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Aula 4: O conto

Apresentação
Caro aluno, nesta nossa quarta aula, teremos a oportunidade de discutir uma
terceira forma narrativa: o conto. Primeiramente, veremos em que consiste o conto
popular ou maravilhoso. Em seguida, já nos detendo exclusivamente ao conto
literário ou artístico, esboçaremos um breve histórico e, por fim, discutiremos suas
principais características.

Objetivos
 Conceituar e caracterizar o conto popular.
 Conceituar e caracterizar o conto literário.
 Acompanhar o histórico do conto literário.

Primeiras considerações sobre o conto


Quando tratamos do conto como forma narrativa, devemos precisar se estamos
nos referindo ao conto popular (também chamado de conto maravilhoso, folclórico
ou lenda) ou ao conto literário (também chamado de conto erudito ou artístico). Um e
outro tipo aproximam-se primeiro pelo fato de serem ambos formas narrativas curtas
e também pelo fato de contos populares serem, vez ou outra, tomados como
material de inspiração para a elaboração de contos literários.

O conto popular
Em suas manifestações populares, o conto é uma forma narrativa milenar,
presente em todas as sociedades. Em sociedades ágrafas, em que a escrita não se
faz presente, o conto popular acaba por ser uma das formas mais universais de
transmissão cultural, registrando, entre outras coisas, seus valores, costumes,
folclore e formas jurídicas (D’ONOFRIO, 2007, p. 92).
Os contos populares caracterizam-se por serem narrativas de autoria
desconhecida e por serem transmitidas por via oral. Nessa transmissão, as
narrativas vão sofrendo modificações, ora em sua superfície do discurso, ora nos
próprios eventos da história1. Daí a explicação para haver mais de uma versão para

1
Para uma discussão sobre a diferença entre discurso e história, ver a aula 7.
cada conto. Nesse sentido, ficaríamos sem respostas ao nos perguntar quem teria
criado a história da “Bela adormecida” ou do “Boi voador”. E também constaríamos
que, a cada vez que alguém a conta, mesmo mantendo-se essencialmente a
mesma, ela ganha novas cores.
Outra característica dos contos populares consiste na fraca determinação de
alguns de seus elementos, como as personagens, o tempo e o espaço em que se
passam a história narrada. Em geral, as personagens são inominadas, ou seja, não
apresentam nomes e são identificadas basicamente pela função que exercem ou
pelos atributos que possuem. São referidas como o príncipe, o pescador, o mendigo,
a bruxa, a feiticeira, a madrasta, a filha, a bela, o velho, o caboclo, o lobo, o cordeiro
etc.
Quanto ao tempo e ao espaço, é comum que sejam descritos de modo vago,
sem qualquer referência a um país ou cidade em particular, e ainda, sem que se
explicite em que ano os fatos se passaram. Como bem observa Salvatore D’Onofrio,
“‘A fórmula “Era uma vez...’, além de assinalar a entrada no mundo mágico da
ficção, remete-se a um tempo indefinido, eterno, que pode ser o pretérito, o presente
ou o futuro, pois o passado mítico se renova constantemente, tornando-se
paradigmático.” (D’ONOFRIO, 2007, p. 94)
Esse “mundo mágico” típico dos contos populares é permeado de eventos
fantásticos, o que justifica esse tipo de conto também ser chamado de conto
maravilhoso. Não é raro termos a presença de seres sobrenaturais ou vermos
personagens executando ações que ferem a lógica costumeira do mundo real.
Foi principalmente no século XIX, quando os adeptos do Romantismo
passaram a enxergar nas narrativas populares uma fonte natural de histórias
tipicamente nacionais, representativas de sua cultura local em oposição aos
cânones universalistas do Classicismo, que o conto popular ganhou importância.
Passou, então, a ser visto como um repositório de valores culturais autênticos e de
manifestações linguísticas tipicamente regionais, fundamentais para empenho que
de valorização das especificidades das culturas nacionais. Muitos escritores e
filólogos, a exemplo dos irmãos Grimm, na Alemanha, empenharam-se em coletar e
divulgar essas narrativas que, a princípio, circulavam apenas em círculos
socioculturais menos eruditos. E, nesse período, são primeiramente registrados por
escrito contos populares como “João e Maria”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Branca de
Neve”, entre outros.
No Brasil, dois dos mais representativos pesquisadores dos contos populares
foram Sílvio Romero, no final do século XIX, e Luís da Câmara Cascudo, ao longo
do século XX. A riqueza de nossa narrativa oral se dá pelo fato de nela
encontrarmos contos de origem indígena, africana e europeia. Câmara Cascudo
(1984, p. 256), no livro Literatura oral no Brasil, propõe a seguinte classificação
dos contos populares: contos de encantamentos, contos de exemplo, contos de
animais, facécias, contos religiosos, contos etiológicos, demônio logrado, contos de
adivinhação, natureza denunciante, contos acumulativos e ciclo de morte.

Um exemplo de conto popular


Transcrevemos abaixo um dos contos de demônio logrado, intitulado “O diabo
na garrafa”:

Conta-se que um marido que havia razão de ser ciumento, ao


fazer uma viagem deixou o diabo guardando-lhe a mulher.
Mas, esta que não era tola percebeu que o guarda era o cujo,
porque tudo quanto lhe mandava fazer, fazia-o num repente.
Chamou-o e disse-lhe:
─ Você tem um grande poder, porque tem feito coisas que
parecem milagres; mas duvido que faça uma coisa. Não é capaz de
entrar naquela garrafa...
E apontou-lhe uma, vazia. O diabo, que é vaidoso, ficou tentado
em mostrar todo o seu poder e mais que depressa meteu-se pela
garrafa dentro. A mulher no mesmo momento arrolhou-a, de maneira
que o diabo ficou preso e ela pode gozar da liberdade que
ambicionava.
Quando o marido voltou foi recebido com muitos afagos da
mulher, a quem ele perguntou pelo empregado.
─ Ah! maridinho do coração, sem quê nem para quê saiu e não
voltou mais. Também aquilo parecia o diabo, olha que cheiro de
enxofre ficou em casa...
Era uma catinga de pano queimado que ninguém podia aturar. Se
o diabo estava preso na garrafa, danado de raiva...
─ É mesmo, mulher, que catinga! Que havemos de fazer?
─ Vai, marido, corre à igreja com esta garrafa e enche-a de água
benta para espalhar na casa.
O tolo pegou e fez o que a mulher lhe mandava.
Quando entrou na igreja e foi encher na pia a garrafa que
desarrolhou, esta deu um estouro e o diabo, atordoado com água
benta e avistando os santos nos altares, saiu zunindo, como um raio,
que ninguém mais o viu.
O marido, muito espantado e estúrdio, voltou para casa sem saber
explicar o acontecido e sem ter conhecido o segredo da mulher.
(CASCUDO, 1984, p. 320, grifos do autor)
Figura 1 – “Diabos” engarrafados vendidos em feiras populares do Nordeste.
Fonte: http://www.contacausos.com.br/wp-content/uploads/2012/05/diabo-na-garrafa-2.jpg.

Devemos agora nos indagar: quem é o autor da história? Quando ocorreram os


fatos narrados? Onde a história se deu? Quem são as personagens? Os fatos
narrados mantêm-se dentro da lógica do mundo real?
Respondendo à primeira pergunta, podemos afirmar que, apesar de Câmara
Cascudo ter registrado essa narrativa em seu livro, ele não é o seu autor. Trata-se
de um conto popular, portanto, de autoria desconhecida e divulgada, a princípio, por
meio da oralidade. O próprio Cascudo, ao recontar a história, ressalta esse caráter
anônimo da autoria, ao se utilizar da expressão “Conta-se”.
Quanto às questões sobre quando e onde ocorreram os fatos narrados, quase
nada podemos precisar, uma vez que o texto não apresenta nenhum indício que
determine o contexto temporal e, sobre o contexto espacial, nada esclarece além da
informação de que a história se passou na casa do casal e numa igreja.
As personagens, por sua vez, são inominadas. São identificadas apenas pela
função e pelos atributos: o marido (ciumento e traído), a mulher (adúltera e esperta)
e o diabo, também referido pela alcunha popular “o cujo” (logrado).
Por fim, resta ressaltar o caráter maravilhoso da narrativa, que se manifesta
justamente pela presença do diabo, figura fabular capaz de fazer “coisas que
parecem milagres”.
Saiba mais
No Brasil, principalmente na região Nordeste, muitos dos contos populares foram
reescritos em cordel e, dessa forma, passaram a ser veiculados tanto pela oralidade
quanto por meio dessa forma de narrativa em versão impressa. O conto transcrito,
por exemplo, serve de mote para o folheto de cordel de J. Borges, intitulado “A
mulher que botou o diabo na garrafa”.

Capa do folheto de cordel “A mulher que botou o diabo na garrafa”, de J. Borges.


Fonte: http://farm4.staticflickr.com/3165/2839710377_d90dab11b0.jpg

Atividade 1
Pesquise e transcreva algum conto popular que circula em sua região. Em seguida,
elabore sobre ele um breve comentário, tomando como referência, as seguintes
questões: quem é o autor da história? Quando ocorreram os fatos narrados? Onde a
história se deu? Quem são as personagens? Os fatos narrados mantêm-se dentro
da lógica do mundo real? Ao final da pesquisa, compartilhe os resultados com seu
tutor.

O conto literário
Diferentemente do conto popular, o conto literário apresenta uma autoria
determinada. Além disso, trata-se de uma manifestação literária exclusiva das
sociedades letradas, uma vez que sua transmissão se dá por meio do texto
impresso. Com isso, os contos literários apresentam uma única versão (a não ser
quando o próprio autor reelabora e publica uma segunda versão de um conto já
publicado anteriormente). A fixidez do discurso do conto literário é o que possibilita
que seu estrato estilístico seja um dos elementos mais importantes, pois traz a
marca singular de autoria.
Outra diferença básica entre o conto literário e o conto popular consiste no fato
de o conto literário, em geral, não se valer tanto de situações e personagens
sobrenaturais quanto o conto maravilhoso. Sobre esta questão, afirma Salvatore
D’Onofrio que o conto literário

refere-se a um episódio da vida real, não verdadeiro porque ficcional,


mas verossímil, ou seja, o fato narrado não aconteceu no mundo
físico, mas poderia acontecer. Embora seja possível apontar
exceções de contos fantásticos, com recurso ao sobrenatural,
escritos por autores mundialmente famosos (Hoffman, Poe e outros),
a regra do conto erudito é ater-se ao real, sem fugir do princípio da
verossimilhança, pois a atitude mental que dele se depreende não é
idealizar, mas contestar os valores sociais.” (D’ONOFRIO, 2007, p.
95)

O conto literário é uma forma narrativa bastante antiga. Alguns estudiosos,


como nos informa Massaud Moisés (2006, p. 33), consideram que alguns episódios
da Bíblia, como os de Caim e Abel, de Salomé e do filho pródigo são exemplares
dessa forma narrativa. O mesmo se afirma acerca de algumas narrativas das
Metamorfoses, de Ovídio.
Apesar dessas realizações anteriores, podemos afirmar que é apenas na
Idade Média que o conto literário começa a ganhar importância, tendo entre seus
praticantes autores como Boccacio, com o seu Decameron, e Chaucer, autor dos
Canterbury Tales, obras consideradas como verdadeiras antologias de contos
literários. Também nos séculos XVI a XVIII, o conto foi uma forma narrativa
razoavelmente adotada, entre outros, por escritores da envergadura de Cervantes e
Voltaire.
É, contudo, apenas no século XIX que o conto conhece uma época realmente
notável, pois é nesse momento que ingressa

“numa fase em que se torna produto estritamente literário. Mais


ainda: ganha estrutura e andamento característicos, compatíveis com
sua essência e seu desenvolvimento histórico, e transforma-se em
pedra de toque para não poucos ficcionistas. A publicação de obras
no gênero cresce consideravelmente na segunda metade do século
XIX: instala-se o reinado do conto, a dividir a praça com o romance.”
(MOISÉS, 2006, p. 33).
Estrutura do conto literário
Não é pacífica a definição de conto literário. Quando comparamos algumas
tentativas de definição de qual seja a estrutura particular dessa forma literária,
percebemos que os teóricos apontam para elementos diversos, alguns ressaltando a
questão quantitativa da menor extensão do conto em relação ao romance, ou
destacando a concisão da ação (tensão dramática), outros ainda pondo em primeiro
plano a unidade de “tom” (seja o suspense, o humor etc.).
O fato é que, quando lemos contos de autores de épocas diversas, ou mesmo
de autores contemporâneos ou, ainda, quando lemos a obra contística de um
mesmo autor, percebemos que há uma considerável variedade de formas de contos,
de modo que qualquer tentativa de definir de uma vez por todas essa forma literária,
sem prever as múltiplas possibilidades de variações, é algo que tende à
ingenuidade.
Mário de Andrade, escritor sempre muito consciente de seu fazer literário,
ironiza as discussões teóricas acerca da estrutura dessa forma narrativa no início de
seu conto Vestido de preto, em que lemos: “Tanto andam agora preocupados em
definir o conto que não sei se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade.”
(ANDRADE, 2012, p. 17).
No intuito de sistematizarmos uma caracterização do que podemos considerar
um conto típico, ou seja, de uma forma de conto básico e genérico, sem a pretensão
de querer englobar as diversas espécies, recorremos às considerações elaboradas
por Massaud Moisés, em A criação literária, e por Salvatore D’Onofrio, em Forma
e sentido do texto literário. Em primeiro lugar, devemos considerar que o conto é
uma narrativa curta. O quão curta ela pode ser é algo que varia de texto a texto. Em
geral, todavia, o conto não ultrapassa vinte páginas.
É justamente dessa menor extensão que deriva a estrutura peculiar do conto, a
exemplo de uma de suas principais características, que é sua grande densidade
dramática, que consiste no fato de o enredo se organizar a partir de uma única ação
ou conflito. Segundo observa Moisés (2006, p. 41), “seus ingredientes convergem
para o mesmo ponto. A existência de uma única ação, ou conflito, ou ainda de uma
única “história” ou “enredo”, está intimamente relacionada com a concentração de
efeitos e de pormenores: o conto aborrece digressões, as divagações, os excessos.”
É por essa razão que cada parte do conto, cada expressão, cada frase, cada
passagem, parece ser essencial, tudo confluindo para a unidade de ação.
Para resguardar essa unidade de ação típica do conto, em geral os contistas
escolhem como evento a ser narrado um momento chave, decisivo, da trajetória da
personagem. É nesse evento que a narrativa se concentra, sem dar muito espaço
aos fatos passados ou futuros ao ponto central. O passado e o futuro são referidos –
e mesmo assim em breves linhas – apenas quando indispensáveis à preparação ou
ao desfecho do evento principal, que, em geral, é de curta duração. Nesse aspecto,
o conto difere bastante do romance, em que, pela própria extensão, são narradas
várias situações de diferentes momentos da vida das personagens.
No que concerne ao espaço narrativo do conto, podemos afirmar que é
comumente bastante restrito, às vezes, não mais que uma rua, uma casa ou mesmo
um único ambiente dentre um imóvel. Quando as personagens se deslocam de um a
outro lugar, em geral, essa mudança não é vária e não se faz uma constante dentro
da narrativa. Em termos de descrições do espaço, vemos que mais do que servirem
para a “mera” composição de cenário, são elementos funcionais para o
entendimento e o desenlace da própria história.
O tempo narrativo, por sua vez, como já comentamos, limita-se a um intervalo
não muito dilatado, às vezes, restringindo-se a alguns minutos, horas ou poucos
dias. Já quando a extensão temporal se alonga mais que isso, demorando-se em
anos, “das duas uma: 1) ou trata-se dum embrião de romance ou novela, 2) ou o
longo tempo referido aparece na forma de síntese dramática, que envolvem
habitualmente, o passado da personagem.” (MOISÉS, 2006, p. 44)
Sendo uma narrativa curta de único núcleo dramático, o conto pressupõe a
presença de poucas personagens. E mesmo estas, sem contar as exceções
louváveis, são caracterizadas por poucos traços. Segundo Moisés:

O conto “opera com a ação e não com os caracteres. Estes,


entendidos como personagens redondas no grau máximo de
complexidade (...), situam-se fora da narrativa curta, embora seus
protagonistas usuais não se confundam com meros bonecos de mola
nas mãos do ficcionista. (...) Sua meta não consiste em criar seres
vivos à nossa imagem e semelhança, complexos e quiçá múltiplos,
como pretende o romance, mas situações de conflito em que todos
os leitores se espelhem.” (MOISÉS, 2006, p. 45-46)
Por fim, o conto literário típico também é marcado por apresentar um único
tom, ou seja, por suscitar no leitor, do início ao fim e de forma progressiva, uma
mesma sensação ou impressão, seja de simpatia, ódio, medo, tristeza, alegria etc.
Como síntese precisa da estruturação do conto, podemos anotar a seguinte
consideração de Salvatore D’Onofrio:

“A diminuição dos elementos estruturais confere ao conto uma


grande densidade dramática. Enquanto no romance o conteúdo
textual encontra-se diluído na multiplicidade de ações, personagens,
espaços, tempos, descrições, reflexões, no conto temos uma
condensação do sentido, que se revela ao leitor de forma mais rápida
e surpreendente.” (D’ONOFRIO, 2007, p. 95)

Atenção
Apesar de termos apresentado as características do conto literário típico, é
fundamental guardarmos em mente que o fato de um conto atender à tipicidade do
gênero não lhe garante qualidade estética. Numerosos contos considerados como
grandes obras literárias – muitos dos quais de autores exponenciais como Machado
de Assis, Guimarães Rosa e Jorge Luis Borges – não se enquadram plenamente no
esquadro do conto típico. Para uma discussão a esse respeito, ver Arturo Gouveia
(2009).

Atividade 2
Considerando o exposto sobre as características do conto literário (típico), elabore
um comentário sobre o conto abaixo, de autoria de Clarice Lispector, destacando em
que aspectos o conto se aproxima e em que aspectos ele se afasta da
caracterização proposta pelo teórico:

FELICIDADE CLANDESTINA

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente


crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós
todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os
dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o
que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai
dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em
vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos
um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do
Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que
vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data
natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura
vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia
nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias,
altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações
a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os
livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre
mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que
possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo
com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas
posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e
que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da
alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas
me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não
morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou
entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia
emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte
para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança
de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando,
que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa
vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os
dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo
mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não
caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do
dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu
à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir
a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu
voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer
da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu
coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era
tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo
grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu
sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito:
como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente
que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia
sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de
tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra
menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se
cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo
humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia
estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta
de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão
silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora
achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até
que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme
surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você
nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia.
Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos
espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha
desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das
ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e
calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para
mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem?
Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é
tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de
querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim
recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro.
Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei
que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o
contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só
para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas
linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei
ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde
guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a
felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece
que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e
pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto
no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o
seu amante. (LISPECTOR, 1998, p. 9-12)

Imagem do curta-metragem “Clandestina felicidade” (2008), de Beto Normal e Marcelo Gomes,


baseado no conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector.
Fonte:
http://4.bp.blogspot.com/_hMJK8Zj2t5E/S6nt_31xRzI/AAAAAAAACKY/KJz93YL_suI/s320/clandestina
3.jpg
Leituras complementares
 CALVINO, Italo. Fábulas italianas: coletadas na tradição popular durante os
últimos cem anos e transcritas a partir de diferentes dialetos. Trad. Nilson
Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Neste volume, Calvino reconta dezenas de contos populares presentes na cultura da
Itália.

 CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ______. Obra crítica.


Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999. p. 345-363. Volume 2.
Neste artigo, Cortázar comenta as características do tipo de conto que ele próprio
pratica.

 GOUVEIA, Arturo. A consagração da impertinência (Machado de Assis,


Borges, Guimarães Rosa e a teoria do conto). In: GOUVEIA, Arturo (Org.).
Machado de Assis desce aos infernos. João Pessoa: Ideia, 2009. p. 9-68.
Neste ensaio, muito bem urdido em suas argumentações, o autor parte do texto
Alguns aspectos do conto, de Julio Cortázar, para polemizar sobre as pertinências
de alguns textos que têm sido considerados “teorias do conto”. No geral, demonstra
que essas “teorias” são tão estreitas que, tomadas ao pé da letra, seríamos levados
a concluir (absurdamente) que muitos dos principais contos de Machado de Assis,
Jorge Luis Borges e Guimarães Rosa não seriam contos.
Resumo
Nesta quarta aula, pudemos estudar a forma narrativa curta chamada conto.
Inicialmente, abordamos o conto popular, destacando suas principais características.
Depois, tratamos especificamente do conto literário, do qual fizemos um brevíssimo
histórico e discutimos sua configuração estrutural típica.

Autoavaliação
1. Em que consiste o conto popular?

2. Elabore um comentário acerca da narrativa A madrasta, destacando-lhe as


características de conto popular nela presentes.
Havia um homem viúvo que tinha duas filhas pequenas, e casou-
se pela segunda vez. A mulher era muito má para as meninas;
mandava-as como escravas fazer todo serviço e dava-lhes muito.
Perto da casa havia uma figueira que estava dando figos, e a
madrasta mandava as enteadas botar sentido aos figos por causa
dos passarinhos. Ali passavam as crianças dias inteiros espantando-
os e cantando:

“Xô, xô passarinho,
Aí não toques o biquinho,
Vai-te embora pr’a teu ninho...”

Quando acontecia aparecer qualquer figo picado, a madrasta


castigava as meninas. Assim foram passando sempre maltratadas.
Quando foi uma vez o pai das meninas fez uma viagem, e a mulher
mandou-as enterrar vivas. Quando o homem chegou, a mulher lhe
disse que suas filhas tinham caído doentes e lhe tinham dado muito
trabalho, e tomado muitas mezinhas, mas sempre tinham morrido.
O pai ficou muito desgostoso.
Aconteceu que nas covas das duas meninas, e dos cabelos delas,
nasceu um capinzal muito verde e bonito, e quando dava vento, o
capinzal dizia:

“Xô, xô passarinho,
Aí não toques o biquinho,
Vai-te embora pr’a teu ninho...”

Andando o capineiro da casa a cortar capim para os cavalos, deu


com aquele capinzal muito bonito mas teve medo de cortar, por ouvir
aquelas palavras. Correndo foi contar ao senhor. O senhor não quis
acreditar, e mandou-o cortar aquele mesmo capim, porque estava
muito verde. O negro foi cortar o capim, e quando meteu a foice,
ouviu aquela voz sair debaixo da terra cantando:

“Capineiro de meu pai,


Não me cortes os cabelos;
Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou
Pelo figo da figueira
Que o passarinho picou...”

O negro, que ouviu isto, correu para casa assombrado, e foi


contar ao senhor, que não o quis acreditar até que o negro instou
tanto que ele mesmo veio, e mandando o negro meter a foice
também ouviu a cantiga do fundo da terra. Então mandou cavar
n’aquele lugar e encontrou as suas duas filhas vivas por milagre de
Nossa Senhora, que era madrinha delas. Quando chegaram em
casa, acharam a mulher morta por castigo.” (CASCUDO, 1984, p.
324-325)
3. Quais as principais características do conto literário?
4. Desenvolva um comentário comparando a estrutura dos contos Aguenta
coração, de Hilda Hilst, e Desenredo, de João Guimarães Rosa. (Obs.: os
contos encontram-se disponíveis nos polos).

Referências
ANDRADE, Mário. Vestido de preto. In: ______. Contos novos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012. p. 17-25.
CASCUDO, Luís da Camara. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte:
Ed.Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984.
D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.
GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. 7. ed. São Paulo: Ática, 1995.
HILST, Hilda. Aguenta coração. In: COSTA, Flávio Moreira da (org.). 22 contistas
em campo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 158.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: ______. Felicidade clandestina:
contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 9-12.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 1. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
PELLEGRINI JR., Domingos. “Mãe”. In: VÁRIOS AUTORES. Histórias de um novo
tempo: o novíssimo conto brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1977.

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