
psíquicas só se manifestam em episódicos surtos" (MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2008, p. 869).
76
HÖRSTER, Heinrich Ewald. A parte geral do Código Civil português. Coimbra: Almedina, 1992, p. 334.

18
questão. Aliás, a ausência de perícia médica pode ser suficiente para determinar a anulação do
processo de interdição.77

Havendo necessidade, poderá ser realizada audiência de instrução e julgamento, seguindo-


se, então, à prolação da sentença de mérito. Se declarada a interdição, o juiz assinalará o grau da
incapacidade do interdito, nomear-lhe-á curador para zelar pelos seus interesses pessoais e
patrimoniais e fixará os limites da curatela.
Vale destacar que a sentença produzirá efeitos desde sua prolação, embora sujeita a
apelação (art. 1.184, CPC). Deverá ser inscrita no cartório civil, além de publicada, por duas vezes,
pela imprensa local e, por uma vez, pelo órgão oficial, observando o intervalo de dez dias entre cada
publicação. Com isso, pretende-se dar publicidade à decisão, de modo a preservar a boa-fé daqueles
que se relacionam com o curatelado, principalmente no âmbito patrimonial. “A sentença que
decreta a interdição definitiva está sujeita a registro civil obrigatório. É a partir do momento do
registro que o regime da interdição funciona plenamente. Enquanto a sentença não constar do
registro, a interdição, embora produzindo os seus efeitos, não pode ser invocada contra um terceiro
de boa-fé. Está de boa-fé quem não conhece a sentença nem razoavelmente deve conhecê-la. [...]
Em relação a terceiro de má-fé, a interdição pode ser invocada mesmo sem registro, por causa da
sua finalidade protetora em relação ao interdito, mas também devido ao conhecimento que o
terceiro tem da situação débil deste”.78

Ressalte-se que a interdição é reversível (art. 1.186, CPC). Uma vez cessadas as causas que
a determinaram, o interdito poderá solicitar o levantamento.79 O requerimento será apensado aos

77
TJMG, Apelação Cível nº 1.0625.06.060588-2/001, Relator Desembargador José Domingues Ferreira Esteves,
julgado em 26/06/2007, "PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. INOBSERVÂNCIA DO
PROCEDIMENTO DO ART. 1183 DO CPC. NULIDADE. RECURSO PROVIDO. É imprescindível a realização de
perícia a fim de que seja indicado o grau da incapacidade do interditando, a doença que o acomete e se reversível ou
irreversível"; TJMG, Apelação Cível nº 1.0384.05.035135-0/001, Relator Desembargador Moreira Diniz, julgado em
04/10/2007, "DIREITO CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. INTERDIÇÃO. EXAME PERICIAL.
INOCORRÊNCIA. SENTENÇA CASSADA. RECURSO PROVIDO. Deve ser cassada a sentença proferida na ação de
interdição, se não for realizado o exame pericial, nos termos do artigo 1.183 do Código de Processo Civil"; TJMG,
Apelação Cível nº 1.0525.06.092831-0/001, Relator Desembargador Caetano Levi Lopes, julgado em 02/10/2007,
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. PERÍCIA. PROVA IMPRESCINDÍVEL E INEXISTENTE.
INVALIDADE PRESENTE. RECURSO PROVIDO. 1. A prova pericial é imprescindível em ação de interdição e sua
dispensa só é possível quando houver laudo emitido pela Previdência Social oficial. 2. Ausente a prova pericial o feito
está contaminado por invalidade absoluta, a partir da fase em que deveria a prova ser produzida. 3. Apelação cível
conhecida e provida para invalidar, parcialmente, o processo”; TJMG, Apelação Cível nº 1.0000.00.200268-1, Relator
Desembargador Abreu Leite, julgado em 15/05/2001, “INTERDIÇÃO. CONVICÇÃO DO JUIZ DA INCAPACIDADE
DA INTERDITANDA BASEADA EM ATESTADO MÉDICO E EM SEU INTERROGATÓRIO. AUSÊNCIA DE
PERÍCIA MÉDICA. NULIDADE DA SENTENÇA. A perícia médica em processo de interdição é exigência legal e o
perito deve apresentar laudo completo e circunstanciado do estado do interditando, sob pena de anulação parcial do
processo”.
78
HÖRSTER, Heinrich Ewald. A parte geral do Código Civil português. Coimbra: Almedina, 1992, p. 337-338.
79
TJMG, Agravo de Instrumento nº 1.0223.08.254177-0/001, Relator Desembargador Dárcio Lopardi Mendes, julgado
em 29/01/2009, “AGRAVO DE INSTRUMENTO. CURATELA. REVOGAÇÃO. PREVALÊNCIA DE INTERESSE
DO CURATELADO. Em todos os casos, deve prevalecer o interesse do curatelado, desde que comprovada sua lucidez

19
autos da interdição, devendo ser ouvidos o curador e o órgão ministerial, assim como realizado
novo exame pericial.

Sabe-se que a partir da sentença de interdição, os atos jurídicos eventualmente praticados


pelo interdito, sem a assistência ou representação do curador, serão reputados defeituosos, assim
passíveis de anulação. Interessante polêmica se instaura diante do questionamento sobre a validade
dos atos jurídicos praticados pela pessoa em estado de incapacidade antes da sentença de
interdição.80
Não há uma resposta legal para a questão. A doutrina tem entendido que a sentença de
interdição possui natureza declaratória, razão pela qual se pode reconhecer a incapacidade de uma
pessoa mesmo antes de sua interdição, com a conseqüente declaração de invalidade do ato jurídico
por ela praticado, desde que a causa que compromete o discernimento não seja ignorada pela outra
parte que segue os parâmetros da boa-fé. A propósito, assinala Silvio Rodrigues que “o interesse
geral, representado pelo anseio de infundir segurança nos negócios jurídicos, impõe que se prestigie
a boa-fé. Dessa maneira, devem prevalecer os negócios praticados pelo amental não interditado
quando a pessoa que com ele contratou ignorava e carecia de elementos para verificar que se tratava
de um alienado. Entretanto, se a alienação era notória, se o outro contratante dela tinha
conhecimento, se podia, com alguma diligência, apurar a condição de incapaz, ou ainda, se da
própria estrutura do negócio ressaltava que seu proponente não estava em seu juízo perfeito, então o
negócio não pode ter validade, pois a idéia de proteção à boa-fé não mais ocorre”.81
Este posicionamento encontra correspondência no direito estrangeiro. Em Portugal, por
exemplo, os negócios jurídicos praticados antes do requerimento judicial de interdição poderão ser
anulados, ao abrigo do art. 257, do Código Civil, se foram celebrados por quem não tinha o livre
exercício de sua vontade ou por quem se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o
sentido e o alcance do ato em questão, exigindo-se a notoriedade dessas circunstâncias, sob pena de
violação da boa-fé objetiva.82

e capacidade de discernimento, visto que a curatela é forma legal de representação do indivíduo. Demonstrada, a
capacidade e efetiva lucidez para todos os atos da vida civil do curatelado, não há razão para a manutenção da curatela”.
80
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Das pessoas naturais. In REBELO, Nuno Miguel Branco de Sá Viana. Direito civil:
parte geral. Belo Horizonte: Leiditathi, 2009, p. 27-28.
81
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 46-47.
82
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: parte geral. Coimbra: Coimbra, 2000, v. 1, p. 175-176. De acordo com
o autor, “se não se provar que o sujeito incorre em algumas das situações tabeladas de incapacidade, será considerado
incapaz. Mas é possível demonstrar que, não obstante essa capacidade normal, o ato foi praticado em condições em que
ele se não podia determinar livremente. Há agora uma apreciação em concreto, que incide sobre a vontade, para
concluir que a ação está inquinada porque o sujeito não tinha então capacidade de entender e de querer. Cai-se na
chamada incapacidade acidental. A importância desta matéria é muito grande. Basta pensar em todas aquelas situações
de pessoas que sofrem de anomalia psíquica, mas sobre as quais não recaiu nenhuma providência de declaração de
incapacidade ou inabilitação. O esquema da incapacidade acidental é o último recurso para a impugnação do ato
praticado em situações destas. Não menos importantes são as hipóteses em que por embriaguez, efeito de
estupefacientes, hipnotismo ou outra causa transitória semelhante alguém sofra diminuição na sua capacidade de

20
A jurisprudência nacional caminha no mesmo sentido, conforme se pode verificar a partir
do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:83 “DIREITO E PROCESSO CIVIL.

entender ou querer. A conseqüência da incapacidade acidental é a anulabilidade do negócio. [...] Todavia, essa
conseqüência não é automática. A proteção do declaratário é muito forte, sobrelevando mesmo em geral a da proteção
do declarante. A incapacidade acidental só é causa de anulação se o fato for notório ou conhecido do declaratário.
Esclarece-se ainda [...] que o fato é notório quando uma pessoa de diligência normal o teria podido notar. Não basta
pois ao declaratário a mera ignirância, ainda que real, do estado do declarante para o poupar à conseqüência da
anulabilidade. A lei não o protege se ele estiver colocado em patamar de inferioridade perante o que seria de supor na
mediana das situações”. Também se adverte que “da necessidade destes pressupostos decorre que o risco da
anulabilidade é distribuído em termos diferentes dos das incapacidades de exercício: nestas visa-se unilateralmente a
proteção do incapaz, mesmo à custa da segurança do tráfico jurídico, e para a invocação da incapacidade (que resulta de
um estado civil, constante do registro); na incapacidade acidental, porém, é preciso ter em conta a segurança do tráfico
jurídico que não pode orientar-se pelos registros: por isso é preciso que o fato seja notório ou conhecido do declaratário
(mas não de qualquer terceiro), pois o declaratário negocia com quem, em princípio, é capaz” (HÖRSTER, Heinrich
Ewald. A parte geral do Código Civil português. Coimbra: Almedina, 1992, p. 347).
83
Na mesma trilha, encontramos julgados dos tribunais estaduais. Por exemplo, cfr. “ANULATÓRIA DE NEGÓCIO
JURIDICO. INCAPACIDADE DA PARTE. DESFAZEIMENTO DA AVENÇA. NECESSIDADE. Se não há agente
capaz, em razão das contingências fáticas, que apontam que a parte outorgante da procuração que culminou na venda de
bem imóvel, não possuía ao tempo da avença, o necessário discernimento para a prática do ato, imperativo o
desfazimento do negócio, com o cancelamento do registro na matrícula do bem” (TJMG, Apelação Cível nº
1.0051.06.014955-9/001, Relator Desembargador Otávio Portes, julgado em 18/11/2009; “INDENIZAÇÃO.
CONTRADIÇÃO NA SENTENÇA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. DÍZIMO. EMISSÃO DE CHEQUES. AGENTE
INCAPAZ. NULIDADE DO ATO. VALOR SUPERIOR ÀS POSSES DO EMITENTE. CULPA DA INSTITUIÇÃO
RELIGIOSA. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. Não há contradição na sentença quando o julgador, motivado e
coerentemente, interpreta os fatos e avalia as provas dos autos na busca da justa prestação jurisdicional. O negócio
jurídico praticado por absolutamente incapaz é nulo, mesmo antes da sentença de interdição, se comprovado que, à
época da emissão de vontade, o agente não tinha discernimento do ato. Declarada a nulidade do negócio jurídico, deve
ser restabelecido o status quo ante, não sendo possível, como no caso dos autos, em que os cheques foram colocados em
circulação, o agente incapaz deve ser indenizado por todo o montante doado. A instituição religiosa que recebe como
doação valor muito superior às posses do doador, sem a devida cautela, responde civilmente pela conduta desidiosa”
(TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.03.965628-5/001, Relator Desembargador Fernando Botelho, julgado em
14/08/2008); “AÇÃO ANULATÓRIA. TESTADOR PRÓDIGO. INTERDIÇÃO PROVISÓRIA DECRETADA.
TESTAMENTO. NULIDADE CARACTERIZADA. VOTO VENCIDO. Não podem testar os que, no ato de fazê-lo,
não disporem do pleno discernimento. Tendo sido decretada a interdição provisória do testador, não há como prevalecer
o testamento por ele produzido, mormente à revelia do curador, nos termos da lei civil. Se sujeita à interdição a pessoa
que comprovadamente demonstre não possuir aptidão para gerir atos de sua vida civil. Ausentes provas suficientes
acerca da suposta prodigalidade do testador, de rigor a manutenção da revogação da interdição provisória, mormente em
face da inexistência de perícia e do fato de a cassação da providência acautelatória ter se dado após interrogatório com o
interditando, procedimento previsto no artigo 1.181, do CPC. A sentença que declara a interdição gera efeitos a partir de
sua publicação, sendo os atos anteriormente praticados, sujeitos à anulação, desde que cabalmente demonstrada a
incapacidade à época de sua realização” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0137.06.000436-3/001, Relator Desembargador
Fernando Caldeira Brant, julgado em 16/04/2008); “ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO. INCAPACIDADE
DO AGENTE. INTERDIÇÃO. SENTENÇA. Produz efeitos ex tunc a sentença que decreta a interdição de incapaz,
quando provada que a enfermidade ou doença mental já existia ao tempo em que praticado o ato cuja nulidade é
postulada” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.06.071602-4/001, Relator Desembargador Bitencourt Marcondes, julgado
em 09/10/2007); “SENTENÇA DE INTERDIÇÃO. IRRETROATIVIDADE DOS EFEITOS. A sentença que declara a
interdição, em que pese reconheça uma situação de fato preexistente, só está apta a produzir efeitos a partir de sua
prolação, sob pena de conferir extrema insegurança jurídica aos terceiros de boa-fé, o que não é, por óbvio, o objetivo
da lei. Os atos praticados anteriormente à sentença de interdição podem ser anulados, desde que comprovado que foram
praticados em estado de incapacidade, necessitando ação própria para tanto” (TJDF, Apelação Cível nº
2005.01.1.006961-4, Relator Desembargador Vasquez Cruxên, julgado em 12/12/2007); “ANULAÇÃO DE ATO
JURÍDICO. DOAÇÃO. INCAPACIDADE MENTAL DA DOADORA. PROCESSO DE INTERDIÇÃO EM CURSO.
ILICITUDE DO ATO JURÍDICO. NULIDADE. Comprovado que a escritura de doação ocorreu quando já em curso
processo de interdição da doadora, inclusive com apresentação de laudo pericial dando conta de que a doadora padece
de enfermidade mental que determina a incapacidade absoluta para os atos da vida civil, não se mostrando lúcida e em
perfeitas condições de discernir o caráter do ato praticado, é de se considerar a invalidade do negócio e de suas
escriturações e, em conseqüência, dos atos a eles supervenientes” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.05.703913-3/001,
Relator Desembargador Duarte de Paula, julgado em 22/11/2006); “AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA.
CASAMENTO DE INCAPAZ. ATO PRATICADO ANTES DA INTERDIÇÃO. NULIDADE DO ATO.
PRESCRIÇÃO REJEITADA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CASAMENTO INEXISTENTE.

21
INTERDIÇÃO. ATOS ANTERIORES À SENTENÇA. NULIDADE. IMPRESCINDIBILIDADE
DE PROVA CONVINCENTE E IDÔNEA. Para resguardo da boa-fé de terceiros e segurança do
comércio jurídico, o reconhecimento da nulidade dos atos praticados anteriormente a sentença de
interdição reclama prova inequívoca, robusta e convincente da incapacidade do contratante”.84
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PROVA. INTERDIÇÃO. Os atos praticados pelo interditado
anteriores à interdição podem ser anulados, desde que provada a existência de anomalia psíquica -
causa da incapacidade - já no momento em que se praticou o ato que se quer anular”.85
“NULIDADE DE ATO JURÍDICO PRATICADO POR INCAPAZ ANTES DA SENTENÇA DE
INTERDIÇÃO. RECONHECIMENTO DA INCAPACIDADE E DA AUSÊNCIA DE
NOTORIEDADE. PROTEÇÃO DO ADQUIRENTE DE BOA-FÉ. A decretação da nulidade do ato
jurídico praticado pelo incapaz não depende da sentença de interdição. Reconhecida pelas instâncias
ordinárias a existência da incapacidade, impõe-se a decretação da nulidade, protegendo-se o
adquirente de boa-fé com a retenção do imóvel até a devolução do preço pago, devidamente
corrigido, e a indenização das benfeitorias, na forma de precedente da Corte”.86

4. Nomeação do curador

O art. 1.775, do Código Civil, indica as pessoas que podem ocupar a posição de curador,
em ordem de preferência, por entender que tais pessoas, ab initio, têm maior interesse no cuidado e
na recuperação do incapaz.87 Contudo, o arranjo legal pode ser relativizado,88 em virtude do melhor

INCAPACIDADE ABSOLUTA. INTERDIÇÃO. CAUSA IMPEDITIVA DA PRESCRIÇÃO. A sentença de interdição


produz efeitos ex tunc, pois reconhece uma situação pré-existente, presumindo-se que o interdito jamais teve capacidade
para o exercício dos atos da vida civil. Se a incapacidade é notória e conhecida pelo terceiro, nulo será o ato jurídico
praticado pelo doente mental, mesmo antes do decreto de interdição” (TJRJ, Apelação Cível nº 2003.001.31224, Relator
Desembargador Walter Agostino, julgado em 14/09/2004); “CIVIL E PROCESSO CIVIL. FAMÍLIA. INTERDIÇÃO.
ATOS ANTERIORES À SENTENÇA. Os atos anteriores à sentença de interdição são apenas anuláveis, podendo ser
invalidados quando judicialmente demonstrado, em ação própria, o estado de incapacidade a época em que praticados”
(TJDF, Apelação Cível nº 2000.07.1.001879-7, Relator Desembargador Valter Xavier, julgado em 10/09/2001);
“INTERDIÇÃO. ATOS PRATICADOS ANTES DA SENTENÇA DE INTERDIÇÃO. A causa da incapacidade é a
alienação mental, não a interdição. São nulos de pleno direito os atos praticados pelo insano anteriormente à sentença. A
declaração de nulidade, todavia, na ressalva da boa-fé de terceiros e segurança dos negócios jurídicos, pressupõe a
notoriedade e aparência do estado mental do contratante, ou que outro contratante tivesse motivo especial para conhecê-
lo” (TJRS, Apelação Cível nº 585018930, Relator Desembargador Athos Gusmão Carneiro, julgado em 15/04/1986).
84
STJ, Recurso Especial nº 9.077/RS, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 25/02/1992
85
STJ, Recurso Especial nº 255.271/GO, Relator Ministro César Asfor Rocha, julgado em 28/11/2000.
86
STJ, Recurso Especial nº 296.895/PR, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 06/05/2004
87
"AÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO DE CURADOR. PRELIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA.
INOCORRÊNCIA. MÉRITO. CURATELADO QUE CONTRAI MATRIMÔNIO. ESPOSA. PREFERÊNCIA SOBRE
O PARENTE COLATERAL (IRMÃ). ARTIGO 1775 DO CÓDIGO CIVIL. INTERESSES DO CURATELADO.
OBSERVÂNCIA. RECURSO DESPROVIDO. Deve ser observada a ordem de preferência estabelecida no artigo 1.775

22
interesse do incapaz, ou mesmo de sua solicitação prévia, mediante diretivas antecipadas,
elaboradas quando contava com lucidez.

Caso o interditando não tenha se pronunciado anteriormente, a referida ordem abrange i) o


cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato; ii) os pais; iii) o descendente que
estiver mais apto, sendo que os mais próximos precedem aos mais remotos; iv) caso não existam as
pessoas mencionadas, será dado ao incapaz curador dativo, cabendo ao juiz a escolha do
encarregado.89

Ressalte-se que a ordem para o exercício do encargo não se confunde com a atribuição de
legitimidade para se requerer a curatela, prevista no art. 1.768, do Código Civil. Ademais, não é o
fato de as pessoas aptas procederem ao requerimento de curatela que serão elas, necessariamente,
nomeadas curadoras, uma vez que a atribuição em questão está adstrita, indubitavelmente, aos

do Código Civil, para se nomear o cônjuge como curador, se a nomeação atende aos interesses do curatelado,
preservando, ainda, o seu bem-estar físico e mental" (TJMG, Apelação Cível nº 1.0701.05.108105-0/001, Relator
Desembargador Armando Freire, julgado em 15/04/2008);
88
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO E CURATELA. NOMEAÇÃO DE CURADOR. 1. A ordem de
nomeação de curador estabelecida no art. 1.775 não é absoluta, e admite flexibilização em benefício do interditado. 2.
Residindo a interditada conjuntamente com a filha, e sendo esta quem cuida de todas as necessidades da mãe idosa e
absolutamente dependente, exsurge a conveniência e melhor interesse da filha ser nomeada curadora da interditada, e
não o marido que mora em outro local, e nem mesmo se manifestou nos autos, não tendo portanto exarado qualquer
concordância com o encargo que lhe foi imposto, pelo juízo a quo" (TJMG, Apelação Cível nº 1.0701.04.066407-3/001,
Relator Desembargador Jarbas Ladeira, julgado em 09/08/2005); "AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE
INTERDIÇÃO. NULIDADE DA DECISÃO. PRELIMINAR AFASTADA. CURADOR PROVISÓRIO. INTERESSE
DA INTERDITANDA. APTIDÃO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO EM SENTIDO CONTRÁRIO.
MANUTENÇÃO DA NOMEAÇÃO. O simples fato de ser a decisão sucinta não enseja sua nulidade, principalmente
em se considerando que a lei adjetiva civil permite, em todas as hipóteses, a concisão no julgamento, sendo suficiente
que o prolator da decisão consigne o essencial a dirimir a lide para eliminar dela as marcas e aparências do arbítrio,
possibilitando que as partes entendam as razões que definiram a questão. O julgador não está adstrito à ordem
preferencial definida no art. 1.775 do Código Civil, podendo ignorá-la em função do interesse do interditando,
nomeando como curador provisório a pessoa que, com base no contexto probatório constante na ação de interdição,
considerar mais apta à prestar assistência. (TJMG, Agravo de Instrumento nº 1.0344.06.029049-3/001, Relatora
Desembargadora Teresa Cristina da Cunha Peixoto, julgado em 09/08/2007); “APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO.
IDOSA VITIMADA POR MAL DE PARKINSON E ALZHEIMER. INTERDIÇÃO DECLARADA. CURADORA
NOMEADA NA PESSOA DA FILHA QUE RESIDE COM A INTERDITADA HÁ VÁRIOS ANOS E ATENDE
SOZINHA TODOS OS SEUS CUIDADOS. PRESTAÇÃO DE CONTAS. LAPSO DE DOIS ANOS. TERMOS DOS
ARTS. 1.781 E 1.757 DO CCB. Descabe a alteração da curatela deferida em favor de filha da interditada, que sempre
residiu com a mãe e ministra-lhe, sozinha, os cuidados necessários desde que a mesma passou a apresentar problemas
de saúde, para determinar a curatela compartilhada com os outros dois filhos daquela, que apenas revelam preocupação
com a dilapidação do patrimônio materno pela irmã. Ausência de alegação de maus tratos ou prova nesse sentido pelos
recorrentes. A eventual má administração do patrimônio da interditada, pela curadora, deve ser objeto de análise quando
da prestação de contas determinada pelo art. 1.757 do CCB, no lapso de dois anos, ou de pedido próprio de destituição e
substituição da curadora” (TJRS, Apelação Cível nº 70032383614, Relator Desembargador André Luiz Plenlla
Villarinho, julgado em 16/12/2009).
89
“INTERDIÇÃO. NOMEAÇÃO DE CURADOR. Verificados conflitos existentes entre pai e filha, inviável se mostra
a nomeação desta para o exercício da curatela. Da mesma forma, comprovados atos duvidosos do irmão, não é
recomendável que seja designado para o encargo. Logo, é de ser nomeado curador dativo” (TJRS, Apelação Cível nº
70005350335, Relator Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 11/12/2002).

23
melhores interesses do incapaz, porquanto é pessoa vulnerável e, por isso, o foco da referida
situação jurídica.90

Por força do enunciado do art. 1.774, do Código Civil, aplicam-se à curatela as disposições
concernentes à tutela que sejam com ela compatíveis. Assim, em qualquer das hipóteses acima,
exige-se que o curador seja pessoa idônea, de conduta irrepreensível. Destaque-se que a idoneidade
do curador transcende o contexto meramente moral, compreendendo também uma dimensão
concreta, a ponto de o legislador identificar previamente certas pessoas impedidas de exercer o
encargo,91 como (vide art. 1.735, CC): i) aquelas que não tiverem na livre administração de seus
bens; ii) aquelas que, no momento de lhes ser deferida a curatela, se acharem constituídos em
obrigação para com o incapaz ou tiverem que fazer valer direitos contra este (vide art. 1.751, CC);
iii) aquelas cujos pais, filhos ou cônjuges, tiverem demanda contra o incapaz; iv) as inimigas do
curatelado; vi) aquelas que tiverem sido expressamente excluídas da curatela pelo curatelado antes
da superveniência de sua incapacidade; vii) as condenadas por crime de furto, roubo, estelionato,
falsidade, contra a família ou os costumes, tenham ou não cumprido pena; viii) as pessoas de mau
procedimento ou falhas em probidade; ix) as culpadas de abuso em tutorias ou curadorias anteriores;
x) aquelas que exercem função pública incompatível com a boa administração da curatela.
A curatela encerra um munus público.92 É um encargo obrigatório, pois o curador não pode
recusar a nomeação, exceto nas hipóteses autorizadas por lei, como no caso (vide art. 1.736, CC): i)
das mulheres casadas; ii) das pessoas maiores de 60 anos; iii) daqueles que tiverem sob sua
autoridade mais de três filhos; iv) dos impossibilitados por enfermidade; v) daqueles que habitarem
longe do lugar onde se haja de exercer a curatela; vi) aqueles que já exerceram tutela ou curatela;
vii) dos militares em serviço.

90
CIVIL E PROCESSO CIVIL. INTERDIÇÃO. INCAPACIDADE COMPROVADA DO INTERDITANDO.
PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. DEFINIÇÃO E NOMEAÇÃO DO CURADOR. O decreto da interdição de pessoa não
está vinculado à possibilidade do requerente ser nomeado curador, mas à constatação de uma das causas de
incapacidade previstas no art. 1.767, do Código Civil. A idade superior a sessenta anos e a enfermidade constituem
razões de escusa ao exercício da curatela (Código Civil, art. 1.736, II e IV c/c art. 1.774), mas não causas impeditivas da
nomeação prevista no parágrafo único, do art. 1.183, do Código de Processo Civil. Inexistente qualquer das causas
incapacitantes ao exercício da curatela, previstas no art. 1.735 c/c art. 1.774, do Código Civil, defere-se o encargo à
parte requerente da interdição, quando se tratar de pessoa idônea, que se dedica e que sempre se dedicou aos cuidados e
aos interesses do interdito. Dá-se provimento ao recurso (TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.05.779905-8/001, Relator
Desembargador Almeida Melo, julgado em 09/11/2006).
91
FACHIN, Luiz Edson. Direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 275
92
TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.05.779905-8/001, Relator Desembargador Almeida Melo, julgado em 09/11/2006,
“CIVIL E PROCESSO CIVIL. INTERDIÇÃO. INCAPACIDADE COMPROVADA DO INTERDITANDO.
PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. DEFINIÇÃO E NOMEAÇÃO DO CURADOR. O decreto da interdição de pessoa não
está vinculado à possibilidade do requerente ser nomeado curador, mas à constatação de uma das causas de
incapacidade previstas no art. 1.767 do Código Civil. A idade superior a sessenta anos e a enfermidade constituem
razões de escusa ao exercício da curatela, mas não causas impeditivas da nomeação prevista no parágrafo único, do art.
1.183, do Código de Processo Civil. Inexistente qualquer das causas incapacitantes ao exercício da curatela, previstas
no art. 1.735 c/c. o art. 1.774, do Código Civil, defere-se o encargo à parte requerente da interdição, quando se tratar de
pessoa idônea, que se dedica e que sempre se dedicou aos cuidados e aos interesses do interdito”.

24
Alerte-se que a escusa deve ser apresentada nos dez dias seguintes à designação da
curadoria ou nos dez dias seguintes à verificação do motivo escusatório quando este ocorrer durante
o exercício da curatela. Em qualquer das situações, caso não se apresente o pedido de dispensa no
prazo assinalado, considerar-se-á renunciado o direito de fazê-lo por justa causa (vide art. 1.738,
CC).

5. Exercício da curatela

5.1. Aproximação conceitual da tutela

Tutela e curatela são formas de proteção aos incapazes, que têm sua ratio na ausência de
discernimento desses indivíduos para a prática e responsabilização de todos os atos da vida civil,
por força do princípio da solidariedade familiar. A tutela se dá em razão da menoridade, nos casos
em que não há quem possa exercer sobre a criança ou adolescente a autoridade parental; a curatela é
dirigida ao maior incapaz. Tutela, curatela e autoridade parental são ofícios de direito de privado a
serem exercidos em favor do vulnerável.
Aplicam-se à curatela as disposições concernentes à tutela que sejam com ela compatíveis,
por força do enunciado no art. 1.774, do Código Civil. Em manifesta redundância, estabelece o art.
1.781, do Código Civil, que o exercício da curatela será processado da mesma forma que a tutela,
assim tudo aquilo que compete ao tutor caberá também ao curador, como o que diz respeito aos
bens do incapaz, ao dever de cuidado e proteção do incapaz, aos deveres de representação e
assistência, ao dever de prestar contas, entre outros.
Diante da convergência entre os institutos, que primam pela emancipação da pessoa
humana, necessário verificar se as decisões do juiz e do curador se mostram adequadas para
valorizar, promover e proteger os espaços de autonomia, que, eventualmente, possam ser
explorados, em concreto, pelo curatelado, nos moldes em que serão expostos a seguir, assim
demonstrando que os expedientes da curatela e da tutela devem também apresentar-se como
instrumentos de liberdade da pessoa vulnerável. Em síntese, se espera que restem salvaguardados os
interesses patrimoniais e existenciais do curatelado, contribuindo-se para o desenvolvimento efetivo
de sua personalidade, assim também, na medida do possível, para a sua maior reintegração social e
recuperação da sua saúde.

25
5.2. Entre incapacidade e autonomia

Por capacidade de exercício entende-se a aptidão atribuída a alguém para a produção de


efeitos jurídicos a partir de sua atuação. 93 Trata-se da “idoneidade não só para exercitar direitos ou
cumprir obrigações como também para os adquirir ou as assumir, e para fazer tudo isso
pessoalmente, por ato próprio e exclusivo da pessoa visada, sem haver lugar à intervenção dum
representante legal (designado por outro modo que não pelo próprio representado) ou ser necessário
o consentimento de outra pessoa (também não designada por aquela). Note-se aliás que, falando de
atuação própria e exclusiva da pessoa capaz de exercício, compreendemos nesta fórmula a atuação
desenvolvida por um representante voluntário ou procurador (escolhido pelo próprio
representado)”.94 Designa a aptidão jurídica para a prática dos atos da vida civil como efeito
imediato da autonomia que as pessoas têm.95

Nem todos os indivíduos contam com essa possibilidade, o que nos leva a estudar o regime
legal das incapacidades. Carvalho Santos assinala que “a necessidade de tornar possível o exercício
da personalidade a alguns que não poderiam por si exercê-la, em razão da incapacidade, forçou o
legislador a prever os meios de suprir, integrar a atividade jurídica daquelas pessoas. [...] Do
contrário, os incapazes ficariam afastados da comunhão social, verdadeiramente privados do
exercício de seus direitos, se não houvesse uma pessoa designada pela lei, para dirigir sua pessoa,
administrar seus bens e defender seus interesses; enfim, uma pessoa que sirva de intermédio ou de
assistente nas suas relações jurídicas com terceiros, agindo juridicamente em nome do incapaz ou
em companhia dele”.96

O incapaz submete-se a um regime especial de proteção, que se articula sob os expedientes


da representação ou da assistência. A representação é utilizada para suprir a incapacidade absoluta,
por ela “agirá em substituição do incapaz o seu representante legal, produzindo-se na esfera jurídica
daquele os respectivos efeitos jurídicos”.97 Por sua vez, a assistência é utilizada para suprir a
incapacidade relativa, por ela “será facultado ao incapaz agir ele mesmo, contanto que intervenha o
consentimento de certa pessoa ou entidade”.98

93
ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v. 1, p. 31.
94
ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v. 1, p. 31.
95
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 227.
96
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código civil brasileiro interpretado. 10. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1963, v. 1, p. 281.
97
ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v. 1, p. 33.
98
ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v. 1, p. 33.

26
Não podemos deixar de assinalar tendência que propõe a atenuação dos rígidos limites das
incapacidades, reconhecendo que a atuação mais ampla do representante ou do assistente deve
ocorrer especialmente nas situações patrimoniais, tendo como escopo uma maior segurança ao
trânsito jurídico.99 Em relação às situações existenciais, deve-se, na medida do possível, sempre
considerar o discernimento in concreto da pessoa, de modo que ela possa participar das decisões
sobre a própria vida de maneira compatível com a sua capacidade de compreensão da realidade.
Pietro Perlingieri ressalta o desafio de se superar as confusões entre a inidoneidade para o
exercício de atividades patrimoniais e os enunciados proibitivos de escolhas existenciais
significativas: “é preciso privilegiar, sempre que for possível, as escolhas de vida que o deficiente
psíquico é capaz, concretamente, de exprimir, ou em relação às quais manifesta notável propensão.
A disciplina da interdição não pode ser traduzida em uma incapacidade legal absoluta, em uma
morte civil. Quando concretas, possíveis, mesmo se residuais, faculdades intelectivas e afetivas
podem ser realizadas de maneira a contribuir para o desenvolvimento da personalidade, é necessário
que sejam garantidos a titularidade e o exercício de todas aquelas expressões de vida que,
encontrando fundamento no status personae e no status civitatis, sejam compatíveis com a efetiva
situação psicofísica do sujeito. Contra essa argumentação não se pode alegar – sob pena de
ilegitimidade do remédio protetivo ou do seu uso – a rigidez das proibições nas quais se
consubstancia a disciplina do instituto da interdição, tendente à exclusiva proteção do sujeito: a
excessiva proteção traduzir-se-ia em uma terrível tirania”.100
Hoje, espera-se que a interdição de um indivíduo alcance não todo e qualquer ato jurídico,
mas apenas aqueles que possam restar seriamente comprometidos pela causa da incapacidade, assim
emergindo a oportunidade de individuar diferentes estatutos de proteção. Dessa forma, o juiz deverá
determinar o grau da incapacidade, assim como a amplitude do regime de proteção, podendo
reconhecer a idoneidade do incapaz para realizar atos de pequena monta, de administração
cotidiana, além de atestar sua aptidão para realizar atos de natureza existencial,101 como reconhecer
filho, casar-se, submeter-se tratamento médico-cirúrgico ou estético, doar órgãos, entre outros.
Nesse sentido, interessante decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “INTERDIÇÃO. ART.
1.782 DO CÓDIGO CIVIL. LIMITES DA CURATELA. Tendo o laudo pericial comprovado a
capacidade do interditando para administrar a sua vida pessoal, a sentença que decreta a interdição

99
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Integridade psíquica e capacidade de agir. Revista Trimestral de Direito Civil.
Rio de Janeiro, n. 33, 2008, p. 3-36.
100
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 164-165.
101
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 166.

27
deve limitar a autoridade da curatela aos atos civis de natureza econômica e patrimonial, conforme
o art. 1.782, do Código Civil, para os quais se reconheceu a incapacidade do interditando”.102
Percebe-se, portanto, que a verdadeira proteção da pessoa humana só se faz possível tendo
em vista a pessoa concreta, com suas vulnerabilidades. Torna-se, cada vez mais, imprescindível a
análise casuística do déficit psíquico do curatelado, de forma a se determinar o âmbito da atuação
do curador. Aliás, a atuação do curador não deve ultrapassar os limites impostos pelo discernimento
do incapaz, com ingerência desnecessária em atos existenciais, principalmente no âmbito do
exercício dos direitos de personalidade e na construção da vida privada, pois este é o espaço em que
apenas são legítimas as decisões tomadas pela própria pessoa.103 Quanto mais a pessoa puder
decidir sobre a própria vida, mais efetivo será o livre desenvolvimento de sua personalidade e a
concretização de sua dignidade.104

5.3. Gestão de interesses existenciais

Compete ao curador, quanto à pessoa do curatelado (art. 1.740 c/c art. 1.781, CC): dirigir-
lhe a educação, assim como propiciar uma melhor inserção social; promover-lhe a recuperação do
discernimento, se for possível; prestar-lhe orientação no exercício de atos jurídicos existenciais, que
estejam excluídos, expressamente, do âmbito da curatela, além de representar-lhe ou assistir-lhe, de
acordo com o caso, na execução dos demais atos jurídicos existenciais, sempre ouvindo a opinião
do incapaz, que deverá ser levada em consideração, de acordo com a maturidade concretamente
revelada.
Destaque-se que o curador deve zelar pela saúde do curatelado, provendo-lhe tratamento
de saúde adequado, não deixando de esgotar todas as possibilidades viáveis (art. 1.776, CC). E, se o
curatelado não demonstrar aptidão para convivência doméstica, poderá o curador interná-lo em
estabelecimento especializado, com autorização do juiz (art. 1.777, CC).105

102
TJMG, Apelação Cível nº 1.0079.04.164946-2/001, Relator Desembargador Maurício Barros, julgado em
12/02/2008.
103
Sobre a possibilidade de a pessoa ser a única legitimada para tomar decisões referentes à construção da própria vida
privada: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia corporal: liberdade de decidir sobre a própria saúde. 255p.
Tese (Doutorado em Direito Civil). Faculdade de Direito. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
2009.
104
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Deficiência psíquica e curatela: reflexões sob o viés da autonomia privada.
Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, v. 1, n. 7, 2009, p. 64-79.
105
Vale lembrar que a Lei 10.216/2001 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, com vistas a atribuir maior eficácia e proteção a tais
pessoas, evitando abusos. Essa lei trata da internação involuntária para o portador de transtornos mentais, para que ele
tenha acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, de acordo com as suas necessidades, assegurando que seja
tratado com humanidade e respeito. Para tanto, o § 2º do art. 4º da lei afirma que “o tratamento em regime de internação

28
Caso o curatelado possua bens, será cuidado a expensas deles, arbitrando o juiz para tal fim
o valor que lhe pareça razoável, levando em conta os rendimentos do patrimônio em questão. Na
hipótese de insuficiência ou mesmo inexistência de bens pertencentes ao curatelado, o curador
deverá acionar os parentes do incapaz para obter os alimentos necessários ao sustento.106
Necessário frisar que o curador não poderá aplicar castigos físicos, apesar de ser
responsável, em algumas situações, pela educação formal e moral do incapaz, assim como pela sua
educação profissionalizante. Dessa forma, deve reclamar ao juiz que determine as providências de
correção quando se fizerem necessárias.
Atente-se para a importante inovação legislativa referente à exigência do curador ouvir a
opinião do incapaz naquelas questões que lhe dizem respeito, levando em conta o grau de
discernimento concretamente revelado (art. 1.781 c/c art. 1.740, III, CC).107 Assim, o curatelado é
tratado como verdadeiro sujeito de direito, cuja valorização da manifestação de vontade se
apresenta como importante faceta do processo de construção de sua personalidade e subjetividade,
em evidente alinhamento com as diretrizes constitucionais. Nesse sentido, encontramos o
Enunciado nº 138, aprovado na 3ª Jornada de Estudos sobre o novo Código Civil, promovida pelo
Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo que “a vontade dos absolutamente incapazes é

será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços
médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros”.
106
Eventualmente, o curatelado poderá contar com o benefício de prestação continuada, previsto no artigo 203, inciso
V, da Constituição da República de 1988, que garante um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
idoso que comprove não possuir meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Trata-se
de benefício de caráter assistencial, que deverá ser requerido pelo interessado junto ao Instituto Nacional do Seguro
Social, estando sua disciplina legal inserida na Lei n. 8.742/1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social,
complementada pelo Decreto n. 6.214/2007. Para os efeitos legais, entende-se: i) pessoa com deficiência é aquela que
apresenta incapacidade para a vida independente e para o trabalho; ii) incapacidade refere-se o fenômeno
multidimensional que abrange limitação do desempenho de atividade e restrição da participação, com redução efetiva e
acentuada da capacidade de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência e seu
ambiente físico e social; iii) família incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência é aquela cuja renda
mensal bruta familiar dividida pelo número de seus integrantes seja inferior a um quarto do salário mínimo; iv) conjunto
de pessoas que vivem sob o mesmo teto, assim entendido, o requerente, o cônjuge, a companheira, o companheiro, o filho não
emancipado, de qualquer condição, menor de vinte e um anos ou inválido, os pais, e o irmão não emancipado, de qualquer
condição, menor de vinte e um anos ou inválido é considerado família para cálculo da renda per capita; v) soma dos
rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família, composta por salários, proventos, pensões,
pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, comissões, pró-labore, outros rendimentos do
trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, renda
mensal vitalícia e benefício de prestação continuada é designada renda mensal bruta familiar. A concessão do benefício
estará sujeita a exame médico pericial e a laudo realizados pelos serviços de perícia médica do órgão responsável pela
sua operacionalização, assim como a manutenção dele exigirá que seja revisto a cada dois anos, de modo que se possa
avaliar a continuidade das condições que lhe deram origem.
107
Sobre as formas de participação dos vulneráveis nas decisões que lhes dizem respeito, vale a pena consultar
MARTINS, Rosa. Responsabilidades parentais no século XXI: a tensão entre o direito de participação da criança e a
função educativa dos pais. In PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (org.). Cuidado e vulnerabilidade.
São Paulo: Atlas, 2009, p. 76-95; PAIS, Marta Santos. Child participation. Documentação e Direito Comparado.
Lisboa, n. 81, 2000, p. 91-101. Entre nós, pode-se cfr. MONACO, Gustavo Ferraz de Campos; CAMPOS, Maria Luiza
Ferraz de. O direito de audição de crianças e jovens em processo de regulação do exercício do poder familiar. Revista
Infância e Juventude. Lisboa, v. 1, n. 1, 2006, p. 9-25.

29
juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que
demonstrem discernimento bastante para tanto”.
Por exemplo, no âmbito da assistência clínica, difunde-se a idéia que a intervenção
médico-cirúrgica somente considerar-se-á legitimada mediante consentimento prestado pelo próprio
paciente,108 desde que revele adequado discernimento para compreender o sentido e o alcance de
sua decisão,109 mesmo se encontrando sob regime de interdição.110 Chega-se a desenhar um novo
expediente a ser utilizado pelo profissional de saúde para aferir o grau de discernimento do
paciente, levando em conta a situação real em que se exige a tomada de posição, e que passou a ser
reconhecido por competência ou capacidade para consentir.111 De acordo com a perspectiva mais
usual desse expediente, baseada, particularmente, nos trabalhos de Paul Appelbaum, o paciente que
valorar e manipular a informação disponível sobre o seu estado de saúde, autoreferenciando-a, para,
a seguir, construir uma decisão autêntica, levando em conta sua escala de valores no balanceamento
dos riscos e dos benefícios envolvidos, merece que sua vontade seja respeitada.112 Para Michael
Alexander, o paciente competente deverá manter em grau suficiente atividades mentais, como
atenção, memória, linguagem, percepção espacial, área de cálculo, raciocínio lógico, expressão
emotiva e afetiva.113
Um pioneiro instrumento para aferição das habilidades intelectuais e emocionais indicadas,
denominado MacArtur Competence Assessment Toll, foi elaborador por Paul Appelbaum e Thomas
Grisso.114 Trata-se de roteiro de uma entrevista semi-estruturada, que conta com um sistema de
pontuação para as respostas do entrevistado, possuindo versões apropriadas aos contextos da
assistência terapêutica, da pesquisa médica e da imputabilidade criminal. Parece-nos ser o protocolo
mais utilizado na prática clínica e na atividade investigativa, especialmente nos países norte-

108
OLIVEIRA, Guilherme de. Fim da arte silenciosa: o dever de informação dos médicos. In OLIVEIRA, Guilherme
de. Temas de direito da medicina. Coimbra: Coimbra, 1999, p. 91-100.
109
BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002, p. 151-161.
110
PEREIRA, André Gonçalo Dias. Capacidade para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In MONTEIRO,
António Pinto (org.). Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977. Coimbra:
Coimbra, 2006, v. 2, p. 199-249.
111
MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres tornadas incapazes pelo uso de
drogas: notas para uma aproximação entre a técnica jurídica e a reflexão bioética. In MARTINS-COSTA, Judith;
MÖLLER, Letícia Ludwig (org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 299-346.
112
APPELBAUM, Paul; GRISSO, Thomas. Assessing patients’ capacities to consent to treatment. New England
Journal of Medicine. London, n. 319, 1988, p. 1635-1638. Para uma versão mais recente, cfr. APPELBAUM, Paul.
Assessment of patients’ competence to consent to treatment. New England Journal of Medicine. London, n. 357, 2007,
p. 1835-1840.
113
ALEXANDER, Michael. Clinical determination of mental competence. Archives of Neurology. Chicago, v. 45, n. 1,
1988, p. 24.
114
APPELBAUM, Paul; GRISSO, HILL-FOTOUHI, Thomas; Carolyn. The MacCAT-T: a clinical tool to assess
patients' capacities to make treatment decisions. Psychiatric Services. Arlington, v. 48, n. 11, 1997, p. 1415-1419.

30
americanos e europeus. Entre nós, encontramos instrumento mais simples, elaborado por
pesquisadores gaúchos.115
Interessante destacar a comprovação de que a presença de transtorno mental não é
suficiente para determinar a incompetência do paciente.116 É certo que o transtorno mental pode
atingir algumas habilidades requeridas pela competência, mas não em intensidade suficiente para
sempre impedir que o paciente tome uma decisão autêntica sobre os cuidados de saúde, conforme
demonstram vários estudos empíricos.117 Pode dizer apenas que a doença mental aumenta o risco de
déficits associados com a incompetência, mas não cria uma presunção absolta sobre a
impossibilidade de o indivíduo participar das decisões envolvendo o seu estado de saúde. Portanto,
com razão, Pietro Perlingieri assinala que "o estado pessoal patológico ainda que permanente da
pessoa, que não seja absoluto ou total, mas graduado e parcial, não se pode traduzir em uma série
estereotipada de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto, isto é, levando em conta
o grau e a qualidade do déficit psíquico, não se justificam e acabam por representar camisas-de-
força totalmente desproporcionadas e, principalmente, em contraste com a realização do pleno
desenvolvimento da pessoa".118
Há também quem defenda a utilização de uma escala móvel - sliding-scale - para
verificação da competência, uma vez que habilidades exigidas para a tomada de decisão podem ser
diferentes, em razão das peculiaridades da enfermidade, dos riscos e benefícios envolvidos nas
opções de tratamento, entre outros.119 De acordo com James Drane, decisões clínicas difíceis, que
importam em balanço risco-benefício complexo, como aquelas envolvendo a recusa de tratamento
eficaz ou a aceitação de tratamento perigoso, requerem graus de competência mais elevados. Por
outro lado, decisões clínicas simples, em que o balanço risco-benefício se apresenta moderado,
como aquelas envolvendo a aceitação de tratamento eficaz para enfermidade aguda ou a recusa de
tratamento sem eficácia comprovada, exigem graus de capacidade mais baixos.

5.4. Gestão de interesses patrimoniais

115
RAYMUNDO, Marcia Mocellin; GOLDIM, José Roberto. Moral psychological development related to the capacity
of adolescents and elderly patients to consent. Journal of Medical Ethics. London, n. 34, 2008, p. 602-605.
116
GANZINI, Linda; VOLICER, Ladislav; NELSON, Willim; FOX, Ellen; DERCE, Arthur. Ten myths about decision-
making capacity. Journal of the American Directors Association. Saint Louis, n. 6, 2005, p. 103.
117
Por exemplo, cfr. MOYE, Jennifer; KAREL, Michele; AZAR, Armin; GUERRA, Ronald. Capacity to consent to
treatment: empirical comparison of three instruments in older adults with and without dementia. The Gerontologist.
Oxford, v. 44, n. 2, 2004, p. 166-175.
118
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 781.
119
DRANE, James. The many faces of competency. The Hastings Center Report. New York, v. 15, n. 2, 1985, p. 17-21.

31
Quanto ao patrimônio, compete ao curador, sob inspeção judicial, administrar os bens do
incapaz, em proveito exclusivo do próprio curatelado, cumprindo seus deveres com zelo e boa-fé
(art. 1.741 c/c art. 1.781, CC).
Para tanto, poderá o curador, sem prévia autorização judicial (art. 1.747 c/c art. 1.781, CC):
representar o incapaz nos atos da vida civil ou assisti-lo nos atos em que for parte, de acordo com os
limites fixados na sentença; receber as rendas e pensões do curatelado, assim como as demais
quantias a ele devidas; fazer-lhe as despesas de subsistência, educação e cuidados de saúde, bem
como as de administração, conservação e melhoramentos de seus bens; alienar os bens do
curatelado destinados à venda.
Também poderá o curador, todavia, com imprescindível autorização judicial prévia, que
constitui verdadeiro requisito de eficácia do ato jurídico (art. 1.748 c/c art. 1.781, CC): pagar as
dívidas do curatelado; aceitar heranças, legados ou doações, ainda que com encargos;120 transigir;
vender os bens móveis, cuja conservação não convier, e os imóveis nos casos em que for
permitido;121 propor em juízo as ações, ou nelas assistir o curatelado, e promover todas as
diligências a bem deste, assim como defendê-lo nos pleitos contra ele movidos.
Destaque-se que os bens imóveis do curatelado somente poderão ser vendidos quando
houver manifesta vantagem, mediante prévia avaliação judicial e aprovação do juiz (art. 1.750 c/c
art. 1.781, CC).122 Diferente do regime legal anterior, não mais se exige que a alienação dos
referidos bens se faça em hasta pública. Sérgio Gischkow Pereira acredita que esta alteração
legislativa é a mais importante de todas feitas pela nova legislação no que diz respeito à proteção
dos incapazes.123

120
TJMG, Apelação Cível nº 1.0223.08.247429-5/001, Relator Desembargador Antônio Sérvulo, julgado em
02/12/2008, “CIVIL. IMÓVEL. INTERDITADO. DOAÇÃO. CURATELADO. IMPOSSIBILIDADE. BENEFÍCIOS.
INEXISTÊNCIA. Nos termos da norma do art. 1.749, II c/c 1.781, ambos do Código Civil, é defeso ao tutor dispor dos
bens do tutelado a título gratuito. A circunstância de a doação ser gravada com usufruto não desnatura o caráter não
oneroso do instituto. Ainda que mitigada a referida proibição legal, o alvará autorizador da doação deve ser indeferido
quando esta não trouxer qualquer benefício ao tutelado”.
121
TJMG, Apelação Cível nº 2.0000.00.489298-8/000, Relator Desembargador Viçoso Rodrigues, julgado em
22/09/2005, “ALVARÁ JUDICIAL. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL PERTENCENTE A CURATELADO.
NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO BINÔMIO NECESSIDADE E UTILIDADE. INDEFERIMENTO. Em se
tratando de venda de imóvel pertencente a incapaz, toda a cautela é necessária, ficando a autorização judicial
condicionada à cabal comprovação da real necessidade e da vantagem advindas da pretendida alienação; TJRS,
Apelação Cível nº 70010979607, Relator Desembargador Antônio Carlos Gambetta, julgado em 13/07/2005,
“AUTORIZAÇÃO PARA VENDA DE BEM DE INTERDITO. Razoável o pedido de autorização para a venda da
parte do imóvel pretendida alienar, pois servirá para dar andamento ao loteamento que pertence à própria interdita.
Sinale-se que todos os filhos dela estão de acordo com esse pleito, não vendo razão, por isso, para que seja indeferido”.
122
TJSP, Apelação Cível nº 439.389-4/5-00, Relator Desembargador Piva Rodrigues, julgado em 20/03/2007,
“APELAÇÃO. ALVARÁ PARA LAVRAR ESCRITURA DE VENDA E COMPRA. INADMISSIBILIDADE. Faz-se
imperiosa a autorização judicial para que curador venda imóvel pertencente ao interdito, bem como o depósito dos
valores, à disposição do Juízo, para levantamento desde que comprovada a necessidade de fazê-lo. Recurso não
provido”.
123
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 213.

32
Em contrapartida, o curador não poderá, mesmo com prévia autorização judicial (art. 1.749
c/c art. 1.781, CC): adquirir por si, ou por interposta pessoa, mediante contrato particular, bens
móveis ou imóveis pertencentes ao curatelado; dispor dos bens do curatelado a título gratuito;
constituir-se cessionário de crédito ou de direito, contra o curatelado.124 Trata-se de hipóteses de
nulidade.

5.5. Extinção e prestação de contas

A curatela será extinta com o falecimento do incapaz, assim também a partir do


levantamento da interdição, após a verificação judicial da supressão dos efeitos da causa que
determinou a incapacidade da pessoa em questão. Todavia, consigna a lei que cessam as funções de
determinado curador, devendo outro ser nomeado, quando (art. 1.774 c/c art. 1.764, CC): i) expirar
o termo em que era obrigado a servir; em regra, dois anos, podendo ser renovado (vide art. 1.765 c/c
art. 1.774, CC); ii) sobrevir escusa legítima (vide art. 1.736 c/c art. 1.774, CC); iii) for removido em
razão de negligência, prevaricação ou superveniência de incapacidade (vide art. 1.766 c/c art. 1.774,
CC).
O curador deve prestar contas de sua administração (art. 1.774 c/c art. 1.755, CC),125
garantindo que a gestão dos bens reverta em exclusivo benefício do incapaz.126 A cada ano, o

124 TJMG, Apelação Cível nº 1.0223.08.247429-5, Relator Desembargador Antônio Sérvulo, julgado em 02/12/2008, “CIVIL. IMÓVEL. INTERDITADO. DOAÇÃO.
CURATELADO. IMPOSSIBILIDADE. BENEFÍCIOS. INEXISTÊNCIA. Nos termos da norma do art. 1.749, II c/c 1.781, ambos do Código Civil, é defeso ao tutor dispor dos bens do
tutelado a título gratuito. A circunstância de a doação ser gravada com usufruto não desnatura o caráter não oneroso do instituto. Ainda que mitigada a referida proibição legal, o alvará
autorizador da doação deve ser indeferido quando esta não trouxer qualquer benefício ao tutelado”.

125
“APELAÇÃO CÍVEL. PRESTAÇÃO DE CONTAS. DEVER DO CURADOR. É dever do curador prestar as contas
do exercício do seu encargo, cercando-se da documentação necessária à comprovação da destinação dos recursos do
curatelado, sob pena de ressarcimento” (TJRS, Apelação Civil nº 70033723842, Relator Desembargador Alzir Felippe
Schmitz, julgado em 28/01/2010); “AGRAVO DE INSTRUMENTO. CURATELA. MÃE EXERCENDO A
CURATELA. PRESTAÇÃO DE CONTAS. NECESSIDADE. Mesmo que a mãe do curatelado seja a sua curadora,
cumpre prestar contas na medida em que o filho possui renda própria, e a mãe não mais exerce o poder familiar. Deram
provimento ao recurso” (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70033686965, Relator Desembargador Alzir Felippe Schmitz,
julgado em 28/01/2010); “PRESTAÇÃO DE CONTAS. CURATELA. NECESSIDADE. Tendo em vista ser a curatela
medida que visa a assegurar os interesses do curatelado, prudente que seja determinada a prestação de contas por parte
do curador, a fim de que seja, efetivamente, entregue a proteção buscada pelo instituto” (TJMG, Apelação Civil n.
1.0261.08.059118-1, Relator Desembargador Geraldo Augusto, julgado em 17/03/2009); “INTERDIÇÃO.
PRESTAÇÃO DE CONTAS. OBRIGATORIEDADE. PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO DO INTERDITADO.
EXEGESE DO ART. 1755 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE.
Conforme disposto no Código Civil, os tutores e curadores são obrigados a prestar contas da sua administração.
Constitui dever do curador administrar os bens do curatelado, devendo este ônus ser cumprido com zelo e boa-fé (art.
1.741, c/c art. 1.781, do CC), a fim de resguardar os direitos pertencentes ao interditado” (TJMG, Apelação Cível n.
1.0024.07.403387-9, Relator Desembargador Mauro Soares de Freitas, julgado em 12/02/2009); “PRESTAÇÃO DE
CONTAS. IMPUGNAÇÃO. DESPESAS NÃO-COMPROVADAS. 1. O curador, ao assumir o encargo de administrar
valores pertencentes a terceiro, deve estar ciente das suas responsabilidades pela gestão do patrimônio e dos recursos
financeiros, cabendo-lhe cercar-se da documentação pertinente para fazer a comprovação das despesas e dos
pagamentos realizados. 2. Devem ser consideradas na prestação de contas as despesas que estiverem cabalmente
comprovadas e aquelas que evidentemente foram feitas em favor da interditanda. 3. Tendo a sentença examinado todos

33
curador deverá submeter ao juiz um balanço de suas atividades (art. 1.774 c/c art. 1.756, CC), com
discriminação dos valores de receita e despesa movimentados durante o período. Paulo Luiz Netto
Lôbo lembra-nos que o referido balanço, ao contrário da prestação de contas propriamente dita, não
precisa conter comprovação dos eventos discriminados, mas pode o juiz exigi-la se reputar
conveniente.127
E, a cada dois anos, no final da curatela ou sempre que o juiz determinar, o curador deverá
apresentar verdadeira prestação de contas (art. 1.774 c/c art. 1.757, CC), que deve obedecer, em
regra, à forma contábil.128 Caio Mário da Silva Pereira esclarece que a responsabilidade do curador
não se limita, obviamente, ao resultado contábil de sua prestação de contas. Se da sua gestão
resultar prejuízo ao curatelado, incumbe-lhe o dever de ressarcimento, segundo as diretrizes que
orientam a responsabilidade civil.129 Em contrapartida, o curador terá direito de ser reembolsado das
despesas justificadas e realizadas em proveito do incapaz (art. 1.774 c/c art. 1.760, CC), assim como
serão pagas pelo curatelado as despesas com a prestação de contas (art. 1.774 c/c art. 1.761, CC).

os pontos levantados pela Contadoria do Ministério Público e considerado regularizados alguns itens e, para outros,
apontado o procedimento a ser observado para as próximas prestações de contas, sem que exista indicativo de má-
gestão dos recursos da incapaz, têm-se como boas as contas prestadas. 4. Embora inexista prova documental referente a
despesas com alimentação e material de limpeza, é incontroverso que tais gastos existiram, sendo conveniente fixar
valor em patamar mais razoável para a dispensa de comprovação para as prestações de contas vincendas” (TJRS,
Apelação Cível nº 70023364904, Relator Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em
10/09/2008).
126
“APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. INTERDIÇÃO. CURATELA.
DESVIO DE FINALIDADE. DESPESAS DESTINADAS A MORADIA E SUBSISTÊNCIA DA CURADORA. A
nomeação ao munus de curadora provisória do filho impunha a progenitora o dever de destinação da pensão do INSS
recebida em nome daquele, exclusivamente ao cuidado e assistência da incapaz. Qualquer despesa que escape a essa
destinação não pode ser incluída na prestação de contas. Restituição dos valores utilizados sem proveito do incapaz,
atualizados” (TJRS, Apelação Cível n. 70026108621, Relator André Luiz Planella Villarinho, julgado em 22/10/2008);
“APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. INTERDIÇÃO. CURATELA. DESVIO
DE FINALIDADE. DESPESAS DESTINADAS A MORADIA, TRATAMENTO MÉDICO E VIAGEM DE
SOBRINHA DA INTERDITADA. Ainda que a curatelada, antes da interdição, por liberalidade, concedesse mesada a
sua sobrinha maior e que exerce atividade profissional, após a interdição deve a curadora destinar a administração de
seus bens exclusivamente ao cuidado e assistência da incapaz. Qualquer despesa que escape a essa destinação não pode
ser incluída na prestação de contas” (TJRS, Apelação Cível n. 70020700076, Relator Desembargador Luiz Felipe Brasil
dos Santos, julgado em 19/12/2007); “CURATELA. EXERCÍCIO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. DESPESAS
ESTRANHAS AO INTERESSE DA CURATELADA. REJEIÇÃO. Resultando devidamente comprovada a realização
de diversas despesas estranhas ao interesse da curatelada, de rigor se faz a rejeição das contas apresentadas pelo
curador, que fica obrigado à recomposição dos valores despendidos. Recurso desprovido” (TJMG, Apelação Cível n.
1.0701.03.052286-9, Relator Lucas Sávio de Vasconcellos Gomes, julgado em 23/09/2004).
127
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 392.
128
“CURADOR. PRESTAÇÃO DE CONTAS. DILAÇÃO DE PRAZOS. SUSPENSÃO DO CURADOR.
RESPONSABILIDADE DO JUIZ. A prestação de contas pelo curador deve ser de forma contábil, elencando as receitas
e as despesas, devidamente documentadas, não se justificando a reiterada dilação de prazos para juntada de documentos
para a comprovação das contas, até agora não julgadas boas ou más, uma vez considerando que o compromisso de
curador está com data de 22 de fevereiro de 2001, não tendo se concluído até o momento, a prestação das contas do
primeiro ano do exercício da curatela, restando pendentes os períodos subseqüentes. Existe previsão legal para
suspensão do curador pelo juiz, em cognição sumária, em casos de extrema gravidade, especialmente quando a sua
administração resultar em prejuízo ao patrimônio do interdito. Além do mais, não fica afastada a responsabilidade do
juiz pelos prejuízos que advierem ao interdito, em virtude da não remoção do curador, quando a sua administração está
sendo nociva” (TJRS, Agravo de Instrumento n. 70010554186, Relator Desembargador Antônio Carlos Stangler
Pereira, julgado em 28/04/2005)
129
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 5, p. 260

34
Há quem defenda a dispensabilidade da prestação de contas em face do diminuto
patrimônio do curatelado ou das irrisórias rendas auferidas por ele,130 o que não nos parece
adequado. Nestas circunstâncias, melhor seria dispensar apenas o formalismo excessivo do
expediente em questão, admitindo-se que a comprovação das despesas com o cuidado do incapaz
não precise observar a forma contábil.131
O curador também deve satisfazer os interesses existenciais do curatelado, assim
promovendo o seu acesso aos cuidados de saúde, bem como a sua socialização e sua
profissionalização, se for o caso. Parece-nos que o curador deve prestar contas destas medidas
indispensáveis ao bem estar do curatelado, assim como dos progressos e das dificuldades
enfrentadas pelo incapaz no processo de recuperação ou de valorização de sua autonomia, já que

130
“PRESTAÇÃO DE CONTAS. CURATELA. IMPOSSIBILIDADE E DESNECESSIDADE. A norma que obriga a
prestação de contas destina-se a evitar que o tutor e o curador utilizem-se da posição privilegiada que o munus público
lhes propicia, para desviarem os recursos daqueles sob sua proteção. Quando ausente a possibilidade de que a
dilapidação do patrimônio e a malversação dos recursos se operem, porque o curatelado ou tutelado não dispõem de
recursos ou os recebem em valores parcos, não bastando sequer para o seu próprio sustento, a regra contida na lei torna-
se inaplicável, especialmente diante da necessidade de se contratar profissional para que as contas sejam prestadas de
forma contábil, dívida que não pode ser paga pelo tutor ou curador, que não dispõem de recursos para tanto” (TJMG,
Apelação Cível n. 1.0000.00.200304-4, Relator Desembargador Almeida Melo, julgado em 23/11/2000); “APELAÇÃO
CÍVEL. FAMÍLIA. INTERDIÇÃO. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. Em que pese a obrigatoriedade, em tese,
de o curador prestar contas, de acordo com o disposto no art. 1755 do CCB, c/c art. 914 do CPC, no caso em exame, em
face do módico valor da pensão recebida pelos curatelados, de 1,5 salário mínimo para ambos, não é razoável exigi-las,
pois é certo esse montante foi revertido em favor dos incapazes, que possuíam despesas com locação de imóvel e outras
normais de subsistência, como compravam os documentos juntados” (TJRS, Apelação Cível nº 70020711339, Relator
Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 19/12/2007)
131
“AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. INEXISTÊNCIA DE PROVA DOCUMENTAL. ADOÇÃO
EXCEPCIONAL DE PROVA INDIRETA DOS GASTOS EM FAVOR DO CURATELADO. Em casos excepcionais,
nos quais restou demonstrada a utilização, em favor do curatelado, do numerário recebido pelo curador do interdito,
admitem-se como boas as contas, ainda que não prestadas de forma mercantil” (TJRS, Apelação Cível nº 70020805743,
Relator Desembargador José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 06/09/2007); “PRESTAÇÃO DE CONTAS.
CURATELA. ANÁLISE DA PROVA. LIMITAÇÃO DO PERÍODO DEVIDO. Embora desnecessária a prestação de
contas pelo curador na forma mercantil, ao menos os documentos que comprovem as despesas devem ser apresentados,
uma vez que, de regra, a prova testemunhal, ainda que complementar, não supre a documental. Cotejadas, porém, as
despesas do interdito com o parco rendimento que percebia, aliado ao conteúdo da prova produzida, razoável a
conclusão de que os valores do benefício previdenciário reverteram em seu favor, mas apenas enquanto não internado
em hospital psiquiátrico. Limitação do período da prestação de contas” (TJRS, Apelação Cível nº 70021032875,
Relatora Desembargadora Maria Berenice Dias, julgado em 07/11/2007); “PROCESSO CIVIL. CURATELA.
SUBSTITUIÇÃO DO CURADOR. PRESTAÇÃO DE CONTAS. REJEIÇÃO. FORMALISMO EXCESSIVO.
BENEFÍCIO NO VALOR DE UM SALÁRIO MÍNIMO. Se a prestação de contas realizada por ocasião da substituição
do curador revela-se razoável, especialmente porque a curatelada percebe um salário mínimo por mês, descabe rigor
excessivo, salvo se houver prova de malversação da quantia em dinheiro utilizada pelo responsável (TJMG, Apelação
Cível nº 1.0701.07.188386-5, Relator Desembargadora Alberto Vilas Boas, julgado em 01/07/2008); “CURADOR.
PRESTAÇÃO DE CONTAS. CURATELADO COM RENDA DE APENAS UM SALÁRIO MÍNIMO.
INEXISTÊNCIA DE SUSPEITA DE MALVERSAÇÃO DO MINGUADO GANHO. DESCABIMENTO DE RIGOR
EXTREMADO. IDONEIDADE DO CURADOR APURADA EM ESTUDO SOCIAL. O rigor extremado na prestação
de contas de curador só se justifica quando há suspeita fundada de malversação dos bens ou rendimentos do curatelado.
Se a pequena renda do curatelado corresponde a apenas um salário mínimo mensal, gasta com medicamentos, vestuário
e sustento dele, através de seu próprio pai - o curador -, cuja idoneidade não enseja desconfiança, inexiste suspeita de
malversação, mormente se demonstrado salienter tantum, via estudo elaborado por assistente social, receber ele
(curatelado) bom tratamento de seu representante legal, o que, por si só, autoriza o entendimento de haver satisfatória
utilização do minguado ganho. Ademais, se essa renda, já por ser reconhecidamente minguada, clama por
complementação, não há falar-se em malversação” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0000.00.200367-1, Relator
Desembargador Hyparco Immesi, julgado em 18/10/2001).

35
esta consubstancia-se na sua função precípua, enquanto curador. Independentemente do grau de
comprometimento do seu discernimento, deve-se atribuir relevância aos possíveis espaços de
autonomia do curatelado, não podendo o juiz fugir do exame da idoneidade dos expedientes
utilizados pelo curados para promover o atendimento dos melhores interesses existenciais do
incapaz em causa.
Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul assinalou que a curadora
que interna a curatelada em clínica geriátrica, na qual passam a ministrar-lhe remédios para dormir,
mesmo não contando a idosa com problemas físicos de maior gravidade, age com excesso de poder,
merecendo ser destituída do encargo. “Nesse contexto, sem adentrar na discussão acerca da
dilapidação do patrimônio da idosa (o que não restou demonstrado e deverá ser argüido na via
adequada, caso a recorrente assim entenda), e visando o melhor para a incapaz, tenho que a decisão
agravada merece ser mantida, considerando que a recorrente descumpriu determinação judicial e
que o atual curador poderá cuidar da inteditanda em sua residência, o que será mais benéfico a ela
no atual momento”.132

5.6. Alguns outros aspectos

Situação interessante refere-se à possibilidade de se aplicar a figura do protutor também à


curatela. O protutor, previsto no art. 1.742, do Código Civil, é instituto jurídico novo, cuja
finalidade precípua é possibilitar a fiscalização mais eficiente das atividades do tutor, que se espera
ser orientadas para o interesse exclusivo do incapaz. De acordo com o referido dispositivo, o juiz
poderá nomear um protutor para fiscalizar os atos do tutor, não fixando a lei, porém, as pessoas
legitimadas ao encargo, assim recaindo a escolha ao arbítrio do magistrado.
Sérgio Gischkow Pereira acredita que a figura do protutor não será acolhida pela prática
forense brasileira, apesar de existente e se mostrar útil em outros países.133 Em Portugal, por
exemplo, a fiscalização da ação do tutor é exercida com caráter permanente também pelo protutor,

132
TJRS, Agravo de Instrumento nº 70032861106, Relator Desembargador Claudir Fidélis Faccenda, julgado em
19/11/2009.
133
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 213. Este também é o
entendimento esboçado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE
INTERDIÇÃO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. A prestação de contas em processo de interdição é insuficiente para
eximir a curadora do encargo. Desnecessidade de nomear-se protutor” (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70021797188,
Relator Desembargador Rui Portanova, julgado em 13/12/2007). Após curadora apresentar contas do exercício de sua
gestão, os demais interessados na proteção do incapaz, insatisfeitos, requereram a nomeação de um protutor para
administrar o patrimônio da interditada, que foi indeferido. No acórdão, o relator destacou: “ainda que a lei traga a
possibilidade de nomeação de um protutor para a fiscalização dos atos do tutor, penso que no caso dos autos essa
providência é desnecessária. Isso porque ainda que haja intensa animosidade entre as partes, a pretensão de fiscalizar os
atos da curadora se limita ao patrimônio administrado. Mas essa pretensão pode muito bem ser satisfeita através da já
referida ação de prestação de contas”.

36
que deve, sempre que possível, representar a linha de parentesco diversa da do tutor, conforme art.
1.955, do Código Civil. Ademais, por força do art. 1.956, do Código Civil português, compete ao
protutor, além de fiscalizar a ação do tutor: cooperar com o tutor no exercício das funções tutelares,
podendo encarregar-se da administração de certos bens do incapaz, nas condições estabelecidas
pelo conselho de família e com o acordo do tutor; substituir o tutor nas suas faltas e impedimentos;
representar o incapaz em juízo ou fora dele, caso se verifique conflito de interesses entre o tutor e o
tutelado. Em França, da mesma forma, cabe ao protutor vigiar as atividades do tutor e representar o
incapaz quando seus interesses sejam opostos aos do tutor. De acordo com o art. 420, do Código
Civil, o protutor deve comunicar, imediatamente, ao juízo tutelar, qualquer irregularidade
encontrada na gestão da tutela, sob pena de responder pessoalmente pelos prejuízos sofridos pelo
incapaz. Se o tutor for parente por afinidade ou por consangüinidade do tutelado em apenas uma
linha de parentesco, o protutor deve, sempre que possível, ser escolhido entre os representantes de
linha diversa, na dicção do art. 423, do Código Civil francês.
Infelizmente, outra foi a opção seguida pelo nosso legislador, que merece ser corrigida, ao
menos, em parte, via labor interpretativo. Em nossa sistemática legal, “o protutor investe-se de
função auxiliar da justiça, reportando-se diretamente ao juiz. É seu dever comunicar ao juiz
qualquer irregularidade que recomende a suspensão ou remoção do tutor. Também auxilia o juiz na
tomada de contas, opinando sobre os atos que devam ser praticados pelo tutor, sempre de acordo
com o melhor interesse do menor”.134 Com razão, a crítica de Rolf Madaleno: “sob certo aspecto é
incoerente a nomeação de um protutor para fiscalizar os atos de administração do tutor, quando o
requisito fundamental na assunção do encargo é o de ser idôneo. Ao depois disso, não há como
perder de vista se tratar a tutela de um encargo obrigatoriamente sujeito à fiscalização judicial, onde
a qualquer tempo a autoridade judicial pode acionar o Ministério Público, ou a autoridade policial
para reclamar as providências necessárias à defesa intransigente dos interesses do tutelado,
inclusive suspendendo ou removendo o tutor. Seria mais coerente nomear o tutor tão-somente para
atuar nos atos de representação, proteção e amparo do menor, voltados seus atos para a guarda,
educação, formação, assistência moral e espiritual do menor, e para cuidados com sua saúde, como
naturalmente deve agir e se preocupar um bom pai de família, deixando as relações patrimoniais ao
encargo do protutor, não em razão da idoneidade, mas considerando gozar o tutor do elo de
afinidade e de empatia para com o tutelado, e indicando o protutor por sua formação intelectual,
experiência e credibilidade, para exercer os atos de gestão dos bens do tutelado e só nesse aspecto
se justifica a nomeação de um protutor”.135

134
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 389.
135
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 844-845.

37
Em face da sistemática legal revogada, afirmava-se que a curatela constituía encargo
indelegável e gratuito.136 Hoje, parece-nos não ser mais assim. De acordo com o art. 1.743 (c/c art.
1.774), do Código Civil, se os bens e interesses administrativos do curatelado exigirem
conhecimentos técnicos, forem complexos, ou realizados em lugares distantes do domicílio do
curador, poderá este, mediante aprovação judicial, delegar a outras pessoas físicas ou jurídicas o
exercício parcial da curatela. Por exemplo, se o curatelado possuir empresa que executa serviços
especializados, não possuindo o curador os conhecimentos gerenciais ou tecnológicos necessários
ao andamento da atividade econômica, poderá atribuir a outrem, de competência reconhecida, as
tarefas em, mediante autorização judicial. Da mesma forma ocorrerá caso o curatelado possua
vários investimentos, cuja administração exija conhecimentos específicos, que nem sempre o
curador terá. Entretanto, deve sempre o curador acompanhar o desempenho de seu delegatário, sob
pena de responsabilidade civil por culpa in eligendo. Alerte-se que o curador pode realizar apenas
delegação parcial da curatela, restando vedada a delegação de todos os poderes e deveres inerentes
ao exercício do encargo.
Por sua vez, o art. 1.752 (c/c art. 1.774), do Código Civil, estabelece o direito do curador
de perceber remuneração proporcional à importância dos bens administrados. Destaque-se que o
exercício da curatela não será necessariamente remunerado, pois o curatelado deverá ter bens
suficientes para tanto.137
Outra alteração legislativa interessante diz respeito à garantia da curatela. Na vigência da
sistemática legal anterior, a curatela era precedida de hipoteca legal dos bens do curador para a
garantia do patrimônio do curatelado, seguindo o mesmo regime legal da tutela. Rolf Madaleno
afirma que a “exigência de prévia especialização de hipoteca legal dos imóveis pertencentes ao tutor
se constituía em um inequívoco entrave para o exercício da tutoria, porque inibia a livre disposição

136
FACHIN, Luiz Edson. Direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 270-271.
137
“CURATELA. PAGAMENTO DE REMUNERAÇÃO A TERCEIROS PARA CUIDAR DO CURATELADO.
PROVA DA NECESSIDADE. AUSÊNCIA. INDEFERIMENTO. A curatela é um munus público, caracterizado por
sua gratuidade, em razão do que, como regra, não se remunera o curador pelos serviços prestados ao curatelado, até
mesmo porque envolve trato inerente ao próprio núcleo familiar. Diante da nova regra estampada no artigo 1.752 c/c
art. 1.774, ambos do Código Civil, pode-se admitir a remuneração do curador, porém deve haver prova da necessidade,
não caracterizada nos autos e agravada pelo fato de que se pretende a remuneração da esposa do curador pela prestação
de serviços ao curatelado” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0621.08.018020-4, Relator Desembargador Maurício Barros,
julgado em 24/03/2009); “INTERDIÇÃO. FIXAÇÃO DE REMUNERAÇÃO DA CURADORA. SENTENÇA
OMISSA. TRÂNSITO EM JULGADO. NECESSIDADE DE AÇÃO AUTÔNOMA. Há o direito à percepção de
remuneração pelo exercício da curatela, todavia, o valor dever ser fixado pelo juiz por ocasião da sentença. Transitando
em julgado a decisão de mérito na ação de interdição, mesmo que omissa quanto à remuneração do curador, cabe a este
propor ação autônoma de arbitramento” (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70013939475, Relatora Desembargador
Maria Berenice Dias, julgado em 15/02/2006); “CURATELA. REMUNERAÇÃO. PROPORCIONALIDADE SOBRE
A IMPORTÂNCIA DOS BENS ADMINISTRADOS. O artigo 1.752 do Código Civil de 2002 prevê o pagamento de
remuneração proporcional à importância dos bens administrados pelo tutor, que deve ser fixada pelo juiz, e não o
pagamento de "prêmio" pelo exercício do munus público. Assim, se a curadora deixou de requerer a remuneração a que
faz jus à época da sua nomeação como curadora, não pode pretender o pagamento retroativo dos valores, sob pena de
privar a curatelada das suas necessidades reais básicas” (TJMG, Apelação Cível n. 1.0024.03.054667-5, Relator
Desembargador Eduardo Andrade, julgado em 24/08/2004).

38
dos bens do tutor, obrigando a garantir com todo o seu patrimônio imobiliário a administração dos
bens do tutelado”.138 Atualmente, as providências para acautelar o patrimônio do tutelado e do
curatelado estão disciplinadas no art. 1.745 (c/c art. 1.774), do Código Civil. De acordo com o
mencionado dispositivo, os bens dos incapazes serão entregues ao tutor e ao curador mediante
termo especificado deles e seus valores, ainda que os pais o tenham dispensado, no caso específico
da tutela. E se o patrimônio dos incapazes for de valor considerável, poderá o juiz condicionar o
exercício da tutela e da curatela à prestação de caução bastante, real ou fidejussória, podendo
dispensá-la se o tutor ou o curador for de reconhecida idoneidade.139 Em conclusão, não há mais
que se cogitar da imprescindibilidade da especialização de hipoteca legal.

6. Curatela especial, sem interdição

A última novidade interessante refere-se à possibilidade de instituir-se curatela em razão de


deficiência física do curatelado. De acordo com o art. 1.780, do Código Civil, a requerimento do

138
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 840.
139
“INTERDIÇÃO. APELAÇÃO INTERPOSTA CONTRA DECISÃO QUE DETERMINOU A ESPECIFICAÇÃO
DE HIPOTECA LEGAL PELO CURADOR NOMEADO. NOVO CODIGO CIVIL. REQUERENTE E
INTERDITADO CO-PROPRIETÁRIOS DE IMÓVEL ÚNICO DEIXADO POR GENITOR. O artigo 1.745, do novo
Código Civil, possibilita condicionar o exercício da curatela à prestação de caução por parte do curador, ante à
existência de patrimônio considerável do curatelado, único pressuposto específico. A exigência de garantia, que era
regra na vigência do Código Civil de 1917, tornou-se exceção pelo novo diploma. O fato de o imóvel herdado pelo
requerente e pelo interditado não constar do Registro de Imóveis em nome destes, não justifica seja a fração ideal do
requerente onerada, já que o registro da interdição no Ofício de Interdições e Tutelas impedirá a alienação do imóvel
sem autorização judicial” (TJRJ, Apelação Cível nº 2004.001.18112, Relator Desembargador Mario Robert
Mannheimer, julgado em 16/08/2005); “CURADOR DATIVO. CAUÇÃO. IDONEIDADE MORAL E FINANCEIRA.
DESNECESSIDADE DA PRESTAÇÃO DA GARANTIA. O juiz tem a faculdade de impor ao curador dativo a
prestação de caução, via hipoteca legal e de exigi-la mediante especialização antes do exercício fático da curatela, ou
dispensá-lo da formação dessa garantia se for cidadão de conduta e reputação ilibadas e de reconhecida idoneidade no
meio judiciário e social, tanto no trato de seus temas pessoais quanto na sua história profissional, mostrando-se apto à
boa gestão dos interesses da curatelada” (TJMG, Apelação Cível nº 1.0470.08.050502-2/001, Relator Desembargador
Afrânio Vilela, julgado em 15/15/2009); “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INTERDIÇÃO.
ESPECIFICAÇÃO DE BENS EM HIPOTECA LEGAL. DISPENSA POSSÍVEL. 1. A administração dos bens do
interdito, pelo curador, depende de garantias, dentre elas, a especialização de bens imóveis em hipoteca legal para
assegurar gestão do curador. 2. Mas a garantia pode ser dispensada em situações excepcionais e o curador for de
reconhecida idoneidade. 3. O curador, irmão da curatelada, e indicado mediante consenso dos demais irmãos, é idôneo e
pode ser dispensado de prestar a garantia. 4. Agravo de instrumento conhecido e provido para dispensar a
especialização de bens em hipoteca legal” (TJMG, Agravo de Instrumento nº 1.0024.08.968883-2/001, Relator
Desembargador Caetano Levi Lopes, julgado em 27/10/2009); “INTERDIÇÃO. ESPECIALIZAÇÃO DE HIPOTECA.
CURADOR. IDONEIDADE. CAUÇÃO. DISPENSA. Dispensa-se a especialização de hipoteca quando evidenciada a
idoneidade moral e econômico-financeira do curador - que já zela por sua genitora antes mesmo da medida judicial e
com apoio irrestrito dos demais familiares - acrescido ao fato de que o patrimônio da interditanda não é vultoso”
(TJMG, Apelação Cível nº 1.0701.07.195110-0/001, Relator Desembargador Alberto Vilas Boas, julgado em
10/02/2009); “AÇÃO DE INTERDIÇÃO. DECISÃO QUE DETERMINOU A ESPECIALIZAÇÃO DE HIPOTECA.
INCONFORMISMO. ACOLHIMENTO. REVOGAÇÃO DA HIPOTECA LEGAL, PREVISTA NO ART. 827, IV, DO
CC DE 1916. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1745, PARÁGRAFO ÚNICO, 1781 E 1750, DO CC DE 2002, E
ARTIGO 1190, DO CPC. Dispensa da garantia, por conta da presumida idoneidade do curador, genitor do interditado, e
da natureza imóvel do patrimônio gerido. Decisão reformada. Recurso provido” (TJSP, Agravo de Instrumento nº
573.306-4/6-00, Relator Grava Brasil, julgado em 16/12/2008).

39
enfermo ou portador de deficiência física, ou, na impossibilidade de fazê-lo, de qualquer das
pessoas legitimadas para requerer a interdição, dar-se-lhe-á curador para cuidar de todos ou de
alguns de seus negócios ou bens.140

Trata-se de uma modalidade especial de curatela, que se distingue em razão de sua


finalidade restrita, além de seu pressuposto fático singular. Destina-se a salvaguardar o patrimônio
do curatelado, cabendo ao curador apenas a gestão de bens e negócios, não se ocupando, portanto,
de assuntos relativos aos interesses existenciais do curatelado.141 Ademais, não há que se verificar a
incapacidade - perda ou redução significativa do discernimento - do curatelado, dispensando-se,
dessa forma, a instauração de procedimento judicial de interdição.142 “Esse dispositivo [art. 1780,
do Código Civil] não diz respeito à curatela por interdição, pois o curatelado, nesse caso, não possui
problemas de natureza mental. Trata-se de uma curatela especial por representação”.143 Basta, por
sua vez, constatar a impossibilidade de a pessoa gerir os seus negócios, aliada com sua
concordância expressa de se submeter à curatela especial.144 “O dado principal de tal curatela

140
TJRS, Agravo de Instrumento nº 70022574685, Relator Desembargador Rui Portanova, julgado em 14/12/2007,
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. CURATELA DE ENFERMO. LEGITIMIDADE. O Enfermo tem legitimidade para
pedir a própria interdição. Entendimento do art. 1780, do Código Civil”.
141
TJMG, Apelação Cível nº 1.0687.06.044378-9/001, Relator Desembargador Edilson Fernandes, julgado em
27/03/2007.
142
TJRS, Apelação Cível nº 70032874075, Relator Desembargador José Ataíde Siqueira Trindade, julgado em
17/12/2009, "APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO. LIMITAÇÕES FÍSICAS. IMPROCEDÊNCIA. Debilidade ou
limitações físicas não é causa para a decretação da interdição, cujas hipóteses estão elencadas no art. 1.767 do CC/02.
Apresentando o interditando capacidade de discernimento para os atos da vida civil, embora as limitações físicas que
apresenta, descabe ser interditado. A proteção do enfermo ou portador de deficiência física encontra proteção no art.
1.780 do CC/02. Apelação desprovida"; JMG, Apelação Cível nº 1.0418.05.930829-0/001, Relator Desembargador
Nepomuceno Silva, julgado em 01/09/2005, “DIREITO CIVIL. CURATELA. ENFERMO. POSSIBILIDADE.
CÓDIGO CIVIL, ART. 1.780. PROVIMENTO PARCIAL DO APELO. O novo Código Civil (art. 1.780), prestigiando
o princípio da dignidade humana, previu a possibilidade de curatela também ao enfermo ou portador de deficiência
física. Tem-se, aí, uma espécie de curatela-mandato, sem necessidade de interdição do enfermo”; TJSP, Apelação Cível
nº 519.533-4/6, Relator Desembargador Ênio Santarelli Zuliane, julgado em 25/10/2007, “CURATELA. ARTIGO 1780,
DO CÓDIGO CIVIL. Deve ser admitida a procedibilidade de pedido de curatela visando tutelar os interesses de pessoa
doente e portador de deficiência física que impede a regular administração dos bens. Provimento”. No texto deste
último acórdão, lê-se: “o artigo 1768, do Código Civil, dá autorização para qualquer parente pleitear a curatela prevista
no artigo 1780, do Código Civil, no caso em questão o apelado é irmão do apelante dando-lhe total capacidade de fazer
o pedido. A simples dificuldade de locomoção do interessado já é suficiente para justificar o pedido, competindo ao juiz
analisar, com critério, as provas da restrição ou impossibilidade de o requerido providenciar, sozinho, os desembaraços
previdenciários mencionados. Tendo em vista que o apelante já esclareceu que o seu irmão é pessoa normal em termos
de aptidão psíquica, o pedido torna-se válido pela razão de sua incapacidade física. Trata-se então de um tipo de
curatela onde o curador administrará, total ou parcialmente, o patrimônio de um doente físico, cuja deficiência termina
dificultando a gestão de seus negócios, como o recebimento de pensões previdenciárias e que estão ameaçadas de
bloqueio”. Sobre o assunto, cfr. MOUSNIER, Conceição. A curatela administrativa, instituto inovador no Código Civil.
In PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (org.). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009, p.
63-75.
143
NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código Civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 477.
144
TJRS, Apelação Cível nº 70029218559, Relator Desembargador José Conrado de Souza Júnior, Julgado em
13/05/2009, “APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. INTERDIÇÃO. CURATELA. PROVA PERICIAL SUPLEMENTAR
DESNECESSIDADE. AGRAVO RETIDO DESPROVIDO. AUSÊNCIA DE PATOLOGIA INCAPACITANTE.
Demonstração cabal, para fins do art. 1.780, do Código Civil, de impossibilidade de gerenciamento dos atos da vida

40
consentida é a preservação da capacidade de discernimento para os atos da vida civil e de
manifestação de vontade. As restrições são de ordem física, em razão de enfermidade ou
deficiência, nunca mental”.145

Neste sentido, Maria Helena Diniz assinala que a hipótese em comento não se trata “de
curatela por interdição, mas de transferência de poderes similar a um mandato, em que o curador
administrará, total ou parcialmente, o patrimônio de um doente ou deficiente físico, cujo mal lhe
dificulte a boa gestão negocial. Temos aqui, entendemos, ser instituto sui generis, ou melhor, uma
curatela-mandato, não seguida de processo de interdição, em que o curador apenas tem a regência
dos bens e não da pessoa do curatelado, sendo, portanto, um curador ad negotia. Essa curatela não
é destinada, portanto, a pessoa incapaz, mas àquela que não tem condições físicas para tratar de seus
negócios, pois, apesar de se encontrar em pleno gozo de suas faculdades mentais, tem, por exemplo,
problema de locomoção, provocado por paralisia”.146 Dessa forma, para instituir o expediente,
deverá o magistrado “averiguar se essa curatela é mesmo conveniente para o enfermo ou até mesmo
a idoso com dificuldade de locomoção, por exemplo, ante a possibilidade da ocorrência de má-fé de
algum parente que tenha o intentio de, aproveitando-se dele, obter para si, na administração
negocial, alguma vantagem econômica. Só deverá ser deferida com a anuência do curatelado, que
poderá até mesmo impugnar pedido feito por cônjuge ou parente seu”.147
Em julgado recente, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais consignou que “a interdição é
medida extrema, no sentido de retirar da pessoa qualidade de civilmente capaz com que dotada a
personalidade jurídica a partir do nascimento, pelo que não se pode arbitrá-la a mero debilitado ou
deficiente físico, em gozo das faculdades mentais, sob pena de se privar da gestão da própria
existência e da prática dos atos da vida civil aquele que detém, inobstante a restrição física, aptidão
para auto-gestão. A nomeação de curadoria especial, nos termos do art. 1.780, do Código Civil,
traduz transferência de poderes, semelhante a mandato, sem alicerçar declaração ou imposição de
incapacidade civil absoluta, pelo que adequada à situação de déficit de auto-gestão, de que padece o
deficiente físico-visual”.148 149

civil independentemente de auxílio de terceiros. Curatela que se impõe”; TJMG, Apelação Cível nº 1.0687.06.044378-
9/001, Relator Desembargador Edilson Fernandes, julgado em 27/03/2007, “CURATELA. DEFICIENTE FÍSICO.
CAPACIDADE PARA GERIR A SI E AOS SEUS BENS. ART. 1.780 DO CÓDIGO CIVIL. REQUERIMENTO
FEITO POR PARENTE. Nos termos do art. 1.780, do novo Código Civil, poderá ser instituída curatela a requerimento
do próprio enfermo ou portador de deficiência física, ou se não puder fazê-lo, de seus pais, tutor, cônjuge, parente ou
órgão do Ministério Público. Comprovada a capacidade da parte de gerir a si e aos seus bens, a negativa da curatela
requerida por parente é medida que se impõe”.
145
MOUSNIER, Conceição. A curatela administrativa, instituto inovador no Código Civil. In PEREIRA, Tânia da
Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (org.). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009, p. 67.
146
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 5, p. 611.
147
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 5, p. 611.
148
TJMG, Apelação Cível nº 1.0470.06.033041-7/001, Relator Fernando Botelho, julgado em 31/07/2008.

41
O melhor que temos a extrair da dicção do dispositivo legal é que (i) o bem-estar do
curatelado se apresenta como o escopo da curatela, (ii) o discernimento do curatelado deve ser
promovido, assumindo a curatela um caráter sempre residual, para apenas suprir as vulnerabilidades
concretas do indivíduos em causa, (iii) a pessoa que reúne condições psíquicas para fazer escolhas
reclamadas pelos interesses patrimoniais e existenciais, merece que suas decisões sejam
valorizadas, preservadas, efetivadas, como atos jurídicos plenamente válidos.

7. Designações futuras sobre a própria incapacidade

Reflexão relevante refere-se à autonomia prospectiva do ser humano, notadamente no que


diz respeito à validade das declarações antecipadas de vontade, no contexto de valorização da
dignidade humana.150 Tais medidas têm como finalidade a produção de efeitos quando o indivíduo
não mais estiver em condições de exprimir-se com plena liberdade e consciência, sendo, porém,
emitidas em época anterior, quando a pessoa em questão contava com plena higidez mental.
Aponta-se que o fundamento de validade das declarações antecipadas de vontade pode ser
encontrado na própria capacidade de regulação que o ordenamento jurídico reconhece ao maior de
idade para reger sua pessoa e seus bens, o que não deixa de incluir a possibilidade de uma pessoa
prever sua eventual e futura incapacidade e, por conseguinte, estabelecer os expedientes necessários
para o adequado suprimento, respeitando assim o princípio da plena liberdade pessoal. Noutras
palavras, as diretrizes antecipadas de vontade devem ser valorizadas porque traduzem o modo de
entender a vida, a doença, além de espelhar o projeto de felicidade que a pessoa construiu, em uma

149
TJDFT, Apelação Cível nº 20080910073536, Relator Desembargador Teófilo Caetano, julgado em 11/11/2009,
"CIVIL. INTERDIÇÃO. CAPACIDADE MENTAL E DISCERNIMENTO. PRESERVAÇÃO. INCAPACIDADE
FÍSICA. INTERDIÇÃO ESPECIAL (CC, ART. 1.780). PRESSUPOSTOS. MANIFESTAÇÃO DA PORTADORA DE
DEFICIÊNCIA. INDISPENSABILIDADE. REQUISITO DESATENDIDO. 1. Conquanto padecente de incapacidade
física decorrente de lesão corporal que a afligira, se a pessoa mantém intactas sua capacidade de discernimento e de
gerir sua pessoa e administrar seus bens, não padecendo de enfermidade ou distúrbio mental, é impassível de ser
interditada sob o figurino clássico como forma de serem preservados os direitos da personalidade que lhe são inerentes
como expressão do princípio da dignidade humana. 2. O legislador civil, com pragmatismo, inovando a regulação
primitiva, autorizara que, conquanto estando com suas faculdades mentais preservadas, o atingido por deficiência física
ou de enfermidade grave seja interditado como forma de ser viabilizada a prática dos atos da vida civil do seu interesse,
estando essa interdição especial, que pode, inclusive, ser limitada a alguns negócios ou bens do curatelado, vez que não
despojado da sua capacidade de discernimento, condicionada à manifestação do próprio interditando, salvo se
impossibilitado de externá-la (CC, art. 1.780). 3. Apelação conhecida e improvida."
150
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Procurador para cuidados de saúde do idoso.
In PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (org.). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009, p.
1-16.

42
sociedade democrática e pluralista, que abraça todas as concepções morais e opções existenciais,
principalmente as autoreferentes.151
Logo, é admissível, por exemplo, que a pessoa escolha quem será o seu curador, por
identificar aquele que melhor cuidará dela e zelará pela boa administração do seu patrimônio. Ora,
ao se aplicar à curatela os dispositivos da tutela, como previsto pelo art. 1.774, do Código Civil, e,
se na tutela é possível que os pais nomeiem um tutor para o filho, por serem eles os que melhor
conhecem as necessidades da criança ou do adolescente, por que não reconhecer ao próprio
indivíduo a possibilidade de nomear alguém para assumir o encargo de seu curador, no caso de
eventual e futura incapacidade? Ou então, qual é o problema de uma pessoa apontar quem ela não
gostaria que fosse seu curador, por alguma questão de ordem objetiva ou subjetiva, devendo o juiz
observar todas essas opções?
Essa hipótese encontra previsão legislativa no direito italiano, por meio do instituto da
amministrazione di sostegno. A partir da Lei nº 6, de 9 de janeiro de 2004, que inseriu o instituto no
sistema legal, visando proteger, com a menor limitação possível da capacidade de agir, a pessoa
privada, total ou parcialmente, de autonomia, na execução das tarefas da vida quotidiana, passou-se
a admitir, de acordo com a nova redação do art. 408, do Código Civil italiano, que o administrador
seja designado pelo próprio interessado, em previsão de sua eventual incapacidade futura,
registrando a opção em escritura privada autenticada ou documento público.
Na Espanha, a Lei n. 41, de 18 de novembro de 2003, que trata da proteção patrimonial das
pessoas com capacidade diminuída, criou também mecanismos alternativos para a proteção dos
interesses da pessoa humana, por meio da consagração, no texto do Código Civil, da autotutela e do
mandato preventivo. De acordo com o art. 223, do Código Civil espanhol, qualquer pessoa com
capacidade de fato suficiente, em previsão de ser incapacitada judicialmente no futuro, poderá em
documento público adotar qualquer disposição relativa à sua própria pessoa ou aos seus bens,
incluída a designação de tutor. Assim, por autotutela entende-se o negócio jurídico por meio do
qual uma pessoa capaz de fato designa seu próprio tutor, inclusive, fixando-lhe o alcance dos
poderes representativos, que poderão ser exercidos apenas em razão de eventual e futura
incapacidade do outorgante. As disposições do autotutelado vinculam o juiz sempre que não violem
alguma norma de ius cogens e que não sejam estimadas contrárias ao benefício do incapacitado,
pois a vontade de quem organiza sua própria tutela merece o maior respeito e proteção por parte da
autoridade judicial.152

151
FERRANDO, Gilda. Il principio di gratuita biotecnologie e atti di disposizione del corpo. In BONELL, Joachin;
CASTRONOVO, Carlo; DI MAJO, Adolfo; MAZZAMUTO, Salvatore (a cura di). Europa e diritto privato. Milano:
Giuffrè, 2002, p. 772.
152
LEOSENGUI GUILLOT, Rosa Adela. La autotutela como mecanismo de autoprotección de las personas mayores.
In LASARTE ÁLVAREZ, Carlos (dir.). La protección de las personas mayores. Madrid: Tecnos, 2007, p. 158.

43
O legislador espanhol procedeu, ainda, alteração na disciplina codificada do contrato de
mandato, permitindo que esta espécie de negócio jurídico seja usada para promover a tutela de
interesses patrimoniais e existenciais, em caso de superveniente incapacidade do mandante. De
acordo com o art. 1.732, do Código Civil, o contrato de mandato não mais será automaticamente
extinto em razão da superveniência da incapacidade do mandante, desde que este tenha previsto a
hipótese ao tempo da celebração. Mais do que isso, admite-se a celebração de contrato de mandato
sob condição suspensiva de incapacidade do mandante. Criou-se a figura do mandato preventivo ou
apoderamiento.153
Parece-nos que a indicação de curador para prática de atos jurídicos patrimoniais e
existenciais, por manifestação de vontade do indivíduo que cogita a possibilidade de ser acometido
por futura incapacidade, não resta vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ao contrário,
permitida.
O art. 1.780, do Código Civil, que trata da possibilidade de instituição de curatela, sem
prévia interdição, por solicitação do próprio enfermo ou portador de deficiência física, é um claro
sinal de que indivíduo pode – rectius, deve – ser atuante nas escolhas de sua vida, inclusive
projetando-as para o futuro. Na hipótese, é flagrante a finalidade de transferência de poderes de
representação, em razão da dificuldade de a pessoa com higidez mental exercer a contento
atividades negociais.
Orlando Gomes assinala que “o poder exclusivo atribuído a todo sujeito de direito de
regular seus próprios interesses é princípio básico da ordem jurídica, que, todavia, comporta
justificadas exceções. Permitida está a intervenção em negócios jurídicos alheios, mediante
cooperação jurídica, realizada, em princípio, por meio da representação”, cuja essência “reside na
atuação em nome de outro, por necessidade ou conveniência”.154
Não podemos deixar de notar que a representação, enquanto técnica de atuação em nome
de outro, é tratada de maneira autônoma pela atual sistemática legal, razão pela qual parece não ser
necessário submetê-la, sem restrições, ao regulamento do contrato de mandato, principalmente no
que diz respeito à sua extinção. “Em se tratando de representação voluntária, a outorga do poder de
representação configura (não uma espécie contratual, mas) manifestação de vontade unilateral
daquele que outorga esse poder, como ocorre, por exemplo, no negócio jurídico de procuração. O

153
BERROCAL LANZAROT, Ana Isabel. El «apoderamiento o mandato preventivo» como instrumento de protección
ante una eventual y futura pérdida de capacidad. In LASARTE ÁLVAREZ, Carlos (dir.). La protección de las personas
mayores. Madrid: Tecnos, 2007, p. 197-215
154
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 435.

44
mandato, ao contrário, origina-se necessariamente da concorrência de vontades das partes, sendo
negócio jurídico bilateral em sua formação, o que lhe dá natureza contratual”.155
De acordo com art. 115, do Código Civil, os poderes de representação podem ser
conferidos por lei ou por vontade do interessado. A representação diz-se voluntária quando “deriva
da vontade do representado, como expressão da autonomia privada”.156 É instituída a partir de uma
declaração de vontade unilateral, não dependendo a sua validade jurídica da concordância do
representante.
O art. 116, do Código Civil, assegura a vinculação da atuação do representante em relação
à esfera jurídica do representado, desde que exercida nos limites dos poderes concedidos. Ademais,
é admissível a representação voluntária no exercício de atos existenciais, tendo em vista não estar o
expediente condicionado expressamente apenas às situações patrimoniais. Por apresentar-se como
uma técnica de substituição da manifestação de vontade, não obstante a atuação seja em nome de
outrem, é adequada para as finalidades ora propostas.
Logo, caso uma pessoa seja acometida por incapacidade e, a seguir, submeta-se a
interdição, sua declaração antecipada de vontade relativa à designação de curador em previsão de
sua eventual incapacitação futura, deve vincular o juiz, sendo prioritária em relação aos integrantes
da lista prevista pelo art. 1.775, do Código Civil. Isso deve ocorrer por analogia à tutela, cuja
normativa estabelece o caráter prioritária da tutela testamentária em relação à tutela legítima, assim
como à tutela dativa (art. 1.729, art. 1.731, art. 1732, CC). Como já mencionado, ninguém melhor
do que a própria pessoa para escolher quem, de acordo com as próprias convicções, pode cuidar
dela e respectivo patrimônio.
Exatamente por ser a função da curatela o cuidado com a pessoa e seus bens, além de não
existir qualquer espécie de restrição legal expressa, a representação pode envolver situações
jurídicas existenciais e patrimoniais, de acordo com a conveniência do representado. Também não
se encontra obstáculo para que a própria pessoa determine a forma de administração do seu
patrimônio, já que disposições patrimoniais futuras são válidas, conforme se pode constatar pela
ratio que motiva a existência do testamento.
Outra situação possível refere-se aos tratamentos médicos e cirúrgicos que a pessoa aceita
ou não receber, no caso de se tornar incapaz, já que não estará apta para prestar consentimento livre
e esclarecido. Por exemplo, atualmente, discute-se a legitimidade da renuncia de transfusão
sanguínea por motivos ligados à convicção religiosa das testemunhas de jeová. Em primeiro lugar, a
situação se insere na concorrência de direitos fundamentais de mesmo nível hierárquico,
contrapostos no caso concreto – vida versus liberdade religiosa. Como afirmamos, questões de

155
TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 10, p. 2.
156
TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 10, p. 5.

45
maior intimidade, cabem apenas à própria pessoa, que deverá decidir quais bens ou valores são
prioritários no projeto de felicidade que elegeu para si, razão pela qual não é possível eleger um
padrão de conduta a ser imposto a todos indiscriminadamente. Em segundo lugar, a legitimidade
dessas escolhas, antes de verificada a partir dos valores e ideais vivenciados pela pessoa, deve estar
fundamentada em um processo de deliberação racional, no qual o indivíduo, contando com a
informação necessária sobre o seu estado de saúde, entende o significado da doença, das opções de
tratamento, das conseqüências que podem advir da adoção de cada possibilidade terapêutica,
inclusive do rechaço de tratamento. A pessoa deve compreender o sentido e o alcance de sua
decisão, ponderando os riscos e benefícios envolvidos em relação ao seu projeto de felicidade. Se
for o caso de renúncia à vida em favor da liberdade religiosa, é essa a escolha que deve
prevalecer.157

157
A jurisprudência ainda tem decidido pela prevalência do direito à vida, em detrimento da liberdade religiosa, por
uma falsa idéia de que a vida seria um bem que suplantaria qualquer outro. Por exemplo, consulte os seguintes julgados:
“CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. Não cabe ao Poder Judiciário, no
sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar tratamento médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos
excepcionalíssimos ou quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do
médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, e de
seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e
ao hospital é demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja
divergências quanto ao melhor tratamento. O judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da
atividade hospitalar. Se transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica
(não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a
vontade das testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida. Caso concreto em que não se
verificava tal urgência. O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião e falácia
argumentar com os que morrem pela liberdade pois, aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que
morto possa ser livre ou lutar por sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás norteiam a carta das
nações unidas, que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas, sob pena de se homologarem as
maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e
a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-la” (TJRS, Apelação Cível nº 595000373,
Relator Desembargador Sérgio Gischkow Pereira, julgado em 28/03/1995); “INDENIZATÓRIA. REPARAÇÃO DE
DANOS. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação. Convicções
religiosas que não podem prevalecer perante bem maior tutelado pela Constituição Federal que é a vida. Conduta dos
médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e da ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões
sangüíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos. Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber
transfusão sangüínea quando da internação da autora. Ressarcimento, por um lado, das despesas efetuadas com exames
médicos, entre outras, que não merece acolhida, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante” (TJSP,
Apelação Cível nº 123.430-4, Relator Desembargador Flávio Pinheiro, julgado em 07/05/2002); “TESTEMUNHAS DE
JEOVÁ. Necessidade de transfusão de sangue, sob pena de risco de morte, segundo constatação do médico que atende
paciente. Recusa dos familiares com apoio na liberdade de crença. Direito à vida que se sobrepõe aos demais direitos.
Sentença autorizando a terapêutica recusada” (TJSP, Apelação Cível nº 132.720-4, Relator Desembargador Boris
Kauffmann, julgado em 26/06/2003); “AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. Hospital que solicita autorização judicial
para realizar transfusão de sangue em paciente que se encontra na UTI, com risco de morte, e que se recusa a autorizá-la
por motivos religiosos. Liminar concedida porque a Constituição preserva, antes de tudo, como bem primeiro,
inviolável e preponderante, a vida dos cidadãos” (TJSP, Apelação Cível nº 307.693-4/4, Relator Desembargador Maia
da Cunha, julgado em 22/10/2003); “TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA À TRANSFUSÃO DE SANGUE.
RISCO DE VIDA. Prevalência da proteção a esta sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a
agravante, mas seus familiares que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis pelo tratamento
da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não realização” (TJRJ, Agravo de
Instrumento nº 2004.002.13229, Relator Desembargador Carlos Eduardo da Fonseca Passos, julgado em 05/10/2004),
com voto vencido: “CONSTITUCIONAL. CIVIL. TRANSFUSÃO DE SANGUE NÃO AUTORIZADA. DIREITO À
INTIMIDADE E PRIVACIDADE. MANIFESTAÇÃO EXPRESSA DE RECUSA À TERAPIA TRANSFUSIONAL.
Seja, ou não, por motivo religioso a vontade do paciente deve ser respeitada porque não há conflito real entre o direito à

46
Essa questão é de grande relevância, pois se baseia no conceito contemporâneo de saúde,
que a enuncia como completo estado de bem-estar físico, psíquico e social, para além da simples
ausência de enfermidade. Dessa forma, a instância mais bem preparada para definir o referido
estado de qualidade de vida é a própria pessoa, não existindo um padrão universal de bem-estar;

autodeterminação a tratamento médico e o direito à vida. Todos os especialistas brasileiros e estrangeiros concordam
com a afirmativa que a transfusão sanguínea não é procedimento isento de risco de contaminação mortal do paciente,
seja por vírus, seja por infecção bacteriana. Viola a dignidade da pessoa humana obrigar o paciente a receber transfusão
sanguínea contra sua vontade, especialmente se existe tratamento alternativo e não há prova cabal de risco à vida do
mesmo. Exegese do art. 15, do Código Civil, que determina que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com
risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica” (TJRJ, Agravo de Instrumento nº 2004.002.13229,
Declaração de Voto Vencido, Desembargador Marco Antônio Ibrahim, julgado em 05/10/2004). Com estes exemplos,
pode-se vislumbrar a complexidade dos problemas envolvendo o direito de recusa a tratamento médico, que atinge
diretamente variados aspectos da individualidade da pessoa humana, como a vida, a integridade psicofísica, a igualdade
e a liberdade em todas as suas formas de manifestação. Por conseguinte, é importante mencionar que a tutela da
dignidade da pessoa humana parte da integralidade do ser humano, que deve ser tomado a um só tempo como ente
biológico, psicológico, cultural e social, assim tornando-se evidente a impossibilidade de uma hierarquização prévia e
abstrata das diversas faces que compõem a personalidade. Enquanto poder atribuído pelo ordenamento a uma pessoa
para produzir efeitos jurídicos específicos a partir de comportamentos livremente assumidos, a autonomia privada
apresenta-se, no contexto democrático, como instrumento fundamental para concretização do livre desenvolvimento da
personalidade, construído em face do confronto e da coordenação dos diversos bens e interesses que compõem a esfera
existencial do ser humano. Afinal, de que valeria enunciar a exaltação da dignidade da pessoa humana, se o sujeito de
direito não pudesse, com liberdade e responsabilidade, no jogo da interação social, determinar o seu próprio destino, o
seu modo de vida? Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber observam que “alegar que a liberdade de religião deve ser
sacrificada em prol do direito indisponível à vida é desconhecer que também a liberdade de religião é aspecto
fundamental e igualmente indisponível da personalidade. E se dela não pode dispor o paciente, menos ainda o médico.
A personalidade é um todo complexo do qual fazem parte a vida e a liberdade de culto, não podendo o médico,
abstratamente e de acordo com a sua cultura, abrir mão de uma garantia em favor da outra. Só o paciente pode, nestes
casos, avaliar que aspecto é mais fundamental para sua personalidade” (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson.
Minorias no direito civil brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 3, n. 10, 2002, p. 144). E, não
sem razão, João Baptista Villela adverte que “médicos e juízes que impõe contra a vontade do paciente estão-se
declarando incapazes de perceber pautas de valores em que a preservação da vida não constitui bem supremo. E
revelando-se, eles próprios, nessa mesma medida, mal preparados para o exercício da medicina e do direito”
(VILLELA, João Baptista. O novo Código Civil Brasileiro e o direito à recusa de tratamento médico. Rivista Roma e
América. Modena, n. 16, 2003, p. 63). Felizmente, em recente decisão, o Tribunal Regional Federal, da Quarta Região,
afirmou a necessidade de se respeitar o direito à autodeterminação do paciente: “EMBARGOS INFRINGENTES.
ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO ONCOLÓGICO.
LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. MEDICAMENTO DE EFICÁCIA NÃO-COMPROVADA.
SUBSTITUIÇÃO DE TRANSFUSÃO SANGÜINEA. 1. Em razão da demora da medicação requerida em surtir efeito
como alternativa à transfusão de sangue, não se inibe o risco na fase aguda de comprometimento medular, nem se afasta
a necessidade de transfusão sangüínea, não sendo recomendável a utilização de medicamento do qual a eficácia não está
comprovada, adotada somente como terapêutica alternativa, quando há alguma restrição clínica ao uso de
hemoderivados. 2. Não cabe ao Poder Judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar tratamentos
médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e quando envolvidos os interesses de menores. 3. A
pretensão merece amparo no que pertine ao fornecimento do medicamento eritropoetina, o qual, em que pese não afaste
a necessidade de transfusão de sangue na fase aguda da anemia, pode minimizar a necessidade do tratamento com
hemoderivados, sendo aplicável como terapêutica coadjuvante e alternativa, com eficácia comprovada nesses casos
(TRF, Quarta Região, Embargos Infringentes em Apelação Cível nº 2003.71.02.000155-6/RS, Relator Desembargador
Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, julgado em 13/03/2008). Assim também se pronunciou o Tribunal de Justiça de
Minas Gerais: “PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA.
CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO
DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE
CRENÇA. No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de
consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja
judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente
quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. Hipótese na
qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar” (TJMG,
Agravo de Instrumento nº 1.0701.07.191519-6/001, Relator Desembargador Alberto Vilas Boas, julgado em
14/08/2007).

47
envolve a percepção que cada um tem de si, além dos aspectos interiores da vida, como
compreendidos pelo sujeito na sua experiência. Por isso, disposições futuras sobre a saúde
delimitam o padrão de bem-estar do próprio indivíduo e, principalmente, a possibilidade do controle
futuro sobre o corpo, hipótese perfeitamente compreendida no âmbito de tutela do direito
fundamental à saúde, que tem caráter prestacional e individual, nesse último aspecto, devendo se
entendido como direito de liberdade. “Assim como devemos respeitar os desejos anteriores do
morto, respeitamos os desejos autônomos previamente expressos da pessoa que está atualmente
incapaz em razão de nosso respeito pela autonomia da pessoa que tomou a decisão, assim como de
nosso interesse em assegurar, antes de nos tornarmos incapazes, o controle sobre nossas vidas”.158
Sabe-se que a saúde é salvaguardada por direito fundamental e, por essa razão, não podem
ser impostos tratamentos que violem os limites impostos pela pessoa enferma, devendo-se respeito
às suas convicções, pois o governo da vida deve realizar-se a partir da livre decisão do interessado.
Trata-se de uma decisão atrelada à vida privada, à construção da privacidade de cada indivíduo, por
ser situação que afeta sua liberdade e seu destino.
Quanto aos requisitos para a elaboração da declaração, deve-se atender aos ditames do art.
104, do Código Civil.159 O sujeito deve ser capaz de querer e entender, ou seja, deve ter
discernimento e ser capaz de compreender a globalidade da decisão que está tomando, que apenas
produzirá efeitos perante terceiros a partir do implemento da condição suspensiva. O objeto é
constituído por declarações que podem abranger aspectos existenciais ou patrimoniais, além da
escolha do curador, conforme já abordado. Não há exigência legal quanto à forma, mas, por medida
de segurança, é recomendado que a declaração seja tomada por escrito, preferencialmente por meio
de escritura pública. Como o escopo é assegurar que a declaração produza os efeitos pretendidos
pelo declarante, quanto maior segurança em relação à sua higidez mental e à sua livre manifestação
de vontade, aferidas no momento de elaboração do documento, menores serão as chances de
invalidá-lo, o que justifica a fé pública do tabelião.
Diante das reflexões ora postas, entendemos que as declarações antecipadas de vontade são
cabíveis no ordenamento brasileiro, por terem a função de assegurar e promover a autodeterminação
da pessoa humana em relação às escolhas referentes à própria vida. É uma forma de se efetivar, de
maneira bastante singular, a idéia de dignidade humana, construída pelo declarante durante sua
vida, o que nos parece legítimo em uma sociedade democrática e pluralista. A validação da
autonomia exercida no passado, mas direcionada ao futuro, é uma exigência que decorre da
coerência do sistema legal.

158
BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002, p. 151.
159
A propósito, cfr. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Procurador para cuidados
de saúde do idoso. In PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (org.). Cuidado e vulnerabilidade. São
Paulo: Atlas, 2009, p. 13-16.

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