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MICHAEL B URA WOY

o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU

ORGANIZAÇÃO
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Ruy Braga
Reitor
FERNANDO FERREIRA COSTA

TRADUÇÃO, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E NOTAS


Coordenador Geral da Universidade
EDGAR SALVADOR! DE DECCA Fernando Rogério Jardim

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Conselho Editorial

Presidente
PAULO FRANCHETTI

ALCIR PÉCORA - CHRISTIANO LYRA FILHO


JOSÉ A. R. GONTIJO - JOSÉ ROBERTO ZAN
MARCELO KNOBEL - MARCO ANTONIO ZAGO
SEDI HIRANO - SILVIA HUNOLD LARA

COLEÇÃO MARX 21

Comissão Editorial

ARMANDO BOITO JUNIOR (coordenador)


ALFREDO SAAD FILHO - JOÃO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES
MARCO VANZULLI - SEDI H lI' ANO

Conselho Consultivo

AI.VARO BIANCHI - ANDRÉIA GALVÃO - ANITA HANDFAS


ISAJlI\I,1.0URP.IR - Lu IAN AVINI MARTORANO
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CAPÍTULO I

A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA:


MARX ENCONTRA BOURDIEU

A agenda dos encontros

Os tolos correm por onde até os anjos temem pisar. Ocupar-se criticamente
dos trabalhos de Pierre Bourdieu é dessas tarefas intimidantes ou, quem sabe,
temerárias. Pierre Bourdieu foi e é o maior sociólogo de nossa época. Ele é
o único a ser considerado o pai fundador contemporâneo da sociologia, com
envergadura comparável a Durkheim, Weber e Marx. Como estes, Bourdieu
era versado em filosofia, história e metodologia; e, como eles, Bourdieu possuía
teoria própria e bastante desenvolvida sobre a sociedade contemporânea, sua
reprodução e sua dinâmica. Além disso, assim como aqueles autores, seus
trabalhos são incansável e simultaneamente teóricos e empíricos, estenden-
do-se desde a obras sobre fotografia e literatura, pintura e esportes até à
nnálise da estratificação social contemporânea, da educação, da linguagem
. do Estado. Seus escritos transpõem as fronteiras da sociologia e da antro-
pologia - sobretudo com sua abordagem das estratégias sociais das famílias
cumponcsas do Béarn*, onde ele nasceu. Incluem-se aqui seus livros a rcx
p -iro da Ar lia, . critos durante o período das lutas anticoloniais, época '111
'Illl' ele ini .iava sua carreira d . oci61ogo. Os métod utilizado. por Bourdi 'li

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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

vão desde sofisticadas análises estatísticas até entrevistas aprofundadas e que rompia com o senso comum, uma ciência que se tornava frequentemente
observações participantes. Suas inovações metateóricas, aplicadas de manei- inacessível-, Bourdieu também foi o maior sociólogo público da nossa épo-
ra incansável a diferentes contextos históricos e a várias esferas da socieda- ca; foi o porta-voz de diversas questões importantes, tanto na França como no
de, giram em torno do desenvolvimento da teoria dos campos sociais, da mundo afora. Ele se tornou mais e mais franco e direto à medida que sua car-
noção de capital e de habitus. Não houve outro sociólogo com sua origina- reira e prestígio avançavam, desenvolvendo sua própria revista, uma revista
lidade e amplitude; nem com sua influência sobre tal variedade de disciplinas europeia sobre livros e uma série de obras de alcance popular. Ele era visto
nas ciências sociais e humanidades. com frequência na cena pública, muitas vezes, atacando a própria imprensa
Se existe alguma questão que perpasse toda a sua obra, esta é o tema do que lhe dava esse acesso ao público. Ele se tornou um polemista contumaz
desmascaramento da dominação, sobretudo a análise da dominação simbó- contra o fundamentalismo de mercado que invadia e distorcia a lógica do
lica - a dominação que não é reconhecida como tal. Porque, quando os in- campos de produção intelectual e cultural. Embora grande parte da sua obra
telectuais denunciam a violência física pelo mundo afora, eles não percebem seja difícil de acompanhar e de compreender, porque Bourdieu parecia com-
que são, também eles próprios, os perpetradores de outra forma de violência: prazer-se em tornar-se difícil, seus escritos dos anos 1990, bastante politizados,
a violência simbólica que dissimula a dominação tomada como dada (dóxica) certamente empregaram a energia e o fôlego da polêmica. Seu livro mais ven-
e incorporada aos corpos e à linguagem dos indivíduos. Eis uma violência dido, A miséria do mundo'; foi um enorme projeto cooperativo e transconti-
cujo uso é monopolizado pelo Estado tanto quanto a força física. Ao exami- nental que descreveu o sofrimento das classes dominadas na linguagem dos
nar os dominantes e os dominados, Bourdieu direcionou seus holofotes não próprios sofredores. Tamanha foi sua celebridade, que seu falecimento em 2002
apenas para os camponeses e trabalhadores, mas também para diferentes ocupou a primeira página do jornal Le Monde *. Ele havia então se tornado não
camadas da classe dominante e da pequena burguesia; e não apenas para os apenas um sociólogo público global, mas também um intelectual público glo-
pintores e escritores, mas também para os acadêmicos que perpetuam essa bal por excelência.
violência simbólica. Bourdieu revela-nos quem somos por trás do biombo da É, pois, aqui, nos fundamentos da sociologia crítica e pública, que eu de-
objetividade científica: ele aponta para as formas pelas quais nós enganamos sejo iniciar alguns diálogos com Bourdieu. Mas o que isso significará ou em
a nós mesmos e às outras pessoas com nossas ilusões. Dessa forma, a socio- que contribuirá para a sociologia crítica e pública, se (como tenho dito) as
logia que aplicamos aos demais objetos precisa ser aplicada - igualmente classes dominadas não têm capacidade de compreender a sociologia feita sobr •
e justamente - a nós mesmos. Sua insistência na reflexividade foi incansá- sua própria opressão e as classes dominantes são tão antipáticas à mensagem
vel, afirmando que sua proposta não era denunciar ou incriminar os colegas da violência simbólica? Como poderão os públicos da sociologia crítica se
cientistas, mas libertá-los das ilusões escolásticas que surgem das condições estender para além dos sociólogos e intelectuais aliados nessa nossa "Interna
especiais nas quais eles produzem o conhecimento, a saber, a liberdade pe- cional dos Intelectuais" - expressão que Bourdieu adorava. O paradoxo radi
rante as necessidades materiais imediatas. Para Bourdieu, conhecer melhor ca na contradição entre a teoria de Bourdieu - que sugeria que a audiência du
as condições de produção do conhecimento é a condição para a produção de sociologia fosse drasticamente reduzida - e sua prática política engajada
um conhecimento melhor. que coloca Bourdieu entre as principais lideranças públicas e críticas de nosso
Contudo, Bourdieu não se voltou apenas para dentro do mundo acadêmico; tempo. Então, para nosso autor, qual seria a relação entre a teoria e a prática,
ele também se dirigiu para fora dele. Com efeito, o momento da autoanálise entre os intelectuais e seus diferentes públicos? Eis a questão que domina!"
acadêmica foi sua preparação para o momento da análise social *. Ao mesmo lodos os nossos encontros com Bourdieu.
tempo que defendia obstinadamente a sociologia como ciência - uma ciência

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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

Relendo Bourdieu com óculos marxistas I'alecidos poderia confrontar as alegações de Bourdieu. Por isso, eu trago-o
de volta à vida para se encontrarem com ele e conosco.
É simplesmente impossível abordar o trabalho de Bourdieu diretamente. A Eu não desejo e não posso recriar aqui todo o campo dentro do qual Bour-
abordagem precisa começar pelas bordas*. Ele próprio sempre defendeu que dieu estava inserido. Essa tarefa estaria muito além das minhas capacidades
ler um autor ou uma autora era, antes de tudo, localizá-Io ou localizá-Ia dentro documentais, porque incluiria aí os filósofos, os linguistas, os críticos artísti-
de um campo de produção intelectual- com seus antagonistas, competidores cos e literários, assim como os sociólogos e os antropólogos, enfim, todo o
e aliados que são assumidos como dados e que invisivelmente conformam as campo intelectual francês. Aliás, a prova do estatuto olímpico atingido por
práticas dele ou dela. Em As regras da arte', Bourdieu mostra-nos como Gus- Bourdieu dentre os deuses da teoria social é que podemos escolher quase
tave Flaubert** possuía certa percepção misteriosa de um campo literário ainda qualquer grande pensador da sociologia - a começar por Weber e Durkheim,
incipiente. É claro que Bourdieu (secretamente ou mesmo de forma incons- Marx e Simmel - e introduzi-lo em um diálogo proveitoso com Bourdieu
ciente) se identificava com Flaubert em seu próprio projeto de fazer nascer um Por isso, eu escolhi um conjunto especial de teóricos da sociedade que perarn-
verdadeiro campo sociológico - primeiro nacional e depois global. bulam feito fantasmas por toda a obra do autor. Diferentes de Bourdieu, eles
Mas Bourdieu nunca se empenhou no exame daquele campo dentro do qual icrcditavam que os dominados (talvez alguma parte destes) pudessem sob
ele talvez fosse o principal representante: o campo acadêmico francês. O mais l'I'rlas condições perceber e avaliar a natureza da sua própria opressão, Com
próximo que ele chegou disso foi com seu Homo academicusí -livro no qual I I'.ito, aqui eu me refiro à tradição marxista que Bourdieu empregava mesmo
ele se propôs a fazer uma análise do campo acadêmico francês em bloco, quer em admitir isso, chegando inclusive ao ponto de recusar à tradição marxista
dizer, ele examinou as relações entre as disciplinas acadêmicas mas não exa- "l'lIm lugar no campo intelectual descrito por ele, Para iniciar nossos encon-
minou o próprio campo disciplinar. Não obstante sua insistência na "heteroa- III)Scom Bourdieu, escolhi teóricos marxistas com perspectivas diferenciadas
nálise" do campo e não obstante sua breve "autoanálise" do próprio divórcio (('('rca do papel e do lugar dos intelectuais na teoria social e na vida pública
com a filosofia, existem claros limites à reftexividade em Bourdieu. Em sua I polftica, a saber, Antonio Gramsci, Frantz Fanon e Simone de Beauvoir. ElI
concepção do campo sociológico francês, ele pôs a si mesmo no centro e todos I I11I! 'çarei então com Karl Marx, cujo calcanhar de aquiles é, sem dúvida, ti

os demais competidores foram simplesmente rejeitados ou relegados a meras 1111 ncia de uma teoria dos intelectuais; terminarei então com Wright Mills.
notas de rodapé. Minha tarefa aqui é ressuscitar alguns desses ídolos mortos e 11111arquitetura teórica é similar àquela erguida por Bourdieu.
restituir suas vozes para poderem responder a Bourdieu. Essas conversações limbora Marx nunca tenha devotado séria atenção à questão dos int It,(,
são uma reconstituição imaginária sobre como essa série de teóricos sociais 1IIIIS - o lugar deles na sociedade e seu processo de trabalho -, sua lel)1 iI
dll rnpitalismo como sistema de produção autorreprodutivo e autodestruüvn
I I I. todavia, inserida profundamente no tratamento que Bourdieu d(j 1111
1 III1JlOSde produção intelectual e cultural. A estrutura subjacente em BOIII
* No original: The approach has to be circuitous. (A abordagem tem de ser perimetral).
(N. do T.) dll 1Il' similar ao compromisso de Marx e de Engels com o pensam nto 11,
** Gustave Flaubert (1821~1880), escritor francês da escola realista, famoso por sua objetivi- '1111110,tal como esboçado emA ideologia alemã', Contudo, Bourdicu d'
dade e pre.clOslsmo estilístico, O primeiro e mais lido romance de FIaubert, Madame Bovary
111u NO para outra direção - mais rumo ao estudo dos campos culturais dll
(1857), f?1 baseado em fatos da vida cotidiana e provocou grande impacto na opinião pú-
blica da epoca, por s~a dev~stadora crítica às convenções hipócritas da sociedade burguesa. Ipll 110 scn: ido do campo econômico, A partir de Marx, nós iremos plll I
Segundo Flaubert, nao devia haver tema proibido para a literatura, assim como não existia « 1:1111ri sua teoria sobre os intcl cruais, que traz à tona a ideia da hcu '1110
para a ciência. Flaubert presenciou impassív~l os eventos políticos da França (1848-1852),
111.1 I'. Sl' '011' ito à prirn 'ira vistllluo ximilar, porém, em uma análise fiuul,
sem tomar partido, como o faria mais tarde Emile Zola (1840- 1902). Por isso, a postura de
Flaubert fOI descrita por Bourdieu como típica do ca npo literári em processo d ' nurono- 10I 1IIIIk dikn'II1' 10 'llI)t'('itll 11I1I11tI"'IISI1110de dominaçào slmhóticu ()
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLíTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

por Bourdieu. No terceiro encontro, eu evocarei minha própria experiência Bourdieu e A ideologia alemã
na análise dos jogos em ambientes de trabalho no capitalismo e no socialis-
mo, a fim de me perguntar em que condições os trabalhadores poderiam No coração do projeto teórico de Bourdieu encontraremos a tentativa de
enxergar através dos jogos e para além dos jogos - possibilidade em relação superação das falsas oposições e de caracterização de uma distinção em par-
à qual Bourdieu teve apenas uma remota suspeita. Iicular: aquela entre a lógica da teoria e a lógica da prática, ou, como ele
Iremos daí para o quarto encontro e os primeiros trabalhos de Bourdieu c m frequência denominou referindo-se à crítica de Marx a Hegel, a distinção
sobre a questão argelina, nos quais seu antagonista silencioso era Frantz Fanon .ntre as "coisas da lógica" e a "lógica das coisas". Concretamente, isso sig-
e sua teoria sobre o papel e o lugar dos intelectuais nas lutas anticoloniais, em nifica que as condições socialmente necessárias para a produção do conhe-
que estes podiam ser encontrados apoiando tanto a burguesia nacional como o I rmento científico (a academia e suas liberdades de competição) são pro-
campesinato revolucionário. Curiosamente, em oposição a Fanon, nós encon- fundamente diferentes das condições nas quais o conhecimento é
tramos Bourdieu sendo o mais ortodoxo marxista, proclamando o potencial l'olidianamente produzido. Existe, assim, certa ruptura entre o conhecimen-
revolucionário da classe trabalhadora argelina. Embora alguns comentadores fo do dia a dia, os saberes populares, e o conhecimento científico ou escolas-
tenham traçado certa linha de continuidade ou de estabilização nos escritos de fi 'o. Com bastante frequência, essa distinção se desfaz pelos dois lados e a
Bourdieu da sua fase argelina em diante, o tratamento dado por ele às classes própria ruptura é novamente partida: de um lado, por aqueles que projetam
trabalhadoras argelinas parece ser bastante diferente do tratamento dispensado , ciência sobre a vida cotidiana (Lévi-Strauss, os economistas), como se as
à classe trabalhadora francesa, como vemos em sua obra máxima, A distinção. p,'ssoas de alguma maneira seguissem no dia a dia os princípios descobertos
É difícil relacionar aqui as duas abordagens. A partir de Fanon, nós iremos ao 11\ ucademia; e, do outro lado, por aqueles que reduzem a ciência ao conhe-
quinto encontro, dessa feita, entre Bourdieu e Beauvoir em torno da questão 11111.nto cotidiano (os interacionistas simbólicos, a etnometodologia), como
da dominação baseada no gênero. Ali nós veremos a espantosa convergência I' nada existisse além das teorias populares e o conhecimento de si. Bourdieu
dos dois em torno da importância do poder simbólico. Contudo, Beauvoir 11toma e aprofunda a distinção entre a teoria e a prática, a começar por seu
opõe-se a Bourdieu ao conferir às mulheres intelectuais a capacidade de enxer- 1,\/10(:0 de uma teoria da prática' - obra revisada algumas vezes depois da
gar através da submissão de um gênero a outro e de lutar contra ela. Por fim, 1'11111
'ira edição francesa (1972) e antes da versão em inglês (1977) - pros-
nós encontraremos Wright Mills, cujas teorias da estratificação, da política, I' ruindo com A lógica da prática, de 19806, e culminando nas Meditações
dos públicos e dos intelectuais se aproximam intimamente daquelas propostas I,,/.\'/·({lianas, de 19977 - sua última elaboração teórica geral.
por Bourdieu. Como o título do último capítulo sugere, Wright Mills foi um I \ssa distinção entre teoria e prática é a mesma feita por Marx e Engels n' A
Bourdieu estadunidense antes mesmo do Bourdieu original. E, com efeito, nós /'/,'%Mia alemã e seu opúsculo acessório: As teses sobre Feuerbach. Com
podemos encontrar várias referências favoráveis e elogiosas a Wright Mills nos I 11110, li arquitetura das Meditações pascalianas de Bourdieu mantém certa
escritos de Bourdieu. I uu-lhunça misteriosa com esses primeiros trabalhos de Marx e de Engels,
Tanto Mills como Bourdieu tiveram relações ambíguas com Marx e o I 11\qll(' ambos acertam as contas com sua consciência filosófica anterior: o
marxismo. Assim como Mills, Bourdieu tomara muitos empréstimos de Karl t'/",,/i,I'II/O alemão. Na tradição hegeliana, a História é a história das ideias, é
Marx, tal como ele às vezes admitia; mas não houve ali nenhum diálogo I 1lIlIlIil't'sla 'ão da consciência, é a autocelebração do intelecto do intelectual.
aberto ou consistente com o marxismo. Além disso, Bourdieu deixou para I I1I1I'ln,':!o fi isso, Marx c Engels manifestam sua desaprovação:
trás um conceito que foi deveras central para Marx, a saber, o conceito de ex-
ploração. Ainda assim, como procurarei mostrar a seguir, a estrutura do envol- ('1I1111111'IIIOS
ouvido dos id,·610'os 111"111( 'S, I1AI 'manha nestes últimos anos pas-

vimento de Bourdieu com o universo da filosofia e das ciência sociais 1111 1'"1 1111111
It'VOIIlI;lloSI'IIIpl'l'l'l <11'1111'111'111PIII':tIl'los,A ti, 'oll1posi .uo du l'ilosol'ill
análoga à luta corpo a corpo [wrestling] travada por Marx e Engcl. contra os 111 I 111-111
1'111111111 h-v 1<1111111'1111 1i'IIIII"IIII\Illl1tiVl1 111<ll'lItllldll ",,"1 lodos os "pu
jovens hegelianos. ti. I' d" PI' Ild,," 1,,11111,d IJIIIIIII I I I 111111 111111 11VIIIII 11I 11111111' 1111
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o MARXISMO ENCONTRA HOUROIEU A ECONOMIA POLÍTICA OA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA HOUROIEU

da qual as batalhas dos diádocos* pareceriam insignificantes. Os princípios desloca- Os paralelos com Bourdieu são assombrosos! Bourdieu enumera então cer-
ram-se uns dos outros; os heróis do pensamento rebelaram-se uns contra os outros tas "ilusões escolásticas" - visões do mundo que são a projeção das condições
com inaudita celeridade; e em um prazo de três anos (1842-1845) o passado alemão de existência privilegiadas dos intelectuais, a saber, sua vida despreocupada e
havia sido varrido para longe, o que [noutras épocas] levaria três séculos para ocorrer. livre das necessidades materiais imediatas que ele denominou skholê: condição
Supõe-se porém que tudo isso tenha ocorrido no campo do pensamento puro". que nada mais é senão o produto da divisão apontada por Marx entre o trabalho
intelectual e o trabalho manual. Ignorando as condições especiais da sua exis-
Bourdieu escreve de uma forma semelhante: "Essa é a ilusão típica do tência, os intelectuais tendem a universalizar seu próprio ponto de vista esco-
lector, o qual é capaz de tomar um comentário acadêmico como se fosse um lástico - tal como ocorre no ideal habermasiano da comunicação sem distor-
ataque político ou de tomar a crítica dos textos por uma façanha de resistência, ções, ou como se dá na teoria da escolha racional. O leitmotif* de toda a obra
experimentando assim revoluções na ordem das palavras como se fossem re- de Bourdieu pode ser encontrado na primeira tese de Marx contra Feuerbach
voluções na ordem das coisas'". , que também é a epígrafe do seu Esboço de uma teoria da prática:
O problema - afirmavam Engels e Marx - é que os filósofos alemães se
haviam alienado do mundo e imaginado seus produtos como provenientes de O principal defeito de todo materialismo até aqui (inclusive o de Feuerbach) é que
uma terra de avassaladora importância: "Não ocorreu a nenhum desses filósofos IIX coisas, a realidade e a sensibilidade são concebidas apenas sob a forma de objetos ou
indagar qual era a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã; e qual de intuição, não como atividade prática humana sensível, como prâxis, não subjetiva-
era a relação entre sua crítica e seu próprio entorno material"!". A raiz desse 111 ente. Por isso, em oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido pelo
autoengano jazia na divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, itl salismo apenas abstratamente, porque, como é claro, ele não conhece a atividade
após a qual "a consciência pôde realmente se imaginar como algo diferente humana sensível e real como tal. Feuerbach quer conceber os objetos sensíveis como
da consciência da práxis humana, como se ela realmente representasse algo, u-utrnente distintos dos objetos do pensamento, mas ele não concebe a atividade huma-
sem todavia representar algo de real"!'. Assim nasceu a teoria pura. Os jovens 1111 'orno atividade objetiva":
hegelianos não eram, pois, diferentes do seu mestre Hegel, opondo punhados de
frases a outros punhados de frases, sem ao menos confrontá-Ias com "o mundo materialismo feuerbachiano adota certa postura contemplativa perante
realmente existente". Eles imaginavam ser tão radicais, trazendo Hegel do céu \I mundo, tomando este como objeto externo, deixando a postura ativa para o
para a terra, enquanto simplesmente reproduziam a filosofia hegeliana. No lugar lrk-ulisrno, mas apenas "abstratamente", uma vez que o idealismo reconhece
do espírito etéreo, eles passaram simplesmente a venerar "o homem" na sua 1110 somente as ideias e a consciência, sem abordar a atividade prática que
forma idealista - como entidade ou como espécie - em vez do homem na I\tIIIJ'X reduziu à atividade econômica, transformando a natureza em um meio
sua existência empírica. Marx e Engels propuseram essa quebra episternoló- ti 11 , ti existência humana, Similarmente, a lógica da prática que Bourdieu
gica real, demandando novos pontos de partida. Eles insistiram em partir das qlll'S nta é expressamente redesenhada para transcender essa divisão entre o
premissas reais da história: para sobreviverem, homens e mulheres precisam ruuu-riulismo e o idealismo - uma divisão que é ela própria uma função da
procriar e produzir os meios necessários à sua sobrevivência; e ao realizarem I mullçuo cscolástica. Bourdieu faz isso ao conceber a "práxis" como produção
tais atividades, eles entram em relações uns com os outros. É apenas a partir di IH'IIS não apenas materiais, mas também de bens culturais,
dessa existência prática que a consciência emerge.

I. IIl/Ifl/l/olI/,l'illlw/Íl' (mutivo .ondutor), No d 'curso de uma ópera, traia-se do I 'ma musi '111

11111IlItlo 11111scntluu-nto,
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* A guerra dos diádocos. Referência aos membros do Esta 'te-Maior que lideravam os cxér .itos 1111II'IIIIIIIIII~' I JI,HNI' 11'1'111
NO rol I'llIllIl'PlltlO 1'0111 l"llq\l lI"ill pur (korJ.(I's II i/ 'I (I H \H I HI ) I'
de Alexandre da Macedônia. Com a morte prematura dest .os diádo s entraram rn conflito I h 11111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

Em outras palavras, enquanto Marx reduz a atividade prática à atividade


A dominação econômica e cultural
econômica e sobre essa base constrói a história humana como sucessão de
modos de produção, Bourdieu estende a ideia da atividade prática às esferas
Os estranhos paralelos continuam. Baseando-se no modelo de O capital de
de produção intelectual. Eis o ponto em que Bourdieu se aproxima e se dis-
Marx para as esferas cultural e política, Bourdieu desenvolve outra seção de A
tancia de Karl Marx. Em sua análise da economia do ponto de vista da pro-
ideologia alemã - a famosa e muito debatida passagem das ideias dominantes
dução, a teoria marxista do capitalismo torna-se um decalque, o modelo para como sendo as ideias da classe dominante":
a análise de Bourdieu da produção cultural - a literatura, a pintura, o jor-
nalismo e as disciplinas acadêmicas. O que Marx oferece é uma teoria do
As ideias da classe dominante são em todas as épocas as ideias dominantes, quer
capitalismo como sistema que se reproduz, porém, ao fazê-lo, gera a dinâmica dizer, a classe que é a força material dominante de uma sociedade é ao mesmo tempo
responsável por conduzi-lo fatalmente à autodestruição: gera um sistema que sua força intelectual dominante. A classe que tem os meios de produção material à sua
se transforma igualmente em uma arena de lutas. Eis os mesmos elementos disposição disporá também dos meios de produção intelectual. Por isso, geralmente, as
da teoria dos campos proposta por Bourdieu. Esta é focada nas relações so- ideias daqueles que não possuem os elementos de produção intelectual estão sujeitos
ciais que precedem os indivíduos, na ação estratégica desses atores procu- às ideias dessa classe'",
rando maximizar seus lucros (material-simbólicos) - ações que são confor-
madas, primeiramente, pelo próprio campo com suas regras e, posteriormente, Aqui, Marx e Engels sugerem que as classes dominadas, em vez de criarem
pela distribuição desigual do capital específico desse campo. Tanto em Marx suas próprias "ideias" C'consciêncía''), estão sujeitas às ideias da classe domi-
como em Bourdieu, a ação estratégica torna-se rapidamente uma luta para nante. O ponto nodal aqui está no significado da expressão "sujeitas a" - o
conservar ou para subverter os poderes dominantes no interior do campo. caso é saber se isso contradiz ou talvez impeça Marx de descrever em outra
Enquanto Marx está interessado em uma sucessão histórica dos campos ocasião o desenvolvimento da consciência de classe por meio das lutas de
econômicos (os sistemas de produção), Bourdieu está interessado na coexis- .lasse. Muito embora eu não possa apontar em Bourdieu referências a essa
tência simultânea de diversos campos - o econômico, o cultural, o político passagem, ele frequentemente se referia à cultura da classe dominada como
etc. Portanto, ele não vê uma única forma de capital, mas uma série de capi- lima cultura dominada. Além disso, aqui está a origem da crítica feita por
tais típicos a cada campo. Daí ele levanta questões (embora raramente ofe- Bourdieu aos intelectuais marxistas, cujas condições de existência os levava a
reça respostas) acerca da conversibilidade de uma certa modalidade de capi- deplorar as condições de existência da classe trabalhadora, visto que esta se
tal em outras. Há insinuações pouco elaboradas conforme as quais o campo encontra adaptada àquelas condições, fazendo da necessidade sua maior vir-
econômico domina os outros campos, todavia, na maioria das ocasiões, Bour- rude, Conforme Bourdieu, os intelectuais marxistas projetam falsamente seus
dieu examina as conexões entre os campos através dos efeitos sedimentados próprios habitus sobre a classe trabalhadora; com isso, iludem-se ao imaginar
nos habitus dos indivíduos: as "percepções e apreciações" inscritas em seus que os trabalhadores tenham disposições e aspirações revolucionárias.
corpos e almas. Visto que Marx está preocupado unicamente com a dinâmi- Tomando a tese da ideologia dominante como ponto de partida, somos le-
ca de apenas um dos campos, ele se concentra mais na lógica interna desse vados então a examinar a produção daquelas ideias dominantes da classe do-
campo e menos nos efeitos dos outros campos sobre os indivíduos (trabalha- minam - eis precisamente o propósito de Bourdieu. Em A distinção, ele faz
dores e capitalistas) partícipes dos demais campos. Por essa razão, Marx não 1111111
diferenciação entre as várias camadas da classe dominante que possui
necessita de um conceito tão traiçoeiro como o habitus, porque a lógica das rvrtn 'sI futura vertebral Ichiliastic], dividindo-a entre aqueles que são ricos
relações econômicas domina a práxis humana em sua globalidade. ('111cnpitut sconômico e aqucl s qu são ricos em capital cultural: em outras
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

A divisão do trabalho [... ] manifesta-se também no seio da classe dominante como vezes Bourdieu defendeu a autonomia desses campos como condição para a
divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, de uma forma tal que, no inte- realização cultural dos valores humanos universais. Contudo, ao mesmo tempo,
rior dessa mesma classe, parte dela aparece como os pensadores da classe (seus ideólo- essa autonomia reproduz e mistifica a dominação simbólica que ele próprio
gos conceituais que fazem das ilusões que essa classe tem de si mesma sua principal denunciou.
fonte de ganho), enquanto a atitude dos demais perante tais ideias e ilusões é passiva e
receptiva, visto serem eles os membros mais ativos dessa classe e possuírem certamen-
te menos tempo disponível para produzir ideias e ilusões acerca de si. Dentro dessa
Para onde foi a exploração?
classe, tal clivagem pode até gerar oposição e hostilidade entre as duas metades [... ] 15.

Até aqui, tenho-me concentrado na forma pela qual Bourdieu desenvolveu as


Marx e Engels estão descrevendo exatamente aquilo que Bourdieu analisou
ideias de Marx. Contudo, em um aspecto fundamental, Bourdieu também se
como sendo a luta entre afração dominante da classe dominante (a burguesia)
desviou do marxismo na apropriação que fez do modelo dos campos baseado
e a fração dominada da classe dominante (os intelectuais).
m O capital, em especial pela supressão da categoria de exploração - que
Se Marx e Engels nunca pesquisaram detidamente como é que os "ideó-
é tão central à análise marxista do capitalismo. Central também é a relação
logos conceituais criam as ilusões de uma classe sobre si mesma", é esse o
recíproca entre a exploração (relações de propriedade, de produção, de distri-
âmago do projeto ao qual Bourdieu se dedicou: as formas pelas quais a cul-
buição) e a própria produção (o processo de trabalho, a divisão do trabalho, as
tura é produzida e a forma pela qual sua transmissão e seu consumo mascaram
relações produtivas). A análise feita por Bourdieu dos campos sociais tende a
a dominação da classe dominante. Aqui, então, nós completamos todo o cir-
colapsar essas duas relações, reduzindo a divisão do trabalho à simples posse
cuito, voltando ao uso que Bourdieu fez de O capital como decalque ou
de um capital e, com isso, eclipsando a ideia da exploração que, pelo menos
modelo para seu estudo da história dos campos de produção artística e cul-
no esquema marxiano, conduzia às lutas de classe.
tural- a literatura, a fotografia, o jornalismo, a pintura e daí por diante. Mas
Nós podemos verificar isso mais claramente na notável descrição que
aqui encontraremos o seguinte paradoxo: o poder simbólico de um produto
Bourdieu fez do sistema econômico em As estruturas sociais da economia 16:
cultural reside justamente na autonomia usufruída por seus campos de pro-
sua análise das estruturas de produção e consumo no mercado imobiliário.
dução - autonomia necessária para que a distinção conferida por seu con-
Aqui, o campo de produção é apresentado como a luta competitiva entre
sumo seja vista como algo naturalizado e desconectado das precondições
mercados nacionais e mercados regionais, entre a construção de mansões e
econômicas e dos fundamentos de classe social. Bourdieu era um obstinado
a construção de indústrias, apelando a um mercado socialmente estratificado.
defensor dessa autonomia contra sua distorção pela regulação estatal e so-
A maior parte do livro é dedicada à descrição do modo como o Estado estru-
bretudo pelas forças do mercado - uma autonomia que, por sua vez, legiti-
tura tanto a produção como o consumo e, assim, cria campos homólogos que
ma a desigualdade tanto no consumo como na produção; uma autonomia que
se encaixam com relativa perfeição. Para Bourdieu, o capital (tanto o econô-
endossa a mentira segundo a qual a produção de ciência e de cultura inde-
mico como o simbólico) determina a posição do agente no campo: o capital
pende de condições de existência; uma autonomia que engendra a falsa ideia
possuído e acumulado pelos agentes durante suas lutas competitivas. Con-
de uma fruição estética pura e, portanto, mistifica a dominação.
tudo, Bourdicu não revela a relação desse processo com nenhum con cito
Então, como pôde Bourdieu defender, como projeto político, a mesmíssima
qu ' .vid inci a exploração. O capital é sim uma relação, porém, nesse caso,
autonomia que sustenta a dominação que ele abominava? Aqui, Bourdieu jus-
t' III:IÍS urnu r 'laç<o .ntro capitalistas do que uma relação entre capitalistus t'
tifica a proteção da autonomia dos campos baseando-se em uma crença utópi-
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ca na universalização do acesso às condições da universalidade, reverenciada
{'IIII'III1H'lIll',III1IHíliSt'qtll' lIollrdit'lI I'II/', da conoruiu dl'slillUdllll 1'('111'111
em oposição à valorização da arte popular, tida por ele como arte falsa, D c 'r-
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

produção imobiliária ao considerar os detalhes do processo de trabalho; e, o campo sociológico


com efeito, há indícios disso em As estruturas sociais da economia. Mais
interessante, porém, é o papel da exploração nos campos cultural e intelec- onsideremos agora o campo da sociologia estadunidense. Como então po-
tual. Ao escrever sobre a segunda dimensão dos campos culturais, Bourdieu deríamos introduzir a distinção marxista entre a divisão do trabalho - ou a
concentra-se nos desafios da vanguarda artística; ele não vê o relacionamento produção de diferentes modalidades de conhecimento - e as "relações de
entre os dominantes e os dominados em termos de exploração simbólica, mas produção" - ou a distribuição do capital acadêmico sobre a qual elas se de-
em termos de uma luta para dominar o campo e definir seus termos. senvolvem? Nós podemos começar aqui com a distinção feita por Bourdieu
Como então poderíamos incorporar a dualidade marxiana às relações mtre os polos autônomo e heterônomo do campo. Quer dizer: nós precisamos
interiores aos campos culturais - com o reconhecimento tanto da domi- diferenciar a sociologia que é produzida para nossos colegas sociólogos,
nação como da exploração? Aqui, eu preciso retomar à questão do campo de um lado, da sociologia produzida para o consumo fora da academia, de
sociológico, do qual falávamos acima. Isso é importante porque, como dis- outro - nossas audiências acadêmica e extra-acadêmica, respectivamente.
se antes, malgrado toda a sua preocupação com a reflexividade, Bourdieu Bourdieu era muitíssimo desconfiado desta última, por temer sua influência
nunca prestou muita atenção ao seu próprio campo: o campo sociológico. .orruptora sobre a autonomia do conhecimento. Não obstante, ele reconhecia
Seu Homo academicus'" compara disciplinas dentro do campo acadêmico que, se a sociologia não possuísse nenhuma audiência mais ampla, nós bem
francês, indo desde aqueles campos mais heterônomos, da advocacia e da que poderíamos arrumar nossas malas e partir. Ele mesmo jamais perdeu
engenharia, intimamente conectados a outros campos para além do uni- oportunidade de se comunicar com audiências mais amplas.
verso acadêmico, até os campos das artes e das ciências. Dentro destas, Isso nos leva à segunda dimensão da divisão do trabalho. Bourdieu era um
ele apresenta um ranking de prestígio das disciplinas, que ele sugeriu ser .rítico severo e mordaz dos sociólogos que ele considerava servos do poder e
homólogo ao prestígio e à reputação das credenciais educacionais - elas dos especialistas que viviam a serviço das elites e que produziam aquilo que
próprias ligadas às origens de classe dos estudantes e professores. Mesmo .u costumo chamar de sociologia para políticas públicas. Bourdieu, contudo,
dentro das humanidades e das ciências sociais, há algumas disciplinas que era favorável e simpático àqueles que se dirigiam aos públicos mais amplos
são mais autônomas que outras. Esse é o caso da sociologia: como disciplina para tratar de temas de fundamental importância para a sociedade, aquilo que
pária e dotada de posições políticas antagônicas, ela é menos propensa a ser 'u costumo chamar de sociologia pública. Trata-se aqui de uma diferença
cortejada pelas classes dominantes. antiga - central para Weber e para os filósofos de Frankfurt* - entre, de
Se Homo academicus oferece um quadro inicial para a observação do LI m lado, o conhecimento instrumental, que toma como dados os fins e os
campo sociológico, a análise que Bourdieu fez do campo científico oferece- meios, preocupando-se simplesmente com os meios mais eficazes para atin-
nos um segundo quadro ". Aqui, ele advoga que a ciência avança por meio
da competição pelo lucro simbólico dentro do campo. Em certo trecho das >I< Escola de Frankfurt: movimento filosófico fundado em 1923 e vinculado à Universidade de
Meditações pascalianas'", Bourdieu compara a competição no campo cientí- Frankfurt, Seu primeiro expoente foi Max Horkheimer (I 895- 1973), cuja Teoria Crítica possuía
inspiração marxi ta e freudiana. Para essa escola, o marxismo, corno qualquer outra teoria,
fico com os combates de guerrilha. Porém, quando essa competição se inten-
ti 'v ria se submeter à crítica. Seus membros admitiam que a revolução proletária que haveria
sifica, ocorre a concentração do capital específico nas mãos de um número ti' libertar a humanidade não era inevitável como o postulavam os marxistas e que o próprio
cada vez menor de indivíduos dominantes. Contanto que o campo seja rela- pcnsum 'alo teórico 11< o era completamente independente das forças sociais. A função da teoria
('I (li 'U scrin nnulisnr c revelar as origens dessas teorias, sem aceitá-Ias de imediato, com o
tivamente autônomo, nenhum problema há nisso. Existem sempre renovação
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(li! iSlllS e os posil ivlxtas, pois isso implicaria se submeter às condições opressoras
e inovação na academia, porque os pretendentes ao trono - a juventude e li I qlllll~ () (l"IISIIIII\'IIIO iuxn umcntul 11'xpressll0 'U ferramenta. Em 19 4 OSnazisras f .ha
os sucessores - certamente desafiarão os titulares do posto. Seja em Honro 1011111/11 Iltlllllqlll'"ll1lpIlVII"~S"IIHlVillH'IIIO llitls,ifl,'o, fllll'SIlUS IClldll1l'ins 'slfu'nlislus c pcln
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academicus, seja na análise do campo científico, a problemática da sxploru-
1111Nuvn 111111"1 I 1111111111111111 l'III1I~11I111111 11111111 dll III1I1N11111 IIi 1111\\11 11111 11111di
ção aparece em Bourdieu, no pior dos asas, como um r mônicun Iwri rt rico, 1'111111/1111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLíTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

gir O ' fins, e, do outro lado, o conhecimento reflexivo, que se interroga sobre tem, contudo, algumas intersecções interessantes: com membros de departa-
aqueles mesmos fins e meios de uma maneira mais discursiva - o que Weber mentos de primeira classe apoiando e participando ativamente da sociologia
chamou de discussão valorativa. O conhecimento reflexivo coloca na berlin- pública; e com membros de departamentos de segunda classe advogando e
da os fundamentos do conhecimento instrumental: e a sociologia pública faz praticando ativamente a sociologia profissional. Esses dois lados desempenham
emergir questões que a sociologia para políticas públicas costuma ignorar ou papéis-chave nas lutas do campo. Na tabela a seguir, vemos a distribuição do
rejeitar. A distinção reflexivo-instrumental aplica-se não apenas à audiência capital acadêmico,
extra-acadêmica, mas também ao hermeticamente fechado mundo acadêmico.
Aqui, nós distinguimos, de um lado, a resolução de quebra-cabeças teóricos Tabela 2: A distribuição do capital acadêmico
no interior de programas de pesquisas divergentes que tomam como dados os
Destino: departamentos Destino: departamentos
pressupostos morais, teóricos e técnicos da sociologia profissional, e, de outro
de primeira classe de segunda classe
lado, a sociologia crítica, que examina aqueles mesmos pressupostos morais,
Origem: departamentos Situacionistas Desclassificados
teóricos e técnicos, primordialmente, no interior da academia. Nesse quadrante, de primeira classe
nós poderíamos encontrar a sociologia crítica de Gouldner, Wright Mills, So-
Origem: departamentos Aspirantes Explorados
rokin, Lind e outros, que foram decerto muito críticos dos pressupostos tácitos de segunda classe
da sociologia profissional estadunidense. Na tabela a seguir, vemos a divisão
do trabalho sociológico".
o segundo movimento do argumento marxiano contra Bourdieu é reco-
Tabela 1: A divisão do trabalho sociológico nhecer e denunciar a distribuição desigual do capital acadêmico como sendo
a base para futuras relações de exploração. Quer dizer: as prerrogativas para
Audiência acadêmica Audiência extra-acadêmica
fazer pesquisa em departamentos de primeira classe ou para obter remune-
Conhecimento instrumental Profissional Para políticas públicas ração igualmente alta dependem de uma carga extra de trabalho intelectual
Conhecimento reflexivo Crítico Público com baixos salários naqueles departamentos de segunda classe, incluindo, é
claro, o emprego mal remunerado de trabalhadores temporários e estudantes
o primeiro movimento do argumento marxiano contra Bourdieu consiste de graduação empregados como professores, inclusive em departamentos de
em distinguir e separar a divisão do trabalho sociológico (como parte do cam- primeira classe. Essa desigualdade entre o trabalho realizado e o pagamento
po acadêmico) da distribuição do capital específico desse campo, nesse caso, recebido é justificada com base em uma meritocracia dos talentos: os melho-
o capital científico-acadêmico. Aquilo que está em disputa no jogo acadêmico res sociólogos estariam alocados nos melhores departamentos e os melhores
é o reconhecimento conferido pelos pares concorrentes e, nesse aspecto, o .srudantes seriam contratados como estagiários. Mas tudo isso mascara as
capital acadêmico depende a) da posição do departamento onde se está empre- relações de exploração no interior do campo, assim como as vantagens dife-
gado atualmente e b) da posição do departamento onde se fora treinado antes. renciais oferecidas pelo departamento no qual se fora treinado antes. A desva-
É claro que cada agente possui seu próprio capital acadêmico individual, ba- lorização das sociologias crítica e pública - quer dizer, as sociologias asso-
seado em publicações, em distinções, em prêmios; mas tudo isso está intima- ciadas aos departamentos periféricos -, como se fossem sociologias
mente relacionado à afiliação desse agente a determinado departamento. Além inferiores, esconde as relações de exploração entre os departamentos de pri-
disso, estudos anteriores indicam que aqueles agentes especializados em co- 111'ira linha' os departamentos de segunda Iinha,bem como a exploração no

nhecimento instrumental (profissional e para políticas públicas) geralmente inl -rior dos próprios departamentos ' rurais.
foram treinados em departamentos de primeira classe [elite], enquanto aqu 'I 'S (J /('/'('('I/'III/I/lvil//('/I/() {,OI1I!'1I 1I01l1'dit"1I consiste '111 qu 'stiol1nr SUH 1I0Çt ()
agentes eujo foco s volta mais para O conhecirn nto reflexivo (crfti '0 (I IHíbli., dI' I' 1111J1III'1I'lllflko qlll l'l( l'Ill'UII III'VI '1I1'llIIN I NOI'iol0l'i I pl'OIlN, luunl, SIIII

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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

res estabelecidos e às sucessivas batalhas entre estes e a nova geração. Bour- tando negativamente todos eles. Num esforço para manter o controle da disci-
dieu não vê que, para além do campo científico da sociologia profissional, plina, a sociologia profissional alega que já faz sociologia pública há décadas,
há o campo disciplinar que inclui não apenas as sociologias profissional e que já é por si mesma crítica e, sendo assim, não existiria necessidade alguma
para políticas públicas, mas também as sociologias crítica e pública, dessa da divisão do trabalho. Outra estratégia deles consiste em argumentar que a
forma, incluindo tanto os departamentos de primeira classe como os depar- valorização da sociologia pública levaria a polarização política para dentro da
tamentos de segunda classe. O que está em jogo aqui é a própria definição academia, deslegitimando, com isso, a já insegura profissão de sociólogo e
de campo - o científico versus o disciplinar. Bourdieu limita o campo àque- pondo em xeque suas pretensões científicas. Estas são as estratégias (no sen-
les departamentos líderes onde a pesquisa científica está concentrada, diri- tido que Bourdieu confere ao conceito) que eles mobilizam, embora nunca o
gindo terríveis ataques aos colegas que vendem sua perícia técnica ao Estado façam expressamente ou cinicamente, pois tampouco eles as reconhecem como
e ao capital privado. Ele sequer cogita sobre o trabalho das sociologias pú- as estratégias que são, mas apenas como o senso comum brotado das disposi-
blica e crítica, conduzido pelos departamentos periféricos. Dada sua postura ções profundamente inculcadas no habitus profissional. Existem, todavia, es-
condenatória às sociologias que são públicas, orgânicas, ativistas, ele é mui- tratégias ofensivas e bastante conscientes de si, cujo objetivo é deslegitimar a
to crítico em relação aos departamentos onde estas são praticadas - justa- sociologia pública - patologizando-a ou partidarizando-a. Dizem que a so-
mente os departamentos periféricos. ciologia pública não é uma ciência genuína, mas um projeto político de mar-
xistas frustrados e excluídos. Para comprovarem o "fato", eles apresentam
sociologias de má qualidade e, por meio disso, tentam reduzir toda a sociologia
Das lutas por classificação às lutas de classe pública e crítica a essas formas patológicas e desvirtuadas. No caso extremo,
os sociólogos públicos tomam-se, para eles, os dissidentes traiçoeiros, os bár-
o quarto movimento contra Bourdieu vem da expansão do escopo das lutas: baros batendo às portas do castelo: um perigo para a sociologia e para a huma-
das lutas sucessórias às lutas entre dominantes e dominados pela valorização de nidade! Há decerto aqueles que escorraçariam prazerosamente as sociologias
diferentes categorias de sociologia. Nos recentes debates acerca da sociologia pública e crítica do universo disciplinar. As tropas de choque da sociologia
pública, pudemos verificar o choque entre as estratégias de conservação e as profissional encontram-se geralmente em mobilidade descendente; e, embora
estratégias de subversão" . Os grupos dominantes - os sociólogos treinados em t nham sido treinadas nos principais e melhores departamentos, acham-se elas
departamentos de elite e lecionando em departamentos de elite - têm resistido com frequência entre os leigos.
a participar dos combates, contando com a continuidade de sua dominação sim- Por outro lado, há estratégias de subversão que revelam a dominação sim-
bólica: dominação que continua não sendo assumida como tal. Eles formariam bélica naquilo que ela esconde: a exploração. A luta pela sociologia pública é
a aristocracia do talento e do mérito, produziriam a melhor sociologia científica a luta por um capital simbólico alternativo, o qual nós poderíamos denominar
disponível e, por isso, garantiriam legitimidade à disciplina. Sim! Eles são con- capital civico - o reconhecimento conferido pelos públicos, quer sejam eles
sagrados em rituais de afirmação - índices de citação, ofertas de emprego ... estudantes que reconhecem professores, jornais que reconhecem colunistas,
Para eles, ingressar em uma luta por classificação acabaria conferindo dema- lei rores leigo que reconhecem trabalhos de sociologia, movimentos operários
siada importância a formas "ilegítimas" de conhecimento sociológico. Porém, 'lu' reconhecem a análise das estratégias corporativas etc. A afirmação do
uns poucos sociólogos líderes têm rompido essas fileiras, entrando em uma 1'lIpilal ci 'nlrlico-acadêmico em nome apenas da sociologia profissional éa
luta por classificação e defendendo as sociologias profissional e para polúicas 1l'Illnliva (I' ti 'si 'gilimar a sociologia pública como uma sociologia inferior.
públicas contra a invasão deletéria das sociologias públ ica e crítica. Iillll o, pnru SI'" ,fi .icnt " noss» 'stral' 'ia ele subversão deve apresentar seu
Eles vêm adotando várias estratégias hegernônicas, pelas quais nprcs '11111111 plOpl iq !l1'lljl'lol'olllrn hl'P('fll nico. ÁSSilll, os sociólo IOS plíhli 'os I m r' .or-
os interesses dominantes como se fossem os int .rcss 'I' univ .rsais, Árl'llllll'lItillll lIdo '1111'111111 Willlll,'11lpuhli, 1'1"1' 111.pilllllllOSSIl 1'11111]111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLíTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

ingres ar nesse campo. Outros ainda têm buscado desenvolver concepções Conclusão: os paradoxos
alternativas de ciência - uma ciência mais reflexiva e mais colaborativa com
de Pierre Bourdieu
os diversos públicos, tomando emprestados alguns desenvolvimentos das ci-
ências naturais. Em cada caso citado, as tentativas visam estabelecer a auten- ( 'orno Bourdieu poderia responder a essa descrição das lutas na sociologia
ticidade e a legitimidade da sociologia pública como sendo boa sociologia. I'stadunidense? Ele poderia concordar com a minha análise, porém, aquele
Mas, com respeito a isso, tal batalha é uma revolução autolirnitada, uma vez llourdieu que era firmemente comprometido com a autonomia do campo
que os sociólogos públicos também têm interesse na viabilidade e na legitimi- I'i .ntffico ficaria horrorizado com o estado de coisas descrito aqui! Ele fica-
dade da sociologia como disciplina. ria bestificado com a intervenção dos sociólogos críticos e públicos, possui-
Os sociólogos críticos, com frequência, têm adotado uma postura mais .lore de um limitado capital científico-acadêmico, tentando valorizar seu
agressiva, afirmando que a sociologia profissional impõe severos constrangi- cupital simbólico alternativo: o capital cívico. Sua concepção de sociologia
mentos à sociologia pública; que a sociologia profissional sofre de chauvinis- estava confinada ao campo científico, mas não ao campo disciplinar no in-
mo disciplinar; que ela é viciada em coisas triviais, tornando-se um obstáculo (erior do qual ela se encontra. Por isso, Bourdieu sonhava com a sociologia
às necessárias abordagens interdisciplinares e transdisciplinares; que ela tem corno um campo autônomo - assim como é a matemática - no qual os
prejudicado sistematicamente as perspectivas minoritárias e tem sido corrom- produtores teriam como únicos consumidores os seus concorrentes: "A au-
pida pela sociologia para políticas públicas e suas conexões com o poder esta- tonomia é conquistada graças à construção de uma espécie de 'torre de mar-
tal. Em resposta à acusação segundo a qual a sociologia pública é simples rim' na qual as pessoas avaliam, criticam e até mesmo lutam, porém, usando
política, os sociólogos críticos invertem o argumento e sugerem que a socio- npenas as armas adequadas e permitidas: os instrumentos propriamente ci n-
logia profissional também tem seu próprio projeto político. Com efeito, os Irficos, os métodos e as técnicas't".
críticos mais radicais, como aqueles obstinados defensores da ciência pura, Mas eis aqui o primeiro paradoxo: poucos anos depois disso, Bourdi '11
propõem que nossa disciplina seja dividida, caso a sociologia profissional não .screveu:
possa ser transformada.
Neste breve esquema das lutas pela sociologia pública, baseando-me nas Eu COITO o risco de chocar aqueles que, optando pelo cômodo virtuosismo do '011
evidências que venho coletando em debates nos últimos seis anos, as estratégias tinarnento em suas torres de marfim, veem a intervenção externa à esfera acad 'llIi,' 1
individuais podem ser explicadas com base no montante de capital acadêmico .orno uma perigosa deficiência daquela famosa "neutralidade axiológica" que é idcuu
acumulado e nas trajetórias no interior do campo que influenciam juntos a fi ada erroneamente com a objetividade científica [.,.]. Mas estou convencid de 1IIH
posição dos agentes na divisão do trabalho e a disposição deles visando a outras IIÓSprecisamos a todo custo levar as conquistas da ciência e da academia para d"1I11\l

posições na divisão do trabalho. Nós então presenciamos lutas por classificação do debate público, do qual elas estão tragicamente ausentes e afastadas+'.
com respeito às fronteiras dos campos, com respeito aos capitais que podem
ser invocados dentro deles. São lutas por classificação e ao mesmo tempo lutas orno seria possível conciliar duas posições aparentemente tão anta I 111
de classe entre um grupo dominante, beneficiário da exploração simbólica, 'as? Teria o contexto mudado tanto nos poucos anos que separam esses dui:
defendendo o atual estado de coisas, e um grupo explorado e insurgente que livros? Ou seria isso a reação de Bourdieu contra duas situações bastante dI
afirma seu próprio projeto contra-hegemônico em torno das sociologias públi- fl'renl 'S: de um lado, a defesa de uma ciência autônoma contra sua vul '111i
ca e crítica. Eis a forma como eu imagino que Marx teria rebatido a apropria- :I,1Iç(lO por dilciantcs e amadores os doxôsofos - e, p r litro lado, 1-;('"

ção que Bourdieu fez de O capital. 1I~'ll'SSjVOcontrn-ataqu - puhlic« 1S IIIÍ1olo 'ias do n eolib ralisrno? P 'r' '11' .l

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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

o bônus sem ter o ônus; ele quis uma autonomização intervencionista. Com .iologia da dominação? E com quem Bourdieu estaria dialogando afinal?
efeito, ele escreveu: I~ssasuposta audiência seria mesmo capaz de ouvi-lo? E se ela pudesse ouvi-
10, estaria apreciando e entendendo o que ele diz? No próximo encontro,
Essa descrição da gênese da figura do intelectual mostra-nos que a síntese parado- discutiremos esse segundo paradoxo - o paradoxo da ausência de públicos
xal desses opostos - o recolhimento e o engajamento -, que é tão típica dos intelec- para a sociologia - ao imaginarmos um segundo diálogo, dessa feita, entre
tuais, não foi inventada de uma só vez nem instituída de uma vez por todas. Tal síntese Antonio Gramsci e Pierre Bourdieu.
é instável e incerta. Ela permite aos detentores do capital cultural "regredir" a esta ou
àquela posição como algo garantido pelo pêndulo histórico, quer dizer, "regredir" ao
papel de puros escritores, artistas, acadêmicos; ou "regredir" à função de simples agen-
Notas
tes políticos, polemistas, jornalistas etc. Tal síntese também implica que o equilíbrio
entre as duas atitudes possíveis com relação à política poderá ser explicado pelo fato
Bourdieu, 1999a.
de a demanda por autonomia - demanda erguida graças à própria existência do cam- Idem, 1996.
po cultural- precisar considerar a existência de poderes temporais que variam de um \ Idem, 1988.
país para outro e de acordo com o momento histórícoê". 4 Marx e Engels, 1970b,
~ Bourdieu, 1977.
11 Idem, 1990c.
Mas não devemos esquecer que Bourdieu escrevia tudo isso a partir da 7 Idem, 2000.
França; e precisamos evitar sermos anacrônicos e transportar sua perspectiva H Marx e Engels, 1970b, p. 147. Ed. brasileira, 2004, p. 38.
I) Bourdieu, 2000, p. 3. Ed. brasileira, 2001b, p. I!.
para o contexto estadunidense. Em primeiro lugar, ele próprio estava situado
10 Idem, op. cit., p. 149. Ed. brasileira, op. cit., p, 43.
nos píncaros do mundo acadêmico - tão alto quanto pôde alcançar - e, 1I Idem, op. cit., p. 159. Ed. brasileira, op. cit., pp. 57-8,
portanto, era de esperar que ele adotasse alguma postura elitista, isto é, que, 12 Marx e Engels, 1970b, pp. 117-8. Ed. brasileira, 2004, p. 28.
13 Outro conceito marxiano que é menos desenvolvido em Bourdieu é o conceito de ideologia,
com a acumulação de considerável capital acadêmico, viesse junto a obriga-
quer dizer, a forma como a participação dos indivíduos no capitalismo mistifica a natureza
ção de participar da política. Em segundo lugar, porém, a sociologia nunca desse sistema. Nesse caso, o protótipo conceitual é o "fetichismo da mercadoria" segundo
chegou a ser tão profissionalizada na França como o é nos Estados Unidos. Marx - tão brilhantemente elaborado por Lukács em História e consciência de classe.
Por isso, a sociologia francesa sempre foi mais vulnerável à invasão, à corrup- Bourdieu chega mais perto dessa noção de ideologia quando concebe a estrutura social como
um jogo no qual o próprio ato de jogá-lo obscurece suas condições de existência. Tal como
ção e à apropriação. A defesa agressiva de Bourdieu da autonomia da socio- Marx, Bourdieu nunca conciliou essas duas formas do desconhecimento: a legitimação e a
logia foi seu ataque contra dois tipos de forasteiros: trabalhadores braçais mistificação.
inferiores e com pouco capital acadêmico e doxósofos da imprensa, assim 14 Marx e Engels,1970b, p. 172. Ed. brasileira, 2004, p. 78. Grifo nosso
15 Idem, op. cit. p. 173. Ed. brasileira, op. cit., p. 79.
como outros intelectuais públicos que pensam saber demais.
16 Bourdieu,2005.
Entretanto, a autonomia não significa somente ter por finalidade a busca 17 Idem, 1988.
do conhecimento pelo conhecimento - embora ela também signifique isso. IH Ver Bourdieu, 1975, pp. 19-47.
No caso específico da sociologia, a autonomia, caso fosse realmente alme- 19 B urdicu, 2000.
O Bourdi 'U III O faria tal distinção entre uma sociologia crítica e uma sociologia profissional,
jada, garantiria o avanço da ciência e, conforme Bourdieu, necessariamente visto que ele consid .ravu li ciência sujeita à competição profissional entre pares e, portanto,
conduziria à desmistificação da dominação simbólica - se não dentro do l'OIIlO ul! ou' 'NSllrilllll nu ' • Ni'"ultHI1'f\111 rue crítico. Porém, seria diffcil, se não impos ível,
campo sociológico, pelo menos no mundo social mais amplo. No final das iu 1111ON 10f.\0N du ci nclu, II'SOIV\'I'llIlOlIllrlins ' iontradiçõcs d ntro de UI11programa de pes-
l(I'ISII I, 111'"1' 1110h'IIIP", 1111('t iuuru U lumlunu-ntos d 'ss' jo 'O, quer diz 'r, prati ar fi
contas, a restrição do campo sociológico àqueles que dispõem de tempo c vlltit'1I l'ull 11,111' (111111111111111 IlIrllvrtlllll IN(lI'I·lIl1stllsl'"lrll~,'r·II,'.rti'lIdll,·i ncin por
recurso neces ários à condução de pesquir as rcsp itãv is s 'ria nl 'o justifi- IIlIilN1111111111111111(111 11 I I 1111l" I I II~III
.ávcl d vicio ao impa '10 subv irsivo <Ia so 'iolo/'iu 110 1I11111do 111 11)1 I MlIs (llIlIlh 111,11 di 111IIdll/,1111 111Ir '111111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU

nal of Sociology, Critical Sociology, Social Problems, The American Sociologist. Também há
hoje [2008) pelo menos seis livros com artigos reunidos sobre o tema.
22 Bourdieu, 1999b, p. 61. Ed. brasileira, 1997, p. 89.
23 Idem, 2003, pp. 12-3. Ed. brasileira, 1998, pp. 7-8.
24 Idem, 1989, p. 101.

CAPÍTULO II

TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL:


GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

Outro efeito da ilusão escolástica consiste em descrever a


resistência à dominação na linguagem da consciência - tal
como o fazem tanto a tradição marxista como algumas teóricas
do feminismo que, dando margem aos hábitos de pensamento
e de linguagem, esperam que a libertação política provenha do
efeito automático da "tomada de consciência" - como resul-
tado da falta de uma teoria disposicional e situacional das
práticas, ignorando a extraordinária inércia que resulta d"
inscrição das estruturas sociais nos corpos individuais. Eruho
ra tornar as coisas explícitas possa ajudar, apenas um d '1(1111/1
do processo de desdomesticação, de descondiciollllllll'lIl"
envolvendo repetidos exercícios tal como o treiruuucutu 11"

atletas, pode transformar duravelmente o habitus",

Picrre 1101,"1 1111

o umlivu lIdi .ional para fundam ntarrnos o corporativisrno do UIl iversn 11111
IlIqUlI'llivislllO 'OIIlI)l'OIll 'lido 'OJ)1 a d efcsa de intcr ss s comuns, COIlSt'U, 1111

111qUIVOl'IlS, I)t'llll'l' os 11111


io!'t's ohsllÍ<'lIlos U isso 'slll (ou tulv "l.I 'llltul',lltllI)

1111111ncio "11111'1"('111IIIHI' 1I11'n" 1:10 l'IIIO 1I (lrIlIIlSl'i. /\0 1','!lII".i r OS illll'I\'(


o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

tuais ao papel de "companheiros de viagem" do proletariado, esse mito impe- I. S superarem o que consideravam ser as falsas oposições entre o voluntarismo
diu que eles tomassem a frente na defesa dos próprios interesses e explorassem I () determinismo, o subjetivismo e o objetivismo. Assim fazendo, ambo se
os meios mais eficazes nas lutas em prol das causas realmente universais'". vuleram das ideias primeiramente formuladas por Marx e Engels nas Teses
vobre Feuerbach.
Tanto Bourdieu como Gramsci foram bastante reftexivos quanto ao pap I
Paralelos e contrastes dos intelectuais na política - o lugar destes na reprodução e na transformaçi o
dlls ordens sociais. Malgrado a semelhança entre suas trajetórias e disposiçõ 'S

Em seu Esboço de autoanálise', Bourdieu encarregou-se daquilo que ele mes- " apesar dos interesses teóricos que tinham em comum, as divergências funda
mo chamou de socioanálise do eu, substituindo a biografia egocentrada - que mentais entre Bourdieu e Gramsci são muito mais interessantes: estão tOl11
discorreria longamente sobre sua carreira triunfante - pelo exame do campo 111nte ligadas aos contextos históricos distintos em que atuaram. Sobretudo
educacional no qual ele cresceu; pelo exame da sua própria imersão na guerra t lramsci, tendo continuado marxista, mantivera-se engajado nas questões do
civil argelina, enfim, pelo exame do campo universitário no qual ele ingressa- ocialismo em uma época em que este ainda estava no centro da agenda polí
ra. Ali, muito do seu foco recaiu sobre a questão do predomínio acadêmico da 1 i 'a; já Bourdieu se distanciara do marxismo, vivendo naquele que seria co
filosofia encarada por ele na École Normale Superiéure, com a consequente nhccido como o mundo pós-socialista.

depreciação da sociologia na França e sua recusa em se aliar ao marxismo Finalmente, Bourdieu depositava maior confiança na verdade escolásti 'li
então em voga. Por fim, ele explica seu interesse pela reftexividade e suas ideias produzida na academia, ao passo que Gramsci fundamentava a verdade 1111
sobre o campo acadêmico por meio da própria trajetória intelectual - dos experiência dos trabalhadores no processo de produção e nos comitês de fr.
confins rurais do Béarn a professor no College de France. Ele sempre se sen- I Iica, abrindo caminho para aquilo que ele denominou o "intelectual orgânico"
tira constrangido, como se fosse um impostor, no mundo acadêmico francês, rncrustado na classe trabalhadora. Para usarmos a terminologia gram ' .ianu,
por possuir aquele "habitus servil" - efeito da "discrepância muito pronun- Ili onde Gramsci via o bom senso embutido no senso comum da classe op '1'11
ciada entre a elevada consagração acadêmica e a baixa origem social'". Porém, I iu, Bourdieu via apenas o mau senso, o mau sentido. Bourdieu, por sua VI'I,

a partir dessa perspectiva privilegiada, Bourdieu estaria apto a "objetivar" todo punha grande fé no bom senso potencial da sociologia elaborada d ntru 111
o território acadêmico. "limpos acadêmicos relativamente autônomos. Gramsci, por outro lado, 1'1I
Antonio Gramsci, caso único entre os grandes teóricos marxistas, por ter ('lI ico quanto à possibilidade de os intelectuais universitários serem alI'O 11111
vindo de uma origem rural bastante semelhante àquela de Bourdieu, sentia-se do que simples "intelectuais tradicionais" que, no final das contas, ' () 11

igualmente desconfortável no ambiente acadêmico, muito embora, para ele, produzem a dominação. Para ele, a sociologia confundiria a Ol"lIl1i/ll 1I1
isso resultasse no abandono da universidade rumo à atividade jornalística e à política do consentimento com o consenso ilusório e espontâneo 111/11111111
militância política, antes que fosse lançado no cárcere sem qualquer cerimônia podemos observar nos escritos de Émile Durkheim e nos primeiros Ir nhulhu

pelo Estado fascista. Os paralelos entre suas perspectivas intelectuais - as de dI' 'Ialcott Parsons.
Gramsci e as de Bourdieu - são impressionantes! Ambos repudiaram o deter- ada autor estava preocupado com as ameaças da patologia - Bouulhu
minismo histórico do velho Marx; ambos desenvolveram concepções bastante ,'011111 invasão da ciência social pelas pressões do mercado e por csp ,t'illll 11
sofisticadas acerca das lutas de classe; ambos focaram o mesmo aspecto social, II!lS.rvi ntcs; e Grarnsci com as experiências da classe trabalhadora qlll" 1I

aquilo que Gramsci chamou de superestruturas do capitalismo e Bourdieu VllIll S '11(10mais distorcidus que elaboradas pelo partido polüico. POI' '111, HI
chamou de campos de dominação simbólica. Ambos, portanto, deram pouca 11111'111'1'111
IIS posiç( 'S um do ouuu, l' Idll qllúl tornou absolutu 11lIulO('l'flll I
importância à economia para se concentran m nos efeitos d 'Ia. Num s .ntido rllu-iu I I'SSl' 1I10do, !lollrdi"tl III!II 1""110" IIS ohs 't'VIIÇ(ll'S ';lllll'lOSIIN 1"111
mai afirmativo, ambos se int r ssararn prin .ipalm '111t'por qlwsll '1'1 lil'lIt1l1s! IHII(:1 11l1,I í ,'1111(,11'to 11011111'"
I 1"ltllI'I' 111111,'111 pol '1I11l'I t'1I1Iti '"1111 I
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dorninuçí O 'à r .produçno dn dOll1ill!llillO,1\1'S vxtuv.uu 1'1('(11IIpllllll ('1111'0111 11I!l,II'1I" ti 111/'11111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

por jornalistas e acadêmicos em uma demonstração das limitações intrínsecas , .ntido desse jogo - uma cri atividade definida por disposições acumuladas
do intelectual tradicional. Essas visões opostas acerca do intelectual orgânico I' internalizadas a partir das estruturas s ciais prévias; uma criatividade ao
e do intelectual tradicional jazem sobre visões também divergentes acerca da 11\.smo tempo canalizada e delimitada pela estrutura social realmente exis-
dominação: de um lado, a dominação simbólica em Bourdieu, na qual o domi- u-nte. Nós podemos imaginar o habitus como sendo composto por camadas,
nado não reconhece sua submissão como tal; de outro lado, a hegemonia em I orn as mais profundas delas sendo adquiridas logo cedo na infância, E as
Gramsci, na qual o dominado reconhece e consente sua submissão. A partir hiografias de Bourdieu e de Gramsci oferecem-nos uma sucessão paralela de
disso, emergem diferentes teorias acerca da dinâmica da mudança social. quatro conjuntos de experiências individuais: 1) a primeira infância e a edu-
À medida que nossa análise compara as trajetórias sociais de Bourdieu e I 1 .ão escolar (da zona rural para a cidade); 2) as primeiras experiências
de Gramsci, essas trajetórias trazem à tona suas respectivas concepções do políticas (a revolução argelina versus o movimento dos comitês de fábrica);
que são os intelectuais, com suas teorias divergentes da dominação e da trans- \) () desenvolvimento teórico (a universidade versus o movimento comunis-
formação da sociedade. Sendo então coerente com o modo pelo qual eu orga- I I); 4) os redirecionamentos finais (da universidade para a esfera pública
nizei esses encontros, a saber, como minha resposta marxista a Bourdieu, \','/,,\'US do partido para a prisão).
tentarei reconstituir a teoria deste último por meio da perspectiva gramsciana. Ambos cresceram em sociedades agrárias, Gramsci nasceu na Sardenha em
E imitando a avaliação comedida que Gramsci fazia dos seus antagonistas, I HI) I; Bourdieu nasceu próximo aos Pireneus em 1930. Os dois foram filhos de
especialmente Benedetto Croce*, tentarei tornar Gramsci mais respeitoso com 11111
.ionários públicos locais - Bourdieu, de um carteiro que se tornara escre-
Bourdieu do que Bourdieu foi com Gramsci. Começaremos mobilizando a I 1\1' no gabinete dos correios do povoado; e Gramsci, de um copista do car-
noção de habitus em Bourdieu, para então traçarmos a interseção da biografia 1111
io de registros fundiários que havia sido preso sob acusações de improbida-
com a história. di ndministrativa. Bourdieu era filho único, mas Gramsci tinha outros seis
1IIIIIlosque desempenharam grande papel no início da sua vida. Ambos foram
"" (unte apegados às mães - nos dois casos, estas eram esposas de status
A interseção entre a biografia e a história 1111111
mais privilegiado que seus maridos. Gramsci e Bourdieu foram ambos
tllIlHISbrilhantes na escola e, por meio de empenho e de vontade, saíram dos
Com a noção de habitus, Bourdieu transcendeu o subjetivismo da perspectiva I"IIIII'S povoados natais para grandes centros urbanos, cada qual com o apoio
centrada no ator sem, contudo, cair no objetivismo do cientista vindo do nada, di l'OS devotados professores.
ao reconhecer a incorporação das estruturas sociais como conjunto de dispo- I' '111dúvida, a vida de Gramsci foi muito mais difícil que a vida de Bour-
sições, de inclinações duráveis, porém, criativas e mutantes - isso na forma tllI 11 NL o apenas era sua família muito mais pobre, como ele também sofreria
de percepções e de apreciações do indivíduo. O habitus dá conta do senso d I "li!' rrsica e moral de ser um deficiente (corcunda). Foi apenas graças a
prático: é a capacidade adquirida de inovar, de jogar o jogo, de perceber o 11111
1\,as reserva de determinação, de autossacrifício e com o apoio do irmão
11111v 'lho que pôde Gramsci fazer sua jornada em 1911 para o norte da Itália
I 1I1111I11'lIlul,
dispondo de bolsa de auxílio para estudar filosofia e linguística
11I IllIiVl'l'sÍlt di Torino. De forma parecida, Bourdieu iniciaria seus estudos
* Benedetto Croce (1866-1952), principal historiador e filósofo italiano do século XX. Criou em 11111111'\1prcpurutório e ingressaria na École Normale Superiéure para gra-
1903 a revista La Critica, com a qual contribuiria por quatro décadas. Desempenhou vários
11111 (' '111ri losol'ia () ápice da pirâmide intelectual francesa. Vir do carn-
cargos políticos e se opôs ao regime fascista (1922-1943), após o qual, fundou novamente o
Partido Liberal. Seu pensamento, influenciado pelo idealismo hegeliano, abrange os campos 1"' li 1111
Il, I'l'lIlId 'S c ~l1tros urbanos - Turim ou Paris - era certamente algo
da estética, da lógica, da ética e da filosofia da história. T'nquanto autodidata, sua filosofia f'oi 1111lllid Idlll Alllhos S' s mtium 'Ol1l0 p ix 'S fora d'á lua no 111'io das novas
guiada pela ideia do poder criativo cio homem. Entre suas obras, d 'si" nuu S· l l istt ri" ri"
1)111't'i!'t'IIIIIVIIIll110 nmhicnt« 1It'lId IIIÍt'O. IIllIhol'lI os dois
III!til 1 I 111111
Europa 1/0 S iculo XIX (1933), /I Histâria 1'1111111 nnrrativn d(l lih('rrl"dl' ( 1'1-1 I) ,( '/111'1', 11 rr] /'
(1,\' allados (19~ I), V'I' i"IIIlISl'i, (,,,rll '11I 11,1'rio I'(IIY'I'/I', VIII. I 11//Ir/d//r/1/1 tI/I t'I/lItI/I tltllll/I 1111111111
r I1 1111tlllllildol'III 1111111:1111(',
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II 1" Idl 1\ 10111.110111111.1IlIll'llI d.1 lIeIllll\lll .111111,11
1111.1111
o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

povoado e a família. A devoção de Gramsci a sua família e seus hábitos rurais roi forçado a deixar a Argélia em 1960. Dessa forma, nos anos de amadureci-
fica clara nas cartas escritas por ele do cárcere; assim como Bourdieu perma- mento após a universidade, tanto Gramsci como Bourdieu foram profundamen-
neceria igualmente apegado a seus pais durante toda a vida deles, retomando I ' transformados por lutas que transcorriam bem longe de seus lares. Mesmo
periodicamente ao lar para realizar pesquisas de campo. Suas formações rurais durante esses anos, porém, Gramsci se manteve muito mais ligado politica-
jaziam profundamente incrustadas em seus habitus, suas disposições e seus 111ente aos protagonistas dos acontecimentos que Bourdieu, cujo engajamento

pensamentos - quer na forma da herança latente, quer na forma da veemen- político manifestou em si um distanciamento epistemológico.
te negação". O mundo racialmente bipartido do colonialismo distanciara Bourdieu dos
Gramsci não concluiu a faculdade; ele mergulhou fundo na vida política da nrotagonistas da luta na Argélia, assim como a ordem de classes da nuova
classe operária de Turim que se mantivera bastante agitada durante a Primeira ltrilia empurrara Gramsci para o furacão da política operária, muito embora
Guerra Mundial. Gramsci começou sua carreira escrevendo para os jornais I fosse só um emigrado da semifeudal Sardenha. Em conformidade com isso
socialistas Avanti! e Il Crido. Após a guerra, ele se tornou editor da L'Ordine I li partir desse ponto, essas duas biografias tomariam caminhos diferentes.

Nuovo - a revista cultural da classe trabalhadora em Turim, designada para pó a derrocada dos comitês de fábrica, Gramsci tornou-se líder do movi-
articular sua nova cultura e destinada a se tornar a revista mensal do movimen- monto dos trabalhadores, membro-fundador do Partido Comunista Italiano
to dos comitês de fábrica e das ocupações de indústrias entre 1919 e 1920*. 111\ 1921 e seu secretário-geral em 1924 - precisamente no ano em que o
Bourdieu, por sua vez, após concluir a universidade e dar aulas em um liceu I\, .isrno começava a se consolidar. Ele passou alguns anos no Komintern+,
por dois semestres, foi convocado em 1955 para servir o Exército Francês na I 11\ Moscou, e no exílio em Viena. Ele também viajaria pela Itália após 192. ,

Argélia. Ele seria mantido nesse posto por cinco anos, após os quais, condu- I 11\ lima época em que sua eleição para deputado lhe dera imunidade paria

ziria ali pesquisas de campo, lecionando na universidade e registrando em 111I mar, Isso duraria até 1926, quando Gramsci foi detido com base no novo
vários escritos a cultura e as lutas do povo argelino colonizado - tanto nas I IIdi 'o penal, e levado a júri em 1928. O tribunal decretaria que o intelecto li '

cidades como nas aldeias. Com a fase de reocupação e de austeridade que se ( rnmsci deveria ser tolhido por 20 anos. Gramsci só deixaria a prisão depois
seguiu ao recuo temporário do movimento anticolonial, após a Campanha dos di haver produzido, malgrado numerosas e finalmente mortais doenças, a l1H1is
Argelinos (1957-1958)**, a situação de Bourdieu tornou-se insustentável e ele I \1 \1 iva teoria marxista do século XX: seus famosos Cadernos do cárcere"

* Itália, 1919-1920. Nas eleições para o parlamento em 1919, o Partido Socialista Italiano
conquistou quase um terço dos votos, consolidando-se como a maior força política da IIIIIM 'Auir a independência e a Constituição. O aumento de atos de guerrilha e de 11'11'1,1 11111
Itália. Nesse mesmo ano, os protestos populares contra o custo de vida irromperam de um IIIIIVOCOU a reação da França, com ataques aos muçulmanos e o genocídio da p0I111111\'1111
, I ,11
extremo ao outro do país, sem que o governo conseguisse controlar a situação. Nas cidades, 1'11/1" 1957 e 1958, com a intensificação da crise, o general Charles de Gau 11,' ( \ HIIII 1'/11I1
as lojas eram saqueadas; nas zonas rurais, os camponeses invadiam os latifúndios impro- , IllIVl1l'Oll um plebiscito, no qual os argelinos se pronunciariam pela independ 1I('i1l tI"II"III"
dutivos. Em 1920, os operários das grandes cidades industriais, dentre elas Turim, ocuparam 11, I %2, a Argélia era declarada urna república socialista independente. (11111'\'111111
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um grande número de fábricas. Devido a essas agitações, os anos de 1919-1920 passaram , Viii IIllçilo maciça dos colonos. Em seguida, eclode urna guerra aberta entre as v 1111 lill \"
para a história italiana corno o biênio vermelho. Foi corno reação a essa efervescência dos 1111
/'1 ,N 110poder. Ahmed Ben Bella é eleito o primeiro presidente em 1962. MII~ I 1'''1 1%
trabalhadores que apareceram os primeiros grupos fascistas. Ver Gramsci, Conselhos de 1111111111('1
l louari Bournedienne derrubaria o governo e assumiria o poder total. HNIIIVIIIIIIII
fábrica, 1982. (N. do T.) 1111111111
profecia de Frantz Fanon! (N. do T.)
** Argélia, 1957-1958. Com a tomada da capital Argel em 1830, a França anexou a Argélia em c '111111111
'111ou Kornintern (Terceira Internacional Comunista). Em março de 1919, L 11111/1H/11
1834. Após vencer a prolongada resistência dos nômades berberes, a metrópole transformou a 1'/'111'11011 a T rceira Internacional, comumcntc conhecida como Komintern, 1111I'/1\111'11111/111

Argélia em um departamento ultramarino, controlado pela minoria europeia -Ies colons I '1IIvIIIIIlII'S dos pari idos comunistas l'slrllllJ' .íros impulsionar a r volução 1IIIIIIlIIIII I "'i
que formava a elite privilegiada. Graças a grandes entradas de capital püblico c privado, d S '/1 11111111
IIll1mklo sovi rico. Al'll'lIlll1VIl I'IJIII' 1I'\'VIlIIIÇI o russa jfl 111
fi is 'si li ri 11SI')! 111'li 1111"111

volver-se-ia ali uma economia moderna. O nacional r. ,IlO argelino surgiriu IOllo após li Prim 'i IJIII 11 IIlll10N pu M'S S 'IOIIlIlN 1'111 '"11111 111 (;"I'II~(,II'lIhlllholl Jlllnl o 01111111,"111'111
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ra Guerra Mundial entre os grupos muçulmanos OU i~Ii11l1i1,l1d(1s, A J('slsl 111'111
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o MARX/SMO ENCONTRA BOURD/EU TORNANDO A DOM/NAÇÃO DURÁVEL: GRAMSC/ ENCONTRA BOURD/EU

Curiosamente, o cárcere manteria enjaulados também os detratores de Josef Bourdieu, ao contrário, só ingressou na atividade política perto do final da
Stálin. O estado de saúde de Gramsci agravou-se continuamente até sua mor- vida, com sua teoria já bem elaborada sobre os mecanismos de reprodução da
te em 1937, devido às complicações da tuberculose, da arteriosclerose e do , ociedade, baseada em análises da ação estratégica no interior dos campos
mal de Pott - doença que destrói pouco a pouco as vértebras. E isso aconte- uciais, com seu acessório conceitual costumeiro: o habitus. Este, lembremos,
cia justamente quando a mobilização internacional por sua libertação ganha- I r isultado da incorporação das estruturas da sociedade pelos corpos dos agen-
va terreno. I('s, na forma de conjuntos de disposições. No final dos anos 1990, encontran-
A trajetória de Bourdieu pode não ter sido tão diversa. Depois da Argélia, do a esfera pública - lugar onde os intelectuais tradicionais costumam pro-
ele ingressou na academia, galgando posições nos principais institutos de pes- I lurnar suas verdades - cada vez mais distorcida e rarefeita pela mídia,
quisa franceses, escrevendo artigos sobre o papel da educação na reprodução Hourdieu adotaria a postura ofensiva, a ponto de apoiar abertamente aqueles
das relações de classe na França. Bourdieu foi admitido no prestigiado posto pllhlicos que sofriam ataques análogos por parte do Estado. A firme defesa da
de mestre [professorship] no College de France em 1982 - cargo que faria dele uuonornia do intelectual e das atividades acadêmicas, com sua agressiva in-
um proeminente intelectual público e, nos últimos anos de vida, um herdeiro I'SIida contra as mitologias neoliberais, fez dele uma das figuras públicas mais
do cetro e do trono que fora de Jean-Paul Sartre e de Michel Foucault. Desde I I I 'ores da França, muito embora ele aí se mantivesse dentro dos velhos mol-
o início, seus trabalhos tinham impacto e postura política, todavia, eles ganha- di do intelectual tradicional.
riam teor mais ativista e mais urgente só em meados dos anos 1990 - em es- S • a teorização elaborada por Gramsci no cárcere avançou para além da
pecial com o retorno dos socialistas à presidência em 1997. Desde então, Bour- 11I própria prática política, as teorias acadêmicas criadas por Bourdieu anda-
dieu defenderia publicamente os despossuídos e combateria a emergente 111/11
fi/rasadas em relação a sua avançada postura política. Gramsci pôde es-
tecnocracia neoliberal; atacaria também os jornalistas, repórteres e a mídia de 111ver a respeito do Moderno Príncipe* (o Partido Comunista ideal-típico),
massa em seu livro Sobre a televisão (l999br. Bourdieu encarregou-se de 111I não pôde encontrá-Io na realidade. Já Bourdieu, como ainda veremos,
inúmeras iniciativas editoriais - desde sua revista mais acadêmica, a Actes de 1I1111I1j')eu
na cena pública sem qualquer justificativa teórica. Falando mais ela-
Ia Recherche en Sciences Sociales, até uma série de livros mais engajada e I uiu-ntc, o primeiro (Gramsci) tinha a teoria sem a prática, enquanto o segun-
militante, a Raison d'Agir. Em seus últimos anos, ele tentaria organizar o d" (Hourdieu) tinha a prática sem a teoria. Colocá-Ios em diálogo nos ajudará
"intelectual coletivo" - empreendimento que transcenderia as fronteiras na- I di rnv Iver suas peculiaridades e pontos cegos, assim como esclarecer sua
cionais e disciplinares, colocando em diálogo as mentes mais progressistas IlIlpurlância na compreensão da conjuntura política na qual vivemos.
para a reconstrução do debate público.
Enquanto Gramsci se movera do engajamento partidário para uma existên-
cia escolástica na prisão, onde refletiria sobre o fracasso da revolução socia-
()s intelectuais: tradicionais versus orgânicos
lista no Ocidente, Bourdieu, por sua vez, tomaria o caminho inverso: iria da
vida escolástica na academia para uma oposição aberta e pública contra a maré
111I1111I<;ao
decisiva do habitus político-intelectual desses autores deu-se na
montante do fundamentalismo do mercado, dirigindo-se inclusive a operário
1IIIIIIIIdlld .: quando Bourdieu retomou à universidade em 1960 para dar senti-
grevistas e apoiando suas lutas. A ligação orgânica de Gramsci com o movi-
I" 11 1111
l'XP '<lição argelina; e quando Gramsci ingressou na organização do
mento dos trabalhadores mantida por meio do Partido Comunista fez om que
exagerasse o potencial revolucionário dessa classe. Assim, na prisã .clc dedi-
cou-se a pesquisar o modo pelo qual as elaborada superestruturas do .apitu
lismo avançado - as quais incluem tanto o Es' IUOcorno as r '11I~'0's do IIpU II 1'11111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

movimento dos trabalhadores e do Partido Comunista, assimilando o aprendi- sociologia tem sim esse potencial, mas ela necessita de proteção e elaboração
zado adquirido no movimento dos comitês de fábrica. Suas (di)visões com cuidadosas.
relação à teoria e à política emergiram das posições ocupadas por eles na es- Gramsci, ao contrário, baseava a verdade não na academia, mas nas expe-
trutura social. riências produtivas das classes sociais. Se para Bourdieu algumas disciplinas
Segundo Bourdieu, a produção da verdade científica era um processo esco- 'ram quiçá mais aptas a produzir ciência genuína, para Gramsci, algumas
lástico cuja condição necessária é a skholê - a busca desinteressada do co- classes tinham melhor conhecimento do mundo real que outras! Nesse caso, ele
nhecimento, um ambiente autônomo e protegido para a contemplação e a in- seguia o marxismo ortodoxo, argumentando que era a transformação prática e
vestigação da realidade em comunhão com outros atores. Nos tempos .oletiva do mundo real o que fundamentava o conhecimento mobilizado pelos
modernos, tal espaço é oferecido pela universidade: o quartel-general do cam- Irabalhadores - conhecimento esse negado ao campesinato e à burguesia.
po científico. A competição e as disputas nesse campo (suas lutas armadas, Esse cerne do saber - o bom senso da classe trabalhadora - encontrar-se-ia
como Bourdieu as chama nas Meditações pascalianas) são regidas pelas regras mterrado sob inúmeras camadas de senso comum, o qual compõe o entulho
do método científico, o qual é indispensável para conseguir uma verdadeira scdimentado das ideologias dominantes (existentes ou anteriores):
compreensão do mundos. Entre as ciências sociais, a sociologia desfruta de
uma posição privilegiada, porque, diferente da filosofia ou da economia, ela o homem-massa ativo possui atividade prática, mas não possui clara consciência
está apta a entender as condições especiais da sua própria produção. Quando te rica dessa atividade, a qual pressupõe, todavia, a compreensão do mundo enquan-
exercida com destreza, a sociologia transforma-se em uma disciplina reflexiva to o transforma. Sua consciência teórica poderá, historicamente, estar em contradição
capaz de objetivar o sujeito da objetivação, isto é, produzir conhecimento a '001 sua atividade prática. Pode-se quase dizer que ele possuiria duas consciências
I -óricas (ou só uma consciência, mas contraditória consigo mesma): a primeira, que
respeito da própria produção do conhecimento - façanha que não representa
sua defasagem, mas sim o seu valioso recurso para o avanço da ciência social. I'stá implícita em sua atividade prática, ligando-o à realidade de seus colegas de tra-
hulho na transformação prática do mundo; e a segunda, só superficialmente explícita
Haja vista a sociologia estar comprometida com o mundo social, ela está, pela
011verbal e que ele herdou do passado e absorveu de forma acrítica. Mas essa noção
mesma razão, forçada a garantir-se a si mesma e suas condições de existência.
verbal não é desprovida de consciência. Ela mantém unido aquele grupo social espe-
O mesmo não acontece com a filosofia e a economia - disciplinas que padecem
I'fico; ela influencia a conduta moral e a direção dos desejos, fazendo isso com efi-
daquelas falácias escolásticas resultantes da equivocada e inadvertida projeção
1'11'ia variável, porém, sendo com frequência poderosa o bastante para produzir situa-
de condições especiais de produção intelectual sobre o mundo que elas estudam.
\'n 'S nas quais o estado contraditório da consciência não permite nenhuma ação,
Para elas, tudo se daria como se as pessoas comuns fossem guiadas por "estru-
11-uhuma decisão e nenhuma escolha. Isso produz um estado de grande passividade
turas elementares" (Lévi-Strauss), por imperativos morais abstratos (a comu-
moral, O conhecimento crítico do próprio eu tem lugar, portanto, em uma luta de
nicação sem distorções e sem obstáculos de Habermas) ou por modelos basea-
'11\' .monias" políticas e de direções opostas - primeiro no campo da ética e depois
dos na ação racional (os economistas e o behaviorismo). Essas ciências trocam
1111
t'Hl11pO
específico da política, a fim de chegar à decisão num alto nível da própria
as coisas da lógica pela lógica das coisas!
I ,,"sei mcía da realidade".
Outro é o perigo que afeta disciplinas como a medicina e o direito: elas
transformam-se em servas do Estado. Raptadas por políticos, tais ciências
I i11I outras palavras, os trabalhadores industriais possuiriam duas consciên-
alienam sua autoridade científica e com isso perdem a capacidade de confec-
1 j I, : umu pari' o bom S'I1S0 qu vem da transformação coletiva da natureza;
cionar conhecimento certificado. Até mesmo a sociologia pode sucumbir
I 11111111
pllltl' { () Sl'IlSOcomum qu ' inclui iarnb 111a consciência popular que
àquelas falácias e ser abduzida pelo Estado - como Bourdieu deixou bem
I rlmu-utn 111'1
ilkolol 111.'!lOIlIÍIIIIIIII'StOllllldas '01110 dadas' s '111 crff i 'a. No
claro com sua devastadora condenação da SOl' ologia estadunid ns c com
1111hlllll'IIIIII.\HlIIIIIIIII. I 11111.di' 1I1 ,I' 11I11I1Í1'1'sllllll
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seus ataqu s aos colegas Francos s. '111outras palavras, 11IIlIivl'rNidlldl' c o
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TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU
o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU

Conforme o marxismo ortodoxo, o campesinato nunca conseguiria desen- preensão a respeito de sua própria posição no mundo". Portanto, nada há aqui
volver o bom senso, pois ele não participa da transformação coletiva da natu- para os intelectuais elaborarem. Isso náo quer dizer que as pessoas sejam to-
reza por meio da divisão orgânica do trabalho. Seu conhecimento e sua com- talmente ingênuas (pelo menos não todas). É que elas seguem uma lógica
preensão do mundo não podem ser senão parciais, fragmentados e dependentes 11. própria, uma lógica prática. Porém, elas não possuem nem capacidade nem
A moderna burguesia, por sua vez, poderá sim alcançar a universalidade, porém, condições de tomar essa lógica como objeto de análise, para enfim transcen-
sua universalidade também será algo parcial, porque a transformação do mun- derem da lógica da prática em direção à lógica da teoria. Segundo Bourdieu,
do natural que ela empreende é indireta, mediada pela classe trabalhadora e isso seria privilégio reservado apenas aos sociólogos na qualidade de cientista
fundamentada em seu interesse mesquinho pelo lucro. Trata-se de uma falsa aconchegados na skholê universitária.
universalidade, visto que a burguesia nunca poderá abarcar os interesses legí- Bourdieu então desafoga sua cólera contra o que ele denominou "a rnitolo
timos de todas as classes sociais. gia do intelectual orgânico" ligado à classe social. Como fração dominada da
Para Gramsci, o intelectual orgânico - alguém organicamente vinculado classe dominante, os intelectuais intensificam suas lutas dentro dessa classe a
à determinada classe social- possuiria duas atribuições: de um lado, comba- unir forças com a classe operária. Com isso, eles desenvolvem uma identifica-
ter as ideologias e mitologias da classe dominante a fim de revelar o caráter ção ilusória com os trabalhadores:
arbitrário daquelas ideias; de outro, elaborar o bom senso a partir do senso
comum da classe trabalhadora a fim de transformar esse bom senso em um Não é nem questão de verdade nem de falsidade a insuportável representação do
conhecimento teórico do mundo. O Partido Comunista - o Moderno Príncipe, mundo da classe trabalhadora que os intelectuais produzem quando, ao se colocarem
o incansável elaborador, o intelectual coletivo - seria o veículo do desenvol- na pele do trabalhador sem terem, porém, o habitus do trabalhador, eles apreendem as
vimento da consciência da classe trabalhadora. Mas ele não elaboraria a cons- condições da classe trabalhadora através de esquemas de percepção e de aprecia ,10
que não são aqueles que os próprios membros dessa classe mobilizam na apreensão do
ciência dos trabalhadores a partir do nada; em vez disso, o partido e a classe
mundo social. Essa é a verdadeira experiência que o intelectual pode obter do mundo
deviam entrar em uma relação dialógica. O intelectual orgânico só poderia ser
dos trabalhadores ao se colocar provisoriamente e deliberadamente nas condições d 'S
eficaz por meio da relação íntima com a classe, o que, para algumas interpre-
sa classe. E isso se torna mais e mais provável, porque, conforme vem ocorrendo, 11111
tações gramscianas, implicaria ter ele mesmo vindo da classe operária. O in-
crescente número de pessoas está sendo lançado na classe trabalhadora sem t r S('II
telectual orgânico não é nenhum indivíduo isolado; é sim alguém imerso em
habitus que é o produto dos condicionamentos "normalmente" impostos àquel 'S l(III'
uma organização específica: o partido político - entidade análoga ao que a
estão submetidos a tais condições. O populismo não é outra coisa senão o etnoc '11111
universidade era para Bourdieu.
mo de ponta-cabeça 13.
Não menos que a universidade, o partido político também apresentaria for-
mas patológicas que corromperiam a produção do conhecimento - seja por
Em suma: o intelectual, cujo habitus é formado pela skholê, não POdl'1 I
meio do vanguardismo que tende a impor sua verdade a partir do nada; seja
avaliar corretamente a condição da classe operária, cujo habitus é confornuulo
por meio da subserviência acrítica ao senso comum. Aqui, Bourdieu emprega
pela eterna e precária busca pelos meios de subsistência. O abismo ai i '11 1I
a visão crítica de Gramsci sobre os partidos e a absolutiza de propósito. Desse
rande que impediria qualquer diálogo e todo esclarecimento mútuo entre 11I1
modo, para Bourdieu, aquelas duas patologias mencionadas (o vanguardismo
balhador s e intelectuais. Essa é, como podemos perceber, uma visão bastunte
e a subserviência) seriam inerentes à própria natureza do partido político, por-
xornhriu '111relação às possibilidades de cngajamcnto dos intelectuais '0111
que a classe trabalhadora, ou mesmo qualquer outra "classe", jamais poderia
quaisquer outros IfUpOS ai m deles m srn 1', naturalrn nt '.
alcançar a intuição científica, quer dizer, a verdadeira realidade. Na linguagem
D\ um lado. 11111111 .onrnro d .rnusiudn próximo COIIIos Irllllllllll(/Oll'
'f 11111
de Gramsci, Bourdieu nega que as classes sociais possuam algum núcl 'o de
011111'1'11110
l'01l1qualquer outr I 'Iass' soei:" sll(lmillllll isl' 11 Sl' I, l'l ('11111111111
bom senso escondido debaixo do senso c murn. O s nso comum d .lus s 'ria
IIlIllllHII 111 I'lllll'l'p,' I', l'quivlH' HII. I h 011110,1'1111111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

preenderem nem a si mesmos nem aqueles com quem se unem, sofrem a ten- tual tradicional não é tanto feita contra a incapacidade deste em concretizar a
tação de exercer um despotismo esclarecido e manipular os trabalhadores. Com autonomia, mas, antes, sua crítica é dirigi da contra o projeto mesmo, a saber,
efeito, pretender elaborar a consciência da classe trabalhadora e pretender fi consolidação de uma dominação ideológica ao apresentar os interesses dos
falar em nome do povo já significaria substituir a si mesmo pelo povo. Bourdieu, dominantes como sendo os interesses universais. Para Gramsci, os intelectuais
inclusive, estende tal crítica aos líderes políticos em geral que são regidos pela da classe dominante precisam manter-se autônomos para poderem se apresen-
lógica do campo político - campo no qual os representantes das organizações lar como portadores de uma (falsa) universalidade. Gramsci encararia a uni-
competem entre si, manipulando conforme seus interesses as representações versalidade defendida por Bourdieu, com sua meta de torná-la acessível a todos,
dos representados. Eis a visão de Bourdieu sobre a lei pétrea da oligarquia como nada muito além do que o aperfeiçoamento da ideologia dominante do
intelectual. Ele era profundamente cético quanto à capacidade dos políticos e capitalismo.
dos sindicatos de se mostrarem sensíveis às demandas daqueles que afirmavam Por isso, os intelectuais provenientes da classe dominante (latifundiária) da
representar!", Caso os intelectuais se tornassem sensíveis às reivindicações dos Alemanha e da Inglaterra, ou aqueles vindos da ordem feudal da Itália, possu-
representados, eles igualmente virariam reféns de noções errôneas, ao passo Iam autonomia intrínseca somente em relação à classe dominante (industrial),
que se eles se tornassem sensíveis às pressões do campo político, então, prati- pois estavam assentados em suas conexões com sistemas de produção anterio-
cariam a distorção contrária: trairiam seus aliados mesmo quando falassem em res (mercantis), o que os tornava especialmente aptos para criar certa repre-
nome deles. sentação do universalismo que às vezes se manifestava em um anticapitalismo
Gramsci era muito atento às ciladas à espreita do intelectual orgânico. Eis franco. Porém, sua verdadeira função social era reproduzir o capitalismo, ao
porque ele frequentemente enfatizou a cegueira dos intelectuais às experiências protegê-lo não apenas dos grupos explorados e subjugados, mas também da-
da classe trabalhadora. Com efeito, Bourdieu apoderou-se sorrateiramente des- queles capitalistas que não conseguiam enxergar nada além dos seus interesses
sas advertências gramscianas sobre as patologias da representação e as trans- sconômicos imediatos.
formou na rejeição da própria ideia do intelectual orgânico.". Em outras pala- Bourdieu tinha duas respostas a tamanhas acusações. A primeira era que a
vras, enquanto Gramsci permanecia atento aos perigos à espreita dos agentes, universalidade burguesa, fundada nos campos culturais, foi a mais elevada
com o objetivo de reafirmar sua possibilidade de engajamento, Bourdieu enfa- conquista da humanidade e, sendo assim, nossa meta era universalizar o aces-
tizava esses mesmos perigos para rejeitar pura e simplesmente o desafio do so àquela universalidade. Todo mundo devia ter a oportunidade de apreciar um
engajamento. A confiança gramsciana no intelectual orgânico era baseada no Flaubert, de admirar um Matisse. Em outras palavras, a autonomia intelectual
cerne de bom senso que Gramsci entendia existir no âmago da classe trabalha- sra realmente de interesse universal - a ponto mesmo de se negar às classes
dora, ao passo que Bourdieu negava haver tal coisa. Para ele, esse diálogo exploradas e subjugadas a percepção que elas mesmas podiam ter das próprias
seria artificial e, portanto, perigoso. .ulturas. Esse argumento parece-me bastante consistente com a noção grams-
Deixe-me agora virar a mesa sobre os intelectuais de Bourdieu, com sua ciana de intelectual tradicional, cuja função é reproduzir a dominação por meio
empedernida preocupação com a autonomia do campo escolástico-acadêmico. da negação de qualquer cultura alternativa. Mais interessante, porém, é a se-
Sem dúvida, Gramsci considerá-los-ia intelectuais "tradicionais" - indivi- tunda estratégia de refutação de Bourdieu, a saber, que a autonomia dos inte-
dualidades que "experimentam, por meio do espirit de corps, sua ininterrupta I ' .tuais cria, em condições ótimas e ideais, um saber crítico que desmascara a
continuidade histórica e qualificação especializada. Eles se põem então à fren- dominação. Em outras palavras, a posição ocupada por Bourdieu no campo
te das classes sociais como sendo independentes e autônomos em relação ao vi -nt fi 'o p .rrnitir-lh -ia demonstrar como a distinção cultural esconde a do-
grupo social dorninante't". A preocupação frequentemente manifestada por hnscndn Ilas r la<;<'s de class s, Porém, aqui também encontraremos
IlIÍIIW,;1I0
Bourdieu é que a autonomia dos campos cultural e intel ctual se .n '01111':1 (J M'/'lIil1t 'parado o: 1I1l111llWlIIIS
() dl'sl1lllS 'aram ruo, mas tarnb m o ma, ara-
permanentemente ameaçada, quer p 10 Estado, qu 'r pelos nn-rcudox. Tnl ali 1I11'Iltodll rlnnuun 10 tll'lH'IUh' ti I ,llIllIlIOlllill dos ('lIlIlpOS 'IIllllrnis c, sendo
sên ia de autonomia' IIIll rcn I1lCIlOalllplallH'IIII' dl'llIlllCllldlll'lI1 1111/1/11111"1/ I 1111,ddl'luh'l I' ,11 IIlItIIIlIlIIl I IlIlfllll I dl'il'lIdl'l 11 dllllllllll, 1111);1~I'lIdllII/IS
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IlIt!'l"1 I !'I I 111 til 11.1 t
TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU
o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU

Pondo à parte a questão da defesa da autonomia acadêmica em Bourdieu, distanciado de tudo e de todos) e aceitem trabalhar coletivamente pela defesa dos próprios
a próxima questão é: para quem ele estaria falando? Como ele mesmo disse Interesses. Isso deveria levá-Ios a se afirmar como poder internacional de crítica, de
vigilância ou mesmo de proteção social contra os tecnocratas; ou ainda - com uma
em Sociologia em questão'", as classes dominantes não têm qualquer interesse
umbição ao mesmo tempo mais elevada e mais realista, portanto, limitada à sua própria
na mensagem da sociologia e, muito embora os dominados tenham tal interes-
esfera - a se envolver em uma ação racional em defesa das condições de autonomia
se, eles não têm capacidade de compreender a mensagem sociológica - tão
de ses universos socialmente privilegiados, nos quais são produzidos e reproduzidos os
profundamente enraizada é sua socialização no capitalismo. E eis o derradeiro
In trumentos materiais e intelectuais daquilo que nós chamamos a razão. Essa Realpo-
paradoxo em Bourdieu: sua insistência em realizar a ruptura radical com o
litik da razão, sem dúvida, será suspeita ou acusada de corporativismo. Porém, será
senso comum e seu temor de que o engajamento dos intelectuais com os do-
parte da sua tarefa provar - pelos fins a serviço dos quais ela disporá os meios - que
minados fosse algo perigoso estavam em desacordo com seu projeto de tomar
este será o corporativismo do universal".
a dominação totalmente transparente. A profundidade do desconhecimento dos
indivíduos dominados significaria que o desmascaramento da dominação não
Seria esse "corporativismo do universal", pelo qual os intelectuais apresen-
podia ser realizado a distância. Na prática, Bourdieu parecia gostar dessa con-
turiam seus interesses particulares como sendo os interesses universais, algo
duta; eis por que ele foi o único dentre os aclamados intelectuais europeus a
nlém daquela ideologia típica da classe que Alvin Gouldner" chamou de "clas-
ser visto em piquetes dialogando com trabalhadores em greve nos anos 1990.
se universal imperfeita". Que fins - que visões e que divisões - teria Bourdieu
O que ele estaria fazendo então senão aspirando a ser um intelectual orgânico?
r eservado a esse intelectual orgânico da humanidade'F' Haveria algo mais para
Sua prática parecia desmentir sua teoria.
.sse Moderno Príncipe realizar, além da defesa da autonomia da ciência e da
Sendo assim, enquanto Bourdieu dirige sua dupla crítica ao intelectual
.ultura? Por que motivo deveríamos confiar nos intelectuais - esses mensa-
orgânico de Gramsci - quer sucumbindo à ignorância popular, quer lhe
geiros indiferenciados do neoliberalismo, do comunismo, do fascismo, do ra-
impondo seu desconhecimento autointeressado -, Gramsci poderia retribuir a
.ismo - para serem os salvadores da humanidade? Ao dissecar as falácias
"gentileza" com sua própria crítica dupla ao intelectual tradicional de Bourdieu:
'scolásticas dos outros autores, teria Bourdieu omitido a maior ilusão de todas:
ou o campo intelectual é permeado pelas forças sociais corruptoras e desvir-
o autoengano dos intelectuais, acreditando serem eles os potenciais mensagei-
tuadas dos mercados e do Estado e, portanto, seus laços com a classe domi-
ros de um universalismo bastante duvidoso? Bourdieu, portanto, substitui a
nante seriam transparentes; ou o campo intelectual é autônomo e, dessa fei-
universalidade da classe trabalhadora, baseada na produção e forjada pelo par-
ta, como é mais provável que aconteça, ele só promoveria a universalidade
Iido político, pela universalidade de intelectuais encastelados na academia que,
dos dominantes. A crítica de Bourdieu à dominação é, pois, ela mesma ex-
s .gundo Gramsci, era a forma mais pura da hegemonia burguesa.
pressa nos termos da universalidade cultural e artística. Na total falta de um
veículo que comunique semelhante crítica às classes que nela têm interesse,
a universalidade transformar-se-ia simplesmente numa espécie de subsidiária
Dominação: hegemonia versus
da dominação.
No postscriptum de As regras da arte"; Bourdieu não emprega a mesma
violência simbólica
ênfase e se arrisca. Por não ter atribuído qualquer papel histórico às classes
 valorização alternativa, ora do intelectual tradicional, ora do intelectual or-
dominadas e por ver as classes dominantes extenuadas por sua própria domi-
I ni 'o, lança bases para teorias divergentes da dominação: de um lado, temos
nação, ele apontou para uma "internacional dos intelectuais" como a salvação
(ll'llllls 'i 'sua h') 'nlOl1iu Iundudu no consentimento; do outro Jado, Lemos
da humanidade:
Iluurdi 'li .xuu viril llcin silllholkn Iuududa no rccalquc da dominação. A h '-
1"'llIollin (' t' pl cita t' d,' Illlld I 1'111111110. (10<1(' S('I' suhvcrt ida pelo intcl '('111111
Os produtores de cultura e de ciên ia não .ncontrarão 110VIII1I '11((' 110 1111111(10 NO .iul
1I1~ 1111\ u, 11 I vI1I1 111 11 1IIIIudll I I 1111 11"1111 " illl'III1Sl'Í"IIIl'. ,('lido 111)('1111:-.
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA HOURDIEU

Bourdieu rejeitou as concepções marxistas de ideologia e de falsa consciên- I luindo aí os aparatos tanto ideológicos como repressivos. A organização do
cia alegando serem "fenômenos de superfície", inadequadas, portanto, para I unsentimento, por sua vez, seria totalmente dependente da inclusão dos indi-
lidar com a inscrição das estruturas sociais nos corpos dos agentes, na forma vrduos, com sua participação na sociedade civil sob a liderança dos intelectu-
do habitus que se sentiria à vontade sob a dominação e que tampouco se reco- lIis tradicionais: professores, padres, líderes comunitários, advogados, médicos
nheceria como tal: I ixsistentes sociais.
paralelo entre a hegemonia e o poder simbólico é impressionante, mas a
Na ideia de falsa consciência, evocada por alguns autores marxistas para explicar o di r .rença entre os dois conceitos é decisiva. Conforme Bourdieu, a dominação
efeito da dominação simbólica, é a palavra "consciência" que é excessiva; assim como seja a de classe, seja a de gênero - é mantida graças à existência de um
falar em "ideologia" equivale a colocar na ordem das representações - capazes de universo simbólico que redefine categorias de distinção e, por meio delas
serem transformadas pela conversão intelectual que nós chamamos de "tomada de cons-
uustifica a realidade social subjacente. Nós vemos isso funcionando claramen
ciência" - aquilo que está situado antes na ordem das crenças, quer dizer, no nível mais
1I em A distinção"; em que a dominação subjacente às relações entre classes
profundo das disposições incorporadas".
I uunscrita na afirmação da superioridade cultural que os dominados aceitam
I umo sendo o atributo intrínseco dos dominantes. Além disso, o Estado con-
Em outras palavras, a submissão à dominação não é uma questão de cons-
111'
I"H tais distinções, definindo quem deve ser considerado um cidadão, o que
ciência; seria antes uma questão de crença, uma questão de habitus - aquelas
I 1111I
grupo radical, uma ocupação, uma credencial educacional e por aí vai.
disposições e apreciações profundamente inculcadas e inacessíveis à consci-
I I mbremos que Bourdieu afirmou possuir o Estado não apenas o monopólio
ência. Gramsci, por sua vez, não seria menos antipático a essa sociologia da
" limo da violência física, mas também o monopólio legítimo da violência
submissão espontânea e inconsciente defendida por Bourdieu:
huhólica, Podemos perceber aqui uma expansão do Estado que é paralela:
11H'llIsãofeita por Gramsci dos aparatos ideológicos estatais, porque é apenas
Se a ciência política é a ciência do Estado; e se o Estado é todo esse complexo de
1111
universo simbólico que se pode operar tanto no nível da consciência como
atividades práticas e teóricas com as quais a classe dominante não apenas justifica e
V I do inconsciente.
111111
mantém seu domínio, mas também o gerencia para obter o consentimento dos domina-
S' existem, portanto, paralelos entre os dois autores quanto à que tão du
dos, então, é óbvio que todas as questões da sociologia são na verdade questões de ci-
I ti rnsão do Estado, haveria também algo parecido com a sociedade civil '1'1\
ência política. E se restar aí algum resíduo teórico, este deverá se constituir apenas por
falsos problemas, ou seja, por questões frívolas+'.
111r-luna no quadro conceitual de Bourdieu? Semelhante à descrição r ira IHII
\ I hcr da modernidade como correspondendo à emergência de várias I H/I'I:I
t1l1l'litivas,o espaço social descrito por Bourdieu é composto por vários I 1111
Desse modo, segundo Gramsci, a hegemonia não teria um fundamento in-
1111 1111nomos e diferenciados - o científico, o econômico, o buro 'ntlilll. 11
consciente. Ela se distingue da ditadura, que é uma forma específica de domi-
111111(0, O religioso, dentre outros. Temos aqui arenas de atividade 111111111111
nação que combina coerção e consentimento, sem que o uso da força desapa-
'1111silo d finidas por metas, regras e capitais específicos, dando uporte I di
reça totalmente. Aqui, a força é objeto de consentimento, de concordância. A
I111111'S I .rritôrios de competição e luta social. O campo do poder (un 10/11 I
hegemonia é o consentimento protegido pela armadura da coerção, da força.
1111'lIude 'ivil grarnsciana) abriga todos esses campos juntos; já o l'llIlqlll
O que é decisivamente original quanto à formulação gramsciana no contexto
11111111\'0,
qu 'r diz 'r, o Estado, é O lugar das lutas em torno das regras c lilltllt
do marxismo é sua mobilização da hegemonia para explicar a expansão da
111111IINcnmpos, assim como elas "taxas de ârnbio" entre f'ClISdifcr 'li\(', ('11
sociedade civil, como ocorrida no final do século XIX - com sua densa vida
I' pie Ikos, II1 in .luaivc uluumns 'vid n 'ias .onformc us quais 111'1111'1
1111111
associativa entre o Estado e o mercado, composta pela mídia de massa, por
I' 11111111'(' IIIIJlOSNIH'llIisn-lutivnnu-nu- 111111I01l1llS,nu linul do se .ulo , I. ,111
igrejas, partidos, entidades sindicais, pela universalização do ensino h::ísi 'o I'
11111111
1111Ir Ido pw IIOllldi"II"1I1 111d,,, 1'111.'
111d 11' 111',I' dos 1'llIlIpO, 1111,111'\1,
por uma infinidade d associaçõ s voluntárias.A so 'i idade .ivil csu inll'il'll
11111111'(11)111'
1111111111/11,
di' u uulu r ruu (li 1111I I, 1 11111
1 I'IIH'I}'IIII I1 ti I 111I'
m '1I1e '011' .tudn [10 ESln(!o, qlll' passnl'Ía 'Il' pl'llJllio por 111111I
I'X»IIII 1111.lu
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1111
o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL.' GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

interior do campo do poder, assim como a articulação entre diferentes asso- Bourdieu apresenta-nos a prática política na forma de um jogo no qual as
ciações dentro da sociedade civil, é algo que não possui natureza única, regras, as metas e as formas válidas de capital são tomadas como dadas. COIII
sendo, antes, objeto de lutas inclusive em relação às estruturas que estrutu- efeito, o ato de jogar o jogo já implica um investimento tácito nesse jogo - a
ram essas lutas. illusio. As lutas são concebidas como estratégias inconscientes e conduzi das
O que dizer então das lutas dentro da sociedade civil, isto é, no interior do por uma percepção antecipada do jogo que absorve a atenção e a criatividad '
campo do poder? Aqui nós também podemos destacar algumas convergências dos jogadores. Para qualquer observador externo, o jogo poderia parecer in-
que esclarecem as discrepâncias. A centralidade da sociedade civil para a or- significante e sem significado, mas, para seus participantes, ele é a razão d '
ganização da hegemonia tem uma importância fundamental na compreensão viver, mistificando e mascarando as condições subjacentes à dominação qu .
gramsciana das revoluções. O assalto direto contra o Estado, o confisco do tornam possível o jogo. A luta pela articulação entre os jogos, quer dizer, a
poder estatal, enfim, aquilo que Gramsci chamou de guerra de movimento luta no campo político, tem lugar no campo do poder, que é totalmente irnuu
precisaria ser precedida pela guerra de posição: a transformação vagarosa e à influência das classes dominadas e subalternas.
paciente das instituições da sociedade civil, trazendo-a para fora do Estado Como Gramsci poderia reagir a isso? Para Gramsci, a experiência da clas-
e reorganizando este último sob a direção do Partido Comunista - o Moderno se trabalhadora é transcendente, por isso, a guerra de posição, quer dizer, 11
Príncipe, o inventor e o construtor da hegemonia alternativa. A revolução em transformação da sociedade, é a luta pela hegemonia de uma classe social
duas etapas de Lênin*, na qual o Estado capitalista é destruído e substituído sobre as outras; luta na qual cada classe procura apresentar seus interesses
pela ditadura do proletariado que definhará e suprimirá depois a si mesma, como sendo os interesses universais. No capitalismo avançado, a hegernonin
pôde funcionar bem na Rússia, onde a sociedade civil era fraca, mas não po- burguesa é especialmente poderosa. A descrição que Gramsci fez da ernerc n
deria funcionar no Ocidente, onde a sociedade civil tem sua própria relação 'ia da hegemonia burguesa também serve de cenário para situar a luta pcln
com o Estado. Na Rússia, a guerra de movimento chegou antes, seguida pela .mergência da hegemonia socialista. Assim, ele compara a formação das '1IIs
guerra de posição, que foi a construção da hegemonia socialista de cima para se, sociais à imagem de uma escada com três degraus: em primeiro lugar, V'III
baixo. Já no Ocidente, a guerra de movimento significaria apenas a tomada o estágio econômico e corporativo, no qual as frações de uma elas e soe i ai
final do poder do Estado, depois que a muito mais difícil guerra de posição perseguem seus interesses materiais imediatos (indústria têxtil versus mim-r I
fosse vitoriosa. ~l ; capital industrial versus capital financeiro; trabalhadores grãficos 1 N,I'/I,\'

Para ser exato, Bourdieu acharia ridícula essa ideia de guerra de posição. trabalhadores do setor automobilístico); em segundo lugar, vem a consol idlll\ 111
Muito embora ele nunca tivesse realizado nenhuma análise coletiva das lutas du classe econômica (industriais versus latifundiários, brigando pelo livre 111
que atravessam e ultrapassam os campos, ele fez sim uma análise muito mais 11\ rcio; assalariados versus agricultores, trahulh 1111
brigando por legislação
detalhada das lutas dentro desses campos relativamente autônomos - análise () último degrau na escada da formação da classe é uma fase purarn '111l','11111
que apenas realçou o quão difícil é conduzir aí qualquer "guerra de posição". polftica, na qual a classe superaria seus próprios interesses econômico 111
quinhos para representar os interesses de todas as classes, fazendo p 'qlll'llIl
* Revolução em duas fases. No momento da revolução (1917), a Rússia era um imenso império 11.riffcios econômicos que (todavia) não alterariam a natureza css 'I\('I 111111
feudal e agrário. Segundo Lênin (1870-1924), a passagem direta da oligarquia para a socieda-
i/'llcma produtivo dominado por ela.
de comunista seria impossível em tais condições. Além disso, baseando-se em Karl Marx
(1818-1883), ele postulou que, numa fase entre o capitalismo e o socialismo, haveria um perío- Hnlão, a burguesia fez concessões econômicas (melhoria das condiçm- di'
do de transição política liderado pelo Estado e sob a ditadura do proletariado revolucionário. 11ihnlho, salário mínimo, Iimiraç] O da jornada de trabalho) sem, contudo, IIIIH'
Com isso, a revolução para Lênin dar-se-ia em duas etapas. Na primeira fase (socialista), ti
'\'111'NÇIlSlucros. Nu vcrd Idt', IlIis ('011' 'sse cs a levaram a dcs nvolver 11I1VII
propriedade privada seria coletivizada segundo um critério de justiça ainda burguês c parcial,
Já na segunda fase (comunista), com o capitalismo (( alrnentc dis: olvido, 'sIarim11 r unidas I 111I11:l'ills
li' cxtruçu» d,' IIl1d vnlln /\"'111 disso, a burgu 'sia '()nlmlll o li 11

,IS condições ecOnÔl11iCHSpara a xtinção grudu!l1 do Ilslaclo 'das rlossl's N(willls.I\SNII "UNI' dI! 11111',
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

ma relativamente autônomo de ideologias que apresentam os interesses da bur- pIo favorito e que foi inclusive sua inspiração para a noção de habitus é
guesia como sendo os interesses universais. A classe trabalhadora, por sua vez, aquele dos argelinos cujo habitus rural colidia com os campos econômicos da
tem como missão quase impossível construir sua própria hegemonia alternativa. vida urbana. Seu próprio habitus, aliás, moldado por sua origem agrária, per-
Chamo de missão quase impossível porque os operários não dispõem nem das mitiu a Bourdieu ver mais nitidamente a fisionomia do campo acadêmico com
condições econômicas para oferecer concessões, nem do poderio do Estado para o qual suas disposições e apreciações estavam em conflito. Para nossa proposta
executar sua vontade coletiva. No melhor dos cenários, tudo o que a classe aqui, o conflito mais interessante entre o habitus e o campo surge não como
operária possui é o Moderno Príncipe (o Partido Comunista) como seu ins- resultado da mobilidade individual entre os campos (o que nós poderíamos
trumento organizador eticopolítico e reformador intelectual e moral, para chamar de hysteresis situacional), mas como resultado da transformação temporal
poder cultivar sua própria ideologia política - "[ ...] expressa não na forma do próprio campo (o que nós poderíamos chamar de hysteresis processual),
de utopias vazias, não na forma de teorias ensinadas, mas antes pela criação de Homo academicus'i descreve como a expansão do ensino superior provocou
uma fantasia concreta que aja sobre essas pessoas dispersas e desoladas, 1\ desvalorização das credenciais educacionais e bloqueou a sucessão dos pro-

manifestando e organizando sua vontade coletiva'?". Dado esse desequilíbrio l'.ssores assistentes, gerando certa tensão entre as aspirações e as oportunida-
de forças, Gramsci só poderia ser pessimista quanto às possibilidades da ti 'S, entre as expectativas e as possibilidades de concretização, enfim, entre o
revolução no Ocidente. lutbitus de classe e o campo do ensino superior. A hysteresis processual atingiu
Mas o pessimismo gramsciano parece decididamente otimista, quando com- v irios campos acadêmicos ao mesmo tempo, até que as crises locais ou con-
parado à análise da dominação simbólica feita por Bourdieu! Ali, a eficácia da [tmürrais se combinassem e conduzissem à crise geral. As diferentes tempora-
dominação simbólica localiza-se não na apresentação dos interesses da classe lidades (geralmente assíncronas) dos vários campos entraram em concordância
dominante como interesses universais, mas sim no ofuscamento e no encobri- III i iinando a crise geral situada em um tempo público singular e produzindo
mento da própria categoria sociológica da classe social. As categorias de dis- I v .ntos históricos como a suspensão provisória do senso comum, com o des-

tinção que oferecem os padrões e modelos para nossas vidas são tomadas como nmscaramento e o questionamento da doxa* de cada campo, Nesses momentos
algo dado; por isso, a própria dominação torna-se imperceptível ou irreconhe- dI' polarização forçada e de inversão hierárquica, tudo parece ser possível!
cível como tal. Assim, antes mesmo que possa haver lutas de classe pela con- lluurdieu estava, é claro, referindo-se a maio de 1968**.
quista da hegemonia, deverá haver lutas pela afirmação da existência e do
significado das classes sociais. Desse modo, as lutas por classificação precedem
I )oxa são pressupostos indistintamente cognitivos e avaliativos, a partir dos quais os ()hjl'll I
as lutas por hegemonia. Bourdieu problematiza aquilo que Gramsci toma como I' os agentes do campo são classificados e hierarquizados em bom e mau, em I gftill"l I
dado: o reconhecimento da dominação fundada na classe social como uma Ik ítirno, em belo e feio, em superior e inferior, em inovador e ordinário - USSicll 1""
.luuuc esses pares de conceitos opostos da doxa correspondem empiricamentc li P"II' di
condição prévia para a guerra de posição.
IIIISIÇ cs opostas no campo. Sua lei arbitrária e orto-doxa estabelece princípios til' 1,/"1,, I
Quem ingressaria nas lutas por classificação? Nas palavras de Bourdieu, a ,// 1';,\' 10 que reforçam e legitimam sua estrutura, porque funcionam como prin 'fplo 11111111
invisibilidade da dominação estaria baseada no encaixamento, na congruência IjllIl'O suplementar às desigualdades na posse do capital. Além disso, enquanto I1 I' 11111111·1
dllilllilu () espaço dos possíveis, a doxa delimita também o espaço dos pensávrls, 1h'1I111111111
entre a estrutura social e o habitus inculcado por ela mesma. Por outro lado, a
I gítimc
1111111'1'110 de discussão e de avaliação, condenando e recusando como 11I1j1l11l IVI I
durabilidade do habitus e a permanência das disposições inscritas nele, inevi- '1l1l1lqll 'I' I mtativa de estabelecer valorizações alternativas a ela. Ver Bourdicu, MI',lIftlP" \
tavelmente, provocam algumas incongruências ou desarmonias entre os habi- 2001, p. 122. (N. doT,)
/'/lII'ld/II/lfI.I',
Mil 11111'196X, No COI11'ÇO de I%X, Mllf in cntn; os istudantcs franceses uma prof\Il'SSiVIIIII
tus e alguns campos - aquilo que Bourdieu chamou de hysteresis*. Seu exem
P 'lu qunl SI' ('llllrllvlIlIllIl'
IlIlh 111,1111, IplH Idlllk dlls univ 'rsicllldes pura introduziu-ru IHIIIII I
IlIdll d' 1111bu 1IH111111IIIIIIH'IIII 1111VI I di' hlll'llllf
111111111 is fOl'llllldos, 1\0 IIll'SIIHI IrIlIP", di

* Hysteresis (histerese = atraso, deficit). Term que Bou dll f(Ni 'U. TI'!IIII
111'11101111111 S' do lI' 11 1I 1""1"1,"111"111111 111111111111111"1
1111111" 111IIlIlIKi 'lIlI, 1lI11lil'I'slllllllll SlllllplI~l\ 11111
nômeno no qual a resposta de UI1l c rio sisl '11111SI' ,11111,11'11111111\1111111I. Ifllllllu l'xll111lli, 11111dll<ll 1111'111111
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TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU
o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU

A crise espalhara-se pela comunicação feita entre agentes situados em po- Gramsci e Bourdieu lidam com problemas semelhantes - a durabilidade
sições homólogas, isto é, situados em posições subordinadas em diferentes da dominação -, mas suas diferenças de abordagem são profundas. Em pri-
campos. Bourdieu, todavia, advertia contra os perigos de construir alianças meiro lugar, a hegemonia se fundamenta no consentimento, enquanto a vio-
através das fronteiras dos campos - especialmente entre os intelectuais e os lência simbólica se fundamenta no desconhecimento. Em segundo lugar, em-
trabalhadores: bora a sociedade civil envolva e absorva a discordância dos subordinados, ela
também oferece uma arena de lutas; já o campo do poder é reservado somente
As alianças baseadas nas homologias entre posições - cito, como exemplo, aque- aos líderes políticos engajados emjogos feitos entre si, à custa da exclusão dos
las que são estabelecidas conjunturalmente entre agentes ocupando posições subordi- dominados-representados. Em terceiro lugar, da mesma forma que o Estado
nadas no campo acadêmico e agentes ocupando posições subordinadas no campo social orquestra a hegemonia através das conexões que tem com a sociedade civil, o
como um todo - são deste tipo: a não ser que elas permaneçam restritas ao âmbito do mesmo Estado também detém o monopólio da violência simbólica legítima,
imaginário, como são certos tipos de sonhados encontros entre os "intelectuais" e o por consagrar as classificações, os capitais e os objetivos dos campos relativa-
"proletariado", elas têm maiores chances de se materializar e perseverar se os parceiros mente autônomos que compõem o campo do poder. Em quarto lugar, enquan-
que elas congregam a distância em torno de slogans vazios, de manifestos abstratos e 10 a guerra de posição de Gramsci, assim como sua luta por hegemonia, con-
de programas formais tiverem oportunidades maiores de entrar em interação direta para ccbe as classes sociais como categorias concretas, Bourdieu assevera que antes
se verem e se falarem uns com os outros. Com efeito, tais encontros colocam em con- de quaisquer lutas de classe, deve haver uma luta pela própria categoria classe.
tato não indivíduos abstratos e definidos apenas em relação a suas posições em uma Finalmente, tanto para Gramsci como para Bourdieu, a transformação social
determinada região do espaço social, mas sim pessoas totais, cujas práticas, discursos surge por meio da luta que traz à tona efeitos revolucionários em épocas de
e até mesmo a simples aparência corporal expressam sistemas de disposições (habitus) crise orgânica geral; mas, enquanto Gramsci vê isso em termos de um certo
divergentes e, pelo menos, potencialmente antagônicos". I quilíbrio de forças de classe, Bourdieu vê nisso a difusão acelerada e espon-
I. nea de crises locais provocadas por uma disfunção sistêmica e processual
Essa visão sobre a crise está em completo desacordo com o conceito entre o habitus e o campo. Seus conceitos paralelos revelam profundas divisões.
gramsciano de crise orgânica, que representa precisamente um equilíbrio de N s descobriremos os fundamentos empíricos dessas noções de dominação no
forças de classe - seja entre as classes dominante e dominada, seja dentro da rupítulo m. Por ora, ficaremos concentrados em suas complementaridades.
própria classe dominante entre as diferentes frações que formam seu bloco no
poder. Pode-se dizer então que Bourdieu ofereceu as microfundações de um
catastrófico equilíbrio de forças de classe - fenômeno que ocorreria simul-
taneamente em vários campos. Gramsci, por sua vez, diria que aquelas ligações
Reconciliação: a universidade
através dos campos não acontecem espontaneamente, mas dependem do árduo como o Moderno Príncipe
trabalho da guerra de posição cultivada pelo verdadeiro intelectual orgânico
coletivo e enraizada em um certo número de campos sociais para que então o ltuurdicu e Gramsci são como espelhos opostos: Bourdieu vê a teoria de Gra-
choque dos habitus possa ser prevenido, se não, silenciado. No final das contas, 111.ri .orno a expressão do mitológico intelectual orgânico, contaminado ou
o desenlace dos episódios de maio de 1968 sugeriu que aquela talvez não tenha ru.mipulado pelas classes dominadas, ao passo que Gramsci decerto veria a
sido uma crise orgânica do capitalismo. 11 t u in d ' Bourdieu como a cristalização dos intelectuais tradicionais cuja bus-
I I )l0l nutonornia apenas reproduz a dominação que eles afirmam combater.
l'IIt)lIl1llo Hourdi 'u funda o conhecimento na competição regida pelas regra
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÃVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

perspectivas são irreconciliáveis, porém, nos nossos dias, eu arriscaria sugerir Bourdieu dizia, a guerra precisa ser travada em duas frentes: contra o inimigo
que tanto o intelectual tradicional como o intelectual orgânico são igualmente interno e contra o inimigo externo.
necessários. No caso de Bourdieu, sua atividade política tardia sugere que Embora Bourdieu estivesse bastante confiante e otimista quanto à neutra-
podemos encontrar ambas as modalidades de intelectual em uma mesma pessoa, lidade da universidade - que serve ao capitalismo e ao Estado neoliberal de
embora sua teoria andasse atrasada em relação à sua prática. Já no caso de diversas maneiras -, sua própria sociologia - e nós poderíamos aqui pergun-
Gramsci, sua prática comunista nunca trouxera consigo sua sólida teoria. Por tar quais são as condições socialmente necessárias à sua existência e ao seu
isso, hoje nós precisamos repensar o conceito de Moderno Príncipe. exercício? - desafiou as premissas da economia e da ciência política ao des-
Bourdieu descreve o mundo contemporâneo como invadido e dominado mascarar as funções ideológicas dessas disciplinas. Com seu foco voltado para
pelas forças do mercado que ameaçam o mundo social - especialmente a os mecanismos de dominação - a violência simbólica, os capitais, os campos
autonomia dos campos e dos valores que eles afirmam. Os Estados nacionais e o habitus -, Bourdieu proveu farta munição para a sociologia crítica. Sem
e o crescente número de agências e de organizações supranacionais já não lúvida, a conquista mais importante de Bourdieu foi atrair essas disciplinas (a
podem conter ou regular o mercado; pelo contrário: eles apoiam frequentemen- antropologia, a geografia humana, a sociologia) para contestarem a maior ilu-
te a transformação de todas as coisas em simples mercadorias - desde a pri- são coletiva da nossa época: a panaceia dos mercados. Sua maior fraqueza
vatização dos serviços públicos até o contrabando de órgãos humanos. Os in- residia, porém, na forma pela qual ele se achava pairar sobre a sociedade, em
telectuais não poderão esconder-se atrás das barricadas da universidade; eles sua prosa muitas vezes impenetrável e inacessível às classes populares - as
precisam é lançar sua própria ofensiva contra as ideologias e panaceias do randes vítimas da mistificação neoliberal. Eis por que o intelectual orgânico
mercado. Mas não podemos esquecer, todavia, que, especialmente nos Estados tão necessário! Contudo, impelido pela urgência das questões do seu tempo,
Unidos, os apóstolos do neoliberalismo também se encontram firmemente () próprio Bourdieu revogou seu anátema ao intelectual orgânico - como cl ~
acampados atrás daquelas mesmas barricadas universitárias. O conluio do Es- mesmo reconheceu em Atos de resistência'? e em seus Contrafogos":
tado com os mercados tem sido justificado (quando não fomentado) pelas dis- Podemos manter a crítica feita por Bourdieu ao intelectual orgânico sem
ciplinas da economia e da ciência política. Não digo isso para desmerecer todos .orn isso abandonarmos o projeto mesmo. Podemos inclusive recompor IIN

os economistas e todos os cientistas políticos sem distinção, porque, acima de .nergias no interior da universidade, fortalecendo e aperfeiçoando as ferram 'li
tudo, aquelas ciências são elas mesmas campos de poder com tendências do- LaS da crítica social; mas também será preciso construir alianças de baixo plll'lI
minantes e correntes contrárias. Cito como exemplos e exceções: a economia cima, estabelecendo colaborações com órgãos da sociedade civil. Isso é NP('

pós-autista* e o movimento perestroika na ciência política**. Ainda assim, como .ialrnente importante hoje, quando os Estados e os mercados tramam ataque
conjuntos contra a sociedade civil. Embora hoje a fé de Gramsci no bom N('II

NO da classe operária possa ser algo anacrônico, não o é a necessidade de \111111


* Movimento pós-autista na economia. Movimento iniciado em 2001 por estudantes de econo-
utopia real capaz de estimular e galvanizar as energias das classes explorudu
mia na França e nos Estados Unidos, o qual reivindica o ensino de uma economia mais plural
e menos formal, contra a ortodoxia neoclássica (chamada de "autista") e a excessiva forma- (' subaltemas.
!ização matemática da disciplina. Esse movimento teve, no início deste século, ampla reper-
A ciência social precisa ser uma criatura com duas cabeças: de um lado,
cussão internacional. As petições multiplicaram-se e emergiu um estimulante debate público
entre alguns dos principais economistas e professores da área. Uma abordagem mais plural
dil i lida contra as ideologias dominantes, desmistificando a naturalização do
das diferentes correntes teóricas e uma maior confrontação entre teorias, métodos e atores rrhitráriu social=; de outro, destinada a inventar e elaborar alternativas NOt'lIIi,
sociais reais foram algumas das conquistas desse movimento. (N. do T.)
('lll'lIil';lIdas nas experiências vividas . nos experimentos vividos das 'laNH('
** Movimento perestroika na ciência política. Movimento de dissidência na ciência polúica,
criado com a meta de lutar por pluralismo metodológico na disciplinn por maior r I vâuciu
dos temas da ciência polftica para o público fora da !luld(·mill. SeliM 11I1,\pl'lIllll'H 1IIIIIIn 'onU'1I I()OII, ('111111'/' /1/(//11111 1111111
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

subalternas. A busca por uma utopia real, como Erik Wright a chama, exige Poderiam os sociólogos da academia se aventurar nas trincheiras da sociedade
que façamos expedições etnográficas rumo ao solo fértil da vida social. civil sem sucumbirem às patologias descritas por Bourdieu - o populismo e
Voltando à sociologia - e Bourdieu acreditava que a sociologia desfrutava o vanguardismo? Da forma como é atualmente constituída, a universidade
de uma perspectiva privilegiada para o pensamento crítico -, nós podemos orgulha-se de manter-se alheia aos públicos, a menos, é claro, que tais públicos
distinguir entre dois tipos de sociologia pública: 1) uma sociologia pública calhem de ser as associações empresariais. Não obstante, mesmo atentos à
tradicional, enfrentando as ideologias dominantes que permeiam nossa esfar- necessidade de defenderem a universidade, seus professores e pesquisadores
rapada esfera pública e atacando suas raízes nas disciplinas acadêmicas e 2) vêm repensando o ensino superior, destacando sua missão crítica e endossan-
uma sociologia pública orgânica, trabalhando nas trincheiras da sociedade ci- do seu caráter público. Nós podemos evidenciar isso no comprometimento
vil, energizando-a, fortalecendo a resistência ao Estado e aos mercados e de- desses educadores e cientistas com sua função de ensino. O desafio é tornar a
safiando a dominação não com desmistificação, mas com alternativas possíveis. universidade mais receptiva a trabalhos com grupos amplos e servidos por ela,
Finalmente, essas duas sociologias públicas, tanto a tradicional como a orgâ- sem que isso comprometa suas atribuições acadêmicas. Algumas universidades
nica, embora estejam baseadas em arcabouços de conhecimento profissional se encontram em situação melhor para fazer isso do que outras; e algumas são
diferentes, mais se apoiam do que se anulam. mais "torres de marfim" do que outras.
Se ambas são necessárias, seriam também igualmente possíveis? Tal como Seja qual for a sociologia pública, orgânica ou tradicional, ela enfrenta guer-
Bourdieu se esforçou em destacar, a terceira onda da mercantilização* invadiu ras árduas contra as forças que minam sua base. Nessa guerra, as sociologias
os meios de comunicação e de produção do conhecimento, inclusive a mídia públicas (orgânica e tradicional) precisam se ver como companheiras e não
de massa, tornando cada vez mais difícil difundir visões críticas. Se isso já era como antagonistas. E, acima de tudo, elas devem procurar combater unidas em
difícil na França, que dirá nos Estados Unidos, onde aquela maré se vem es- auxílio daqueles públicos que vêm sofrendo ataques similares do Estado e dos
praiando pelo território sagrado da própria academia, com sua crescente de- mercados. A universidade pode não ter sido preparada para virar o Moderno
pendência perante os financiadores privados, com a industrialização da pes- Príncipe, mas esse papel provisório faz com que ela se incline nessa direção.
quisa científica, com a comercialização das admissões e aprovações, com as Isso significa que Gramsci deveria desistir do Partido Comunista, assim como
espantosas concessões feitas para atrair estudantes e com os níveis decrescen- Bourdieu deveria desistir da concepção tradicional da universidade, mantida à
tes de alfabetização - sem falar no generalizado desequilíbrio de poder entre distância do mundo social feito uma torre de marfim. Como, então, a univer-
as disciplinas acadêmicas (exatas versus humanas). sidade bem estabelecida poderia tornar-se o lugar de reencontro dos herdeiros
A situação não é melhor para o sociólogo público orgânico. O próprio de Gramsci e de Bourdieu? A resposta a essa pergunta varia de país para país,
Gramsci advertia sobre os perigos à espreita do intelectual orgânico; ele sabia pois precisamos considerar aí a articulação da universidade com a sociedade
que o engajamento público deveria ser organizado como um projeto coletivo. civil e a forma pela qual essa articulação é (de)formada pelo Estado e pelos
mercados. A esse respeito, os Estados Unidos parecem bastante diferentes do
Brasil, da Índia e da África do Sul, que, por sua vez, são bem diferentes da
* Baseado em Polanyi, Burawoy fala sobre três ondas de "mercantilização" ou de "mercadori- Rússia e da China, da França e da Noruega.
zação", quer dizer, três etapas no avanço da irrefreável tendência capitalista de transformar
todas as coisas em simples mercadorias. A primeira onda (1850-1920) marcou a transformação
Tendo apontado para a possibilidade da reaproximação entre Bourdieu e
do trabalho em mercadoria, atacando a legislação trabalhista. Essa foi a época da sociologia (Irurnsci, entre o intelectual tradicional e o intelectual orgânico, resta ainda
utópica. Com a segunda onda (1920-1970), o próprio dinheiro foi transformado em mercadoria 11 li' ruintc questão, que eu havia evitado até aqui: quão profunda é a domi-
pela especulação financeira, derrubando as trincheiras dos direitos sociais. Esse foi o período
illIÇtlO .apiralista? O Bourdicu I sórico afirmou (contra sua própria prática
da sociologia para políticas públicas, aliada ao Estado. A terceira onda (1970-hojc), segundo
Burawoy, tem atacado igualmente a legislação trabalhi .a e os dircilON so ·illis. 111limo I n. pol (Icu) que li SIIbmissll0 110 ('lIpHlllislIlO 'profunda c in .onscicruc, ao passo
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o MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINAÇÃO DURÁVEL.' GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

da "falsa consciência" era sua falsidade, não sua inegável natureza conscien- ciência de classe corporativa, paroquial. Entretanto, a experiência do campesinato, precisa-
mente por causa da sua relação coletiva com a terra, poderia oferecer os ingredientes para a
te. Muita coisa depende de qual deles está certo. No próximo capítulo, eu compreensão revolucionária totalizadora, cas fosse apoiada pelos intelectuais radicais vindos
tentarei formar um juízo sobre a questão. das cidades.
12 Em seus estudos argelinos, especialmente em Argélia, 1960 (1979), Bourdieu adotou realmen-
te uma visão marxista ortodoxa, conforme a qual a classe trabalhadora poderia alcançar a
compreensão totalizadora do mundo social devido a sua relativa segurança econômica e cu
Notas horizonte temporal dilatado - algo negado ao campesinato e ao lumpemproletariado. Mais
tarde, cito aqui como exemplo A distinção (1984), ele abandonará essa perspectiva em favor
I Bourdieu, 2000, p. 172. Ed. brasileira, 2001b, pp. 208-9. de um suposto e profundo desconhecimento dos trabalhadores a respeito da estrutura social e
de suas potencialidades.
2 Idem, 1989,p. 109.
11 Bourdieu, 1984, p. 374. Ed. brasileira, 2007, p. 350.
3 Idem, 2007.
1.\ Adam Przeworski (1986) analisou a maneira como a competição entre os partidos políticos
4 Idem, 2007, p. 69. Ed. brasileira, 2005b, p. 123.
acaba dando forma às classes que eles supostamente representam. Eis um excelente exemplo
5 Refletindo suas próprias posições e disposições intelectuais diferentes, os autores divergiam concreto do argumento de Bourdieu.
fundamentalmente na relação que tinham com sua origem de classe. No filme A sociologia
I~ Bourdieu afirmou: "[ ...] A coisa mais interessante sobre Gramsci - a quem eu só li recente-
é um esporte de combate - o retrato da vida acadêmica e política de Bourdieu - há uma
mente - é a forma como ele nos oferece as bases de uma sociologia dos partidos comunistas
cena na qual Bourdieu descreve sua repugnância pelo dialeto da região natal dos Pirineus,
ficiais e das lideranças de seu tempo. Tudo aquilo estava longe da ideologia do 'intelectual
revelando o habitus de classe que ele adquirira no ambiente acadêmico. Gramsci, por sua
orgânico' pela qual ele é bastante conhecido" (l990a, pp. 27-8). Ver também Bourdieu, 1990b,
vez, redigia cartas comoventes da prisão para sua irmã, implorando-lhe para que ela se
capítulo 10, e 1991, "Representação política" e "Delegação de poderes e fetichismo político",
certificasse que seus filhos nunca perdessem a familiaridade com o dialeto próprio e as
capítulos 8 e 9.
expressões vernaculares.
Ih ramsci, 1971, p. 7.
6 Gramsci, 1971.
I' Bourdieu, 1988.
7 Bourdieu, 1999b.
IH Idem, 1998b.
8 Bourdieu nunca enunciou e detalhou as regras do método científico - nem em sua abordagem
1'1 Idem, 1995a.
do campo científico, nem em A profissão de sociólogo: preliminares epistemolágicas (1991),
'I) Idem, 1996.
livro que trata, como o subtítulo sugere, das suas preliminares epistemológicas.
'I Idem, 1996,p. 348. Ed. brasileira, 1996b, p. 378.
9 Gramsci, 1971,p. 333. Embora exista a edição brasileira Cadernos do cárcere, que consta da
bibliografia em português, não há correspondência entre esta edição e Selections from the " Gouldner, 1979.
Prison Notebooks, pois nesses dois casos não foram utilizados os mesmos critérios para a 'I AI mesmo Bourdieu foi levado a se apropriar da ideia do intelectual orgânico. "O etnossoci
seleção dos escritos de Gramsci. logo é um tipo de intelectual orgânico da espécie humana, o qual, como um agente coletivo,
10 Em uma passagem estranhamente semelhante, embora com uma ênfase bastante diferente, pode contribuir para desnaturalizar e desfatalizar a existência humana, ao pôr sua competên .in
Bourdieu escreveu: "a parte essencial da nossa experiência do mundo social, e o trabalho de 11s »víço de um universalismo baseado na compreensão dos particularísmos" (apud Wacqutuu,
construção que isso implica, tem seu lugar na prática, sem atingir o nível da representação '()()4,p. 388). Mas o intelectual orgânico dessa entidade tão abstrata (a humanidade) scrin 11
explícita e da enunciação verbal" ("Espaço social e gênese de classes", in Linguagem e poder JII' pria antítese do intelectual orgânico gramsciano e, desse modo, seria uma apoteose du
simbólico, p. 235). Nesse artigo, Bourdieu estava se referindo a determinada "inconsciência int .lcctual tradicional criticado por Gramsci.
de classe" que provém das "estruturas objetivas do mundo social". Mas daí ele prossegue 'I Ilollrdicu, 2000, p. 177.Ed. brasileira, 2001b, p. 215.
afirmando que existe algum espaço para lutas por classificação, as quais fariam nascer novas , t lnunscí, 1971,p. 244.
categorias sociais e, portanto, novos grupos sociais. Então, pelo menos aqui, Bourdieu garante 'I, 1I1111rdi 'u, 1984.
vez e voz aos intelectuais na formação da consciência de classe, que não teria, entretanto, 'I (lrllllls 'i, 197I, p. 126.
nenhum fundamento objetivo na realidade. Gramsci, ao contrário, insistia que a consciência !M lIollnli 'u, 19HH.
de classe tinha sua base na realidade associada à transformação objetiva da natureza; e que
"J 1IIIIII'IIi 'li, 1988, pp, 179-80.
o papel dos intelectuais era elaborar aquele núcleo do bom senso que jazia dentro do senso
lli 10111111,11)1)1)'
comum: "Elaborar e tornar coerentes os problemas colocados pelas massas (Grarnsci)". Aqui,
1i 1011111, '(lI)I.
nós flagramos Bourdieu dando sua guinada na direção idealista, soltando as rédeas do poder de
designar e de classificar. Mas esse poder é sobre quem? Quem será persuadido pela designaçl o
e pela classificação? Como farão isso? Quais organizações - partidos ou sindicato -levar ()
a cabo esse projeto e superarão a profunda inércia oriunda da assimilação da passividnd ,'/
I I orno ainda veremos no quarto capítulo, Frantz Fan 11"f11'111IlVU o contrário disso. Nu ~'()lHli\'o
hulhudorn nem « hlll"II'Sjll P"'" 1111"d"S"IIVlllv\'1'''l'lIlIh'lIl dlll'IIII
l'olonilll,II'\1lI11t'lIlSSlI1'11

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