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Apresentação
Caro aluno, iniciaremos esta nossa primeira aula discutindo uma questão
fundamental para os estudantes de um curso de Licenciatura em Letras, futuros
professores de língua portuguesa e literatura brasileira. Certamente, daqui a alguns
anos, como professor, você será indagado por seus alunos sobre questões como:
por que ou para que ler ou estudar literatura? É bem possível que quando estudante
do ensino fundamental ou médio você mesmo já tenha levantado tais questões. E é
para propor algumas respostas consistentes a elas que esta aula foi elaborada.
Objetivos
Identificar a importância sociocultural da narrativa de ficção.
Listar as funções socioculturais da narrativa de ficção.
Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 1918. Fez toda sua
formação acadêmica no estado de São Paulo, onde atuou como professor da USP
por mais de três décadas. É considerado um dos principais historiadores e críticos
da literatura brasileira. Entre as suas obras mais importantes destacam-se
“Formação da literatura brasileira: momentos decisivos” (1959), “Literatura e
sociedade” (1965) e “O discurso e a cidade” (1993). Fazendo jus a sua formação em
Sociologia e em Estudos Literários, é uma marca dos estudos de Candido a
apreensão da literatura tanto como fato histórico-social quanto como fato estético-
formal.
Antonio Candido escreveu ao menos dois textos em que põe em primeiro plano
de discussão o que genericamente podemos chamar de funções da literatura. O
primeiro deles, “A literatura e a formação do homem”, foi originalmente proferido
como palestra na XXIV reunião anual da SBPC, em São Paulo, em julho de 1972. O
segundo, “O direito à literatura”, foi pronunciado, também como palestra, no curso
organizado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, em
1988. Já Mario Vargas Llosa escreveu vários textos sobre o tema em pauta.
Destacamos dois deles: “A verdade das mentiras”, de junho de 1989 e “A literatura e
a vida”, de abril de 20011.
Antes de passarmos efetivamente às discussões, lembramos que a leitura do
conteúdo desta aula não elimina a necessidade de se fazer a leitura integral dos
quatro ensaios que tomamos como pontos de apoio reflexivo. Além do que, é
importante que você busque outros textos, de outros autores, que também tratem da
questão central de nossa aula, seja para ver reforçados os argumentos aqui
expostos, seja para vê-los contrapostos.
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É sempre importante sabermos quando os textos que estudamos foram escritos, uma vez que o
contexto de enunciação sempre, de algum modo, direciona os enunciados. Por essa razão, sabendo
do contexto, compreendemos melhor os textos.
a literatura é uma atividade prescindível, um entretenimento,
seguramente elevado e útil para o cultivo da sensibilidade e das
maneiras, um adorno que pode se permitir quem dispõe de muito
tempo para a recreação, e que deveria ser afiliado entre os esportes,
o cinema, o bridge ou o xadrez, porém, que pode ser sacrificado sem
escrúpulos na hora de estabelecer uma ordem de prioridades nos
afazeres e nos compromissos indispensáveis da luta pela vida.
(LLOSA, 2004, p. 349).
Como vemos, segundo esta visão, a literatura poderia ser dispensada sem
grandes perdas para a sociedade. Sua importância seria secundária, serviria apenas
para a diversão das pessoas em momentos de lazer ou ainda para dar um “verniz
cultural” àqueles que a cultivassem. Sempre que comparada às atividades vistas
como práticas, a literatura se mostraria inútil e irrelevante 2.
Antonio Candido, por sua vez, em “O direito à literatura”, observa que muitas
pessoas, quando pensam em direitos humanos, sempre enumeram alimentação,
moradia, vestuário, transporte, instrução, saúde, liberdade individual, amparo da
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Miguel de Cervantes, em sua obra-prima “O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha”,
publicada em 1605, ironicamente parece fazer coro com essa visão depreciativa da literatura de
ficção como um exercício de diletantismo inútil. Já no “Prólogo” da obra, ele se dirige ao leitor com as
seguintes palavras: “Desocupado leitor”. (CERVANTES SAAVEDRA, 2007, p. 29) Já o romancista
russo Ivan Turguêniev, por sua vez, expõe pela fala de Bazárov, do romance “Pais e filhos”, publicado
em 1862, uma concepção semelhante: “Um químico honesto é vinte vezes mais útil do que qualquer
poeta” (TURGUÊNIEV, 2004, p. 52).
justiça pública, entre outros itens que “asseguram sobrevivência física em níveis
decentes”. Todavia, destaca o autor, que dificilmente se lembram de colocar nesta
lista itens que “garant[a]m a integridade espiritual, a exemplo do direito à crença, à
opinião, ao lazer [...], à arte e à literatura” (CANDIDO, 1995, p. 241). Ao considerar
que, em regra geral, a literatura não é vista como um direito humano, Candido, do
mesmo modo que constatara Vargas Llosa, também constata que a literatura tem
sido considerada por muitos como uma atividade prescindível, como algo que não
necessariamente precisa ser assegurado às pessoas.
É contra essa concepção que redutoramente enxerga a literatura como inútil,
como desimportante, como, no máximo, uma necessidade secundária, que Vargas
Llosa e Antonio Candido se insurgem, propondo argumentos que sustentam uma
perspectiva contrária a essa. Mais do que verem na leitura da literatura uma
atividade que se limita a uma experiência do campo do lúdico e do prazer, ambos a
enxergam como uma prática imprescindível para a plena integridade do homem e da
sociedade.
Para Antonio Candido, a literatura é algo tão relevante que deveria ser
enumerado entre os direitos garantidos a todos os indivíduos. Ela deveria estar,
portanto, entre os bens incompressíveis, ou seja, entre os bens que nunca poderiam
ser negados a nenhum indivíduo, uma vez que corresponderiam “a necessidades
profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas
sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos frustração mutiladora.” (1995,
p. 241) Para ele, a literatura é um instrumento de humanização, porta uma função
humanizadora, visto que tem a capacidade de “confirmar a humanidade do homem”
(2002, p. 77). Neste contexto, Candido (1995, p. 249) entende por humanização
Atividade 1
No primeiro passo da atividade, faça entrevistas com cinco pessoas de seu convívio
– seus pais, irmãos, amigos – a fim de saber o que eles pensam acerca da leitura de
narrativas de ficção nos dias atuais. Para melhor organizar as entrevistas, antes de ir
a campo, elabore um questionário com aproximadamente cinco questões. Esse
questionário deve ser flexível, a fim de poder se adaptar com naturalidade à situação
de cada entrevista. Como exemplo de perguntas, você pode indagar se a leitura de
narrativas de ficção pode trazer algum benefício aos indivíduos, se é uma atividade
essencialmente lúdica, se é um passatempo, se deve ser evitada quando se tem
algo mais sério a se fazer, se é importante para pessoas de qualquer idade, se deve
ser considerado um direito humano, se faz alguma diferença no convívio dos
indivíduos de uma sociedade, etc. Evite sugestionar as respostas. No segundo
passo da atividade, faça uma reflexão acerca das respostas obtidas e elabore um
texto ressaltando as visões predominantes dos entrevistados acerca da leitura da
narrativa de ficção.
A literatura e a satisfação da necessidade universal de fantasia
Parece ser comum a todos os povos a necessidade da imaginação e manter
algum contato com a fantasia, com alguma espécie de ficção. Sejam as narrativas
que vivenciamos em nossos sonhos, sejam as fábulas, os chistes, as piadas, as
histórias em quadrinhos, os filmes, as canções, nenhum indivíduo é “capaz de
passar as vinte quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo
fabulado” (CANDIDO, 1993, p. 242). É neste contexto que o autor afirma que esta
função da literatura, que, tanto em suas manifestações mais espontâneas quanto em
suas realizações mais sofisticadas, possibilita às pessoas contato com experiências
do universo fabular. Ainda de acordo com Candido, “a literatura é o sonho acordado
das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem
o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem literatura.” (CANDIDO,
1995, p. 242-3).
Algo semelhante é percebido por Mário Vargas Llosa, quando, no ensaio “A
verdade das mentiras”, afirma que:
Uma pessoa que não lê, lê pouco ou que só lê lixo, pode falar muito,
porém dirá sempre poucas coisas porque dispõe de um repertório
mínimo e deficiente de vocábulos para se expressar. Não é uma
limitação somente verbal; é, ao mesmo tempo, uma limitação
intelectual e de horizonte imaginário, uma indigência de
pensamentos e de conhecimentos, porque as ideias, os conceitos,
mediante os quais nos apropriamos da realidade existente e dos
segredos da nossa condição, não existem dissociados das palavras,
através das quais a consciência os reconhece e os define. (LLOSA,
2004, p. 355).
E ainda complementa: a literatura “não corrompe nem edifica [...]; mas trazendo
livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza no
sentido profundo, porque faz viver.” (CANDIDO, 2002, p. 85).
Leituras complementares
BERNARDO, Gustavo. A ficção cética. São Paulo: Annablume, 2004.
Nesse livro, pouco ortodoxo de teoria da literatura, Gustavo Bernardo,
desenvolve uma reflexão aprofundada – em linguagem clara – sobre o caráter
cético e ambíguo da ficção.
Resumo
Nesta primeira aula, vimos que a leitura de obras literárias, dentre elas as narrativas
de ficção, é uma atividade que vai muito além do mero passatempo ou de um hobby
erudito. Acompanhando as posições de Antonio Candido e Mario Vargas Llosa, você
deve ter percebido que a literatura é uma prática social de extrema relevância para
os indivíduos e para a sociedade. Isto porque as narrativas de ficção podem exercer
as seguintes funções: contribui para atender à necessidade humana de fabulação;
possibilita-nos vermos como pertencentes a uma coletividade humana, ao mesmo
tempo em que nos faz conhecer e respeitar as peculiaridades dos indivíduos e
povos; amplia nossa percepção linguística do mundo; ajuda-nos a aprimorar o senso
crítico com que vemos nossa realidade.
Autoavaliação
1. Qual a importância para um estudante de Licenciatura em Letras refletir
acerca de o porquê ler e estudar narrativas de ficção?
Referências
BORGES, Jorge Luis. O livro. In: Cinco visões pessoais. 2. ed. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1987. p. 5-11.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 3. ed. São
Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 235-263.
FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras; A literatura e a vida. In: ______. A
verdade das mentiras. Tradução de Cordelia Magalhães. 3. ed. São Paulo: ARX,
2004. p. 11-26; p. 349-367.
ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras histórias. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.