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Artigo

A Guerra Civil na França: Marx Antiestatista?

The Civil War in France, Marx anti-statist?

La Guerra Civil en Francia, Marx antiestatista?

1
Felipe Coprrêa ,

1
Filiação institucional. Mestre pelo Program de Pós-Graduação em Mudança Sociail e Participação Política da Universidade de
São Paulo e doutoranto pelo Program de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo,
SP, Brasil.
Correspondência: E-mail: felipecorreapedro@gmail.com

Resumo O artigo analisa A Guerra Civil na França, de Marx, com o objetivo de


responder duas questões fundamentais: Essa obra possui elementos
político-doutrinários capazes de subsidiar uma teoria da revolução e
uma estratégia política? Em caso positivo, possuiriam esses elementos
uma base antiestatista? As questões são motivadas pelas distintas
interpretações dessa obra marxiana, as quais são apresentadas e
brevemente discutidas. A pesquisa é teórica e trabalha com a hipótese
de que, em A Guerra Civil na França, Marx desenvolveu uma teoria da
revolução e uma estratégia política que sustentaram não somente uma
crítica radical e libertária aos aspectos dominadores do Estado, mas
também uma proposta autogestionária de que ele fosse suprimido por
meio de um processo revolucionário da classe trabalhadora. Por meio
de uma análise da produção marxiana, em especial de A Guerra Civil
na França, que constitui o foco central, busca-se verificar em que
medida essa hipótese é correta. Além disso, utilizam-se escritos de
Marx anteriores e posteriores a esse, assim como textos de interpretes
e comentadores, visando subsidiar os resultados em questão. A
hipótese é refutada. Conclui-se não haver bases seguras para afirmar
que A Guerra Civil na França possui elementos político-doutrinários
capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estratégia política.
Afirma-se, ainda, não ser possível transformar, automaticamente, a
análise de Marx acerca daquilo que foi o fenômeno da Comuna de
Paris, naquilo que deveria ser uma teoria da revolução ou uma
estratégia política recomendada para o movimento internacional dos
trabalhadores. Posições ulteriores, em especial no contexto da cisão da
Associação Internacional dos Trabalhadores em 1872, tendem a
reforçar o argumento de que há certa continuidade entre as posições
de Marx posteriores à Comuna e àquelas desenvolvidas no contexto de
1848, que sustentam um projeto estatista de transformação social.

Palavras-chaves: Karl Marx. A Guerra Civil na França. Teoria da


revolução. Estratégia política. Antiestatismo.

Abstract The paper analyzes Marx’s The Civil War in France, aiming to answer
two fundamental questions: Does this work has political and doctrinal
elements capable of sustaining a theory of revolution and a political
strategy? If so, do these elements possess an anti-statist basis? The
questions are motivated by the different interpretations of this Marxian
work, which are briefly presented and discussed. The research is
theoretical and develops the hypothesis that, in The Civil War in France,
Marx developed a theory of revolution and a political strategy that
contained not only a radical and libertarian critique of the dominant
aspects of the state, but also a self-management proposal that it was
suppressed by means of a working class revolution. Through an
analysis of Marx’s production, particularly of The Civil War in France,
which is the central focus, we seek to ascertain in which extent this
hypothesis is correct. Furthermore, we use Marx’s writings before and
after this, as well as texts of interpreters and commentators, in order to
support the results in question. The hypothesis is refuted. We conclude
that there is no sound basis for claiming that The Civil War in France
has political and doctrinal elements capable of supporting a theory of
revolution and a political strategy. We also affirm that it is not possible to
transform, automatically, Marx’s analysis about what was the
phenomenon of the Paris Commune, in what should be a theory of
revolution or a suggested political strategy for the international labor
movement. Subsequent positions, particularly in the context of the
breakup of the International Workingmen's Association in 1872, tend to
reinforce the argument that there is some continuity between the
positions of Marx after the Commune and those developed in the
context of 1848, supporting a statist project of social transformation.

Keywords: Karl Marx. The Civil War in France. Theory of revolution.


Political strategy. Antistatism.

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Resumen El artículo analiza La Guerra Civil en Francia, de Marx, con el objetivo
de responder a dos preguntas fundamentales: ¿Esta obra tiene
elementos políticos y doctrinales capaces de sostener una teoría de la
revolución y de una estrategia política? Si es así, estos elementos
poseen una base antiestatista? Las preguntas están motivadas por las
diferentes interpretaciones de esta obra de Marx, que se presentan y
discuten brevemente. La investigación es teórica y se desarrolla con la
hipótesis de que, en La Guerra Civil en Francia, Marx desarrolló una
teoría de la revolución y una estrategia política que apoyaron no sólo en
una crítica radical y libertaria de los aspectos dominadores del Estado,
sino también en una propuesta autogestionaria de que él fuera
suprimido por medio de un proceso revolucionario de la clase obrera. A
través de un análisis de la producción de Marx, en especial de La
Guerra Civil en Francia, que es el foco central, se busca determinar en
qué medida esta hipótesis es correcta. Además, son utilizados escritos
de Marx anteriores y posteriores a este, así como los textos de
intérpretes y comentadores, con el fin de apoyar a los resultados en
cuestión. La hipótesis es refutada. Se concluye que no existe una base
sólida para afirmar que La Guerra Civil en Francia cuenta con
elementos políticos y doctrinales capaces de sostener una teoría de la
revolución y una estrategia política. Afirmase que no se puede
transformar automáticamente el análisis de Marx acerca de lo que fue
el fenómeno de la Comuna de París, en lo que debería ser una teoría
de la revolución o de una estrategia de política a ser recomendada al
movimiento obrero internacional. Posiciones posteriores, sobre todo en
el contexto de la disolución de la Asociación Internacional de los
Trabajadores en 1872, tienden a reforzar el argumento de que hay una
cierta continuidad entre las posiciones de Marx después de la Comuna
y las desarrolladas en el contexto de 1848, que sostienen un proyecto
estatista de transformación social.

Palabras Clave: Karl Marx. La Guerra Civil en Francia. Teoría de la


revolución. Estrategia política. Antiestatismo.

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Marx, Teoria da Revolução e Estratégia Política

Sabe-se que a obra de Karl Marx, se analisada em sua totalidade, possui


ênfase em algumas questões, abordadas mais profundamente que outras. Dentre
elas, encontra-se a teoria do modo de produção capitalista, presente na obra-
prima marxiana, O Capital. Há outras que, entretanto, foram menos
desenvolvidas e que não tiveram prioridade por parte de Marx; tal é o caso das
questões que envolvem elementos político-doutrinários, capazes de subsidiar
uma teoria da revolução e uma estratégia política com ela condizente.
Certamente há, na produção de Marx, reflexões que permitem certa articulação
nesse sentido; no entanto, parece inegável que a elas não foi concedida a
mesma prioridade que outras. Perry Anderson (1976: 11-12), em concordância,
coloca que Marx não “deixou atrás de si uma teoria (...) da estratégia e da tática
da luta socialista revolucionária por um partido da classe operária que
derrubasse esse Estado”; no máximo, “limitou-se a transmitir algumas
antecipações enigmáticas nos anos quarenta e alguns lacônicos princípios trinta
anos mais tarde”.

Em termos históricos, essas antecipações e princípios, não exaustivamente


desenvolvidos, possibilitaram distintas interpretações por parte de marxistas
que, nos termos de Ricardo Musse (2000: 82), buscaram “complementar o legado
de Marx em conexão com uma interpretação própria de sua obra”. Nessa busca,
coforme aponta este autor, as contribuições e interpretações de Friedrich Engels
foram relevantes e não deixaram de influenciar os rumos da interpretação da
obra marxiana como um todo.

Para além da clássica disputa entre o marxismo da Segunda e da Terceira


Internacional, que distinguiu as proposições da socialdemocracia alemã e do
bolchevismo para a conquista do socialismo, há outra questão importante, que
diz respeito ao “estatismo” de Marx.

Marx Estatista?

Parece evidente que, em toda sua obra, Marx elabora uma crítica do
Estado moderno e que, a partir de A Ideologia Alemã, o relaciona à dominação de
classes capitalista. Se já em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Marx destaca
a separação-oposição entre sociedade civil e Estado e critica a dominação da
burocracia, as posições de A Ideologia Alemã e do Manifesto Comunista
relacionam diretamente o Estado às classes dominantes; o Estado é a forma que
uma classe dominante faz valer seus próprios interesses, o Estado administra os
negócios da burguesia. Mesmo em outros momentos, como em O 18 Brumário de
Luís Bonaparte ou mesmo em O Capital, não há dúvidas de que o Estado, em sua
forma moderna, capitalista, burguesa constitui objeto de duras críticas. Mesmo
que de maneira menos constante, também se encontram evidências de que,

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para Marx, em uma sociedade comunista, o Estado, o poder político, não mais
existiria.

A classe laboriosa substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a


antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu
antagonismo e não haverá mais poder político propriamente dito, porque o
poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade
civil. (Marx, 2004: 215)

A questão sobre o estatismo de Marx, portanto, não deve ser colocada em


relação às suas críticas do Estado moderno e nem às suas proposições de
sociedade futura. A presença ou não desse estatismo deve ser buscada em seus
elementos de teoria da revolução e estratégia política. Poder-se-ia, por isso,
colocar a indagação de maneira mais pertinente, nos seguintes termos: Qual é o
lugar que o Estado ocupa na teoria da revolução e na estratégia política
marxiana? Possui a conquista do Estado presença incontornável nesse esquema
teórico-estratégico? O estatismo define-se como a sustentação teórico-
estratégica da necessidade de conquista do Estado para o estabelecimento de
uma sociedade comunista, em que o capitalismo e as classes sociais não mais
existiriam.

Em geral, a resposta do marxismo clássico a essas perguntas remete-se à


afirmação de Marx, no Manifesto Comunista, de que “o objetivo mais próximo dos
comunistas é o mesmo de todos os demais partidos proletários: formação do
proletariado em classe, derrubada da dominação burguesa, conquista do poder
político pelo proletariado”. (Marx e Engels, 2010: 76) Nesse texto, os conceitos
de poder político e Estado aparecem imbricados e oferecem alguma margem
para compreensões distintas. O poder político é definido como “poder organizado
de uma classe para opressão de outra” e o Estado – em sentido comunista, pós-
revolucionário – como “proletariado organizado como classe dominante”. A
conquista do poder político poderia, assim, ser compreendida como conquista do
Estado. E as próprias reivindicações da Liga dos Comunistas, em seus pontos 5, 6
e 7 – quando reivindica a “centralização do crédito nas mãos do Estado”, a
“centralização nas mãos do Estado de todos os meios de transporte” e a
“multiplicação das empresas fabris pertencentes ao Estado e dos instrumentos
de produção” (Marx e Engels, 2010: 87-89) – parecem contribuir com a noção de
que, de alguma maneira, o Estado deveria intermediar a realização plena da
sociedade comunista. Ainda assim, historicamente houve duas compreensões
distintas para essa noção de “conquista do poder político pelo proletariado”.

Por um lado, a interpretação do último Engels foi, certamente, a


hegemônica entre os marxistas.

O proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em


propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da
burguesia. Com esse ato redime os meios de produção da condição de
capital, que tinham até então, e dá a seu caráter social plena liberdade para

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impor-se. (...) O desenvolvimento da produção transforma num anacronismo
a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a
anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do
Estado. (Engels, 2008: 126)

O Estado é assim compreendido por uma chave instrumentalista, que o


considera um instrumento manipulável; em termos teóricos e estratégicos,
sustenta-se que o Estado seja conquistado pelos trabalhadores, por meio de
revolução violenta e/ou eleições, e, como Estado socialista, utilizado como
alavanca suprimir as relações de propriedade, o que implicaria, em algum tempo,
o próprio desaparecimento do Estado. Em linhas gerais, esses elementos teóricos
e estratégicos – estatistas, de acordo com a definição previamente esposada –
subsidiaram a compreensão dos maiores nomes do marxismo clássico: K.
Kautsky, V. Lênin, E. Bernstein, R. Luxemburgo, L. Trotsky, J. Stálin e Mao Tsé-
Tung.

K. Kautsky (2004) afirmou que o clímax do movimento do proletariado se


dá “na grande batalha final pela conquista do poder político”; ou seja, na
“utilização do poder do Estado para auxiliar na batalha contra o capital” e
“transformar a propriedade capitalista dos meios de produção em propriedade
social”. Para Lênin (2000), “quando o Estado for um Estado proletário, quando
ele for um instrumento de violência exercido pelo proletariado contra a
burguesia, devemos ser completamente e sem reservas favoráveis a um forte
poder de Estado e ao centralismo.” Segundo Bernstein (1997: 94), “a prática
marxista é predominantemente política, dirigida no sentido da conquista do
poder político e seus atributos”. Rosa Luxemburgo (1999, p. 105) considera que a
“aspiração do proletariado a apossar-se do Estado” é a finalidade socialista e que
opor-se a ela é opor-se “ao próprio movimento socialista”. L. Trotsky (2007, p.
104) sustenta que “à classe revolucionária compete (...) a tarefa de conquistar o
aparelho estatal”. Para J. Stálin (2006), “a última etapa da existência do Estado
será o período da revolução socialista, em que o proletariado conquistará o poder
do Estado e criará seu próprio governo (ditadura) para a destruição definitiva da
burguesia”. Mao Tse-Tung (2004) sustentou a necessidade de um “poder político
vermelho” para que se processe a revolução.

Houve, por outro lado, uma interpretação minoritária, heterodoxa,


elaborada por marxistas como A. Pannekoek, K. Korsch e P. Mattick, que
enfatizou a necessidade de organização de conselhos operários, os quais
deveriam articular os trabalhadores fortalecendo a unidade de classe e
permitindo não somente a supressão do capitalismo, mas também do Estado; a
conquista do Estado não constituiria parte do programa socialista.

Pannekoek (2008) enfatizou que com a “unidade de ação de massas, eles


[os trabalhadores] começarão aumentar seu poder de classe contra o poder de
Estado”. Para Korsch (2009), “o objetivo final propriamente dito da luta de classe
proletária não é um estado de tipo ‘democrático’, de tipo ‘comuna’, dos
‘conselhos’ ou de qualquer outro tipo, mas a sociedade comunista sem classes

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nem Estado, tendo por forma geral não já um poder político qualquer, mas
apenas uma ‘associação onde o livre desenvolvimento de cada um é condição do
livre desenvolvimento de todos’.” Mattick (1976) afirmou que a “primeira
condição da produção e distribuição comunistas é que não exista nenhum
aparato estatal ao lado ou acima dos conselhos e que a função ‘estatal’
(supressão das tendências contrarrevolucionárias) seja exercida pelos próprios
operários, organizados em seus Conselhos”. Continua, dizendo que “qualquer
partido que, enquanto uma fração dos trabalhadores, aspire ao poder estatal ou
se coloque como um aparato estatal depois da tomada do poder, sem dúvidas
tentará controlar a produção e distribuição, e reproduzir este controle para
manter as posições obtidas.”

Para outros autores, essa posição antiestatista estaria presente na obra de


Marx, em especial em A Guerra Civil na França – escrito em que analisa a
Comuna de Paris, de 18711 – e poderia subsidiar a noção de que de Marx foi um
antiestatista, ou seja, desenvolveu uma teoria da revolução e uma estratégia
política que sustentaram não somente uma crítica radical e libertária aos
aspectos dominadores do Estado, mas também uma proposta autogestionária de
que ele fosse suprimido por meio de um processo revolucionário da classe
trabalhadora. Nesse sentido, Alain Guillerm e Yvon Bourdet (1976: 66) afirmam
que “Marx, após a Comuna, abandonou totalmente as opiniões estatistas que
esposara eventualmente por via de uma perspectiva fundamental
‘autogestionária’”. A Guerra Civil na França constituiria, assim, um marco de
passagem, conforme aponta Nildo Viana (2011: 66): “A análise de Marx sobre a
Comuna serviu de ponto de partida para ele repensar o processo revolucionário e
assumir uma posição definitivamente autogestionária”, ou seja, antiestatista e
libertária. Para outros autores, esse texto de Marx enunciaria, mais
propriamente, um projeto anarquista, como sustentam Maximilien Rubel e Louis
Janover (2010: 57; 61): A Guerra Civil na França, para eles constitui um
“verdadeiro manifesto anarquista”, que não sustenta “uma simples transferência

1
A Comuna de Paris foi um processo insurrecional e revolucionário protagonizado pelos
trabalhadores franceses entre 18 de março e 28 de maio de 1871. Ela ocorreu no contexto da
Guerra Franco-Prussiana e incorporou um repertório da classe trabalhadora francesa, adquirido por
influência da Primeira Internacional (1864-1877), que se consolidou nas deliberações que optaram
pela abolição da divisão clássica entre os três poderes, o estabelecimento de um tipo de “poder
popular” federalista – emanado das bases trabalhadoras que se encontravam nos bairros e
articulado por uma estrutura federada de delegações políticas revogáveis – e a organização de
comissões executivas: Guerra, Finanças, Segurança Geral, Ensino, Subsistência, Justiça, Trabalho e
Trocas, Relações Exteriores e Serviços Públicos. Dentre as inúmeras realizações da Comuna, que
beneficiaram os trabalhadores, destacam-se: a substituição do exército regular pelas milícias
cidadãs, a separação entre Igreja e Estado, a abolição dos cultos religiosos, as medidas dizem
respeito ao trabalho e local de moradia (reduções de jornada, ajustes e equiparações salariais, fim
das multas, entrega de oficinas e prédios abandonados aos trabalhadores), concessão de crédito
com juros reduzidos, moratória para dívidas, devolução de itens penhorados, gratuidade das
escolas públicas, ensino laico e politécnico, reorganização jurídica, confisco de bens de raiz,
protagonismo de mulheres e artistas. Esse novo poder estabelecido pela classe trabalhadora
francesa a partir dos bairros evidenciou uma democracia socialista radicalizada, construída pelo
próprio povo, sem lugar para a burocracia. (Samis, 2011)
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de um instrumento de submissão de uma classe a outra”, mas “uma ação ‘contra
o próprio Estado’”. Numa perspectiva não tão extremada, Daniel Guérin (1979:
63) afirma que “a comunicação de 1871” pode “ser considerada um ponto de
partida” para uma tentativa de “síntese entre anarquismo e marxismo”, visto
que “A Guerra Civil na França é marxista libertária”.

Marx antiestatista em A Guerra Civil na França?

Para verificar se essas afirmações são procedentes, não há outro modo


senão recorrer a A Guerra Civil na França, buscando responder duas outras
questões: Essa obra possui elementos político-doutrinários capazes de subsidiar
uma teoria da revolução e uma estratégia política? Em caso positivo, possuiriam
esses elementos uma base antiestatista?

Parte-se da hipótese que Marx, depois da Comuna de Paris, modificou suas


posições político-doutrinárias, a qual é sustentada não apenas pelos autores
anteriormente citados, mas pelo próprio Marx e seu mais autorizado biógrafo.
Marx, depois da Comuna de Paris, considerou ser necessário, inclusive, retificar o
Manifesto Comunista: “A Comuna de Paris demonstrou, especialmente, que ‘não
basta que a classe operária se apodere da máquina estatal para fazê-la servir a
seus próprios fins’”. (Marx e Engels, 2007b, p. 72) Numa carta de 1871 a
Kugelmann, Marx (1965, pp. 262-263) afirma ainda: “Se você ver o último
capítulo do meu 18 Brumário, verá que eu declaro que o próximo esforço
revolucionário na França não será mais, como antes, de transferir a máquina
burocrático-militar de uma mão para outra, mas de destruí-la, e essa é a
condição prévia de toda verdadeira revolução popular no continente”. Para Franz
Mehring (1973: 465), A Guerra Civil na França constituiria um ponto de inflexão
na obra marxiana; suas posições “apresentavam, contudo, uma certa contradição
com as doutrinas que Marx e Engels vinham sustentando há um quarto de século
e que proclamaram no Manifesto Comunista”.

A análise em questão resume-se à terceira “Mensagem do Conselho Geral


da Associação Internacional dos Trabalhadores”, redigida após a Comuna. Como
se sabe, o texto completo de A Guerra Civil na França compreende três
mensagens do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. As
duas primeiras, intituladas simplesmente “Mensagem do Conselho Geral da
Associação Internacional dos Trabalhadores”, analisam a Guerra Franco-
Prussiana e foram escritas respectivamente entre 19 e 23 de julho de 1870 e 6 e
9 de setembro de 1870; são, portanto, anteriores à Comuna. A terceira, “A
Guerra Civil na França”, que emprestou seu título ao conjunto dos textos, foi
escrita entre abril e maio de 1871 e publicada em junho daquele mesmo ano em
inglês.

Em acordo com escritos precedentes, Marx mantém em sua análise uma


perspectiva crítica em relação ao Estado; enfatiza sua posição de favorecimento

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ao capital, sua separação da sociedade civil, a burocracia e a corrupção inerentes
à sua existência e seus aspectos coercitivos. A crítica de Marx (2008) ao Estado
aparece em distintos momentos do texto. “O poder de Estado assumia cada vez
mais o caráter do poder nacional do capital sobre o trabalho”. (p. 400) “O poder
de Estado, aparentemente voando alto acima da sociedade”. (p. 401) “Uma
vitória desta [Paris] sobre o agressor prussiano teria sido uma vitória do operário
francês sobre o capitalista francês e os seus parasitas de Estado.” (pp. 375-376,
grifos adicionados) “A Constituição Comunal teria restituído ao corpo social todas
as forças até então absorvidas pelo Estado parasita. (p. 405, grifos adicionados)
“O poder de Estado (...) era ela próprio, ao mesmo tempo, o maior escândalo
dessa sociedade e o próprio viveiro de todas as suas corrupções. A sua própria
podridão e a podridão da sociedade que ele havia salvo foram postas a nu pela
baioneta da Prússia”. (p. 401) “O caráter puramente repressivo do poder de
Estado abre caminho com um relevo cada vez mais acentuado”. (p. 400) “Os
republicanos burgueses, que (...) tomaram o poder de Estado, serviram-se dele
para os massacres de Junho”. (p. 400) A “velha organização municipal francesa
de 1791 (...) rebaixa os governos das cidades a meras rodas secundárias na
maquinaria policial do Estado prussiano”. (p. 406)

Não se pode dizer, contudo, que essa perspectiva difira significativamente


daquelas anteriormente mencionadas, que surgem ainda em suas produções de
juventude e se conformam mais nitidamente de A Ideologia Alemã em diante.

Segundo Marx (2008: 403, 413, 408), a Comuna de Paris – contrapondo o


Estado francês, no contexto da Guerra Franco Prussiana – constituiu uma forma
de “autogoverno dos produtores”, uma “tendência de um governo do povo pelo
povo”, que surgiu como resultado de um processo revolucionário protagonizado
pela classe trabalhadora que, pela primeira vez, atuou em seu próprio favor e
“tomou a direção da revolução nas suas próprias mãos”. Explicando a Comuna,
Marx retoma o manifesto dos insurgentes de 18 de março de 1871, citando um
trecho que afirma: “o proletariado (...) compreendeu que era seu dever imperioso
e seu direito absoluto tomar em mãos os seus destinos e assegurar-lhes o triunfo
conquistando o poder”. Um dos traços mais marcantes do levante communard foi
a busca dos trabalhadores parisienses tomarem seus destinos em suas próprias
mãos, ou seja: a socialização generalizada do poder, inclusive do poder
econômico.

Sim, senhores, a Comuna tencionava abolir toda essa propriedade de classe


que faz do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Ela aspirava à
expropriação dos expropriadores. Queria fazer da propriedade individual
uma realidade transformando os meios de produção, terra e capital, agora
principalmente meios de escravizar e explorar o trabalho, em meros
instrumentos de trabalho livre e associado. – Mas isto é comunismo,
comunismo “impossível”! (Marx, 2008: 407)

No campo político, as medidas implantadas pela Comuna de Paris, em seus


breves 72 dois dias de existência, enunciam a radicalidade do projeto

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communard. Conforme enunciadas por Marx, elas incluem: socialização do poder
político; fim da burocracia; servidores públicos com salários equivalentes aos dos
operários; conselheiros municipais eleitos diretamente pelo voto dos bairros;
mandatos imperativos e revogabilidade das funções públicas; fim da divisão de
poderes entre Executivo e Legislativo; eleição e revogabilidade de juízes e
magistrados; fim do exército regular e sua substituição pelo povo em armas;
polícia sem função política, revogável e servindo como instrumento da Comuna;
socialização da educação, expropriação da Igreja e fim de sua interferência nos
assuntos públicos e na educação.

Essas medidas são esposadas por Marx (2008) na terceira parte do texto.
“Não só a administração municipal, mas também toda a iniciativa até então
exercida pelo Estado foram entregues nas mãos da Comuna.” (p. 403). “As
funções públicas deixaram de ser a propriedade privada dos testas de ferro do
governo central.” (pp. 402-403) “O serviço público tinha de ser feito em troca de
salários de operários.” (p. 402) “A Comuna foi formada por conselheiros
municipais, eleitos por sufrágio universal nos vários bairros da cidade.” (p. 402)
“Sendo cada delegado revogável a qualquer momento e vinculado pelo mandat
impératif” (p. 404) “A Comuna havia de ser não um corpo parlamentar, mas
operante, executivo e legislativo ao mesmo tempo.” (p. 402) “Magistrados e
juízes haviam de ser eletivos, responsáveis e revogáveis.” (p. 403) “A supressão
do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado.” (p. 402) “A
polícia foi logo despojada dos seus atributos políticos e transformada no
instrumento da Comuna, responsável e revogável em qualquer momento.” (p.
402) “Todas as instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente.”
(p. 403) “Desmantelamento e expropriação de todas as igrejas enquanto corpos
possuidores” e “instituições de educação (...) libertas de toda a interferência de
igreja e Estado.” (p. 403)

Essa socialização do poder em distintos níveis (econômico, político, cultural


etc.) levada a cabo pela Comuna permite vinculá-la diretamente ao objetivo da
Internacional, enunciado em suas “Provisional Rules” já em 1864, as quais foram
redigidas pelo próprio Marx e preconizavam: “a emancipação dos trabalhadores
deve ser obra dos próprios trabalhadores”.

Não parece haver dúvidas que essa “forma política finalmente descoberta”
(Marx, 2008: 406) na Comuna de Paris constitui um caso de abolição do Estado,
como mecanismo de poder político separado da sociedade civil em que uma
minoria governa a maioria visando à manutenção status-quo por meio de uma
burocracia – que possui salários diferenciados, mandatos não revogáveis e nem
imperativos – com e do monopólio da violência materializado num exército
regular. Marx (2008: 405-406) notou que “essa Comuna nova (...) quebra o
moderno poder de Estado” e demonstra um “antagonismo (...) contra o poder de

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Estado”; com ela, o “poder de Estado” é “substituído”2. Nesses termos, é difícil
concordar com a interpretação que Lênin (2007: 67) dá à Comuna e ao texto de
Marx, afirmando que “não se trata de aniquilar a burocracia de uma só vez, até o
fim e por toda a parte. (...) Mas destruir sem demora a velha máquina
administrativa para começar imediatamente a construir uma nova, que permita
suprimir gradualmente a burocracia.” Não há evidências de que o projeto da
Comuna de Paris tenha enunciado a substituição do Estado capitalista, burguês,
por um novo tipo de burocracia, uma forma transitória ainda de bases estatistas,
uma forma política que ainda pudesse ser chamada de Estado.

Como apontou Marx (2008: 399), a Comuna demonstrou em sua práxis que
“a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria do Estado já
pronta e fazê-la funcionar para seus próprios fins”.3 As medidas políticas
implantadas pelos trabalhadores parisienses parecem não deixar dúvidas a
respeito disso. Entretanto, esse trecho de Marx é recorrentemente citado para
embasar a afirmação que ele teria modificado os fundamentos de sua
compreensão do Estado e, respectivamente, de sua teoria da revolução e sua
estratégia política. Deve-se apontar que esse trecho pode ser interpretado de
duas maneiras diferentes: Marx refere-se à compreensão do Estado dos
communards; Marx refere-se à sua própria compreensão do Estado.

Que os communards tenham compreendido dessa maneira o Estado


parece evidente, não somente por sua própria afirmação, já citada, de que era
seu dever “tomar em mãos os seus destinos e assegurar-lhes o triunfo
conquistando o poder”, mas também pelas medidas colocadas em prática para a
supressão do Estado. A segunda interpretação exige uma análise mais criteriosa.
Compreender que nesse trecho Marx refere-se à sua própria compreensão do
Estado implica assumir que houve uma mudança significativa em relação à sua
maneira anterior de conceber o Estado. A tese instrumentalista de A Ideologia
Alemã e do Manifesto Comunista, de que o Estado constituiria um instrumento
manipulável, utilizado pela classe economicamente dominante para impor sua
política à sociedade, seria assim diretamente colocada em xeque. Em A Ideologia
Alemã, o Estado é conceituado como “forma na qual os indivíduos de uma classe
dominante fazem valer seus interesses comuns”. (Marx e Engels, 2007a: 76) No
Manifesto Comunista, o Estado moderno é definido como “uma comissão que
administra os negócios comuns do conjunto da classe burguesa”. (Marx e Engels,
2010: 59) A interpretação mais comum dessas posições, hegemônica no
marxismo até os anos 1960, sustenta que o Estado moderno (capitalista)

2
No original: “This new Commune, which breaks [quebra, rompe, despedaça] with the modern
state power.” “Now superseded [substituído, suplantado] state power.” (Grifos, colchetes e
traduções adicionados).
3
No original: “But the working class cannot simply lay hold of [apossar, apropriar, agarrar, tomar]
the ready-made [pronta, feita] state machinery, and wield it for its own purposes.” (Grifos,
colchetes e traduções adicionados).
221
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administra os interesses da classe capitalista porque está sob o controle direto
de seus membros e, portanto, enquanto está sob o seu controle.

A noção de “poder de Estado” como “máquina de despotismo de classe”


(Marx, 2008: 400) ganharia, nessa nova concepção, o sentido de que o Estado
constitui, sob qualquer uma de suas formas e independente daqueles que
estejam em seu comando, um instrumento de dominação de classe e que,
portanto, em um processo revolucionário, ele deveria ser imediatamente abolido,
suprimido, sob pena de perpetuar a dominação de classe, ainda que com outra
configuração. Ou seja, Marx teria, com essa posição, aderido a posições
anarquistas fundamentais.

Parece um exagero, entretanto, considerar que Marx, com base nesse


trecho dúbio, tenha aderido às posições anarquistas ou mesmo realizado uma
mudança radical em sua compreensão do Estado. Não se pode distinguir, com
segurança, se nesse trecho Marx afirma a posição histórica dos communards ou
a sua própria.

O mesmo problema aparece em outros trechos, que também permitem


interpretações distintas. Quando Marx (2008: 403) afirma que “a Comuna de
Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os grandes centros
industriais da França”, que o “velho governo centralizado teria de dar lugar (...)
ao autogoverno dos produtores”, e que “estabeleceu-se claramente que a
Comuna havia de ser a forma política”, ele parece, inclusive pelos termos
originais em inglês, estar relatando a história da Comuna e a influência que ela
tinha ou poderia ter entre outros trabalhadores4. Também não parece evidente
que Marx esteja aqui recomendando aos trabalhadores franceses e de outras
localidades a estratégia de transformação revolucionária adotada pelos
communards. Isso também parece estar evidente em dois outros trechos, em
que Marx (2008: 406-407) enfatiza que a Comuna foi “essencialmente um
governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a
apropriadora, forma política finalmente descoberta, com a qual se realiza a
emancipação econômica do trabalho” e que ela “havia pois de servir como uma
alavanca para extirpar os fundamentos econômicos sobre os quais assenta a

4
No original: “The Paris Commune was, of course, to serve as a model to all the great industrial
centres of France.” “The old centralized government would in the provinces, too, have to give way
to the self-government of the producers.” “It states clearly that the Commune was to be the
political form”. (Grifos adicionados) Note-se que, se quisesse claramente recomendar o modelo da
Comuna, Marx teria utilizado outros termos, distintos dos grifados. Nos três casos, se a intenção
fosse essa, esses termos deveriam ser substituídos por outros, como “has/have” (has to serve as a
model, has to give way, has to be), “should” (should serve as a model, should give way, should be)
ou “must” (must serve as a model, must give way, must be) etc.
222
Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013
existência de classes e, por conseguinte, a dominação de classe”, especialmente
se levados em conta os termos originais em inglês5.

Tomando em conta que Marx conhecia perfeitamente o inglês e que


preferiu, conscientemente, utilizar termos que não expressam claramente uma
recomendação da estratégia communard aos trabalhadores franceses e de
outras localidades, pode-se afirmar que, muito provavelmente, ele referiu-se,
nesse texto, tão somente ao que foi o episódio histórico da Comuna6.

Compreende-se, pelos elementos analisados, não haver bases seguras


para afirmar que A Guerra Civil na França possua elementos político-doutrinários
capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estratégia política. Sem
dúvidas, esse texto possui como foco a análise conjuntural da França daquele
momento e o relato histórico da experiência da Comuna de Paris. Também não
há dúvidas que Marx o fez tomando partido claro de um dos lados nesse episódio
da luta de classes: o dos trabalhadores parisienses insurretos. E não podia ser de
outra forma, visto que as mensagens eram assinadas pelo Conselho Geral da
Internacional. Ainda assim, não se considera ser possível transformar,
automaticamente, a análise de Marx acerca daquilo que foi o fenômeno da
Comuna de Paris, naquilo que deveria ser uma teoria da revolução ou uma
estratégia política recomendada para o movimento internacional dos
trabalhadores. Desde um ponto de vista lógico, incorrer nesse procedimento
seria o mesmo que considerar fascista um historiador do fascismo; um equívoco
metodológico no mínimo grosseiro.

Considera-se, por isso, que A Guerra Civil na França deve ser tomada como
uma obra histórica de Marx, com poucos, se é que há alguns, elementos político-
doutrinários. Ela dedica-se a analisar um episódio histórico específico, a Comuna

5
No original: “It was [era, foi] essentially a working class government, the product of the struggle
of the producing against the appropriating class, the political form at last discovered under which to
work out [com a qual se realiza, sob a qual se executa] the economical emancipation of labor.”
“The Commune was therefore to serve [havia de servir, era para servir] as a lever for uprooting the
economical foundation upon which rests the existence of classes, and therefore of class rule.”
(Grifos, colchetes e traduções adicionados). Novamente, se quisesse claramente recomendar esse
modelo, Marx teria se expressado de maneira distinta. No primeiro caso, parece evidente que se
trata de uma análise do que foi a Comuna e não há evidências de qualquer recomendação de seu
modelo aos trabalhadores daquele ou de outros contextos. No segundo caso, “was to serve”
definitivamente não tem o sentido colocado de “has”, “should” ou “must”.
6
Deve-se apontar que a análise lógica anteriormente realizada acerca do discurso de Marx em A
Guerra Civil na França, a qual foi aprofundada nas três notas precedentes, constitui apenas um
elemento que reforça o argumento do texto. Ainda que a linguagem normativa não seja
constantemente utilizada por Marx, há uma diferença clara entre os trechos analisados e outros,
como por exemplo no Manifesto Comunista, quando Marx coloca, conforme tradução de Marcus
Mazzari: “o proletariado deve primeiramente conquistar o domínio político e erigir-se em classe
nacional (na edição de 1888, ‘em classe dirigente da nação’)”. (Marx, 2010, p. 84) [“das Proletariat
zunächst sich die politische Herrschaft erobern, sich zur nationalen Klasse” (1888: zur führenden
Klasse der Nation)]. O argumento do texto é, ainda, reforçado por outro elemento: as posições
concretas assumidas por Marx no seio da Internacional, que serão esposadas adiante.
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de Paris, a qual certamente possui traços antiestatistas, autogestionários,
libertários.

A recente obra de Alexandre Samis, Negras Tormentas, apresenta


argumentos bastante convincentes para entender o porquê desses traços. Samis
(2011, 150, 340) atribui esses traços a um enraizamento na classe trabalhadora
francesa das posições dos socialistas mutualistas e coletivistas: “tanto o
mutualismo quanto o coletivismo constituíam-se em formas históricas específicas
de uma mesma tradição antiautoritária e federalista presente no movimento
operário francês”. A cultura política estabelecida entre esses trabalhadores
permite compreender a determinação da posição dos internacionalistas no rumo
dos acontecimentos: “a maioria [da Comuna de Paris] ‘não era propriamente
socialista’”, mas “acabou por ser arrastada ‘pela força irresistível das coisas’”;
“restou aos jacobinos e blanquistas (...) aceitar a radicalização do processo rumo
ao socialismo”. É natural, portanto, que, esses traços se transpareçam nas
análises do fenômeno, ainda mais quando abordado por autores simpáticos a ele,
como foi o caso de Marx.

Posições Ulteriores

Finalmente, como outro elemento que contribui com o argumento


sustentado, considera-se relevante apontar que as posições teórico-estratégicas
de Marx nos anos posteriores à Comuna, em especial no que tange à sua
intervenção na Associação Internacional dos Trabalhadores. Conforme enfatiza
James Guillaume (1985), o conflito entre federalistas e centralistas, que pautou
toda a existência da associação, em geral em detrimento dos segundos –
primeiro em favor dos mutualistas e depois dos coletivistas, conforme demonstra
Samis (2011) – acirrou-se depois da Comuna e a disputa sobre a necessidade de
conquista do poder político, do Estado, pelo movimento internacional de
trabalhadores, emergiu com força. A proposição sustentada por Marx na
Conferência de Londres, em 1871, que está na base da cisão da Internacional em
1872, teve por motivo principal as diferentes concepções acerca do papel do
Estado na revolução. Marx defendeu e fez aprovar, depois da exclusão dos
anarquistas, o seguinte artigo:

Em sua luta contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado só


pode se apresentar como classe quando constitui a si mesmo num partido
político particular, o qual se confronta com todos os partidos anteriores
formados pelas classes possuidoras. Essa unificação do proletariado em
partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e
seu fim último – a abolição das classes. A união das forças dos
trabalhadores, que já é obtida mediante a luta econômica, tem de tornar-se,
nas mãos dessa classe, uma alavanca em sua luta contra o poder político de
seus exploradores. Como os senhores do solo e do capital se servem de seus
privilégios políticos para proteger e perpetuar seus monopólios econômicos,
224
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assim como para escravizar o trabalho, então a conquista do poder político
torna-se uma grande obrigação do proletariado. (AIT, 2012, pp. 81-82)

A defesa de Marx, um ano após a Comuna, da “unificação do proletariado


em partido político” e da “conquista do poder político”, como uma “grande
obrigação do proletariado”, parece assemelhar-se sobremaneira às posições com
mais de 20 anos esposadas no Manifesto Comunista, assim como às
interpretações do último Engels.

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Recebido em 07092013
Aceito 03/12/013

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