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Resumo: O artigo busca explorar a relação entre arte, roupa e vida através do
trabalho de Sophie Calle “O roupão”, presente no livro ‘Histórias Reais’ (2009).
Partindo do olhar da artista sobre um roupão de banho, investiga-se os significados e
narrativas afetivas atrelados à peças de roupa íntima, um contraponto à moda vista no
viés econômico e do consumo, ativando o vestir e o cotidiano como atos criativos.
Palavras chave: Arte, Memórias afetivas, Roupa íntima.
Abstract: This article explores the relationship between art, clothing and life through
Sophie Calle’s work “The Bathrobe”, present in her book ‘True Stories’. Starting from
the artist's look on a bathrobe, we investigate the affective meanings and narratives
that can be attributed to pieces of intimate clothing, a counterpoint to fashion seen only
in the economic and consumption bias, activating dressing and daily life as creative
acts.
Keywords: Art, Affective memories, Intimate clothing.
Introdução
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carregamos, livrando-o dos excessos de domesticação. Roupas
corajosamente imperfeitas, inacabadas, turbulentas (2010, p.18)
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Vestir será tudo o que converte o corpo ao que a roupa pode dizer
sobre ele, é a transformação de objetos em aparatos orgânicos, ou
seja, a forma com a qual nos desenhamos. São as possibilidades
ofertadas pelas roupas junto ao universo performático que
construímos (idem, 2010, p. 3)
Muitas vezes, o pacto que se cria é de uma escuta que não questiona a
veracidade dos fatos contados. Através da fala, manipulamos momentos
vividos e temos o recurso de editar, mixar, criar em cima destes, criando novas
interessâncias. De acordo com Paula Sibília, ‘enganosas autoficções, meras
mentiras que se fazem passar por pretensas realidades, ou então relatos não-
fictícios que preferem explorar a ambiguidade entre um e outro campo.’ (2016,
p. 56)
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E então introduzimos nossa narradora-personagem. Sophie Calle, ao
revelar para o leitor sua intimidade através da escrita e também da fotografia,
está agindo sob esse mesmo padrão do rumor, dos segredos: exacerba seu
íntimo e transforma o público em cúmplice. Porém, jamais afirmando a
veracidade dos fatos: joga com isso. Em “Histórias Reais” (2009a), a artista
francesa, nascida em 1953, entremeia relatos fictícios com histórias
inventadas, e a ficção da autora a respeito da própria vida a envolve num
mistério conveniente, que separa seu trabalho artístico de uma corriqueira
conversa entre conhecidos. Sua potência está em egendrar relatos, revelando
apenas o essencial. Como nos cunha Rollo May (1982, p.19), ‘o compromisso
mais saudável não é o que está livre de dúvidas, mas o que existe apesar
delas. Acreditar completamente, e duvidar ao mesmo tempo, não é
contraditório: pressupõe maior respeito pela verdade [...]’.
O que Calle narra em seus relatos diz respeito ao fim do amor e à busca
por esse, além de esbaldar-se em lembranças de diversas etapas de sua vida,
enquanto procurava firmar seus relacionamentos e suas metas de vida
enquanto artista. Em matéria veiculada pelo jornal Estadão (2009), diz-se a
respeito de Sophie Calle, ‘seu gosto pelo voyeurismo (de sua vida ou de
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outros) ou pela operação de raiz lacaniana de "dar a ver" excertos de sua vida
se transformou na característica mais pungente de sua proposta de tratar a
barreira entre o público e o privado.’. Com isso, propõe um jogo de criação e
edição de identidades como colcha de retalhos. Seus parceiros, amigos, afetos
– até mesmo desconhecidos, todos são peça de estudo e fundamentação de
seu trabalho. “Eu” que se forma a partir do outro, “obra” que se constrói a partir
desse eu, ‘a esfera das relações humanas como lugar na obra de arte’
(BOURRIAUD, 2009, p.63).
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Fonte: Calle, Sophie. Histórias Reais. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
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Eu lia sobre roupas e falava aos amigos sobre roupas. Comecei a
acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe:
recebe nosso cheiro, nos-so suor; recebe até mesmo nossa forma. E
quando nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes
morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus armários,
sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e
aterradores, tocando os vivos com os mortos.(2008, p.10)
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A roupa de usar em casa é extremamente íntima – a poucos nos
permitimos ser vistos assim – portanto, carregada de afetos e concessões, por
mais que não intencionais: fazem parte de uma seleção pessoal e prática do
que pode ficar conosco em posse para uso e re-uso, e do que pode ser doado
ou jogado fora, descartado, repassado. Há ainda aquelas que ficam guardadas
para uma próxima geração, não vão para o limbo e nem serão usadas até
virarem trapos. Serão apenas armazenadas, alocadas em armários para
aguardar a ação dos tempos, ou para preservar a memória. No luto, será a
lembrança da perda, e também a potência de emanação de uma existência,
marca de vida de quem a usou. Stallybrass chega a uma importante conclusão
acerca de nossa relação com as roupas: ‘As roupas recebem a marca humana
[...] embora elas tenham uma história, elas resistem à história de nossos
corpos.’ (2008, p.11).
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pessoais, adquirindo nosso formato: catacterísticas. E são ‘faces essas que
livram a moda de ser simplesmente subsidiária do capital, ou mesmo um mero
índice dele, ao apontar [...] para o sensacional naquilo que este tem de
incapturável’ (idem, 2004, p.118). Stallybrass é, aqui, poético à mesma medida
que categórico: ‘Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós
expressamos apenas uma meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que
receberam esses corpos sobrevivem.’ (STALLYBRASS, 2008, p. 10)
Considerações Finais
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expõe de maneira a fazer com que parte da sua vida alcance um grande
público através da publicação de seu livro. No entanto, em meio a tantos outros
relatos, a força da peça de roupa usada, pendurada de maneira desleixada e
registrada sem técnica apurada, apenas a foto clicada sem muitos formalismos
e esbanjamentos de controle sobre o dispositivo fotográfico, emana ao
significar uma ausência: ‘[...] a arte criativa nos permite alcançar além da morte’
(idem, 1982, p. 23).
Referências:
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http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,carta-de-ex-namorado-motiva-
exposicao-de-sophie-calle-em-sp,400772 > Acesso: 02 jul. 2017, 22:30.
WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
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