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A circulação da informação musical através dos programas de concertos no Rio de

Janeiro no século XIX


A instituição de programas de concertos está ligada a uma nova postura do
público diante do evento musical, o que constitui dois aspectos que ocorrem
concomitantemente. À medida que o público mudou, o costume de elaborar um
programa de concerto direcionado ao espectador dos teatros e salas se tornou rotineiro e
aprofundou cada vez mais o modo como os ouvintes passam a ser chamados então a
compreender aquilo que estavam fruindo.

O ouvinte do final do século XIX era bem distinto dos que iam aos teatros e
salões no início do século. O comportamento em relação ao ator, ao espetáculo, ao
músico era de outra ordem: havia desaparecido a grande interação entre público e palco.
Vale ressaltar que essa diferença não está circunscrita apenas ao caso do Brasil,
considerando as peculiaridades dos primeiros anos do Oitocentos. Em que pese toda a
agitação política e social em que viviam os teatros da corte, é uma mudança mais geral
de paradigma em relação ao ato de ver e ouvir.

O teatro, no século XIX, começou a ser utilizado de uma forma diversa que no
Antigo Regime. Tal fato está ligado ao movimento de transformação do homem público
no século XIX: entre a platéia e palco deixa de haver interação e entre os atores ou
músicos (cantores ou instrumentista) e a platéia, começa a existir a divisão da
personalidade no domínio público, que caracteriza o artista contemporâneo.1

Apesar de velhos costumes ainda persistirem nos teatros brasileiros um novo


hábito que demoraria a ser compreendido pelo público fluminense começa a ganhar
espaço. A ambientação dentro do teatro durante os espetáculos estava mudando: a
arquitetura, as dimensões do palco, da orquestra, a iluminação que se enfraquece cada
vez mais e se torna escurecimento da cena para dar ênfase ao que está no palco, no
decorrer desse século, a preocupação com a acústica para que somente o ator (ou a
orquestra) fosse ouvido. A platéia foi silenciando com o passar das décadas, o ambiente
criado reforçava o que Sennett chamou de “disciplina do silêncio”. Não se aplaudia
mais entre as árias, movimentos das sinfonias, ou entre um ato e outro; a contenção das
emoções foi conseguida a duras penas.2

1
SENNETT, Richard, O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. cap. 9.
2
Idem, Ibidem p. 256

1
Com pequenas, mas significativas alterações se construiu um novo cânone, que,
além de transformar o papel da platéia, ainda se tornou formador de opinião e de uma
nova vanguarda artística, “podendo guiar para novas direções o padrão estabelecido de
arte, e então o público em geral pode ir lentamente aprendendo a ver e ouvir com os
olhos e ouvidos do artista.”3

Com tal poder adquirido e a anuência do público, o compositor passou a deter a


verdade em sua pena e o público, alijado da capacidade de entendimento das novas
formas estéticas/musicais, exige que lhe contem o que se passa, como se sentir e se
portar. Essa necessidade do público será satisfeita através da adoção de duas
ferramentas fundamentais: a instituição da figura do maestro e a criação do programa de
concerto.

O programa é basicamente um comentário por escrito de um concerto ou de uma


ópera com a intenção de informar o ouvinte sobre o que vai ser executado. A introdução
de programas de concertos se deu através da análise de concertos realizada por George
Grove, com acentuado conteúdo técnico, onde se reproduziam trechos da partitura e, a
partir de um elemento, comentava-se a estrutura da obra e a execução.4

Num programa apresentado no Teatro Lírico, Vincenzo Cernicchiaro oferece um


concerto com a participação de mais 80 músicos, entre cantores e instrumentistas,
homens e mulheres, para tocarem Mendelssohn. Neste programa já podemos constatar a
mudança na geografia social do teatro: houve seis divisões de lugares dentro do recinto,
pelos quais se pagavam preços distintos segundo a visão que propiciavam. A música
“clássica” passa definitivamente a ser consumida por amplos setores da sociedade, não
apenas os endinheirados que podiam ir ao teatro em ocasiões mais especiais.

O programa típico que se delineia neste momento se propunha a levantar


questões sobre as obras a serem executadas e pode ser exemplificado pelos programas
do Club Beethoven, que eram oferecidos ao público num pequeno livro, que expunha de
maneira detalhada as obras e apresentava uma breve biografia de cada compositor. Na
abertura do livro havia a apresentação formal da instituição: o número de sócios com a
lista nominal; diretoria; comissões; lista dos músicos que deveriam tocar naquela
ocasião e o programa em si seguido da biografia e análise da obra escolhida.
3
ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio. (Org.) Michael Schröter; Tra. Sergio Góes de Paula.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 47.
4
SENNETT, Richard, O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. P. 259.

2
O crescimento dos concertos em salas públicas e teatros também favoreceu a
ampliação da utilização desses programas, contribuindo para que se tornassem cada vez
mais sofisticados em termos de detalhes, referências e sugestões. Mais que uma
indicação, passou a ser fornecida com exemplos de música. O escritor podia contar o
que havia se passado na noite anterior em determinado teatro ou sala, sublinhando todos
os sentimentos que subjazem à apresentação musical.

O trabalho do músico se torna cada vez mais intelectualizado ou pelo menos se


pretende que seja assim; quando um compositor considera necessário explicar sua obra,
trata-se de uma demonstração de seu distanciamento da platéia e o que antes era
perfeitamente compreensível começa a ser tornar um desafio. Acrescido a isso o fato de
amplas camadas sociais começarem a ter contato mais estreito com noções de música e
com as salas de concerto. O ideal do conhecimento universal e racional concebido com
a Revolução Francesa traz à tona um indivíduo que tem apenas um conhecimento
superficial em termos de música. A partir de um determinado momento foi necessário
dizer ao público o que ele deveria sentir e como se portar, como se passavam os
espetáculos, seu funcionamento, sua estrutura e características. O público necessitava de
um folheto de instrução pronto a satisfazer a necessidade de conhecimento e de
julgamento, do que estava vendo e ouvindo.5

No Brasil, houve a adoção desse tipo de programa de concerto através de


informações nos jornais diários sob a forma de folhetins, dos quais participavam críticos
amadores ou diletantes no assunto, e que foram criticados por sofrerem de falta de
conhecimento para comentar com sobriedade as apresentações. Esses folhetins
retratavam muito mais que o concerto em si, o assunto era a vida cultural da sociedade e
visavam os padrões estéticos de bom gosto, por vezes consideravam positiva a adoção
de formas de vivencia européia, outras, indicavam a mera importação de um modus
vivendi alheio as nossas tradições. De qualquer forma, denotava um movimento que
procurava a adoção de novas formas de audição e de novos compositores por parte da
sociedade elegante. A crítica nos folhetins propicia conhecer lugares concorridos, a
toalete das mais distintas damas da corte, decoração das salas, e até mesmo seu cheiro;
informavam sobre a recepção de determinados cantores, atores, peças (nacionais ou
estrangeiras) e como o público se comportava nos espetáculos.

5
SENNETT, Richard, O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. p 260

3
Outra forma de publicação estava ligada mais ao caráter do evento: concertos
realizados no Conservatório, concertos no Teatro Lyrico, Cassino Fluminense, Salão
Bevilacqua que não foram responsabilidade de uma instituição. Eram os espaços
disponíveis na cidade que abrigavam concertos de todos os tipos, sem um
direcionamento estético específico. Eram espaços alugados ou cedidos aos músicos
“independentes”.

Outra característica importante a ser notada é a progressiva adoção da música


“antiga” nos concertos aqui no Brasil. Na Europa, o repertório apresentado era
contemporâneo aos ouvintes e executores, ou haviam se passado poucos anos desde sua
composição e estréia. Esse tipo de música começou a ser apreciada pelo público ao
longo do século XIX e por isso encontramos nos diversos programas um repertório
ccriado pelos compositores da cidade com músicas recém formuladas. No Brasil,
encontramos um programa de concerto dedicado a essa música “antiga” - o repertório
traz criações dos séculos XVII e XVIII; entre os compositores temos os já conhecidos
Bach e Haendel como também o desconhecido Campra e tantos outros – nesse contexto,
cite-se o único exemplar de um programa que ocorreu em 1902 no Clube dos Diários no
Rio de Janeiro, concerto este que foi comentado por Luiz de Castro.

O processo não é totalmente alheio ao público, que precisa aceitar obras de


compositores de séculos anteriores. No conservatório de música, a classe de música de
câmara apresenta um repertório variado – gêneros, estilos e tempos – desde um hino ao
trabalho, passando por Bach, Schumann, Wagner, Saint-Saëns, Scarlati e muitos
compositores que, ao longo do século XX, desapareceram das salas de concerto, como
Fumagalli, F. Brisson, Frederico Nascimento.

Outra questão a ser salientada sobre este período é a imprecisão em relação ao


nome completo da obra a ser executada e mesmo do compositor. Se este músico é local,
não é incomum que se perca a referência sobre sua produção, considerando neste
caminho as mudanças pela qual passou a grafia dos nomes. Em relação à citação da
música a ser executada a necessidade de precisão é algo relativamente novo, um
exemplo é o programa de música de câmara de um concerto do conservatório, datado de
1875: o “Adieu et Revoir” faz parte de um ciclo denominado “Seis Momentos
Musicais”, composições para piano de Schumman, ou a música denominada apenas
como “Adágio” de Vieuxtemps.

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