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Análises etnográficas sobre o papel do PCC na redução de homicídios

Rafael Godoi, junho de 2016


Considerações preliminares:

0 – Agradecimentos aos organizadores

1 – Sou pesquisador da prisão, mais precisamente das relações entre o dentro e o fora da
prisão, e a prática etnográfica está no centro do meu dispositivo de pesquisa.
Talvez por isso tenha sido convidado para essa mesa. Espero poder contribuir.

2 – Mas devo dizer:


Homicídio nunca foi meu tema de pesquisa.
Mesmo o PCC não é o tema central da minha pesquisa.
De todo modo, não posso negar que ele está no princípio, no meio e no fim da minha
pesquisa.
No princípio porque sou da “geração” maio de 2006; no meio porque o PCC compõe de
modo determinante o dispositivo carcerário em São Paulo; e no fim porque meus
achados podem ajudar a compreender em novos termos como algo como o PCC é
possível.
E é sobre isso que gostaria de falar, sobre essas condições de possibilidade do PCC.
Acho que é essa a contribuição modesta que posso dar a esse debate.

3 – Mas não quero me esquivar totalmente da questão proposta, só quero me esquivar


um pouco.

Algumas considerações sobre etnografia, PCC e redução dos homicídios:

4 – Com efeito, as análises etnográficas foram das primeiras a apontar para o papel do
PCC na redução dos homicídios em São Paulo.
Em particular as análises de Gabriel Feltran, de Daniel Hirata e de Vera Telles,
pesquisadores que me são muito próximos.
Vera, minha orientadora; Daniel, por algum tempo colega de pós-graduação e até hoje
referência de etnógrafo, Gabriel interlocutor constante.
Todos ainda trabalhamos juntos no projeto temático da FAPESP onde desenvolvo meu
pós-doutorado.
Talvez também por essa proximidade com esses pesquisadores que eu tenha sido
convidado a participar dessa mesa. Mas não pretendo estar à altura deles.

5 – Não é o caso de eu replicar aqui seus argumentos.


Vários textos foram publicados e estão disponíveis.
No geral, as etnografias deles mostram que a interdição do homicídio e, principalmente,
o mecanismo do debate, protagonizados pelo PCC, foram fundamentais para frear o
ciclo de vinganças e “mata-mata” nas periferias de São Paulo – ciclo que o Bruno Paes
Manso caracterizou tão bem – e que elevava nossos índices de homicídios às alturas.

6 – Eu acompanhei de perto as pesquisas, a elaboração das análises e os efeitos das


publicações.
É a partir dessa experiência que falo e que gostaria de levantar algumas questões.

7 – Duas tendências difusas no debate sobre a “hipótese PCC”.


Dois movimentos difusos podem ser discernidos em comentários muito frequentes
sobre essas etnografias.

8 – De um lado, a “hipótese PCC” parecia carecer de relativização. Ela tinha que ser
matizada frente a outros argumentos e processos: os investimentos estatais em
segurança pública, processos econômicos e demográficos, etc. – os vários aspectos que
aqui estão em debate.
Minha ênfase: quase imediatamente após a circulação desses trabalhos, parecia urgente
fazer submergir a “hipótese PCC” num mar de outras hipóteses e fatores causais.

9 – De outro lado, a prática etnográfica que possibilitou a formulação dessa hipótese foi
também prontamente questionada, muitas vezes, com argumentos que desqualificam a
etnografia como prática científica da maneira mais monótona e repetitiva: “não se pode
generalizar esses achados! O viés do pesquisador! A tese não pode ser demonstrada”,
etc.

10 – Algumas questões.
Por que essas duas reações difusas à formulação da “hipótese PCC”?

11 – Por que as “etnografias do debate” não foram, de pronto, assimiladas na discussão


do pluralismo jurídico, dos meios alternativos de resolução de conflitos, do direito de
Pasárgada dos qual nos falou Boaventura de Souza Santos?
Isso não pode deixar de causar algum estranhamento.

12 – Mas mais fundamentalmente ainda: por que, embora a “hipótese PCC” tivesse que
ser relativizada, embora pairasse sérias dúvidas sobre os métodos dos quais ela decorre,
ela não deixou de pautar o debate no campo dos estudos da violência nos últimos 10
anos?
De onde vem essa sua força?

13 – Esboçando algumas respostas.


Me parece que a desconfiança difusa que paira sobre a “hipótese PCC”, deriva, em
grande medida, do fato de a simples admissão da hipótese enquanto hipótese já é
suficiente para colocar em xeque as pretensões do Estado de ter sido o artífice direto e
exclusivo dessa redução.
Também, obviamente, porque taxa de homicídios é questão política sensível.
Mas principalmente porque admitir o protagonismo de uma organização clandestina
difícil de definir tem implicações várias nos modos de se conceber a política, o Estado,
a vida social, etc. Essa hipótese desestabiliza nossos hábitos de pensamento.

14 – Agora, de onde vem a sua força?


Aqui esboço duas respostas possíveis, diretamente relacionadas com a potência da
prática etnográfica tal como é levada a cabo por esses autores.
De um lado, é possível afirmar que as dificuldades de se admitir a hipótese fazem
também a sua força.
Isso porque essas etnografias não se propõem a explicar as causas de um dado processo,
antes, elas se definem pela capacidade de levantar problemas, de justamente
desestabilizar nossos hábitos de pensamento, de questionar precisamente nossos modos
de conceber a vida social, a política, o Estado.
Por isso, desde um ponto de vista etnográfico, uma vez que o argumento foi formulado,
ele não precisa necessariamente ser testado, falseado ou comprovado. Ao colocar o
problema, ao formular a questão, os objetivos etnográficos já foram, em grande medida,
cumpridos.
E se a hipótese formulada, se os dados etnográficos apresentados, não só questionam
nossos hábitos de pensamento, mas também ajudam a compreender um determinado
processo social, se lhe conferem algum grau de inteligibilidade, isso já nos é mais que
suficiente.

15 – Em segundo lugar, a força da “hipótese PCC” me parece decorrer também do fato


de que as etnografias em questão não pretendem explicar as causas de um processo
estatisticamente representado, elas mostram como as mortes são, na prática, evitadas.
Mostram como, não explicam a causa. Perseguir o “como” e o “por que” são dois
movimentos da cognição que não devem ser confundidos.

16 – Por exemplo, não há maiores dificuldades em se demonstrar estatisticamente que


sociedades mais jovens tendem a apresentar maiores índices de homicídio. Mas como
essa vinculação é produzida? Como juventude e letalidade se articulam? Essas são as
questões que mais interessam de um ponto de vista etnográfico.
Do mesmo modo, também não parece haver grandes dificuldades em se demonstrar que
a curva de investimentos estatais em segurança pública impacta a curva da letalidade
violenta. Mas como tablets, viaturas (Hilux), novas armas e munições agem para que as
pessoas não se matem?
Nas etnografias da “hipótese PCC”, as diversas descrições e análises do mecanismo do
debate vão mostrar muito bem como o PCC não só evita um homicídio, como previne a
eclosão de um ciclo de vingança, como ele conjura o “mata-mata”.
A etnografia mostra o como, daí a sua força.

Condições de possibilidade do PCC – notícias da minha pesquisa:

17 – É para sustentar esse argumento que gostaria de evocar alguns achados da minha
pesquisa que ajudam a compreender não como o PCC reduz os homicídios, mas como
algo como o PCC é possível.

18 – Para compreender o PCC não me parece suficiente duas hipóteses que permeiam o
debate público e acadêmico.
Nem a hipótese “opressão do Estado”: o PCC é uma reação da comunidade carcerária à
violência institucional exacerbada.
Nem a hipótese “funcional ao Estado”, onde o PCC existe e pode existir porque
desempenha funções disciplinares na gestão da massa carcerária.
Isso não quer dizer que o Estado não oprime, nem que o PCC não seja funcional.
O ponto é que essas hipóteses não iluminam os mecanismos que sustentam a existência
do PCC. Não explicam o como.
Numa hipótese ou na outra, temos que o Estado produz o PCC. Ok, mas como? Por
quais meios? De que maneira?

19 – Em minha pesquisa pude discernir duas dimensões estruturantes do funcionamento


cotidiano das prisões, duas dinâmicas que condicionam a própria experiência da pena,
em sua duração e qualidade: o regime de processamento e o sistema de abastecimento.

20 – Regime de processamento (aqui remeto exclusivamente à execução penal, mas


certos aspectos desse processamento podem ser ampliados para presos provisórios): o
fluxo dos processos que condiciona o fluir dos corpos, as transações documentais entre
unidade prisional, Defensoria Pública, Ministério Público e Vara de Execução.
A experiência da pena no raio, tal como a pude apreender em minha etnografia:
ilegibilidade do desenrolar processual, algo mais que a mera opacidade da justiça.
Condição geral: lapsos cumpridos, direitos de progressão, LC, e outros não observados.
Gabinete do juiz como centro de governo à distância.
A sindicância como mecanismo de modulação das penas, dispositivo de soberania
punitiva da administração.
Esses são alguns aspectos do regime de processamento que trabalho na tese. Mas aqui
quero enfatizar um outro, que ajuda a compreender como o PCC é possível. Frente a
ilegibilidade do processamento, frente ao governo à distância dos juízes e à soberania
punitiva da direção da unidade, os presos não se constituem como meros objetos de
intervenção, eles são obrigados a se mobilizar para promover o andamento de seus
processos. Em linhas gerais, movimentações processuais, apreciação de benefícios só
ocorrem por provocação – algo que está escrito literalmente no relatório do mutirão
carcerário do CNJ de 2011.
Mobilização que passa pelo envio de cartas às mais variadas autoridades do executivo e
judiciário, pelo acionamento de entidades assistenciais como a Pastoral Carcerária
(junto á qual fiz meu trabalho de campo) e, principalmente, pela mobilização da família.
“A família é o melhor advogado do preso”, dizem os agentes pastorais mais experientes:
são familiares que fazem uma série de demandas na unidade, na defensoria, nas varas,
etc.
A intervenção da família modifica a duração e a qualidade do período de reclusão.
Mobilização contínua e articulação com fora, portanto.
E não para subverter a prisão, mas para viabilizar o seu funcionamento.

21 – Sistema de abastecimento: mobilização e articulação com fora ainda mais


evidentes.
A centralidade do “jumbo” e do Sedex encaminhado pelo familiar.
O Estado não fornece itens básicos de sobrevivência – limpeza, vestuário, higiene
pessoal, também alimentação. Escassez que é suprida pela mobilização das famílias,
pela articulação com elas, pela ativação da rede.
Deve-se ter mente que esse particular sistema de abastecimento não se refere somente
àqueles que recebem visitas, porque os itens que entram via “jumbo” e Sedex são
redistribuídos entre os presos por transações várias.
Aqui também não se trata de subverter a prisão, mas de garantir suas mínimas condições
de funcionamento.

22 – Mobilização, articulação com fora, ativação de redes que ultrapassam os limites do


perímetro prisional: condições imposta pelo sistema penitenciário paulista a todos os
seus reclusos, estruturantes da própria experiência da pena, constitutivas do
funcionamento regular das unidades prisionais paulistas.
Desde essa perspectiva, a mobilização e a articulação com fora do PCC é uma parte de
uma dinâmica mais ampla. O transbordamento do PCC para fora – que a redução dos
homicídios expressa – não pode significar a subversão das fronteiras prisionais. Ao
contrário, é só porque essas fronteiras precisam ser ultrapassadas cotidianamente e por
todos, e isso para o próprio funcionamento regular da prisão, que algo como o PCC é
possível.

23 – Mobilização e articulação com fora remetem a uma dinâmica carcerária da qual o


PCC participa, da qual ele é um efeito mas que o supera amplamente, que não o
caracteriza exclusivamente, caracteriza antes a própria prisão. Obrigado!

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