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FEIRA DE SANTANA
2018
Marcelo Vinicius Miranda Barros
FEIRA DE SANTANA
2018
Marcelo Vinicius Miranda Barros
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________
Prof. Dr. Laurenio Leite Sombra – UEFS
____________________________________________________
Prof. Dr. Vinícius dos Santos – UFBA
____________________________________________________
Prof. Dr. Malcom Guimarães Rodrigues – UEFS (orientador)
ABSTRACT
The present work is a continuation of research initiated since the scientific initiation
fellowships over a period of three years plus one and a half years of study of this
monograph, having as objective the phenomenological-existential philosophy of the
French philosopher Jean-Paul Sartre that raises questions about the theses on Freedom
in Being and Nothingness (2012), when confronted with the thoughts about History
defended in the Critique of Dialectical Reason (2002). The problem here, then, is also a
classic interrogation of the thematic continuity between these two sartrean works. In
fact, we still intend to understand the not-so-friendly discussions between Sartre and
certain Marxists, in which we wish to analyze how the congruence between the theories
of Sartre and those of Marx is possible, stressing that this thinker will be based on the
works The German Ideology (2007), Economic and Philosophic Manuscripts (2010),
The Eighteenth Brumaire of Louis Napoleon (2011) and The Poverty of Philosophy
(1985), In order to investigate and understand the apparent contradiction between
subject / private and universal / history in Sartrean philosophy.
Keywords: Sartre, Marxism, Historical Subject, Freedom, Determinism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO A ALGUNS CONCEITOS SARTREANOS ................................. 13
A consciência na filosofia de Sartre .......................................................................... 14
O ―Em-Si‖ e o ―Para-si‖ ............................................................................................. 20
A liberdade é escolha e é sempre em situação ........................................................... 29
O SUJEITO HISTÓRICO / SOCIAL E A LIBERDADE NO “O SER E O
NADA”........................................................................................................................... 46
Facticidade do Para-si ................................................................................................ 46
A história também é contingência como facticidade do Para-si? .............................. 51
O Para-Outro .............................................................................................................. 52
O Olhar ...................................................................................................................... 59
Dualidade concernente ao Ser-Para-Si e ao Ser-Para-Outro ..................................... 64
As Relações concretas com o Outro .......................................................................... 66
Preconceito intelectual concernente ao Outro: a persistência do solipsismo ............ 68
Ter, Fazer e Ser – ser e fazer: a liberdade ................................................................. 76
Fazer e Ter – A Psicanálise Existencial ..................................................................... 81
O MARXISMO DE MARX .....................................................................,.................. 84
A Ideologia Alemã ..................................................................................................... 85
O sujeito na A Ideologia Alemã, de Marx ................................................................. 87
O 18 de brumário de Luís Bonaparte ....................................................................... 100
Manuscritos econômico-filosóficos ......................................................................... 105
A miséria da filosofia .............................................................................................. 112
O SUJEITO HISTÓRICO / SOCIAL E A LIBERDADE NO “O SER E O NADA”
COMO UMA ANÁLISE SARTREANA DO MARXISMO .................................. 118
O Ser-com (Mitsein) e o Nós e a alienação entre Sartre e Marx: uma análise sartreana
do marxismo............................................................................................................ 120
O SUJEITO HISTÓRICO / SOCIAL E A LIBERDADE NA “CRÍTICA DA
RAZÃO DIALÉTICA” ............................................................................................. 149
Questões de Método ................................................................................................ 149
Jean-Paul Sartre e Fiódor Dostoiévski: as leis como determinações ....................... 156
Dialética dogmática: marxismo idealista ................................................................. 161
Dialética crítica / razão dialética ............................................................................. 164
A práxis individual como totalização: a realidade humana ..................................... 167
As puras ideias como não determinações e a práxis ............................................... 174
O fazer e o ter na ―Crítica da Razão Dialética‖ ....................................................... 183
A possível tomada de consciência moral coletiva ................................................... 191
A formação dos grupos sociais na Crítica da Razão Dialética ............................... 209
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 216
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 225
1.0 INTRODUÇÃO
Alguns anos após publicar O Ser e o Nada, obra na qual o ser humano aparece
sempre como liberdade em situação, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre se
dedicou também ao estudo do indivíduo como um ser inserido na sociedade, imerso na
práxis, na qual a sua liberdade, ainda situada, é pensada dialeticamente com o
desenvolvimento histórico (ABDO, 2013). A Crítica da Razão Dialética é a obra na
qual Sartre explora a historialização da realidade humana, ou seja, as questões (já
abertas desde O Ser e o Nada) relativas à dialética entre a ação livre e individual e a
determinação histórica e social (LEOPOLDO E SILVA, 2015). Assim, partindo de
alguns temas de O Ser e o Nada, como a Facticidade do Para-si; o O Para-outro; o
Ter, Fazer e Ser e a Psicanálise existencial, para se chegar ao ―Marxismo-existencial‖
ou à Antropologia da Crítica da Razão Dialética, pretendemos realizar uma análise das
relações humanas, no recorte fenomenológico-existencial aqui presente, enquanto
práxis, dialética e coletividade, a fim de investigar e compreender a aparente
contradição entre sujeito/particular e história/universal.
1
Para nos situarmos no contexto da publicação dessas obras, cabe saber: originalmente O Ser e o Nada
foi publicada em 1943 e Crítica da Razão Dialética foi publicada em 1960.
2
Grosso modo, a facticidade também é compreendida como o aspecto de ser um fato. É a denominação
que filósofos, como Sartre, dão àquela peculiaridade da existência humana que é estabelecida pelas
situações em que os sujeitos se deparam. A facticidade abarca todas aquelas particularidades fatuais
acerca das quais não se tem nenhum domínio, por exemplo: a data do nascimento de uma pessoa, o seu
idioma, a sua cultura, o país em que vive ou o país em que nasceu. Portanto, para Sartre, a facticidade é
muito relevante, pois compõe o alicerce imprescindível de nossas ações. Somos livres em situação. A
nossa liberdade, a nossa capacidade de transcender as nossas circunstâncias, é de encontro a um contexto
de facticidade. Segundo Sartre, é só na facticidade da sociedade, em termos de um princípio de valores,
que nós escolhemos, que exercemos a liberdade que ―define‖ a nossa existência (MAUTNER, 2010).
OBS.: Conceitos relevantes expostos antecipadamente serão oportunamente mais aprofundados no
decorrer deste trabalho.
8
Ser e o Nada) e com a história (Crítica da Razão Dialética), tendo como uma espécie de
desdobramento o posicionamento do filósofo francês que se encontra diante da
necessidade de equacionar a práxis com a determinação histórica, como também nossa
análise se justifica no contexto externo às obras sartreanas, no seu diálogo
(frequentemente não tão amigável) com o marxismo. Entende-se aqui que esse
marxismo, como o objeto da crítica da filosofia de Sartre, não é necessariamente
direcionado ao Karl Marx, mas ainda ao neo-marxismo (SILVA, 2006), pois ―nota-se
que 1947 é um ano marcado pelo acirramento da crítica ao existencialismo por parte dos
marxistas‖ (SILVA, 2006, p. 83). A crítica que Sartre recebe dos marxistas de sua época
3
Apesar de que Sartre está também lidando criticamente com o marxista Lukács, que por sinal, ao
enfrentar o Sartre, ―Lukács precisou contradizer seus escritos anteriores‖ (SILVA, 2016, p. 130),
colocamos, além disso, a expressão ―certos marxistas‖ aqui, porque, neste momento, Sartre não está
especificando nomes com os quais discutem. O que ocorre é um ataque dos marxistas franceses do seu
tempo, especialmente do Partido Comunista Francês (PCF), contra ao Sartre. Igualmente consideramos a
crítica de Sartre aos comunistas marxistas da antiga URSS, como na sua obra ―O Fantasma de Stalin‖
publicada no ano de 1956, na qual explica sua posição em face dos desvios do espírito do marxismo por
parte das autoridades soviéticas, enquanto ainda critica a docilidade do Partido Comunista Francês
perante as tais autoridades. Então, essa expressão, quando colocada no decorrer desta atividade, será em
referência aos marxistas que Sartre entra em embates, mas que não específica nome ou sujeito, e sim que
tece sobre um movimento marxista como um todo de sua época, notadamente na França e URSS.
9
tal separação tem muito de artificial, e a leitura pautada pelo que
poderia ser entendido como uma sequência de duas diferentes ‗fases‘
do pensamento de Sartre arrisca-se a deixar escapar algo fundamental:
a subjetividade, como exercício de uma liberdade radical, deve ser
sempre pensada historicamente, pois a existência é, por definição,
histórica (LEOPOLDO E SILVA, 2015, p. 39)4.
Portanto, em resumo, para Sartre cada história subjetiva se desenrola no plano
geral da história objetiva e vice-versa. Não há, então, a dicotomia irredutível entre a
subjetividade e a objetividade ou entre o individuo e a história. Se a realidade humana é
histórica também para Sartre, ela se dá por via da relação entre um sujeito, que é sempre
um agente histórico, e o conjunto de condições objetivas que contextualizam a liberdade
em situação: as facticidades, ―pois se é verdade que o homem está na história, também é
verdade que é ele que faz a história‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2015, p. 40). É preciso
salientar ainda que Sartre não afirma que o sujeito é literalmente uma extensão da
história, ou melhor, que sujeito e objeto é uma coisa só, pois isso recairia, ou teria o
risco de recair, em uma espécie de ―teoria do reflexo‖, que o filósofo francês tentou
combater, e mais: estaríamos induzindo um tipo de marxismo mecanicista (o ser
humano como mero efeito da história), logo, se negasse uma espécie de ―dialética‖ na
relação entre esses seres, cogitaríamos que a filosofia sartreana seria um Idealismo ou
um Realismo, e, ainda, afirmaríamos que o Para-si (consciência) e o Em-si (objeto)
seriam únicos: Ser-Em-Si-Para-Si, o que seria um absurdo para a filosofia sartreana.
Para esse filósofo francês, o meio só age sobre o sujeito a partir do momento em que ele
age (JALIL, 2016) ou, com as palavras de Sartre, ―o meio só poderia agir sobre o sujeito
na medida exata em que este o compreende, ou seja, em que este o transforma em
situação‖ (SARTRE, 2012, p. 700), portanto, Sartre se afasta de um determinismo
mecanicista, isto é, ―abandona a suposição de que haja uma ação mecânica do meio
sobre o sujeito considerado‖ (SARTRE, 2012, p. 700), o que exprime, do mesmo modo,
que a liberdade em Sartre não equivale a fazer o que se quer ou que é uma espécie de
livre-arbítrio, como este é entendido no senso comum. Sobre isso, discutiremos mais a
frente. O que é importante deixar evidente, por enquanto, é que para Sartre não há o
sujeito, de um lado, e o objeto, do outro lado, de maneiras arbitrárias. Não há uma
dualidade nesse sentido, já que por mais que o objeto (seja a natureza, o mundo já
constituído, a história etc.) exista ―antes‖ do sujeito, ele só é conhecimento frente a esse
4
Entedemos a importância de não se perder de vista as diferenças de cada obra sartreana, contudo
entendemos que essas diferenças já são bem discutidas por outros autores, por isso o nosso objetivo é
tentar demonstrar a continuidade temática em ambas.
10
sujeito, porque o ato de conhecer é humano, com outras palavras, toda consciência é
consciência de alguma coisa. Inevitavelmente, voltaremos a esse assunto. Por ora, só
basta estarmos cientes disso: a não dualidade sartreana, em rigor, é a não autonomia
como arbitrariedade, capricho ou isolamento entre o sujeito e o objeto.
Também é necessário frisar que Sartre reconhece que o Outro sempre nos escapa
e igualmente não coincidimos com a objetificação desse Outro sobre nós, por isso
somos livres, mas, ao mesmo tempo, somos objetificados pelo olhar alheio. De qualquer
forma, o Outro é importante para o sujeito, mesmo que esse Outro, o seu olhar, possa
objetificar tal sujeito, querendo arrebatar a sua liberdade, contudo ainda assim esse
arrebatamento não é possível, pois o sujeito não coincide com a apreensão que o Outro
tem dele, porquanto não pode se olhar como o Outro lhe olha. O Outro será quase
indecifrável (SARTRE, 2012).
Porém, mesmo assim, a relação social é admissível, já que o Outro, este que me
escapa constantemente ou que "é, antes de tudo, a fuga permanente das coisas"
(SARTRE, 2012, p. 329), é também "uma relação concreta e cotidiana que experimento
a cada instante: a cada instante o outro me olha (...) o outro é, por princípio, aquele que
me olha" (SARTRE, 2012, p. 332). Deste modo, igualmente, ―o Outro é o mediador
indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao
Outro‖ (SARTRE, 2012, p. 290). Neste sentido, podemos entender ―que a sociedade e
as situações sociais são vivas, em movimento de construção e reconstrução, em
permanente tensão, sob uma aparente, mas enganadora, aparência de tranquilidade e
inércia‖ (SOARES; EWALD, 2011, p. 13).
Por isso, posso tanto ser objeto quanto objetificar o Outro, mas ambas as
situações fracassam na medida em que a liberdade é inalienável, para Sartre, como
entendido em O Ser e o Nada. Nestes termos, se esta relação entre o Outro e a realidade
humana pode ser compreendida no pano de fundo da tensão entre liberdade e história,
justifica-se a continuidade de nossa pesquisa, doravante, em direção à Crítica da Razão
Dialética.
É preciso compreender, então, a tentativa de elaborar uma reflexão que nos seja
reveladora dos mecanismos de construção da realidade social, entendida na tensão entre
o sujeito e a história, via a filosofia de Sartre. Aqui, uma das principais perguntas é: se
há algum tipo de determinação da facticidade, na história, como equacioná-la com a
liberdade? A questão se justifica, porque Sartre parece questionar o determinismo, como
11
aquele proveniente do marxismo mecanicista. Portanto, exemplificando, não é
necessário aqui o conceito mecanicista sobre o ser humano, uma vez que se parte do
pressuposto de que a consciência é intencional (toda consciência é consciência de
alguma coisa) (SARTRE, 2012). Neste sentido, a subjetividade, pelo viés de Sartre, não
é imanente ao indivíduo, mas diz respeito ao conceito de Intencionalidade, à
intersubjetividade sartreana e à relação que o sujeito tem com Outro, o olhar, que são
questões discutidas em O Ser e o Nada, não existindo, portanto, a separação entre o
plano individual e o coletivo, entre os registros de indivíduo e sociedade, eliminando,
segundo Sartre, o modelo cartesiano de dualidade, a saber: sujeito e objeto. Como
também a subjetividade sartreana diz respeito do modo de Ser-Para-Si como ipseidade,
como movimento em direção a algo que ele não é e almeja ser. Veremos mais sobre isso
(SARTRE, 2012).
Assim, na primeira parte deste trabalho, que se segue até ao capítulo Fazer e Ter
– A Psicanálise Existencial, abordaremos a teoria do existencialismo de Sartre em O Ser
e o Nada, buscando demonstrar ainda a existência de um sujeito social e histórico e,
com menos ênfase, o seu possível diálogo com o marxismo e com a sua outra obra
Crítica da Razão Dialética.
5
―Os termos marxiano e marxista [...] reportam-se respectivamente à menção direta a obra de Marx e
Engels e aos desdobramentos dos que dialogam com a obra de Marx‖ (ANDREOTTI, 2007, p. 236).
12
princípio, da obra mencionada, ao invés de partimos da Crítica da Razão Dialética, já
que nesta o próprio Sartre já fez a sua análise do marxismo. Isso ocorrerá devido a dois
intuitos presentes no nosso objetivo: primeiro, dar prosseguimento ao exame de que no
O Ser e o Nada se pode comentar de um sujeito social e histórico; segundo, apresentar
essa obra como possibilidade de uma análise sartreana do marxismo, sem inicialmente
remetermos com destaque à Crítica da Razão Dialética.
13
com a história e um exame do marxismo como é entendido por Sartre. Isso ficará mais
evidente no decorrer deste trabalho.
6
“Este 'nada' não é um nada metafísico absoluto como o de Parménides, é um 'nada' relativo ao 'ser-em-si'
(as coisas), que é ao mesmo tempo movimento com origem no 'ser-para-si' (a consciência) e acto de
desprendimento do 'em-si'" (ROCHA, 2005, p. 91) ou, na filosofia sartreana, ―o nada não se reduz a um
mero conceito vazio, desprovido de sentido‖ (BORNHEIM, 2011, p. 43).
7
Esclareceremos esse termo mais a frente, no capítulo ―O ‗Em-Si‘ e o ‗Para-si‘‖.
8
O que tentamos explicar é que a subjetividade se constrói na relação entre o mundo já dado e a
existência humana. ―Na verdade, ao se tratar de uma relação dialética entre o ‗interno‘ e o ‗externo‘, o
14
do idealismo quanto do realismo – afinal, conforme o próprio escrito de Sartre,
idealismo e realismo dissipam de modo semelhante o real, um porque suprime a coisa, o
outro porque suprime a subjetividade. O filósofo francês, então, procura vencer essa
polaridade, partindo, dentre outros conceitos, o da intencionalidade da consciência
(SARTRE, 2012).
subjetivo é ao mesmo tempo processo e resultado, em constante construção‖ (LEAL, 2015, p. 62). Não
existe, então, dualidade cartesiana ―externa‖ e ―interna‖. E o mundo ―interno‖ não é necessariamente
representação do ―externo‖, nem vice-versa, pois são planos que se transversalizam simultaneamente.
Como entendido, Sartre se afasta do pensamento cartesiano: ―interno‖ e ―externo‖ ou ―subjetivo‖ e
―objetivo‖ (SARTRE, 2012). Essa questão também pode ser explicada sob o conceito do Para-si como
processo nadificador constante do Em-si, um fluxo, pois a consciência não é uma substância. Contudo,
isso será discutido mais adiante.
9
Grosso modo, Sartre entende o Campo transcendental da consciência como um ―um vazio total (já que o
mundo inteiro se encontra fora dela)‖ (SARTRE, 2012, p. 28). Em rigor, afirmar que a consciência é o
Campo transcendental, coloca todo o resto, o que inclui o Ego (como espécie de princípio de organização
dinâmica, diretor e avaliador que determina as vivências e atos do indivíduo), no ―mundo‖.
15
O que temos, por parte de Sartre, é a radicalização do conceito de
intencionalidade e a forma pela qual essa radicalização se desdobra em uma filosofia
que busca resgatar o ser humano concreto em suas relações com o mundo.
16
Todavia, não se compara a consciência irrefletida10 com uma espécie de
inconsciente, já que a consciência irrefletida é a condição para uma lembrança e a
reflexão de um passado imediato, o que seria impossível se a ação fosse inconsciente
(RODRIGUES, 2007). Ou seja, ―a consciência não reflexiva torna possível a reflexão:
existe um cogito pré-reflexivo que é condição do cogito cartesiano‖ (SARTRE, 2012, p.
24). Por exemplo:
10
Muitos comentadores consideram a consciência irrefletida também como consciência pré-reflexiva ou
até como cogito pré-reflexivo, como há outros que não aceitam essa consideração, mas isso seria outra
discussão que não cabe aqui.
17
consciência irrefletida, ou seja, grosso modo, Sartre ao distinguir a consciência do
conhecimento, afirma que a consciência reflexiva é aquela que o sujeito conhece, sabe
ou reflete sobre alguma coisa; já a consciência irrefletida se trata de algo que antecede a
reflexão propriamente dita, portanto, a consciência irrefletida é uma espécie de
―conhecimento‖ não tematizado (SARTRE, 2012).
Outro ponto importante dos fenômenos humanos, pelo viés de Piaget, é que ―a
lógica das ações aparece sempre mais profunda e primitiva, sendo desenvolvida com
maior rapidez, superando melhor as dificuldades encontradas‖ (SOUZA, 2007, p. 2), ou
seja, considerando isso na filosofia sartreana, a consciência irrefletida está sempre
decidindo, fazendo escolhas, pois só se escolhe se é consciente (SARTRE, 2012).
Se nos casos dos estudos de Piaget, as crianças sabem resolver problemas sem
uma reflexão e sim em um ato ―inconsciente‖, pois, se perguntarem às crianças como
elas resolveram a tal questão, elas não saberiam responder, só saberiam que a
resolveram, então, não há um inconsciente de fato, já que tem que haver consciência ao
resolver/decidir/escolher e só se escolhe, segundo Sartre, se é consciente. Portanto,
ainda não existe conhecimento (aqui entendido como consciência reflexiva) nos
fenômenos dos testes de Piaget, mas há consciência irrefletida. Devido também a isso é
que percebemos não ser por acaso o esquadrinhamento do trabalho de Piaget realizado
por Sartre em sua obra O Ser e o Nada (SARTRE, 2012). Em suma, para Piaget, agir
sobre o objeto não é a mesma coisa que saber como agir sobre o objeto ou com o objeto,
pois isso vai exigir o conhecimento sobre o próprio processo ―mental‖ a respeito
daquilo em que se age. Logo, não se pode confundir lógica das ações com a lógica
conceitual (SOUZA, 2007), ou, em uma análise sartreana, não se pode confundir a
consciência com o conhecimento (SARTRE, 2012).
19
2.2 O “Em-Si” e o “Para-si”
Para Sartre, há o ser que é o que é. Trata-se do ser Em-si. Este não é ativo, é
maciço e rígido. Além do Em-si, o filósofo concebe a existência do ser especificamente
humano, denominando este de Para-si (SARTRE, 2012).
Sartre afirma que "O ser é. O ser é em si. O ser é o que é" (SARTRE, 2012, p.
40). O Em-si são seres que rodeiam a consciência (com exceção das outras
consciências). Dessa forma, o Em-si compõe o mundo bruto diante do qual concebemos
a nossa existência. Com outras palavras,
daí a concepção especial que se deve dar ao "é" da frase "o ser é o que
é", que existem seres que hão de ser o que são, o fato de ser o que se é
não constitui de modo algum característica puramente axiomática: é
um princípio contingente do ser-Em-si [...] Designa a opacidade do
ser-Em-si. Opacidade que não depende de nossa posição com respeito
ao Em-si, no sentido de que seríamos obrigados a apreendê-lo ou
observá-lo por estarmos ―de fora‖. O ser-Em-si não possui um dentro
que se oponha a um fora e seja análogo a um juízo, uma lei, uma
consciência de si. O Em-si não tem segredos: é maciço. Em certo
sentido, podemos designá-lo como síntese. Mas a mais indissolúvel de
todas: síntese de si consigo mesmo (SARTRE, 2012, p. 39).
O ser Em-si, sendo o que é, não mantém nenhum tipo de relação consigo nem
com a consciência. Sendo plena positividade11, esse tipo de ser é uma completa
adequação a si, é pleno de ponta a ponta. Assim, Em-si não comporta atributos tais
11
É pura positividade, porque o Em-si não interroga, diferente do Para-si que é negatividade e, por isso, é
conduta interrogativa. Assim, todo esse procedimento da consciência como intencionalidade é um ato de
interrogação e, por ser intencionalidade, interroga aquilo que ela não é. A negatividade, portanto, é
possível porque o Para-si sempre implica um ser outro que não ele, uma transcendência. Dessa forma, é
impossível construir a noção de objeto se não tivermos originalmente uma relação negativa qualificando o
objeto como aquilo que não é a minha consciência (MOREIRA, 2010): ―só se pode ser consciência de
algo se se é, de início, a negação desse algo. O objeto é para mim, antes de mais nada, o que eu não sou,
ele só pode existir para mim se ele é algo diferente de mim, se ele é um não eu. Toda presença, diz Sartre,
envolve uma negação radical como presença diante daquilo que não somos‖ (MOUTINHO, 2003, p.
119), ou seja, o ―Para-si não é mais que esse Nada translúcido que é negação da coisa percebida‖
(SARTRE, 2012, p. 196). Veremos isso mais adiante.
20
quais: atividade, passividade, possibilidade, temporalidade, potência, pois estes só
podem advir através da consciência (Para-si) ou da realidade humana. Nesse sentido o
Em-si é fechado em si mesmo. Dito de outra forma, o Em-si
real nos oferece o em-si: [...] remédios, roupas, em suma, coisas que
percebemos. Nós, ao contrário, não ―vemos‖ estas coisas; [...] vemos
aquele remédio que precisamos tomar para viver bem, aquela roupa
que nos deixará atraentes (RODRIGUES, 2007, p. 26).
Isto é, vemos sempre os fenômenos perante o Em-si. Sartre também, além do
Em-si, apresenta outra questão da existência: o Para-si, que comentamos rapidamente,
mas que precisamos esclarecer melhor. O Para-si se diferencia do Em-si, já que ao
definir o ser Em-si como plena positividade, isto é, como um ser que é o que é, o
filósofo apresenta o Para-si, ou melhor, a consciência humana, como negatividade, pois
é pela negatividade que qualifico o objeto como aquilo que não é a minha consciência,
permitindo construir a noção de objeto. Nesse sentido, a consciência (Para-si) é
intencional, isto é, está sempre voltada para um objeto que dela difere (Em-si). Em
suma,
21
meu pensamento, o meu passado são seres (Em-si) presentes à minha consciência e que
dela se encontram separados por um nada. Assim, o fato de a consciência ser
consciência como não sendo esse livro que a ela se apresenta, bem como não sendo o
pensamento que está diante dela como reflexão, é chamado, por Sartre, de negação
externa e interna, respectivamente (SARTRE, 2012). Ou seja,
12
A nadificação é a própria consciência (Para-si) que se desprende ou não coincide com os objetos (Em-
si) e com si mesma, que a faz negar o ser percebido.
13
Sartre nos diz que o projeto fundamental é tornar-se um ser que já realizou tudo, como não mais se
diferenciar do Em-si e, ao mesmo tempo, preservar sua consciência: ser um Ser-Em-Si-Para-Si. Mas, o
22
Como vimos, o Para-si por ser negatividade é também interrogação. Então, na
atitude interrogativa, há dois tipos de não-seres implícitos, a saber: o não-ser de saber
(do interrogador) e a possibilidade da resposta negativa (no ser interrogado):
Outro ponto também importante é que Sartre ainda é acusado de manter, a seu
modo, uma filosofia cartesiana, pois há críticos que afirmam que a ideia do Para-si e do
Em-si é uma polaridade que o filósofo não conseguiu superar e, com efeito, a questão
do Idealismo e do Realismo, posta anteriormente aqui, ainda se encontra não resolvida
nesse filósofo. Assim, decidimos retomar tal discussão. Considerando isso, Sartre
expõe: ―Laporte diz que caímos na abstração se pensamos em estado isolado aquilo que
não foi feito para existir isoladamente‖ (SARTRE, 2012 p. 43). ―Husserl também pensa
assim: para ele, o vermelho é uma abstração, porque a cor não pode existir sem uma
Ser-Em-Si-Para-Si existe somente como o ideal do Para-si, já que o ―Para-si tenta escapar à sua existência
de fato, ou seja, ao seu ser-aí, como Em-si, do qual não é de modo algum o fundamento, e que esta fuga
ocorre rumo a um porvir impossível e sempre perseguido, no qual o Para-si fosse Em-si-Para-si, ou seja,
um Em-si que fosse para si mesmo seu próprio fundamento‖ (SARTRE, 2012, p. 452).
23
figura (SARTRE, 2012 p. 43). Ao contrário, a ―coisa‖ espaço-temporal, com suas
determinações todas, é que é um concreto.
Segundo esse ponto de vista, não poderemos aceitar que a consciência (Para-si)
seria abstrata, por parecer esconder uma origem ontológica no Em-si, e, reciprocamente,
que o fenômeno seria igualmente abstrato, já que precisaria ―aparecer‖ à consciência,
pois, de fato, a totalidade sintética consciência-fenômeno ou Intencionalidade é o que é
o concreto. Dessa forma, Sartre evita o problema da dualidade à la cartesiana. Ainda, de
antemão, cabe saber: o Para-si é um processo nadificador constante, e não uma
substância; é um ato (SARTRE, 2012).
24
imaginar, o que seria aberração. A consciência não passaria de um Em-si, o que é
também contraditório (SARTRE, 1996). Para o filósofo, ―essa consciência só poderia,
portanto, conter modificações reais provocadas por ações reais, e toda imaginação lhe
seria interdita, precisamente na medida em que estaria submersa no real‖ (SARTRE,
1996, p. 239). Portanto, se a consciência é determinada por fatos psíquicos do mundo e
pelo ―real‖, como pretendem alguns psicólogos behavioristas14, seria impossível para a
consciência produzir alguma outra coisa a não ser o real15. Ou ainda: a determinação da
consciência unicamente pelo real e a interpretação dos processos da consciência
segundo a lei da causalidade, ideias defendidas por alguns psicólogos behavioristas,
significaria a impossibilidade da consciência de produzir algo além do real. No entanto,
salientamos que Sartre tinha como meta examinar a consciência no mundo. A
consciência é engajada no mundo de tal forma que ela não existe sem mundo, mas a
consciência não é determinada pelo real, não é objeto ou extensão do mundo. Não
estamos tecendo sobre um determinismo mecanicista, por exemplo, pois a consciência é
sempre ativa (SARTRE, 1996). Então, a liberdade existe em situação, agindo no mundo,
como veremos mais a frente. Por isso, é possível dizer que ―o ser-Em-si e o ser-Para-si
não simbolizam uma dualidade do tipo Corpo-Alma‖ (BUENO, 2007, p. 24) 16 e mesmo
assim há relação entre esses seres, sem um ser a extensão do outro, senão, cairíamos no
Idealismo ou no Realismo, que Sartre tanto criticou. Podemos entender ainda que isso
não seja um indeferimento da divisão ou dualidade e sim uma negação para um tipo de
dualidade (como a cartesiana). Então, estamos em uma concepção de que a dualidade
em questão, que é concebida por Sartre, é uma forma de relação; a oposição não se dá
14
―Se a consciência parece ter um efeito causal, trata-se do efeito do ambiente especial que a induz à
auto-observação [...] O que o behaviorismo rejeita é o inconsciente como um agente, e está claro que
também rejeita o consciente como um agente‖ (SKINNER, 1974, p.133).
15
Por a consciência não ser uma mera extensão do mundo, ela também pode imaginar. A imaginação não
segue as leis da física ou as leis do mundo. Portanto, podemos concluir que é por isso que se pode
imaginar um Centauro (inexistente), uma pessoa com que se marcou um encontro, mas que não
compareceu ao tal encontro (ausente), um amigo distante (existente em outra parte), imaginar ainda um
―copo voador‖ etc. Com outras palavras, ― [...] a imagem contém, do mesmo modo, um ato de crença ou
um ato posicional. Esse ato pode tomar quatro, e somente quatro, formas: pode colocar o objeto como
inexistente, ou como ausente, ou como existente em outra parte; pode também ‗neutralizar-se‘, isto é, não
colocar seu objeto como existente (essa suspensão da crença continua a ser um ato posicional) (SARTRE,
1996, p. 26). Posso, então, imaginar tudo aquilo que ―fere‖ as leis do mundo. Se a consciência fosse uma
extensão do Em-si, imaginar dessa forma seria praticamente impossível. Não há uma consciência passiva,
por isso não há nenhuma surpresa em relação ao tal objeto imaginado (SARTRE, 2008).
16
Estamos cientes de que esta questão é delicada. Não há um consenso entre os especialistas. Quando se
trata da relação do Para-si com Em-si, alguns comentadores julgam que há dualidade – e há passagens em
O Ser e o Nada para dar-lhes alguma razão. Por outro lado, como apresentamos, há também passagens
para negar este dualismo.
25
entre entes autônomos, mas entre componentes de uma totalidade que só nela (ou seja:
só nas relações que a constituem, inclusive a relação que os opõe/distingue) existem
como os seres que efetivamente são.
17
Como será observado no decorrer deste trabalho, o existencialismo de Sartre está inteiramente
estruturado no princípio filosófico de que no homem a existência precede a essência; isto é,
primeiramente o homem é lançado na existência ou primeiro ele existe e só depois, por meio de suas
ações, que esse homem pode representar-se como sendo alguma coisa (SARTRE, 2012).
26
Realmente, se observarmos mais de perto, ontologicamente o Em-si é anterior
ao Para-si, e aquele ocupa, nessa totalidade sintética que é o homem-no-mundo, uma
primazia deste. ―E por isso podemos dizer, junto com Coorebyter, Frajoliet e
Giovannangeli, que Sartre parece, por enquanto, muito próximo do realismo‖ (SOUZA,
2017, p. 161). Sartre se encontra muito mais próximo do realismo do que seus
contemporâneos críticos puderam ou quiseram perceber, mas ele não se torna totalmente
realista, porque, se ontologicamente o Em-si existe ―antes‖, é por meio da
fenomenologia desempenhada pelo Para-si que o Em-si é desvelado, ou seja, ―por ser
uma ontologia fenomenológica, a fenomenologia chega, a partir de Husserl, para
contrabalancear a tendência realista mais radical do início‖ (SOUZA, 2017, p. 161)18,
fazendo ainda com que se evite a tal polaridade da história da filosofia, Idealismo e
Realismo, como do mesmo modo a polaridade cartesiana.
18
Assim, se considerarmos Sartre como uma espécie de realista (contrariando os que dizem que esse
filósofo é idealista), cabe salientar que é ―um realismo que se distingue do clássico porque agora convive
com a fenomenologia e a falta de sentido de falar do real sem o modo como é vivido pelo Para-si. Embora
exista antes, nada é sem uma subjetividade que o intencione, e é por isso que em inúmeras vezes Sartre
dirá que se dão conjuntamente: mesmo que ontologicamente isso não ocorra, a existência prévia do ser
nada diz sobre o sentido do ser, que só é desvendado pelo Para-si, que precisa do ser para existir mas que
ao mesmo tempo se coloca como condição do desvelamento do ser.‖ (SOUZA, 2017, p. 162).
27
dualidade de entes autônomos. Essa afirmação de Sartre ratifica o que já se vinha
comentando sobre o Para-si: que é um ato nadificador constante, ou seja, o Para-si é
uma relação com o Em-si a todo instante. Então, o Para-si não pode escapar do Em-si,
―posto que é nada e porque nada o separa do Em-si. O Para-si é fundamento de toda
negatividade e toda relação, ele é a relação‖ (SARTRE, 2012, p.452). É bom frisar que,
para Sartre, o Para-si é a própria relação (SARTRE, 2012).
Como vimos, a esta altura essa ideia de separação ou de polaridade pode ser
contestada. Vejamos mais um exemplo do próprio filósofo que corrobora com isso:
―não somente não posso conhecer-me, como também meu próprio ser me escapa –
embora eu seja este próprio escapar a meu ser‖ (SARTRE, 2012, p. 335). Em suma, o
Para-si é qualificado como o próprio ser que me escapa, porém logo o filósofo deixa
claro que o Para-si é este próprio escapar a meu ser, ou melhor, eu sou este próprio
escapar a meu ser. Não há dualidade do tipo Corpo e Alma ou um Eu e um Ser que
escapa desse Eu.
Então, ―é essa tensão entre mundo e consciência, Em-si e Para-si, que reaparece
em termos ontológicos em O ser e o nada, de tal forma que não se deve decidir por um
ou por outro, mas sempre pensá-los juntos‖ (SOUZA, 2017, pp. 161-168). Percebe-se
ainda que essa tensão entre o mundo e a consciência, que devem ser pensados juntos,
nos remeterá à tensão entre a história e o sujeito que devem igualmente ser pensados
juntos, já que a história existindo no mundo já constituído ou sendo um passado da
humanidade é um Em-si, e o sujeito, por ser consciência, é o Para-si.
Portanto, mesmo no início dessas nossas análises sobre a obra O Ser e o Nada,
já podemos vislumbrar como a história é apreendida na filosofia sartreana, pois toda a
filosofia de Sartre pode ser compreendida a partir desse esforço de se equilibrar entre o
mundo que existe de antemão, como a história já aí constituída, e a consciência que se
relaciona com este para existir, mas que doa sentido ao mundo, de tal forma que ambos
não podem de fato existir sem ser conjuntamente (SOUZA, 2017). ―Sem cair no
determinismo mecanicista, sua filosofia também evita a pura indeterminação por nunca
pensar o Para-si dissociado de uma facticidade e dos olhares das outras subjetividades‖
(SOUZA, 2017, p. 165), já que, como veremos, a liberdade é situada e há um sujeito
social e histórico em Sartre. Assim, não se pode desconsiderar o trabalho realizado pelas
subjetividades no mundo ou na história e vice-versa. Se não podemos desconsiderar
esse trabalho, ―não faz sentido pensá-lo de forma abstrata, sem vinculá-lo a situações
28
históricas‖ (SOUZA, 2017, p. 166). O que fica claro, aqui, é que ―os projetos no sentido
das escolhas e o projeto fundamental que é a raiz de todas as escolhas e o pólo
orientador do desejo de ser acontecem na história, isto é, na facticidade e na
contingência‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2004a, p. 28). O Para-si é o fazer-se do
existente, mas o que cada um pode fazer de si está em estrita dependência das relações
de alteridade e das determinações objetivas, ou seja, a ―realização do Para-si enquanto
projeto de libertação ocorre por via de condutas que sintetizam a liberdade de ação do
sujeito com as determinações do mundo objetivo‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2004a, p.
28).
Essa relação do Para-si com o Em-si nos servirá para compreender a relação do
sujeito com a história, pois o passado – que é um Em-si por não poder ser mais
modificado, possuindo uma essência imutável – é o passado do sujeito como também é
o de toda a humanidade: a história (SARTRE, 2012). Mas, cabe sermos rigorosos aqui:
Sartre afirma que o Em-si ―é indefinidamente si mesmo e se esgota em sê-lo‖
(SARTRE, 2012, p. 39). Portanto, o Em-si também é sem temporalidade, sem passado e
sem futuro, ele simplesmente é. Assim, o que faz compreendermos que o Em-si é
entendido como passado é quando consideramos a presença do Para-si, ―precisamente
porque essa consciência é temporal‖ (SARTRE, 2012, p. 39).
Por isso, até mesmo a liberdade absoluta não pode ser separada da facticidade na
qual se encontra, o que, por sua vez, não anula ou diminui a liberdade sartreana, pois,
para Sartre, ela é situada, e essa situação também nos remete à história e ao social
(SOUZA, 2017). Sobre essa liberdade, nós a analisaremos no próximo capítulo deste
trabalho.
29
nesta obra [Crítica da Razão Dialética] há uma mudança de
perspectiva na abordagem do tema da liberdade [...] A razão dialética
é a lógica da ação que busca realizar a liberdade dos sujeitos
historicamente situados [...] isto é, a liberdade é o encontro das
liberdades situadas que ensejam o processo da história (LIMA, 2003,
p. 1).
O fato é que ainda no O Ser e o Nada Sartre já afirmava que a liberdade é
situada: ―[...] é o que denominaremos situação. Tal situação reflete ao mesmo tempo
minha facticidade e minha liberdade‖ (SARTRE, 2012, p. 335), uma vez que ―para o
Para-si, existir e situar-se constituem a mesma coisa‖ (SARTRE, 2012, p. 392). Ou seja,
―se o Para-si nada mais é do que sua situação, daí resulta que o ser-em-situação define a
realidade humana‖ (SARTRE, 2012, p.673) 19, em suma, ―não há liberdade a não ser em
situação, e não há situação a não ser pela liberdade‖ (SARTRE, 2012, p. 602). Com
efeito, ―a subjetividade, como exercício de uma liberdade radical, deve ser sempre
pensada historicamente, pois a existência é, por definição, histórica‖ (LEOPOLDO E
SILVA, 2015, p. 39). Já buscamos esclarecer que desde O Ser e o Nada Sartre já tem o
seu conceito de liberdade ampliado, pois o filósofo nunca negou, nessa obra, que ―a
situação é o sujeito inteiro (ele não é nada mais do que sua situação)‖ (SARTRE, 2012,
p. 672).
Insistindo ainda na tal crítica que considera que somente na Crítica da Razão
Dialética há ―sujeitos historicamente situados‖ (LIMA, 2003, p. 1), Lima não
demonstra atenção e cuidado quando Sartre coloca em questão fatos que envolvem a
história e a sociedade já no O Ser e o Nada, como a idéia de que
19
―A realidade-humana é livre porque não é o bastante, porque está perpetuamente desprendida de si
mesmo, e porque aquilo que foi está separado por um nada daquilo que é e daquilo que será‖ (SARTRE,
2012, p. 544). Segundo Sartre, o homem é condenado a ser livre, ser livre quer dizer, aqui, escolher.
Logo, é na escolha manifesta que a realidade humana se constitui como um projeto existencial no mundo
/ ―sentido ontológico para vida‖.
30
que sou, vive tudo isso à maneira do desdobramento reflexivo
(SARTRE, 2012, p. 211).
Ou seja, o sujeito histórico é considerado também em O Ser e o Nada, com a sua
história pessoal que se desenrola na história universal e com o Outro, até porque a
liberdade mesmo sendo absoluta se dá em situação e, portanto, não pode ser
desvinculada de seu contexto histórico e social (SARTRE, 2012). Contudo, o
desenvolver dessas questões, como um melhor esclarecimento de alguns conceitos
antecipados aqui que permita, de fato, ser mais profícuas, ocorrerá no decorrer deste
trabalho.
Além dessa nossa resposta, esse argumento também pode ser desconstruído da
seguinte forma: o erro se inicia já na questão: ―1º) que todas as eleições são
equivalentes‖ como vimos. Só que além do que foi visto aqui, Sartre pode responder a
isso no subseqüente texto:
31
desapareceria pela total indiferenciação dos gerúndios (SARTRE,
2012, p. 408).
Ou seja, dizer que o mundo é, em todos os casos, tal qual o elegi e que todas as
eleições são equivalentes, como quer ainda o tal argumento contra Sartre, é dizer que o
mundo, então, desaparecerá pela total indiferenciação, e para o filósofo não se pode
chegar a essa conclusão absurda, pois existe o centro de referência, sua chave comum.
O filósofo oferece um exemplo: ―Cartago é ‗delenda’ para os romanos, mas ‗servanda’
para os cartagineses‖ (SARTRE, 2012, p. 408). Isto é, sem relação com esses centros,
Cartago nada mais é e reencontra a indiferença do Em-si, pois os dois gerúndios se
anulam. O que fica evidente é que o que eu apreendo objetivamente na ação é um
mundo de instrumentos que se embaraçam uns aos outros e cada um deles remete a
outro instrumento que será condição para utilizá-lo (SARTRE, 2012).
32
escolhas, pois estaria desprovido de contingências ou o mundo desapareceria pela total
indiferenciação (SARTRE, 2012).
Sartre oferece uma continuidade importante que afeta a sua filosofia diante da
realidade humana, da escolha, da liberdade e que se afasta do Idealismo:
33
pelo qual fazemos anunciar a nós mesmos o que somos constitui um
fim, ou seja, não um existente real, como aquele que, na suposição
precedente, viria a satisfazer nosso desejo, mas sim um objeto que
ainda não existe. Mas, em conseqüência, este fim só pode ser
transcendente caso esteja separado de nós ao mesmo tempo que nos é
acessível. Somente um conjunto de existentes reais pode nos separar
deste fim [...] De sorte que as resistências que a liberdade desvela no
existente, longe de constituir um perigo para ela, nada mais fazem do
que permitir-lhe surgir como liberdade. Só pode haver Para-si livre
enquanto comprometido em um mundo resistente. Fora deste
comprometimento, as noções de liberdade, determinismo e
necessidade perdem inclusive seu sentido (SARTRE, 2012, pp. 594-
595).
Ou seja, ainda que a relação entre o ser humano e a resistência seja evidente, a
relação intrínseca que Sartre está colocando entre a liberdade e a resistência parece
estranha ao nosso entendimento, de antemão. Isso porque normalmente pensamos
resistência como algo contrário à liberdade. Seria, então, fácil diferir essa crença ao
Sartre, e é justamente o que fazem seus críticos. Contudo, isso é um engano descomunal
de quem não lê honestamente ou atentamente as suas obras, pois o filósofo
existencialista vê a resistência como a qualidade que torna a liberdade possível. Dito de
outra forma, ―o Para-si é livre, mas em condição, e é essa relação entre a condição e a
liberdade que queremos precisar com o nome de situação‖ (SARTRE, 2012, p. 637). A
liberdade é sempre situada.
34
não posso apagar pelo desejo. De fato, ela põe um obstáculo à minha decisão de chegar
à cidade num certo tempo. Sempre me é possível remover sua força como obstáculo, ao
decidir ir para outra cidade, mas não posso remover a montanha; nem posso remover
sua resistência à minha decisão inicial. Sem essa resistência não poderiam existir nem a
liberdade nem o ser humano (SARTRE, 2012). ―Em outros termos, a resistência é
intrínseca à liberdade e ao humano‖ (BURSTOW, 2000, p. 108). 20,21
20
Publicado Originalmente no Journal of Philosophy of Education no 2, vol. 17, 1983, pp. 171- 185.
Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, docente da UNESP na área de Filosofia da Educação.
21
Um adendo: remetendo-nos ainda ao filósofo Maurice Merleau-Ponty, que não considera a existência
de uma rígida divisão e oposição entre a consciência e o corpo, como no cartesianismo (MERLEAU-
PONTY, 1994), também para Sartre, não sou apenas liberdade, sou liberdade corporificada (SARTRE,
2012).
22
Por isso, é importante evitarmos o pré-conceito e não generalizarmos um termo, mas sim considerar a
sua definição dentro do sistema filosófico em questão. Uma definição é um enunciado que explica o
significado de um termo (uma palavra, frase ou um conjunto de símbolos). O termo pode ter muitos
sentidos diferentes (UNIVERSIDADE DE WARWICK, s/a, s/p).
35
delas mesmas. Isso chega a ser devaneador. Não existe liberdade pela liberdade, pois até
no cotidiano mais banal a liberdade é em situação (SARTRE, 2012).
23
Vide o capítulo ―A alienação entre Sartre e Marx‖, deste trabalho.
36
produto/mercadoria de forma externa e não interna, então, assim, os levaremos para
outro ponto de discussão, via Sartre e Marx, no qual tecemos sobre a relação alienada
do trabalhador com seu produto / consumidor, que poderá ser vista mais adiante24, e, por
isso, não há sentido de certos marxistas criticarem a liberdade em Sartre; o que não
impede de tecermos aqui sobre a liberdade marxista, em especial a dos críticos de
Sartre.
No mais, quando Sartre diz, a respeito do Para-si, que ao utilizar ―uma técnica,
ele a transcende rumo a seu fim, e está sempre Para-além da técnica utilizada‖
(SARTRE, 2012, p. 641), nos diz também que o indivíduo, ao escolher tal mercadoria, a
transcende rumo a seu fim. O tal indivíduo, então, se encontra livre, em uma liberdade
em situação que se manifesta nas coisas prontas, isto é, pré-determinadas por outros
(SARTRE, 2012). Pré-determinação esta que poderá claramente existir, a seu modo,
também na sociedade socialista ou comunista, por exemplo.
Certos marxistas afirmam, mesmo assim, que uma sociedade capitalista impede
que os indivíduos sejam livres na sua vida cotidiana e criticam Sartre por tecer sobre
uma liberdade ilusória (SARTRE, 2002). Mas, da mesma forma, na sociedade
comunista, o nosso cotidiano também não terá o Outro ou as adversidades como
característica da tal sociedade? Caso contrário, estaríamos no idealismo de um mundo
perfeito, como um belo sonho. Por isso, o sujeito que é livre em situação, continua livre,
no entanto, o que muda é o contexto, tendo, antes, uma situação capitalista e, depois,
uma situação comunista, por exemplo (SARTRE, 2012)25.
24
Consultar o capítulo ―A alienação entre Sartre e Marx‖, deste trabalho.
25
Como já comentamos rapidamente, poderemos compreender que essa liberdade a ser conquistada pelos
marxistas pode ser aquela social e não a ontológica, e é ligada, obviamente, à mercadoria, à relação de
trabalho. Contudo, insistimos nessa discussão, porque alguns marxistas, como do PCF, criticam a
liberdade em Sartre, por não compreendê-la e por colocá-la somente no contexto sociológico, apesar de
que Sartre não nega o mundo antropológico e sociológico, mas não se resume a este. Então, construímos
esses parágrafos.
26
Estamos cientes, como já discorremos há pouco, de que certos marxistas podem estar comentando de
outro nível de liberdade, que é aquela que se aliena pelo produto de forma externa e não interna, mas, é
evidente também a existência das críticas deles a respeito da liberdade em Sartre, como se esta fosse uma
liberdade puramente externa. Por isso, a insistência dessa análise.
37
qual for: ou o mundo capitalista ou o mundo comunista, pois só com o dado, o Em-si ou
o mundo já constituído, que o sujeito pode transcender, escolher. Insistimos em que não
é somente no conceito de Sartre, como também no dia a dia dos sujeitos, que a liberdade
é em situação. Só podemos ser livres em relação a tal estado de coisas e apesar deste,
independente de vivermos no capitalismo ou no comunismo. Por exemplo, a despeito da
vida cotidiana, quando falam: ―quero um país livre...‖, logo surge a interrogação: ―livre
de que?‖, assim, se diz: ―quero um país livre da opressão‖, então, o sujeito se apreende
como vivendo em uma situação opressora e que procura superá-la a uma finalidade, isto
é, criar o seu projeto; ou ao falarem: ―quero ser livre...‖, é dizer, por exemplo, que
―quero ser livre dessa paixão que me atormenta‖, ―quero ser livre de preconceitos‖ etc.
Ou seja, não existe ser livre em relação a nada (este nada não é no sentido sartreano, e
sim como vazio ou coisa nenhuma), ser livre é sempre ser livre em relação a alguma
coisa e essa ―coisa‖ é a situação, porque a liberdade é intencional. Essa ―liberdade pela
liberdade‖, dita por certos críticos, é contraditória, pois é como se dissesse: ―quero ser
livre para ser livre‖. Só há liberdade em situação e só há situação pela liberdade, já que,
caso contrário, se não existisse situação (seja situação capitalista ou comunista, por
exemplo), tudo seria possível e o ser humano não teria o porque de optar ou escolher,
seria completude (SARTRE, 2012).
38
de outra ideia de liberdade dos demais sistemas filosóficos, como o existencialismo de
Sartre. Tais marxistas que lutam contra a alienação do liberalismo, neoliberalismo e
capitalismo, são os mesmos que se alienam e repetem, pelo senso comum, a
proclamação da ―liberdade‖ liberal, como se só existisse esta em toda história da
filosofia. Eles só confirmam o que o filósofo francês afirma: ―capto o olhar do outro no
próprio cerne de meu ato, como solidificação e alienação de minhas próprias
possibilidades‖ (SARTRE, 2012, p. 338), e o Outro, como sabido, é também o mundo
liberal. Assim, esse fenômeno alienante entre certos marxistas é compreensível, já que o
próprio Sartre afirmou que o homem27 nunca será uma totalidade finalizada, pois ―por
ser um ser em transformação permanente, é sempre um sujeito que se totaliza,
destotaliza, retotaliza e, portanto, não pode existir um momento em que não haja
alienação nenhuma. Há situações de maior e menor alienação, mas não existe a
desalienação total‖ (SCHNEIDER, 2002, p. 168) e a alienação, aqui, é tanto ontológica
quanto antropológica e social. Mas, podemos dizer que quanto mais ele se faz sujeito,
singularidade em busca de um projeto, menor a situação de alienação (SCHNEIDER,
2002). Então, se considerarmos a liberdade sartreana via uma visão política ou histórica,
como o liberalismo, é porque também não nos atentamos com o dizer de Sartre ao
afirmar que, aqui, a ―liberdade‖ não é um produto de circunstâncias históricas e
políticas, que equivale obter os fins escolhidos, mas autonomia de escolha (SARTRE,
2012).
27
Usaremos o termo ―homem‖ para se referir ao humano, pois os teóricos que utilizamos aqui fazem uso
desse termo.
39
Essa afirmação na obra O Ser e o Nada, mostra que Sartre já analisava essa
questão do proletário, como que adivinhasse o que estava por vir como tal problema
perante aos marxistas que o questionava a respeito do determinismo e da essência
humana. Um tipo de essência no existencialismo sartreano é possível, se considerarmos
que a existência a precede. Essa essência, criada pelo sujeito, é o que podemos chamar
de um Eu ou Ego. E ―esse eu, como seu conteúdo a priori e histórico, é a essência do
homem. E a angústia, como manifestação da liberdade frente a si, significa que o
homem acha-se sempre separado de sua essência por um nada‖ (SARTRE, 2012, p. 79).
Ou seja, a essência só existe historicamente ou como tendo sido. E como a história, já
constituída, é um Em-si, portanto, o ser humano está sempre separado de sua essência
por uma nadificação28.
28
O "Para-si passado é em-si" (SARTRE, 2012, p. 203), ou seja, o passado ao ser passado ganha o
atributo de Ser-Em-Si, pois não podemos mais penetrá-lo para alterá-lo, já que ele adquiriu o caráter de
um ser acabado, típico do Em-si. Relembrando que o homem não é ―Em-si‖, ele é ―Para-si‖, que a rigor
não é nada, a consciência não tem conteúdo, não é coisa alguma, assim, o Para-si não consegue se
coincidir com nenhum Em-Si (SARTRE, 2012).
40
Isso significa que o ser humano se acha sempre separado de sua essência, pois
ele está olhando do presente para o passado e reesignificando-o, e não que o passado
reesignifique ou motive o presente e nem o futuro. Até porque o que está ―antes‖ da
consciência, como causa, não pode ser concebido como causador da consciência, já que
só existe consciência ao mesmo tempo em que o fenômeno existe. Se o passado
determinasse o presente, ou melhor, a consciência, jamais o indivíduo poderia dar um
novo significado ao seu passado, menos ainda os tratamentos psicológicos poderiam
ajudar o sujeito a possuir outro sentido para sua demanda existencial, por exemplo.
Desse modo, ser proletário não é uma identidade fixa, um rótulo fixado, porque o
sujeito é um fluxo, daí que não há um proletário de antemão, como não há outras classes
como realidade a priori, mas, nem por isso, deixa de ser algo concreto, um sujeito que
se realiza na existência (SARTRE, 2012).
29
Mais a frente iremos realizar uma observação sobre como se pode compreender a dialética no
pensamento de Sartre, quando ela for mais central na discussão e ao implicar, mesmo que breve (já que
não é o nosso tema principal), a dialética de Hegel.
41
seria impossível significar e reesignificar o passado e o futuro, seja no dia a dia ou na
psicoterapia, como visto.
Ainda cabe entender melhor essa liberdade sartreana por outra perspectiva.
Devemos, agora, entrar em uma complexidade maior: o proletário continua livre, porque
a sua consciência supera a situação rumo ao futuro ou porque não coincide com o
passado e, por isso, se volta ao futuro como mundo de possibilidades. Também, ao
considerarmos a pessoa como proletária, pode acontecer que ―esse futuro não é
produzido por ela, mas vem a ela pelos homens‖ (SARTRE, 2002, p. 342). Isto é, nesse
caso, o sujeito ao superar a sua situação ou o seu passado rumo ao futuro, exercendo sua
liberdade, se depara em um futuro já pré-estabelecido por outros homens, como uma
espécie de cobaia. Ou seja, trata-se de um futuro insuperável, porque o futuro a realizar
já está fabricado por outro. Enquanto o proletariado que encara sua situação como algo
acidental, não tem conhecimento de que a história restringe certas possibilidades ―e
oferece uma certa instrumentalização que irá caracterizar o resultado final‖ (SARTRE,
2002, p. 342). Assim, sua liberdade para o futuro, é para um futuro pronto. Por
exemplo:
Mas, o que Sartre afirma é que somos seres sociais, vivemos em situações, no
mundo já aí constituído que vão entrar em uma ―dialética‖ com a liberdade. Então se
entende que ―liberdade não é fazer o que se quis‖ ou capricho, pois o conceito técnico e
filosófico de liberdade, o único que Sartre considera, significa somente: ―autonomia de
escolha‖ (SARTRE, 2012).
30
Apesar de que não é o nosso foco aqui, pelo menos não é o principal, ao considerarmos este caso, nos
fez cogitar que a relação de poder no pensamento de Foucault não parece ―anular‖ a liberdade situada em
Sartre ou não a contesta de fato, ao contrário, é pela liberdade que a relação de poder é possível e, como
visto com mais propriedade, por as liberdades se cruzarem é que podemos dizer que o poder funciona
como uma rede que atravessam toda a sociedade; e mais: que, por sermos livres, deveremos ser éticos e
responsáveis nessa relação de poder / situação. Isso é um caso a se pensar se considerarmos a liberdade
enquanto ―condição ontológica da ética‖, nos referindo, aqui, à ontologia e à ética sartreana, sem
desconsiderar o pensamento foucaultiano, fazendo neste uma ética que se apresenta como a forma
refletida que essa liberdade toma, pois ―a liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a
forma refletida assumida pela liberdade‖ (FOUCAULT, 2004, p.267). É a partir desta questão que
inquirimos o discurso foucaultiano, perseguindo a noção de ―cuidado de si‖, de um si que se apresenta
enquanto se fomenta a si mesmo, tendo apenas a forma que o sujeito se dá enquanto se faz existente e
atuante no mundo (ou, segundo Sartre, considerar a única coisa que define o homem: o seu ato). A nosso
ver, ao introduzir a ideia de cuidado de si em sua relação com a ética e a liberdade, podemos dizer que
Foucault pressupõe uma posição mais ativa frente ao poder, na qual, aquela que podemos chamar de
―ética do cuidado de si‖, implica na produção de práticas de liberdade. Ou seja, ―um esforço para afirmar
a própria liberdade e dar a sua própria vida uma certa forma na qual se podia reconhecer e ser
reconhecido por outros e onde a posteridade mesma poderia encontrar como exemplo‖ (FOUCAULT,
2004b, p. 290). Mas, isso é tema para outra pesquisa.
43
um ato‖ (SARTRE, 2012, p. 536). Assim, por exemplo, o Imperador Constantino, ao
estabelecer-se em Bizâncio, não previa que iria criar uma cidade de cultura e língua
gregas, ―cuja aparição provocaria ulteriormente um cisma na Igreja cristã e contribuiria
para debilitar o Império Romano‖ (SARTRE, 2012, p. 536). Contudo, o Imperador
realizou um ato, exerceu sua liberdade, na medida em que desempenhou seu projeto de
instituir uma nova residência no Oriente, a Constantinopla (SARTRE, 2012). Isso está
do mesmo modo no nosso cotidiano mais simples, como o ato de estender a mão para
aproximar um cinzeiro, deixando cair a cinza do cigarro no chão. Esse ato não foi puro,
deixou vestígios. Ao apagar esses vestígios, deixei outros. É igualmente como o soldado
que, na planície coberta de neve, foge dos seus oponentes e, assim, acaba por deixar
precisamente os vestígios que levarão à sua morte. Isso significa, na relação com o
mundo, que nossa realidade humana não se esgota. As facticidades estão o tempo todo
intrínsecas à nossa liberdade. Em suma, não sejamos idealistas:
Ao prestarmos atenção no que foi dito até aqui, uma vez entendido o conceito de
liberdade em Sartre, muitas questões são respondidas, a dificuldade desaparece.
Então, esse é o Sartre da obra O Ser e o Nada que parece ―prever‖ problemas –
como o do exemplo da operária das fábricas ―Dop‖ aqui colocado –, os quais se
encontram na sua outra obra Crítica da Razão Dialética, a qual foi publicada após mais
ou menos 17 anos daquela. Esse seu conceito de liberdade parece uma espécie de
previsão de resolução de problemas povir, porque responde um problema posterior que,
aparentemente, não era o foco inicial do trabalho sartreano. Mas, de fato, o que há é um
44
Sartre já ciente do sujeito como ser social e histórico, permitindo que o seu conceito de
liberdade continue vivo até em suas outras obras com enigmas porvindouros e
diferentes do que já foram discutidos no seu fazer filosófico mais inicial. Não temos um
filósofo que coloca sua filosofia em uma liberdade caprichosa, como dizem certos
marxistas, e, que, por isso, novamente, não nos sugestiona haver duas fases da filosofia
sartreana ao comparar essas duas obras mencionadas aqui.
Outro destaque que precisamos colocar aqui é que, segundo Sartre, a história nos
determina ao mesmo tempo em que a fazemos. Assim, cada indivíduo é a sua história e,
logicamente, só existe história se houver indivíduo (SARTRE, 2012).
Dizer que é uma história que é de todos não quer dizer necessariamente que haja
uma harmonia entre os indivíduos e a história. Pelo contrário, o cenário do mundo
muitas vezes deforma os propósitos humanos, muitas vezes esses resultados distorcem,
invertem as intenções ou projetos dos sujeitos. Isso é conseqüência, em primeiro lugar,
de que não se age sozinho, os outros também agem e as liberdades se cruzam, mas às
vezes elas se complementam, como é o exemplo em que há momentos em que
indivíduos, grupos e até uma sociedade inteira podem operar em uma só causa, contudo,
em outros momentos há conflitos, há uma oposição dessas liberdades, pois há diferentes
projetos existenciais (SARTRE, 2012). Essa questão é afirmada também por Sartre,
com outras palavras, na Crítica da Razão Dialética, ao dizer que
31
Essa discussão a respeito das críticas marxistas sobre a liberdade sartreana será mais aprofundada
também quando tecermos diretamente sobre a obra Crítica da Razão Dialética.
45
cada práxis afirma a outra e a nega ao mesmo tempo, na medida em
que a supera como seu objeto e se deixa superar por ela. E cada
práxis, enquanto unificação radical do campo prático, desenha já em
sua relação com todas as outras o projeto da unificação de todas [...]
(SARTRE, 2002, p. 232).
A Práxis, como veremos principalmente no tópico ―As puras ideias como não
determinações e a práxis”, pode se referir ao Para-si que também nega e supera a
situação dada, ou o Outro, nadificando-a ou transcendendo-a. Como também o Para-si
se une aos outros Para-sis em um projeto existencial de unificação de todos, operando
em uma só causa social e fazendo história (SARTRE, 2012).
O Tendo sido é histórico, são os acontecimentos, porém aqui ainda poderia nos
aparentar haver um sujeito na história pessoal e não na história universal, contudo,
Sartre continua:
46
que Schmitt era operário berlinense de 1870; é, enquanto lançado em
um mundo, abandonado em uma ―situação‖ [...] (SARTRE, 2012, p.
128).
Se o Pedro não escolhe a sua condição, se ele é um burguês datado em 1942,
lançado em um mundo, abandonado em uma ―situação‖, essas afirmações, então, já não
se resumem à história pessoal e sim se remetem também a uma história universal.
Enfim, ele é lançado em mundo, mundo esse que chamamos de história universal ou
história objetiva.
O sujeito (Para-si) não está presente para a bola (Em-si), mas o Em-si está
presente para o sujeito, porque se trata de uma relação interna, ontológica, e não de uma
simples relação externa. Ou seja, é preciso que exista o Para-si para que possa existir
uma presença com significado ou sentido. Não existe, por exemplo, presença de uma
cadeira a esta mesa sem uma realidade humana para inferir essa relação: ―esta mesa
deve estar presente a esta cadeira em um mundo que a realidade humana infesta como
uma presença‖ (SARTRE, 2012, p. 175). Assim, é pelo Para-si que a presença vem ao
mundo.
47
Sartre, na obra O Ser e o Nada, comenta, em outras passagens e com outras
palavras, um exemplo que pode se valer aqui: quando há um terremoto derrubando
casas, abrindo crateras e quebrando carros, sem uma realidade humana como
testemunha, não há destruição ali, o que há, no máximo, são movimentos de partículas,
massas que se distribuem de outra forma que não a que estavam antes, assim a
inferência ―destruição‖ pelo terremoto só pode existir com a presença da realidade
humana e, portanto, pode-se dizer: ―o terremoto destruiu cidades‖. O adjetivo ou o
sentido ―destruição‖ só pode ser válido para a realidade humana. Ou seja, ―se
encaramos a destruição, vamos reconhecer que é uma atividade apta sem dúvida a
empregar o juízo como instrumento, mas não poderia ser definida como única ou
mesmo principalmente judicativa‖ (SARTRE, 2012, p. 48). E o filósofo continua:
em certo sentido, sem dúvida, o homem é o único ser pelo qual pode
realizar-se uma destruição. Uma rachadura geológica, uma
tempestade, não destroem - ou, ao menos, não destroem diretamente:
apenas modificam a distribuição das massas de seres. Depois da
tempestade, não há menos que antes: há outra coisa. Até essa
expressão é imprópria, porque, para colocar a alteridade, falta um
testemunho capaz de reter de alguma maneira o passado e compará-lo
ao presente sob a forma do já não. Na ausência desse testemunho, há
ser, antes como depois da tempestade: isso é tudo. E se o ciclone pode
trazer a morte de seres vivos, esta morte não será destruição, a menos
se vivida como tal. Para haver destruição, é necessário primeiramente
uma relação entre o homem e o ser, quer dizer, uma transcendência; e,
nos limites desta relação, que o homem apreenda um ser como
destrutível. O que pressupõe um recorte limitativo de um ser no ser, e
isso – como vimos a propósito da verdade – já constitui uma
nadificação. O ser considerado é isso e, fora disso, nada (SARTRE,
2012, p. 48-49)
Como na afirmação de Sartre, as massas que se distribuem de outra forma
precisam da inferência humana como ―destruição‖, ou, com outras palavras, a
―destruição‖ só pode existir com a presença da realidade humana e, portanto, pode-se
dizer ―o terremoto destruiu cidades‖. Igualmente a bola de bilhar só será desviada frente
a um testemunho, a uma realidade humana, que irá inferir que ―a bola de bilhar foi
desviada por uma prega no tecido‖.
48
condições para a possibilidade surgir através de um ser que seja sua própria
possibilidade (SARTRE, 2012).
Por isso, não existe cadeira sendo presença de uma mesa, não existe a bola de
bilhar sendo desviada por uma prega no tecido, por exemplo, e tampouco isso é ser
idealista, pois, mesmo necessitando da realidade humana para inferir algo, isso só
ocorre em um conjunto de elementos, Para-si e Em-si, que formam condições para a
possibilidade ―presença de...‖ ou o ―desviar da...‖ surgir através de um ser: o Para-si. O
Para-si é o ser pelo qual a ―presença de...‖ ou o ―desviar da...‖ vem ao mundo, sem cair
no idealismo (SARTRE, 2012). Isto é, por exemplo, ―a destruição, embora chegando ao
ser pelo homem, é um fato objetivo e não um pensamento. A fragilidade está impressa
no ser mesmo deste vaso, e sua destruição seria um fato irreversível e absoluto, que a
mim só caberia comprovar‖ (SARTRE, 2012, p.49).
Em suma, Sartre não nega a objetividade, mas ela só existe como fenômeno para
a realidade humana, e ainda se esta a interroga. Depende de um ser que tenha uma
compreensão das tais possibilidades em relação a tal objetividade, então, a bola de
bilhar sendo desviada por uma prega no tecido só existe como realidade humana se isso,
no sujeito, houver como possibilidade, se tal possibilidade for ―cognoscível‖ ao sujeito.
Portanto, a bola de bilhar é contingente (contingência é possibilidade de que alguma
coisa aconteça ou não, por exemplo) (SARTRE, 2012).
49
em si não diz nada, é a realidade humana que a nadifica e a doa sentido. E,
compreendendo isso, fica evidente que a ―nadificação atrai e exige a aparição‖
(SARTRE, 2012, p. 51). Com outras palavras, o Em-si – ou o ser do objeto, que no caso
é a bola de bilhar –, existe sozinho e por si mesmo, é um mundo já aí constituído, e é
algo já dado por outros Para-sis que, nesse caso, o criaram com uma função ou
significado de ser uma bola de jogo. Assim é também a história objetiva que do mesmo
modo foi criada por Outros que a significaram, porém que o sujeito, em sua liberdade,
pode ainda ressignificá-la, como já vimos.
50
Essa quebra do paradigma tradicional da história Positivista, que não dava voz as
minorias, essa abertura à realidade mutável, essa valorização da experiência das pessoas
com suas opiniões, surgem porque a realidade humana as encarou como nova
possibilidade de se fazer história. Há um fato concreto, uma história objetiva, ou,
melhor dizendo, um mundo como massa indeterminada ou um mundo já aí constituído,
mas que é inferido de diversas formas e uma delas é essa inferência da ―Nova História‖
que só foi e é possível porque o sujeito apreende o fenômeno, que no caso é a história,
como pluralidade ou contingência. A história, então, só existe como realidade humana
se, no sujeito, ela ser como possibilidade (SARTRE, 2012).
Nesse caso, sem uma consciência (Para-si) não seria possível o mundo ser
apreendido como processo histórico. Na verdade, não há um mundo sem a consciência,
pois, na ausência da realidade humana, o Em-si continuaria em sua plenitude sem ser
nadificado como História Positivista ou Nova História, por exemplo.
51
A bola de bilhar nadificada, o mundo respondendo ao sujeito, os significados se
―apresentando‖ como fenômenos, a situação em que o sujeito se encontra perante aos
objetos criando sentidos para estes, a história objetiva como contingência ou
pluralidade, os porquês etc. é o que podemos chamar de Facticidade, a Facticidade da
consciência ou do Para-si. Sartre, assim, dá um exemplo:
3.3 O Para-Outro
A vergonha também é uma questão abordada por Sartre para combater o
solipsismo. O solipsismo é a concepção segundo a qual só existem, efetivamente, o Eu e
as suas sensações, sendo os outros (seres humanos e objetos) participantes da única
mente pensante, meras impressões sem existência própria. Isso implica na forma como
Sartre apreende o sujeito em sociedade, o sujeito em relação com o outro. A vergonha é
52
uma forma que o filósofo apresenta para explicar a relação do sujeito com o outro, esse
sujeito como um ser social e histórico.
Sartre aborda a vergonha como exemplo para tratar a respeito do outro, ao dizer
que ela é uma forma de reconhecimento desse outro e que acontece na consciência
irrefletida: ―ainda que certas formas complexas e derivadas da vergonha possam
aparecer no plano reflexivo, a vergonha não é originalmente um fenômeno de reflexão‖
(SARTRE, 2012, p. 289). A vergonha não é originalmente um fenômeno da reflexão,
porque sou pego de surpresa pelo olhar do outro e imediatamente me envergonho para
depois refletir sobre essa situação, ou seja, ―a vergonha é um arrepio imediato que me
percorre da cabeça aos pés sem qualquer preparação discursiva‖ (SARTRE, 2012, p.
290). Se a ação de se envergonhar é um exemplo de elo entre eu e o outro, eu
reconhecendo o outro, então, não sou um ser isolado, sou um ser social.
32
Veremos isso com mais detalhes no exemplo sobre o filósofo Descartes no capítulo ―Questões de
método‖, deste trabalho.
54
―penso, logo existo‖, a priori, é a existência do Outro que faz esse cogito possível e, ao
mesmo tempo, a minha existência; pois, caso contrário, não faria sentido essa cogitação,
já que o outro seria incognoscível para mim, ou melhor: eu nem seria humano33. Se um
pensamento de espécie cartesiana afirma que o ato de duvidar punha em dúvida até os
nossos sentidos a respeito do outro e que a única certeza do homem é o ―eu‖, então, esse
―eu‖ só é possível, de fato, devido à existência do outro. Há uma analogia que elabora
bem essa análise: como diria o filósofo e sociolinguística Mikhail Bakhtin, segundo
Luciana de Paula e Adail Ubirajara Sobral (2009, s/p), ―se questionar, responder e/ou
negar é reconhecer e considerar uma dada afirmação‖, então, no caso, eu reconheço e
considero o Outro, quando coloco a certeza de que o meu cogito é uma verdade
questionadora. Assim, sou um ser social, porque o Outro é um estágio essencial para a
existência da minha consciência como tal. O tempo todo o Outro é um intermédio entre
mim e mim mesmo. Percebemos que a todo o momento Sartre afirma que não é possível
tecer sobre o ser humano sem a relação com a humanidade. Por isso, ―o ‗momento‘ que
Hegel denomina ser para o Outro é um estágio necessário do desenvolvimento da
consciência de si; o caminho da interioridade passa pelo outro‖ (SARTRE, 2012, p.
307).
33
―Talvez não fosse impossível conceber um Para-si totalmente livre de todo Para-outro e que existisse
sem sequer suspeitar da possibilidade de ser um objeto. Só que esse Para-si não seria 'homem'‖
(SARTRE, 2012, p. 361).
34
Veremos isso melhor ao falarmos da ―auto-objetificação‖.
55
jamais me objetifico lá no outro ou me reconheço nele senão o que eu mesmo coloquei
(SARTRE, 2012).
Até porque também não tenho acesso ao Outro, e sim ao Eu-objeto que nele se
apresenta. Esse Eu-objeto lá no outro tem alcance nos limites da minha experiência:
―não encontro nas coisas senão aquilo que nelas coloquei‖ (SARTRE, 2012, p. 322),
logo, me reconhecer no outro é uma escolha existencial minha. E se procuro me
reconhecer no outro é porque é um fracasso ou má-fé tentar-me auto-objetificar ou ser
meu próprio fundamento (SARTRE, 2012).
Sartre afirma que o olhar do Outro petrifica o sujeito olhado. Contudo, não se
deve cair em uma visão que afirme uma auto-objetivação da consciência:
sou aquele que não pode ser objeto para si mesmo, aquele que sequer
pode conceber para si a existência em forma de objeto [...] Isso ocorre,
não devido a uma falta de perspectiva, uma prevenção intelectual ou
um limite imposto ao meu conhecimento, mas porque a objetividade
reclama uma negação explicita: o objeto é aquilo que eu me faço não
ser, quando sou aquele que me faço ser (SARTRE, 2012, p. 313).
Não se deve considerar essa visão de auto-objetificação, de fato, porque, para
Sartre, isso seria contraditório, pois o indivíduo não pode ser Ser-Em-Si-Para-Si ou
completude. Ao tentar auto-objetificar, o sujeito se nega, se nadifica, afasta-se de si
mesmo, e esse o afastado em si, que se torna observado pela consciência nadificadora,
seria o objeto que não é a própria consciência, já que a consciência só conhece como
objeto quando este se difere dela (intencionalidade), assim, o Para-si não coincide
consigo mesmo, devido a nadificação. A respeito disso, Sartre afirma: ―[...] ainda que
pudesse tentar fazer-me objeto, seria ainda eu mesmo no âmago deste objeto que sou, e,
no próprio epicentro deste objeto, teria-de-ser o sujeito que o encara‖ (SARTRE, 2012,
p. 313). O próprio filósofo francês estava atento ao alegar que esse tipo de pensamento
de auto-objetificação não se ―[...] atentou para as conseqüências a serem tiradas dessas
primeiras constatações, pois introduzia na própria consciência algo como um objeto em
potencial, que o Outro teria somente de resgatar, sem modificá-lo‖ (SARTRE, 2012, p.
313). Ou seja, ser objeto é não-ser-eu mesmo, já que o fato de ser objeto para uma
consciência modifica radicalmente a consciência.
Por isso, mesmo livre, se em aparência crio ―esta necessidade que tenho de não
ser objeto para mim salvo lá, adiante, no outro‖ (SARTRE, 2012, p. 307), é porque já
indico que reconheço no outro o meu ser. Assim, esse reconhecimento me mostra que
eu sou tal como me apareço ao outro, da mesma forma que o outro é tal como me
56
aparece a mim mesmo, por isso o desenvolvimento da minha consciência de mim
depende do modo como o Outro me aparece. Como eu o concebo. Não posso ser objeto
para mim mesmo sem um fundamento (ser-para-outro), mas sou objeto para o outro ao
objetificar esse outro, reconheço-me ao reconhecer o outro. ―O valor do reconhecimento
de mim pelo Outro depende do valor do reconhecimento do Outro por mim‖ (SARTRE,
2012, p. 307). Dessa forma, obtemos a confirmação de um sujeito social a todo o
momento em O Ser e o Nada, sem que a liberdade sartreana seja eliminada.
A liberdade não é eliminada, como visto até aqui, até porque também o ―próprio
ser da consciência, sendo independente do conhecimento, preexiste à sua verdade‖
(SARTRE, 2012, p. 310). O que Sartre assegura é que a consciência estava aí antes de
ser conhecida, cristalizada, tomada como Eu-objeto. E isso é possível porque a
consciência não é sempre sinônima de conhecimento, como já vimos (SARTRE, 2012).
35
Veremos sobre o marxismo mecanicista mais a frente.
57
Assim, esse ―faço-me determinar‖ é o que permite também surgir grupos,
amigos e lutas por uma causa social, por exemplo. Por isso, não é a posição clara e
distinta de um indivíduo frente a outro indivíduo,
Além disso, Sartre afirma também que só podemos nos tornar seres humanos
devido ao Outro ou o Para-Outro. Com outras palavras, ―talvez não fosse impossível
conceber um Para-si totalmente livre de todo Para-outro [...] Só que esse Para-si não
seria ‗homem‘‖ (SARTRE, 2012, p.361). Nesse ponto Sartre apresenta algo essencial: é
o Outro que me torna humano. Na verdade, eu humanizo o outro na medida em que eu
sou humanizado. Para o filósofo, não se pode deixar o Outro de fora da definição da
condição humana, e, por isso, não se pode ver o Outro como algo que diminui a minha
humanidade. Sartre vê o Outro como um aspecto essencial da situação humana. É
justamente esse aspecto que transforma o Para-si em um ser humano. Então, o ser
humano não é apenas um Ser-Para-Si, como também um Ser-Para-Outro (SARTRE,
2012). ―De fato, Sartre destaca que ele é um ser-para-muitos-outros. É um ser-em-
sociedade (Sartre, Contat e Ryblaka 1977)‖ (BURSTOW, 2000, p.110). O que podemos
entender é que, parafraseando Silvia Lane, ―o homem não sobrevive a não ser em
relação com outros homens, portanto a dicotomia Indivíduo X Grupo é falsa – desde o
seu nascimento o homem está inserido num grupo social‖ (LANE, 1991, p. 16), isto é, o
homem existe em um mundo já criado por outros, em um mundo aí já constituído. Ele é,
então, liberdade situada, é um ser social (SARTRE, 2012).
Por fim, outra tese de Sartre que nos mostra igualmente a presença do sujeito
social e histórico se defrontando com o mundo em sua obra O Ser e o Nada e que pode
ser mais uma base para a compreensão de que há uma continuidade temática nas duas
58
obras sartreanas aqui referidas (O Ser e o Nada e Crítica da Razão Dialética), é o fato
de que o ―Para-si não poderia ser uma pessoa, ou seja, não poderia escolher os fins que
ele é, se não fosse homem, membro de uma coletividade nacional, de uma classe, de
uma família etc.‖ (SARTRE, 2012, p. 642). O que Sartre assegura é que ser uma pessoa
é ser livre, ou seja, fazer escolhas, mas isso só é possível se a tal pessoal for membro de
uma coletividade, se considerar o contexto histórico e social dela. Até porque, como
observado recentemente, se não existisse a situação, se não existisse o mundo aí já
constituído, se não houvesse ainda a facticidade, então a existência humana seria uma
espécie de sonho onde tudo seria possível, o sujeito não poderia e nem precisaria
escolher, mas, também ele não seria humano. Isto é, Sartre, desde O Ser e o Nada, já
reconhecia a história e a sociedade como importantes para a existência humana em
liberdade. A rigor, a concepção do ser humano como historicamente situado, existe
antes mesmo desse filósofo francês desenvolver sua antropologia ou ―marxismo
existencial‖ na Crítica da Razão Dailética, obra esta que dá mais ênfase ao sujeito
histórico. Por isso, já não podemos mais dizer, de fato, que há uma anulação desse
mesmo sujeito histórico em O Ser e o Nada.
3.4 O Olhar
Iniciamos esse capítulo com a afirmação de Sartre de que se a ―relação de
objetividade é a relação fundamental entre o Outro e mim, a existência do Outro
permanece meramente conjetural‖ (SARTRE, 2012, pp. 326-327), já que não tenho
acesso à consciência do outro, pois não posso me olhar como o outro me olha. E
também o Para-si não coincide consigo mesmo (SARTRE, 2012).
59
comigo – relação essa que é a relação fundamental, do mesmo tipo de meu Ser-Para-
outro‖ (SARTRE, 2012, p.327).
Para Sartre, também ver o outro é ao mesmo tempo ser visto, ou seja, ―o ‗ser-
visto-pelo-outro‘ é a verdade do ‗ver-o-outro‘‖ (SARTRE, 2012, p. 332). Aquilo a que
se refere minha apreensão do outro no mundo como sendo provavelmente um sujeito é
minha possibilidade permanente de ser-visto-por-ele (SARTRE, 2012).
36
Analisaremos melhor o outro como objeto privilegiado no capítulo ―Preconceito intelectual concernente
ao Outro: a persistência do solipsismo‖, deste trabalho.
60
situações sociais são vivas, em movimento de construção e reconstrução, em
permanente tensão, sob uma aparente, mas enganadora, aparência de tranquilidade e
inércia‖ (SOARES; EWALD, 2011, p. 13).
61
[...] que posso captar e determinar conceitualmente por meio do cogito reflexivo‖
(SARTRE, 2012, p. 335).
Assim, na presença do outro, ―em primeiro lugar, eis que passo a existir
enquanto eu para minha consciência irrefletida‖ (SARTRE, 2012, p. 335). Eu me vejo
porque alguém me vê. Aqui fica claro, novamente, que se um Eu ou Ego aparece no
olhar alheio, é porque sou um ser social, já que meu Ego existe intermediado pelo outro.
Só existo como eu pelo outro, já que, na solidão, a consciência irrefletida ―não pode ser
habitada por um eu: a título de objeto, o eu só se revela à consciência reflexiva‖
(SARTRE, 2012, p. 335).
62
Dessa forma, o Eu (Ego) como alienação é possível pelo irrefletido e não
necessariamente pelo conhecimento, reflexão; porque o nexo entre minha consciência
irrefletida e meu Ego não é um nexo de conhecimento, mas de ser, de uma conexão
ontológica: simplesmente vivencio. Porém, mesmo alienado, esse Ego é a significação
do Eu-objeto pela facticidade, que são fatos da realidade humana e não fatos reais ou do
mundo como o Em-si ou o indeterminado. Logo, Sartre mantém a liberdade na
alienação, porque a Facticidade é do e pelo projeto existencial, escolha ontológica ou
experiência, pois ―nesse caso, precisamente, só tem alcance nos limites da experiência:
não encontro nas coisas senão aquilo que nelas coloquei‖ (SARTRE, 2012, p. 322), até
porque não tenho acesso à consciência do outro, não me olho como o outro me olha, já
que o Outro é livre. Desse modo, o meu Ego é uma escolha minha e se cristalizo esse
Ego na reflexão, antes já o vivencio ontologicamente, e posso levá-lo à alienação, a fim
de disfarçá-lo de mim, por exemplo. Contudo, ―a má-fé também é uma confissão, pois
se trata de um esforço para recusar o ser que sou‖ (SARTRE, 2012, p. 337).
Pela existência do Outro, eu ajo também de má-fé, ao acreditar que tenho um Eu,
mas jamais posso ser esse Eu, que é do Outro. Uma síntese pode ser encontrada nessa
afirmação:
63
Assim, ―parece então que o Outro cumpre por nós uma função para a qual somos
incapazes e que, no entanto, cabe-nos executar: ver-nos como somos‖ (SARTRE, 2012,
p. 444).
Vale ressaltar que Sartre evita uma dualidade aqui também, porque, por mais
que eu torne o outro em um objeto, ao mesmo tempo, esse outro pode objetificar-me,
isto é, vê o outro é também ser visto por esse mesmo outro. Aqui cabe retomar uma
afirmação de Sartre: ―o ‗ser-visto-pelo-outro‘ é a verdade do ‗ver-o-outro‘‖ (SARTRE,
2012, p. 332). Ao olhá-lo, não posso ignorar que ele me olha. Compete, então, eu
escolher objetificar-me ou objetificá-lo (escolher Eu-objeto ou Eu-sujeito) e cada
escolha dessas me faz, ou faz o outro, tornar em figura de um fundo que é objetificar-e-
ser-objetificado, devido ao ―fato mesmo de ser um olhar-olhado‖ (SARTRE, 2012, p.
342). Aqui é uma clara analogia que é bem demonstrada pela Psicologia da Gestalt a
37
Rever as análises sobre a bolha de bilhar e a história objetiva.
64
respeito do conceito figura-fundo38. De um todo (fundo), emerge uma parte (figura). O
fundo dá sustentação à figura, e a figura se destaca de um fundo. De acordo com o
gestaltista Ribeiro, a figura não é uma parte isolada do fundo, ela existe no fundo, o
fundo revela a figura e permite que ela apareça (RIBEIRO, 1985). A figura que pode ser
Eu-objeto ou Eu-sujeito está em um fundo objetificar-e-ser-objetificado ou em um
fundo olhar-olhado. O que o sujeito traz como figura, faz parte de seu fundo. Então não
há dualidade e sim um todo gestáltico. Até podemos dizer que objetificar e ser
objetificado são coisas diferentes, mas não são isoladas, não são dualidades no sentido
cartesiano ou como se uma fosse independente da outra; melhor: a não dualidade
sartreana, a rigor, é a não autonomia como arbitrariedade, capricho ou isolamento.
De certa forma, isso também nos faz estar de acordo com o existencialista
Ronald David Laing (1973, p.13) ao afirmar que ―o relacionamento pessoal só pode
existir entre seres separados, mas não isolados‖.
38
A Gestalt não se apresenta em nosso trabalho como um diálogo ―forçado‖ com o existencialismo
sartreano, pois o próprio Sartre se remete à Gestalt constantemente, por exemplo: ―a situação, no e pelo
seu transcender para o Outro, fixa-se e se organiza em forma à minha volta, no sentido em que os
gestaltistas usam esse termo‖ (SARTRE, 2012, p. 342).
65
3.6 As Relações concretas com o Outro
As relações concretas com o outro parte do sujeito, de nós mesmo perante o
outro. São nossas atitudes que permitem uma relação de fato: ―[...] a origem de minhas
relações concretas com o Outro: são inteiramente comandadas por minhas atitudes com
relação ao objeto que sou para o Outro‖ (SARTRE, 2012, p. 453). Ou seja, Sartre
considera a existência do outro, e a minha relação concreta com o outro tem como feito
o objeto que sou para esse outro (SARTRE, 2012).
Como sabido, e Sartre retoma isso a todo o momento em O Ser e o Nada, esse
objeto (Eu-objeto) jamais é o objeto que sou para mim, e sim o objeto lá fora. Assim,
tal objetividade na relação com o outro é por mim experimentada como uma alienação
que não posso transcender e nem conhecer. E como a existência do outro me revela o
ser que sou, sem que eu possa me apropriar desse ser ou sequer concebê-lo, essa
existência irá motivar duas atitudes (SARTRE, 2012):
o Outro me olha e, como tal, detém o segredo de meu ser e sabe o que
sou; assim, o sentido profundo de meu ser acha-se fora de mim [...]
Portanto, na medida em que fujo do Em-si que sou sem fundamentar,
posso tentar negar este ser que me é conferido de fora; ou seja, posso
voltar-me para o Outro a fim de, por minha vez, conferir-lhe
objetividade, já que a objetividade do Outro é destruidora de minha
objetividade para ele. Mas, por outro lado, na medida em que o Outro,
como liberdade, é fundamento de meu ser-Em-si, posso tratar de
recuperar esta liberdade e apoderar-me dela, sem privá-la de seu
caráter de liberdade; com efeito, se pudesse apropriar-me desta
liberdade que é fundamento de meu ser-Em-sim, eu seria meu próprio
fundamento [...] estas, as duas atitudes primitivas que adoto com
relação ao Outro (SARTRE, 2012, p. 453).
Dessa afirmação, o filósofo confere que, por exemplo, sou livre sendo ora
objetificando o outro, ora me objetificando. Ao me objetificarem, me fazerem de Eu-
objeto, esse Eu-objeto que sou, foi constituído pelo Outro; assim, o Outro tem a ―chave‖
de meu ser. Contudo, como também sou liberdade, Sartre vai afirmar que, do mesmo
modo, isso não impede, porém, que a qualquer momento eu possa deixar de ser visto
como Eu-objeto, para me tornar o sujeito que vê, que objetifica o outro. Desse modo, a
cada momento, uma consciência é ora apreendida como objeto, ora como sujeito,
permanecendo sempre a possibilidade de inversão (SARTRE, 2012). Por isso, existirá
também sempre a possibilidade de retomar a minha posição de sujeito, provando minha
liberdade sem deixar as relações sociais de lado.
66
não é verdade que eu primeiro seja e só depois ―trate‖ de objetivar ou
assimilar o Outro; mas sim que, na medida em que o surgimento de
meu ser é surgimento em presença do Outro e que sou fuga
perseguidora e perseguidor-perseguido, sou, na própria raiz de meu
ser, projeto de objetivação ou de assimilação do Outro (SARTRE,
2012, p. 453).
Eu e o outro, então, somos livres, pois, mesmo que o ―Outro no mundo seja um
fato absoluto e evidente por si‖ (SARTRE, 2012, p.453), ele é ainda contingência para
mim e vice-versa, ou seja, somos um para o outro, impossíveis de deduzir as estruturas
ontológicas do Para-si (SARTRE, 2012). Por isso, devido ao Outro ser contingência,
não se busca esse Outro, mas a minha atitude perante a ele: compreende-se a minha
ação em uma situação, que é o desdobramento da minha relação com o Outro; este,
então, é fundamento da existência do meu Eu, porém sou o responsável por meu Ser-
Para-Outro. O que fica claro é que sou eu o agente do Eu-objeto, apesar de que é o outro
que me fundamenta:
67
instrumento, não assimilo o outro como liberdade, isto só é possível com meu ser-
objeto. Assim, nós reconhecemos que o outro é um sujeito, e que nem sempre é um
objeto; reconhecemos que o outro é livre, não temos acesso real ao Para-si de outrem. E,
por isso, ocorre o perigo:
Aqui nos desdobraremos no interesse que consiste em tentar mostrar até que
ponto Sartre consegue derrubar as barreiras do solipsismo, que, como o próprio filósofo
afirma, partem geralmente dos pressupostos cartesianos do cogito (SARTRE, 2012). Se
considerarmos o princípio de que a nossa realidade surge a partir e nos limites da
68
consciência, pode-se supor que do outro lado apareça o fantasma do isolamento
ontológico, como afirmam alguns marxistas críticos da filosofia de Sartre. A seguinte
afirmação demonstra que certos marxistas não se sentiram satisfeitos com a
argumentação sartreana a respeito do solipsismo:
na década de 50, Sartre será atacado [...] pelos marxistas pela falta da
reflexão sobre o fenômeno social no seu pensamento (a teoria do olhar
de ―O Ser e o Nada‖ não dá conta do solipsismo que sua doutrina
desemboca) (FLYNN, 1992, p. 240 apud ABDO, 2013b, p. 2).
Como analisar essa afirmativa? Para Sartre é um fato que a evidência fornecida
pelo cogito cartesiano se refere à certeza da própria existência, mas tal certeza se faz
problemática em relação à outra existência além da minha (SARTRE, 2012).
69
Se eu fosse pensar tratar-se apenas de um boneco, aplicaria as
categorias que geralmente me servem para agrupar as "coisas" espaço-
temporais. Quer dizer, captaria essa figura como situada "junto" aos
assentos, a 2,20m do gramado, exercendo certa pressão sobre o solo
etc. Sua relação com os demais objetos seria do tipo puramente
aditivo; significa que poderia fazê-la desaparecer sem que as relações
dos outros objetos entre si fossem sensivelmente modificadas [...] Ao
invés, perceber tal figura como homem [...] é registrar uma
organização sem distância das coisas de meu universo em torno deste
objeto privilegiado. Por certo, o gramado continua à distância de
2,20m dele, mas [...] ao invés de os dois termos da distância serem
indiferentes, intermutáveis e estar em relação de reciprocidade, a
distância se estende a partir do homem que vejo até o gramado [...]
em vez de ser um agrupamento dos objetos em minha direção, trata-se
de uma orientação que me escapa (SARTRE, 2012, pp. 328-329).
O que Sartre deixa claro é que embora o Outro seja um objeto nesse exemplo, já
que estou olhando para ele e não vice-versa, ele é percebido como um objeto com
sentido em torno do qual o mundo é organizado, ou seja, o tal homem é visto como
centro de seus próprios campos de percepção e ação. Dessa forma, o gramado está na
frente dele em um sentido em que ele não está na frente do banco ou dos assentos; o
homem encara o gramado, o banco não o faz etc. (MORRIS, 2008). Assim, ―isso
implica que remover o homem da cena seria modificá-la de uma maneira que a remoção
do banco não faria‖ (MORRIS, 2008, p. 157). O homem é um objeto privilegiado, já
que, como dito, o homem é o centro de seus campos de percepção e ação (SARTRE,
2012).
Mas, aqui fica uma questão: quando se entende que o homem é um objeto em
torno do qual o mundo é organizado, não implica que o mundo de cada pessoa é
somente seu? Fazendo dela um ser isolado? Isso não procede, já que, em suma, o
mundo é mundo intersubjetivo e mesmo que cada um de nós tenha perspectivas
diferentes a respeito dele, essas perspectivas se cruzam umas com as outras, ou, com
outras palavras, as liberdades se cruzam, pois ―estamos já lançados no mundo diante do
outro, [...] quaisquer que sejam nossos atos, com efeito, cumprimo-los em um mundo
onde já há o outro‖ (SARTRE, 2012, p. 508). Portanto,
não há nenhuma razão para Sartre não aceitar isso; ele não solapa seu
ponto de que cada pessoa é um centro de uma perspectiva do mundo e,
então, encontrar uma outra perspectiva é – totalmente diferente de
encontrar uma mera coisa – tornar-se consciente de um centro de
percepção e ação outro que si mesmo (MORRIS, 2008, pp. 158-159).
Fica evidente que embora o corpo do Outro ou o Outro-para-mim seja possível
ser apreendido como um objeto, ele é um tipo muito especial de objeto, isto é, como diz
70
Sartre, um "objeto privilegiado" (SARTRE, 2012, p. 328). Assim, de fato, uma vez que
o corpo do Outro é um objeto em torno do qual o mundo é organizado, é entendido ―que
minha percepção do corpo do outro é radicalmente diferente da minha percepção das
coisas‖ (SARTRE, 2012, p.434). Essa afirmação é fundamental, porque – considerando
também que perante suas escolhas, o ser humano não apenas torna-se responsável por
si, mas também por toda a humanidade39 – devemos reconhecer o outro primeiramente
como sujeito, porém, a questão dos filósofos ―como é que eu sei que outros objetos
existem?‖ implica
39
Estamos nos referindo à responsabilidade com o outro como sujeito: ―quando dizemos que o homem se
escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos
também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens [...] não é apenas aquele que
escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a
humanidade inteira [...] Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque
ela envolve toda a humanidade‖(SARTRE, 2014, p. 20).
40
―A perspectiva filosófica que termina em solipsismo concebe a relação entre o corpo do Outro e a sua
consciência como externa, uma conseqüência, em parte, do preconceito em favor das relações externas, o
qual persegue boa parte da filosofia. Um resultado direto disso é um exemplo paradigmático do que nós
chamamos de ‗o empobrecimento da experiência perceptual‘‖ (MORRIS, 2008, p. 159). Isso significa
dizer que o Outro aparece como um objeto com sentido ou um objeto privilegiado. Só que ainda o corpo
do Outro pode aparecer como um objeto físico, anatômico ou fisiológico (relação externa), por isso, se
alguém se concentra unicamente nisto, o solipsismo parecerá inevitável.
41
Para isso, retomar o capítulo ―Dualidade concernente ao Ser-Para-Si e ao Ser-Para-Outro‖, deste
trabalho, no qual se analisa a questão de um fundo que é objetificar-e-ser-objetificado, ou, ―pelo fato
mesmo de ser um olhar-olhado‖ (SARTRE, 2012, p. 342).
71
aguçamento filosófico para que possa partir de uma das perspectivas (objeto ou sujeito)
que permitirá uma coerência nas suas análises.
Destarte, para Sartre, não dá para negar, mesmo que se coloque o outro como
objeto, o homem é o centro de seus campos de percepção e ação. Ao ser colocado como
objeto, esse homem é um objeto privilegiado, isto é, nos depararmos com ele é
diferente, por exemplo, de nos depararmos com um cinzeiro ou uma mesa42.
Comentamos aqui também sobre o ―Olhar‖, afirmando que nós nos escolhemos
como Eu-objeto, mas é o Outro que é o nosso fundamento, e que o meu Ser-Para-o-
Outro é inapreensível para mim, já que não me olho como outro me olha. Porém,
Katherine Morris esclarece bem a respeito dessa
42
Portanto, como estamos percebendo, quando Sartre tece sobre o outro como objeto, não se refere ao
senso comum ou ao pensamento puramente sociológico que tem como ideia a objetificação que, em um
sentido mais abrangente, significa tratar uma pessoa como uma mercadoria ou um objeto qualquer, não
dando importância à sua personalidade ou dignidade. Contudo, como veremos, Sartre reconhece que na
sociedade o outro é objetificado dessa forma mais abrangente também (como são nos casos das relações
externas, por exemplo), só que, neste momento, não é nesse sentido que o filósofo se expressa.
72
idiota ainda maior –, em outras circunstâncias tal conhecimento pode
ser ―infinitamente provável‖; se ele não consegue parar de rir das
minhas piadas, eu não posso duvidar que ele me ache engraçado
(MORRIS, 2008, p. 165).
Contudo, mesmo apreendendo que o conhecimento é ―infinitamente provável‖,
não faz dele uma certeza, pois ―eu somente poderia alcançar a tal certeza se eu pudesse
literalmente ser o Outro para mim‖ (MORRIS, 2008, p. 165). Segundo Katherine
Morris, Sartre entende que, apesar de não termos a certeza absoluta, nada impede,
obviamente, de eu ter um conhecimento ―infinitamente provável‖, e isso é o que
fazemos o tempo todo em nosso dia-a-dia: estamos oscilando entre possíveis certezas e
incertezas a respeito do nosso Ser-Para-Os-Outros (MORRIS, 2008). Aqui cabe ainda
uma afirmação do próprio Sartre a respeito disso:
ora, não é somente conjetural, mas provável, que esta voz que ouço
seja de um homem e não o canto de um fonógrafo, é infinitamente
provável que o transeunte que vejo seja um homem e não um robô
aperfeiçoado (SARTRE, 2012, p. 327).
Sartre também alega que ―se a existência do outro não é uma conjetura inútil,
pura ficção, é porque existe algo como um Cogito que lhe diz respeito‖ (SARTRE,
2012, p. 325), assim, é devido ao fato de que nem a minha própria existência nem a
existência do outro consiste em uma necessidade metafísica clássica. A minha
existência e a do outro são referidas por Sartre como ―necessidades factuais‖, ou seja,
―dado o fato de que eu penso, é necessário que eu exista; dado o fato de que eu sinto
vergonha, é necessário que os outros existam‖ (MORRIS, 2008, p. 166).
73
que é a da existência do Outro. Assim, aquilo que, à falta de melhor
termo, chamaremos de cogito da existência do outro se confunde com
meu próprio cogito (SARTRE, 2012, p. 325).
Deste modo, o filósofo existencialista afirma que o ponto crucial da existência
do outro são as transformações que eu e meu mundo sofremos quando eu experiencio a
vergonha, pois são mudanças que eu não poderia causar para mim mesmo, somente um
outro sujeito poderia produzi-las. Isto é, ―sublinhei que eu não poderia ser objeto para
um objeto: é necessária uma conversão radical do Outro‖ (SARTRE, 2012, p. 331). É
necessária a presença do cogito da existência do outro (SARTRE, 2012).
Realmente, muitos dos julgamentos que os outros fazem acerca de nós que
poderíamos evocar a vergonha são julgamentos que nós algumas vezes fazemos acerca
de nós mesmos43. Mas cabe salientar também que os julgamentos que fazemos de nós
mesmo partem de uma consciência reflexiva, é preciso pensar a respeito. Diferente da
presença do outro, quando me olha, pois eu simplesmente sou ―refém‖ dele e me torno
Eu-objeto imediatamente, sem reflexão. Assim, simplesmente me objetifico num ato do
campo da consciência irrefletida. É evidente: depois posso pensar no que experienciei,
cristalizando o vivido, porém, antes de qualquer coisa, simplesmente me encontro como
ser-no-mundo. Ou seja, quando se trata do outro, ao dizer que a vergonha é uma forma
de reconhecimento, ela acontece no irrefletido: ―ainda que certas formas complexas e
derivadas da vergonha possam aparecer no plano reflexivo, a vergonha não é
originalmente um fenômeno de reflexão‖ (SARTRE, 2012, p. 289).
Portanto, ―eu estou consciente de ser um objeto para um sujeito, mas não um
objeto para mim. Esse ser-o-que-eu-sou-para-os-outros não está em meu controle‖
(MORRIS, 2008, p. 166). Por exemplo, no ato de reflexão, posso até dizer que eu sou
um objeto para mim quando eu me olho no espelho, mas isso é precisamente o que não
ocorre quando eu sou olhado por um outro, pois ajo, a respeito dele, no campo
irrefletido (MORRIS, 2008).
43
De qualquer forma, o Outro continua sendo importante nesse caso. Sartre afirma a minha existência
para Outro, o ser para o Outro como fato primeiro e perpétuo, só que esse Outro também é a sociedade, os
costumes e a cultura: o Outro acha-se agora por toda parte, pois sou um ser social e histórico (SARTRE,
2012).
74
Assim o ―não ser o que é e ser o que não é‖ se mantém para provar a existência do
Outro, ou seja, ―o Outro deve aparecer ao cogito como não sendo eu‖ (SARTRE, 2012,
p. 326).
Portanto, Katherine Morris supõe que ―ao solipsismo falte essa consciência
implícita. Penso que isso dificilmente faz sentido, a não ser como descrição do autismo
ou da síndrome de Asperger‖ (MORRIS, 2008, p. 175).
44
Veremos no capítulo ―Questões de Método‖ como esse reconhecimento é necessário também para o
filósofo Descartes, por exemplo.
75
Com outras palavras, mesmo Sartre afirmando que não se pode acessar a
consciência do outro, pois não me olho como o outro me olha, o solipsismo não se faz
presente aqui, porque não estamos trabalhando com um sujeito isolado. Isto é, de certa
forma estamos novamente de acordo com o existencialista Ronald David Laing (1973,
p.13) ao afirmar que ―o relacionamento pessoal só pode existir entre seres separados,
mas não isolados‖.
Então, dando início, para Sartre a alienação não é uma força que determine o
comportamento humano:
76
condição para conceber outra coisa, lembrando que se trata de condição e não de
determinação no sentido mecanicista (SARTRE, 2012), pois
esta discussão mostra que são possíveis duas e somente duas soluções:
ou bem o homem é inteiramente determinado (o que é inadmissível,
em particular porque uma consciência determinada, ou seja, motivada
em exterioridade, converte-se em pura exterioridade ela mesmo e
deixa de ser consciência), ou bem o homem é inteiramente livre
(SARTRE, 2012, p. 547).
Sartre também levanta a questão que não existe causa e efeito nos móbeis ou
motivos, pois, na prática, num ato, tudo acontece ao mesmo tempo:
Ao dizer que tenho motivos, é porque já tenho finalidades e por fim escolhas
destas. Por exemplo, se me perguntam por que ou por qual motivo leio a obra O Ser e o
Nada, direi que é para aprender sobre o Existencialismo de Sartre. Só que ao ler a obra,
77
automaticamente já escolhi minha finalidade: aprender sobre o Existencialismo de
Sartre. Não existe um motivo para depois uma finalidade, pois motivo e finalidade
acontecem contemporaneamente, senão, precisaríamos acreditar em um motivo sem
finalidade, o que é ilógico e absurdo. Já que motivo sempre é voltado a uma finalidade,
assim, temos motivo-finalidade, e se finalidade é escolha, não existe escolha sem
finalidade, caso contrário, estou escolhendo o que? Seria aleatório, apesar de que isso
também pode ser uma finalidade, dependendo do propósito de um projeto existencial.
Mesmo que diga que resolvi escolher qualquer coisa, já existe uma finalidade: ―escolher
qualquer coisa‖ ao invés de escolher isso ou aquilo, admitindo, assim, a não existência
de uma causa e efeito entre o motivo e a finalidade (SARTRE, 2012).
Deste modo, ―uma vez que reconheçamos que razão, motivo, móbil, fim e ação
estão internamente relacionados, que eles formam uma totalidade inanalisável, a
dificuldade desaparece‖ (MORRIS, 2008, p. 183). Um exemplo:
78
ele sofre, sem levar seu sofrimento em consideração ou conferir-lhe
valor: sofrer e ser são a seu ver a mesma coisa; seu sofrimento é puro
teor afetivo de sua consciência não posicional, mas ele não o
contempla. Portanto, esse sofrimento não poderia ser por si mesmo um
móbil para seus atos. Exatamente o contrário: é ao fazer o projeto de
modificá-lo que o sofrimento lhe parecerá intolerável (SARTRE,
2012, p. 538).
Ou seja, o ―sofrimento‖ por si só não é motivo ou, no caso, um móbil, a não ser
que ele fosse contemplado, refletido ou se lhe conferir valor. Dessa forma, seguimos
com a afirmação de que
79
ser perante o olhar do Outro que, no caso, tenta lhe objetificar como negro (SARTRE,
2012).
80
singularmente a sua própria determinação (LEOPOLDO E SILVA,
2003, p. 61).
Então, ter uma consciência de classe depende do modo singular como cada
sujeito interioriza e exterioriza a sua situação histórica, é a ação desse sujeito que molda
singularmente a sua própria determinação e se configura como membro de uma classe
oprimida, por exemplo, pois, se é possível se reconhecer como consciência de classe
pela interiorização e exteriorização por parte do sujeito perante o burguês ou o opressor
com seus privilégios, é possível também se reconhecer como um invejoso, com
interesses individuais ou com desesperos particulares ao considerar os privilégios do
opressor ou do burguês (SARTRE, 2012).
45
A psicanálise existencial ―é um método destinado a elucidar, com uma forma rigorosamente objetiva, a
escolha subjetiva pela qual cada pessoa se faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si mesmo aquilo que ela
é. Uma vez que o método busca uma escolha de ser, ao mesmo tempo que um ser, deve reduzir os
comportamentos singulares às relações fundamentais, não de sexualidade ou de vontade de poder, mas
sim de ser, que se expressam nesses comportamentos [...] Os resultados assim obtidos – ou seja, os fins
últimos do indivíduo – poderão então ser objeto de uma classificação, e é sobre a comparação desses
resultados que poderemos estabelecer considerações gerais sobre a realidade humana enquanto escolha
empírica de seus próprios fins. As condutas estudadas por esta psicanálise não serão somente os sonhos,
os atos falhos, as obsessões e as neuroses, mas também, e sobretudo, os pensamentos despertos, os atos
realizados e adaptados, o estilo, etc.‖ (SARTRE, 2012, pp. 702-703). Isto é, se a psicanálise freudiana
busca, no âmbito da clínica, as causas dos atos de um sujeito, a psicanálise existencial busca, nas esferas
―mundana‖ (no sentido de ser do mundo) e filosófica, o sentido dos atos desse mesmo sujeito.
46
A psicanálise freudiana é um campo clínico e de investigação teórica da psique humana independente
da Psicologia, desenvolvido por Sigmund Freud. Aqui, ―se por um lado, Freud é um militante no campo
81
ambas as psicanálises consideram o ser humano como uma
historiarização perpétua e procuram descobrir, mais do que dados
estáticos e constantes, o sentido, a orientação e os avatares desta
história (SARTRE, 2012, p. 697).
Ambas as psicanálises consideram o ser humano no mundo, um sujeito histórico,
levando em conta, antes de tudo, sua situação (SARTRE, 2012). O que a Psicanálise
Existencial, em particular, mostra é que a liberdade deve ser sempre pensada
historicamente, já que ―o modo de ser histórico da existência humana manifesta-se na
existência individual como uma história‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2015, p. 39). Ou
seja, o sujeito interioriza o exterior e modifica o exterior ao exteriorizar o interior com
seu sentido singular/história subjetiva que se desenrola na história objetiva, por isso a
história universal se confunde com a história individual, assim, o ser humano se
determina ao escolher, escolhendo seus limites ou situações, definindo a realidade
humana. ―Em suma, cada história subjetiva se desenrola no plano geral da história
objetiva‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2015, p. 39).
clínico, ávido por desvendar os processos psíquicos, por outro, Sartre é um militante no campo da
liberdade, ávido para dar um sentido a existência humana‖ (FERREIRA, 2005, pp. 85-86).
82
fatores ―limitantes‖ e ―determinantes‖ da efetivação da liberdade, por isso a liberdade é
sempre situada, como visto aqui, ou melhor:
83
Sartre em sua obra O Ser e o Nada, como demonstrado até aqui, já apresenta o
Outro, a relação humana e a história universal, não fazendo do sujeito algo isolado, pelo
contrário, mostrando o sujeito como um ser histórico e social. Nessa obra se considera o
ser humano como singularidade e como liberdade em uma experiência individual, como
também portador de universalidade. Não havendo contradição entre o sujeito/particular
e a história/universal na referida obra.
Agora poderíamos nos sentir satisfeitos com esta pesquisa no que tange à
investigação para saber se no O Ser e o Nada há um sujeito histórico e social com sua
liberdade ou determinação, já que consideramos que há tal sujeito, pois o que se
compreende é que Sartre, ainda nessa obra, discute a consciência de classe, a
coletividade, o grupo em geral, a existência do Outro como indivíduo e sociedade, não
ignorando um discurso que é apropriado pelo marxismo, por exemplo. Contudo, isso
será mais evidenciado no capítulo ―O Ser-com (Mitsein) e o Nós e a alienação entre
Sartre e Marx: uma análise sartreana do marxismo‖, deste trabalho, que continuará
ainda com essa mesma obra e tendo alguns diálogos com o marxismo, só que, para isso,
antes precisamos conhecer um pouco do pensamento marxiano.
47
Friedrich Engels foi um teórico revolucionário alemão que junto com Karl Marx fundou o chamado
marxismo.
48
―another thing I would ask you to do is to study this theory in the original source books and not at
second-hand; it is really far easier‖ (ENGELS, 2010, p. 36).
84
entre sujeito e objeto e as suas reflexões acerca da crítica à filosofia do idealismo
objetivo do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Cabe salientar ainda que a análise
aqui posta resulte de possíveis leituras a respeito de algumas obras de Marx, não
sugerimos a noção de que já está tudo nesse próprio filósofo.
Nessa obra, Marx e Engels denunciam que a ―crítica alemã, até em seus mais
recentes esforços, não abandonou o terreno da filosofia‖ (MARX; ENGELS, 2007, p.
83), mas, toda ―a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner limita-se à crítica das
representações religiosas‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 83). Assim, tal crítica continha
não apenas em suas respostas, como já nas próprias perguntas uma mistificação
(MARX; ENGELS, 2007).
49
"Alguns autores apontaram-na como uma deficiência, tendo em vista que, para estes, há na obra de
Marx um forte traço economicista e determinista, à medida que ele compreende os mecanismos internos,
85
particularmente em A Ideologia Alemã (Die deutsche Ideologie)
(1845-1846), na qual ele afirma que é a vida que determina a
consciência, e não o contrário, e no Prefácio (Vorwort) à obra Para a
Crítica da Economia Política (Contribuição) (Zur Kritik der
politischen Ökonomie) (1859), em que ele reafirma tal posição,
salientando que ―[...] não é a consciência dos homens que determina o
seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua
consciência‖ (CHAGAS, 2013, p. 64).
Ser um ser social quer dizer, aqui, não mais vida em geral, abstrata, mas a vida
social humana, concreta ou sensível. E o ser social, que determina a consciência, está,
por sua vez, condicionado historicamente pela produção material da vida e vice-versa,
por isso, essa produção não significa só produção econômica no sentido economicista
ou um economicismo50, significa, simultaneamente, autoprodução do sujeito, ou seja,
produção e reprodução ―dos meios necessários à vida, à sobrevivência humana, que
envolve tanto produção de bens materiais quanto de bens imateriais, produção de
objetividade e subjetividade, de elementos objetivos e subjetivos‖ (CHAGAS, 2013, p.
64)51.
Não há, segundo Chagas, uma obra específica de Marx acerca da subjetividade,
ou uma obra em que ele tenha tratado diretamente dela, mas, no conjunto de seus
escritos, desde suas ―primeiras reflexões até as formulações mais amadurecidas, há
passagens, elementos básicos, constitutivos, para uma construção teórica da
subjetividade em Marx‖ (CHAGAS, 2013, p. 66)52.
as atividades da consciência, como um fenômeno secundário, mero reflexo das determinações materiais,
das relações de produção, inviabilizando, assim, uma reflexão rica e complexa sobre a subjetividade
humana‖ (CHAGAS, 2013, p. 63).
50
O economicismo é um termo utilizado para criticar o reducionismo econômico, que é a redução de
todos os fatos sociais a dimensões econômicas.
51
Como veremos, em Marx não há mais sujeito abstrato, ou seja: não há de um lado, o sujeito; e do outro,
o objeto. Há o sujeito-objeto. Uma totalidade. Assim, as críticas à subjetividade humana são falhas por
não considerarem "momentos da objetividade e da subjetividade como partes de um todo‖ (CHAGAS,
2013, p. 64). Essas críticas não podem ser atribuídas a Marx, tendo em vista que ele não considera ―a
produção material e a produção espiritual como dois momentos cristalizados, mas sim como dois
instantes que se operam ao mesmo tempo, como partes integrantes da totalidade social. Marx deixa claro
isso, ao frisar, nas Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a
produção intelectual e a material e que esta última não deve ser considerada ‗[...] como categoria geral,
mas em forma histórica determinada. [...] Se não se concebe a própria produção material em sua forma
histórica específica, é, então, impossível compreender o que é determinado em sua produção espiritual
correspondente e a ação recíproca entre ambas‘‖ (CHAGAS, 2013, pp. 64-65).
52
Contra os que acham não ser possível apontar uma teoria da subjetividade em Marx, ―penso que ele
refletiu, sim, em diversos momentos, sobre a subjetividade humana, momentos esses que podem ser
evidenciados, entre outras, nas seguintes obras: Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel –
Introdução (Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung) (1844), A Questão Judaica (Zur
Judenfrage) (1844), Manuscritos Econômico-Filosóficos (Ökonomisch-philosophische Manuskripte)
(1844), Teses sobre Feuerbach (Thesen über Feuerbach) (1845-1846), A Ideologia Alemã (Die deutsche
86
Embora também, para Marx, o homem na modernidade se encontre isolado,
separado de sua essência, esta não é, para ele, uma essência subjetiva, tal como o é para
Feuerbach53.
Ideologie) (1845-1846), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Der achtzehnte Brumaire des Louis
Bonaparte) (1852), os Fundamentos (Grundrisse) (1857-1858), Para a Crítica da Economia Política
(Zur Kritik der politischen Ökonomie) (Prefácio) (1859) e O Capital (Das Kapital) (1867)‖ (CHAGAS,
2013, p. 66).
53
Iremos discorrer sobre Feuerbach mais adiante neste texto.
87
realistas, empiristas, racionalistas, materialistas, metafísicas etc. (MARX; ENGELS,
2007). A revolução que contraria essa dicotomia surge com o filósofo alemão Hegel, o
qual inverte, provavelmente pela primeira vez na história da filosofia, a lógica formal54,
assim, em vez de falsidade, a contradição assinala a apreensão das dinâmicas
fundamentais de cada fenômeno. Apreender ―a contradição passa a ser sintoma da
apreensão do movimento real dos fenômenos‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 9). Porém,
mais do que isso: essa inversão hegeliana questiona outro princípio do pensamento
clássico: a ideia de distinção entre sujeito e objeto, que era essencial para compreender
o ser humano inserido no mundo. Na verdade, a rigor, o que é questionado é a distinção,
ou oposição metafísica, entre dois pólos que, no entanto, só se constituem na e através
da relação com seu oposto. Cabe destacar, então, que é preciso apreender com cuidado
essa concepção a respeito de que não há uma divisão entre o sujeito e o objeto. Não é,
de fato, uma mudança para a negação da tal divisão, mas para a concepção de que a
divisão é uma forma de relação; a oposição não se dá entre entes autônomos, porém
entre componentes de uma totalidade que só nela (ou seja: só nas relações que a
constituem, inclusive a relação que os opõe/distingue) existem como os seres que
efetivamente são (MARX; ENGELS, 2007). E isso é uma revolução bastante pertinente
no pensamento filosófico, pois ―do cogito cartesiano ao eu transcendental kantiano, a
diferenciação sujeito/objeto habitou, com diferentes roupagens, todos os sistemas
filosóficos pré-hegelianos‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 9).
Hegel, então, atinge o que era assumido como realidade: a separação do sujeito e
objeto. Assim, perguntas são colocadas: por que o mundo nos aparece com uma grande
cisão entre sujeito e objeto? Por que o mundo nos aparece como alheio? (MARX;
ENGELS, 2007). ―Para responder a essas questões, Hegel introduz no pensamento
filosófico a noção de trabalho‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 10), noção essa que Marx
posteriormente vai redefini-la em termos históricos e materiais; e, com efeito, permitir
rearticular a relação clássica entre sujeito e objeto, mediada pelo pensamento de que os
homens ―produzem a realidade inconscientemente – ‗Eles fazem, mas não sabem‘, na
fórmula sintética de Marx no prefácio a O capital –, em que não se reconhecem.
54
A lógica formal se refere ao pensamento de Aristóteles: ―para o pensamento aristotélico, a verdade se
identifica com a ausência de contradição [...] Essa lógica – chamada de formal ou da identidade – norteou
a grande maioria das correntes do conhecimento ao longo dos séculos, da Antiguidade, passando pela
Idade Média, chegando ao mundo moderno e avançando até o contemporâneo [...] Nela, a contradição é
sintoma de falsidade‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 9).
88
Introduz-se, assim, junto com o conceito de trabalho, o de alienação‖ (MARX;
ENGELS, 2007, p. 10).
Marx ainda apreende esse sujeito como ser da ação, da práxis. Mesmo alienado,
– ―Eles fazem, mas não sabem‖, como Marx mesmo afirmou (MARX; ENGELS, 2007),
– o sujeito está sempre agindo, realizando, fazendo em uma situação, em uma escassez,
existindo na realidade concreta, na vida. Ou seja,
89
de sua ação, e de suas relações com os outros e com a natureza, da
qual ele faz parte (SILVA, 2009, p.56).
A alienação, então, não aparece como algo inerente ou como uma espécie de
essência imutável do homem, ela está ligada à atividade humana específica e como tal
tem sua origem no tempo (SILVA, 2009). Assim é possível, em Marx, a superação de
uma situação. Superar se torna viável na história, a qual é formada por relações
humanas materiais. Afasta-se, devido a isso, um mecanicismo ou determinismo
absoluto, não há um dogma a ser seguido, pois,
Silvia Lane ainda deixa evidente que para que esta contradição não negue a todo
o momento a sociedade que é produzida, é imprescindível a intercessão ideológica,
assim, certos valores são mantidos, as explicações tidas como verdadeiras que estão no
eixo das relações sociais são necessárias para a sustentação das relações de produção
(LANE, 1991).
90
se ―auto-produz‖ como um ser aberto, que cria em contextos concretos um mundo de
instrumentos, ―objetos, relações e movimentos propriamente humanos, sociais,
transformando crescentemente a natureza e a si mesmo, ao seu próprio ser social‖
(SILVA, 2013, p. 150). Ao construir sua teoria, Marx e Engels se voltam contra a teoria
idealista, apresentando o sujeito no mundo, concreto, revelando o seu materialismo
histórico, ―que remete para a produção e a reprodução das condições de existência dos
homens‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 14). Dessa forma, emanam as relações dos
homens com a natureza e com suas formas de organização social.
Então, segundo Silvia Lane, ―se o homem não for visto como produto e
produtor, não só de sua história pessoal, mas da história de sua sociedade‖ (LANE,
1991, p. 13), qualquer sistema rigoroso, seja a Sociologia, a Antropologia, a História, a
Economia, a Filosofia, a Pedagogia, a Linguística e a Psicologia, por exemplo, ao
pensar o homem, estará apenas refletindo as condições que acaba por impedir e não
compreender concretamente a emergência das contradições e a transformação social,
mas, essas áreas, especialmente as das Ciências Humanas, repensadas diferente de uma
dicotomia, contribuirão para o conhecimento profundo e concreto do ser humano
(LANE, 1991). ―Sua fronteiras devem ser necessariamente permeáveis, ampliando o
conhecimento, seja do indivíduo, do grupo, da sociedade e da produção de sua
existência material e concreta‖ (LANE, 1991, pp. 17-18).
91
coisas exteriores ao indivíduo que se torna consciente (MARX;
ENGELS, 2007, p. 35).
A consciência é um produto social, no sentido de que o sujeito é um ser social e
histórico, e ele só existe em relação com o outro, e só se é ser humano enquanto
existirem outros seres humanos em uma correspondência. A consciência existe como
vínculo com outras pessoas e com coisas do mundo. Por isso, diferente do idealismo,
não são as ideologias que criam o mundo, ao contrário, as ideologias em geral se
assentam sobre tais bases e relações sócios-materiais (SILVA, 2013).
O que é preciso entender é que o homem tem consciência, ―mas esta também
não é, desde o início, consciência ‗pura‘. O ‗espírito‘ sofre, desde o início, a maldição
de estar ‗contaminado‘ pela matéria‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 34). O que fica
evidente é que toda consciência está-no-mundo. Não há separação entre a consciência e
a matéria, como não há, de um lado, o sujeito, e, de outro lado, o objeto. Como visto, o
homem e o mundo estão ―intricados‖ ou correlacionados. O homem é o homem
concreto, e não o do idealismo; a consciência é aquela ―contaminada‖ pela matéria, e
não aquela abstrata.
92
assim, a história se desenrola, já que é com base na consciência das circunstâncias em
que a vida é produzida que o sujeito reconstrói, transforma e apreende o mundo
(CHAGAS, 2013).
93
contemplação, se acomoda ou espera o seu tempo idealizado, acaba que ―alimentando‖
cada vez mais o sistema burguês. Precisamos, então, de um sujeito concreto, na ação,
para contrapor o pensamento burguês, o idealismo e/ou a contemplação pura, pois,
como dito, a libertação é um ato histórico e não um ato de pensamento (MARX;
ENGELS, 2007).
Percebemos, portanto, que tudo que faz parte da realidade humana, como a
libertação, a revolução, a ciência, a filosofia, a história etc., é fruto da atividade humana,
esse humano agindo sempre nas situações. Portanto, se uma teoria se diz científica, ela
deve saber que, antes de tudo, há ação humana:
94
Só que Marx vai reconhecer que é certo que Feuerbach tem em relação aos
materialistas ―puros‖ a grande vantagem de que ele compreende que o homem é
também ―objeto sensível‖; porém, ele apreende o homem apenas como ―objeto
sensível‖ e não como ―atividade sensível‖, ―– pois se detém ainda no plano da teoria –,
e não concebe os homens em sua conexão social dada‖ (MARX; ENGELS, 2007, p.
32). Feuerbach, segundo Marx, não chega nunca aos homens ativos, realmente
existentes, mas permanece na abstração ―o homem‖ (MARX; ENGELS, 2007). Com
outras palavras, ―não consegue nunca, portanto, conceber o mundo sensível como a
atividade sensível, viva e conjunta dos indivíduos que o constituem‖ (MARX;
ENGELS, 2007, p. 32).
Assim, esse ―fazer a história‖ não se direciona na idéia de que, por exemplo,
uma história local quando é transformada em uma história mundial é um mero ato
abstrato do espírito mundial ou de um fantasma metafísico qualquer (MARX; ENGELS,
2007). Claro está que essa transformação é ―sim uma ação plenamente material,
empiricamente verificável, uma ação da qual cada indivíduo fornece a prova‖ (MARX;
ENGELS, 2007, p. 40). Isso afasta a ideia de um marxismo mecanicista ou idealista.
Dessa forma, indo de encontro a uma visão marxista mecanicista, realizamos uma práxis
95
humana como materialidade, evitando que o homem, como produto de seu produto, se
transforme em uma ―antipráxis‖, isto é, em ―práxis sem autor‖.
A todo o tempo, ao tecermos sobre o sujeito em Marx, por tal sujeito ser
concreto e sócio-histórico55, ele é material, o que vai de encontro à visão idealista
alemã. Não há necessidade de uma concepção idealista da história, pois o homem não é
uma abstração, para Marx. Com outras palavras,
Essa relação com a natureza e essa relação dos indivíduos uns com os outros
mostram que ―as circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as
circunstâncias‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 43). Portanto, não há nada de metafísico,
tudo acontece na ação, nas relações humanas na história e, assim, há a dialética entre os
homens e as circunstâncias, há uma reciprocidade. A descoberta capital da experiência
dialética é que o homem é ―mediado‖ pelas coisas na medida em que as coisas são
―mediadas‖ pelo homem. Desse modo,
55
Relativo aos elementos ou problemas sociais na sua relação com os elementos ou problemas históricos.
96
o que Marx quer mostrar é, na verdade, que a subjetividade não é nem
uma instância própria, autônoma, independente, abstrata, nem posta
naturalmente, dada imediatamente ao indivíduo, mas construída
socialmente, produzida numa dada formação social, num determinado
tempo histórico (CHAGAS, 2013, p.65).
Não há, para Marx, objeto sem sujeito, como não há sujeito sem objeto. Só que
precisamos salientar isso com cuidado, como já visto. O que não há são entes
autônomos, abstratos, e o que há são entes em relação entre si. E aqui já podemos
adicionar algo mais sobre isso: o tal objeto pode ser entendido como fenômeno no
sentido de que o sujeito conhece e apreende tal objeto, pois Marx reconhece a
anterioridade ontológica da natureza, uma realidade objetiva que prescinde de qualquer
sujeito. Muito antes de haver humanos, o planeta já estava aí. O que não pode haver é o
conhecimento puramente objetivo, posto que conhecer é ato humano e nele se
apresentam entrelaçados o objetivo e o subjetivo. Assim, nesse sentido, nenhum dos
pólos dessa relação, sujeito e objeto, são postos como um dado a priori; eles se
constituem na relação, na história (CHAGAS, 2013).
97
formal ou cartesiana. Na filosofia de Marx, a situação, a história e a ação são
contemporâneas, ou, não há história ―Ex-nihilo‖. Todo ato é histórico e toda história é
ato. Por isso, é que se pode explanar sobre lutas e revoluções. O homem existe
concretamente e ele age. O que se compreende, então, é que, segundo Marx,
98
determinados países‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 437). A ideologia, no interior da qual
esses ―socialistas verdadeiros‖ estão presos, ―não lhes permite contemplar a situação
real‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 437).
99
se a realidade é atividade humana sensível e nós também o somos,
então estamos, enquanto conhecedores (mas não só), nela ―já sempre‖
envolvidos, pela ação como pelos sentidos, pelo pensamento (pois
seria tolice imaginar uma prática sem pensamento, do mesmo modo
que um pensamento dissociado dela) como pela linguagem. Não
somos exteriores à realidade, nem ela exterior a nós, nem nós uns aos
outros, como indivíduos abstratos, sem relações, como mentes
individuais desencarnadas, especulares. De outro lado, a realidade
humana sensível, como subjetiva (ou intersubjetiva), já sempre está
impregnada de atividade humana; logo, de pensamento,
conhecimento, crenças e propósitos humanos (SOUZA, 2012, p. 114).
Destarte, para Marx, não há um economicismo ou historia absoluta, não se trata
de uma valorização em que um (socioeconômico) é mais importante do que o outro
(sujeito), ―ou em que uma é determinante e ativa e a outra determinada e passiva, mas
de uma recíproca influência de uma sobre a outra‖ (CHAGAS, 2013, p. 65). Não há,
para ele, objeto sem sujeito, como não há sujeito sem objeto. Essa dicotomia que é
esvaída desde Hegel, é esvaída também em Marx para ser totalizada e materializada,
concretizada.
100
―corresponde à idéia de que existe certa ‗base‘ que condiciona ou determina uma certa
‗superestrutura‘‖ (BARROS, 2012, p. 122). Neste caso, o questionamento diz respeito à
intensidade e à natureza da tal determinação, ou seja, o ―grau‖ de determinismo presente
sobre a superestrutura pela economia; há, ainda, as variações relacionadas ao que estaria
de fato incluído nesse determinismo. Também se põem outras perguntas, referentes a
possíveis influências da superestrutura sobre o tal determinismo econômico, ou sobre a
relativa autonomia de alguns aspectos da superestrutura (BARROS, 2012).
101
a maneira de enxergar a sua existência na sociedade, a consciência das suas condições
reais etc.
Também, como sabido, já que o sujeito faz a história ao mesmo em que é feito
por ela ou que ele não deixa de agir mesmo em uma situação já dada, então, o tal
sujeito, pertencente ao mundo do trabalho, pode ter uma representação de sua existência
que não corresponde à sua real circunstância, isso porque tal representação se refere à
existência do mundo capitalista. Ou seja, se a história faz o sujeito,
102
produto de nenhuma necessidade histórica resultante de leis da história, como querem
os idealistas, ao contrário, para a verdadeira ―efetivação da emancipação humana é
necessário que os homens se tornem os seus verdadeiros agentes, pois, é na história que
se concretiza o cenário para o exercício da liberdade humana‖ (SILVA, 2009, p.51).
Emancipar-se é a declaração do ser humano real, concreto, e das suas relações humanas
materiais sem a necessidade de entender suas limitações em um ser acima dele, como a
história absoluta, o passado condicionante que o assombra, o economicismo etc.
(SILVA, 2009).
Como visto, Marx não vê a existência humana em uma dualidade, não há sujeito
e história ou sujeito e objeto, mas sim sujeito-objeto, portanto, nesse sentido, a história
não pode ser uma lei acima dos homens, não há enconomicismo, não há unilateralidade,
com efeito, para realizar a emancipação humana é ―necessário que o pensamento e a
massa que são sua base material ajam concomitantemente, um impelindo ao outro‖
(SILVA, 2009, p.59). Não basta que o pensamento procure realizar-se; a realidade deve
igualmente compelir o pensamento (SILVA, 2009)56.
56
Apesar de evitar o economicismo, ―Marx nos diz que, na economia política, tudo é explicado a partir de
circunstâncias exteriores, depois conclui indagando, ‗[...] até que ponto estas circunstâncias exteriores,
aparentemente casuais, são apenas a expressão de um desenvolvimento necessário, sobre isso a economia
nacional nada nos ensina‘. Apesar de afirmar o desenvolvimento necessário da riqueza, a economia não
diz como isso acontece. O que Marx constata verdadeiramente é que a economia política somente
movimenta a ganância e a concorrência‖ (SILVA, 2009, p. 66).
103
29). Em certos momentos a sociedade parece recuar a um momento anterior ao seu
ponto de partida para que se possa avançar. Mas, mais do que isso:
104
relações não vão se constituir em um processo fechado, acabado em si mesmo, mas
seguem a dinâmica da atividade humana, este processo é progressivo (SILVA, 2009).
57
A rigor, cabe salientar: aqui é preciso atenção para as características desse texto. Como o próprio livro
Manuscritos econômico-filosóficos (Boitempo Editorial, 2010) afirma, esta não é uma ―obra‖, no mesmo
sentido em que o O 18 de brumário de Luís Bonaparte é: um texto desenvolvido do começo ao fim, no
qual o argumento se acha plenamente exposto. Ao contrário, são peças fragmentárias de estudos que não
chegaram a ser concluídos e que, por isso mesmo, exibem as marcas da incompletude. Claro que não
inviabiliza a leitura, pois, ―apesar de seus limites, raros são os marxistas do século XX que deixaram de
manifestar sua opinião sobre o conteúdo filosófico [...] deste documento‖ (Boitempo Editorial, 2010,
orelha do livro). Mas é evidente que exige o cuidado metodológico de levar em conta seu caráter
inacabado, incompleto e os efeitos que daí podem decorrer para o que foi exposto.
105
capitalista. Engels também afirma, a respeito desse economicismo, que se alguém
distorce o pensamento dele e o de Marx ―afirmando que o fator econômico é o único
determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma
frase vazia‖ (ENGELS, 2010, p. 34)58, pois, de acordo com a concepção materialista da
história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida
real (ENGELS, 2010). Engels vai assegurar que, além das condições econômicas, do
mesmo modo, vários outros vetores da
58
―now if someone distorts this by declaring the economic moment to be the only determining factor, he
changes that proposition into a meaningless, abstract, ridiculous piece of jargon‖ (ENGELS, 2010, p. 34).
59
―superstructure — political forms of the class struggle and its consequences, namely constitutions set
up by the ruling class after a victorious battle, etc., forms of law and, the reflections of all these real
struggles in the minds of the participants, i. e. political, philosophical and legal theories, religious views
and the expansion of the same into dogmatic systems — all these factors also have a bearing on the
course of the historical struggles of which, in many cases, they largely determine the form‖ (ENGELS,
2010, pp. 34-35).
106
as alterações que alargaram o muro geográfico da partilha, formado
pelo conjunto sudético de montanhas do Taunus, até a extensão de
uma fissura regular cortando toda a região (ENGELS, 2010, p. 35)60.
O Manuscritos econômico-filosóficos se caracteriza como uma obra voltada a
uma crítica de fundamentação filosófica da economia política, e também entendemos
que nessa obra
60
―Without making oneself a laughing-stock, it would scarcely be possible to provide an economic
explanation for the existence of every small German principality, past and present, or for the origin of the
High German sound shift whereby the geographical partition formed by the mountains from the Sudetes
to the Taunus became a veritable rift running right across Germany‖ (ENGELS, 2010, p. 35).
61
―the historical event which itself may be seen as the product of a power operating unconsciously and
involuntarily as a whole‖ (ENGELS, 2010, p. 35).
62
―for what each individual wants is obstructed by every other individual and the outcome is something
that no one wanted‖ (ENGELS, 2010, p. 35).
107
pecado original (Sundenfall), isto é, supõe como um fato dado e acabado, na forma da
história, o que deve explicar‖ (MARX, 2010, p. 80). Aqui, ainda, fica evidente mais
outra crítica ao determinismo mecanicista no marxismo, ou, nesse caso, ao
economicismo (SILVA, 2009). Com efeito, isso permite uma explicação marxista da
alienação ou do estranhamento63:
63
Neste trabalho utilizaremos os termos ―estranhamento‖ e ―alienação‖ juntos, como sinônimos. Faremos
isso em virtude de não querermos adentrar nas discussões que cercam este problema, pois alguns
estudiosos contemporâneos como Jesus Ranieri e Mônica Hallak defendem que há uma diferença na
utilização dos termos alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung) (SILVA, 2009), então,
vamos manter os dois para evitar confusão no desenrolar do texto e também por ser um tema complexo e
que não faz parte da principal discussão desta monografia.
108
Porém, é preciso frisar, aqui, que a superação da alienação não significa em
momento algum o fim da história, mas sim a afirmação desta. A história, para Marx, é
viva, só existe em movimento, é um processo prático, realizada pelas relações humanas
concretas, sendo assim, ―a história se configura como um processo aberto que depende
única e exclusivamente da atividade dos homens enquanto seres objetivos‖ (SILVA,
2009, p. 69). Ou seja, a superação da alienação deve ser entendida como a superação
dos instrumentos do modo de produção capitalista. Marx não poderia aceitar que o
homem não pudesse superar a sua alienação, que não pudesse transcender o já dado,
senão, iria de contra ao seu próprio sistema de pensamento. Ele não aceita essa visão de
uma insuperável alienação, pois esta é uma visão fechada da história, que acaba
configurando-se como o fim da história. ―Tal visão é inconcebível para Marx, pois seria
o fim do homem, e, para ele, o homem é um ser livre, que se autoproduz e isso é
confirmado em sua objetividade prática‖ (SILVA, 2009, p. 69).
109
objeto ou a relação entre o trabalhador e a produção, considerando ainda que, para
Marx, o sujeito existe como homem devido à relação de trabalho, fora disso, tal sujeito
seria abstrato ou outro animal; há o homem-trabalho. A diferença entre o homem e
outros os animais é o trabalho. É claro que os animais ―trabalham‖ ou produzem, mas
―o homem, para Marx, tem a capacidade de superar também as determinações impostas
pela natureza, o que não acontece com o animal‖ (SILVA, 2009, p. 70). Assim, o
trabalho permitiu ao homem distanciar-se de sua animalidade, desenvolvendo uma série
de novas faculdades e capacidades. Ele não deixou de ser natureza. Mas tornou-se
humano. Transformou a sua natureza dada em natureza humanizada: ―o animal só
produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira; [no animal,] o seu
produto pertence imediatamente a seu corpo físico, enquanto o homem se defronta
livre[mente] com o seu produto‖ (MARX, 2010, p. 85). Os seres humanos desenvolvem
suas relações de trabalho e distribuição no processo de produção e reprodução da vida
material. O modo em que essa relação se dá é que pode ocorrer o reconhecimento de si
mesmo, a superação do mundo constituído, a superação ou a manutenção da alienação, a
exploração do homem pelo homem ou uma produção de uma relação social mais justa,
como menos miséria social, mas, mesmo assim, a teoria da economia clássica não
abarca isso tudo como fato da realidade social. Segundo Marx, a economia não leva em
consideração a existência humana ou como o homem é humano e isto é a base de tudo
que consideramos como mundo humanizado (MARX, 2010). Tal economia mata a vida
humana. Mata a existência. É ―tóxica‖. A economia clássica, assim como o marxismo
mecanicista, ―cria‖ uma nova ―raça‖, a ―raça dos desumanos‖.
Se Marx vai mais a fundo e afirma que a alienação não só está no resultado do
trabalho, no produto, como ainda no ato humano ao trabalhar, se ―o estranhamento não
se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção,
dentro da própria atividade produtiva‖ (MARX, 2010, p. 82), então, o economicismo
ignora a relação concreta, a materialidade da realidade humana, em busca de respostas
110
universais, seguras, acreditando dar conta dos fenômenos sociais. O economicismo, em
uma analogia ou metáfora, com efeito, mata o ser humano com tanta segurança como o
vício absoluto, pela letargia e pomposidade que provocam.
111
Enfim, Marx, no Manuscritos, parte dessas leis naturais defendidas pela
economia política para evidenciar que de fato elas não existem naturalmente, ao
contrário, são simplesmente abstrações realizadas por economistas para basearem a
propriedade privada. A crítica da economia política é também a crítica ao determinismo
sustentado por essa ―ciência‖ que existe em detrimento do sujeito concreto, social e
histórico.
Marx, então, constata que Proudhon não entendeu a dialética de Hegel, pois
toma seus pólos como elementos fixos ou, nas palavras do pensador francês, como
112
categorias lógicas (MATA, 2016). A partir disso, Marx vai considerar que a economia
política de Proudhon é uma metafísica da economia, é uma economia idealista, pois,
nessa ótica, os ―economistas exprimem as relações da produção burguesa, a divisão do
trabalho, o crédito, a moeda, etc., como categorias fixas, imutáveis, eternas‖ (MARX,
1985, p. 102), portanto, fica evidente, para o pensador alemão, que Proudhon tem a sua
frente estas categorias já formadas, princípios, leis, idéias, pensamentos (MARX, 1985).
Assim, ―os economistas nos explicam como se produz nestas relações dadas,
mas não nos explicam como se produzem estas relações‖ (MARX, 1985, p. 102). Ou
seja, Marx questiona uma economia que se caracteriza como economicismo, que busca
explicar os fenômenos nas relações já dadas, já aí constituídas, mas não explica como
ocorrem tais relações. Isso nos leva, segundo o pensador alemão, ao um pensamento
abstrato, de cunho idealista e mecanicista, enfim, apresenta aspectos que vão de
encontro ao pensamento marxiano, o qual é dialético, que busca as relações concretas ao
invés de relações abstratas. Portanto, Marx vai afirmar que
O que acontece é que a partir do momento em que se quer ver nos fenômenos
sociais ―somente idéias, pensamento espontâneos, independente das relações reais, a
partir de então se é forçado a considerar o movimento da razão pura como a origem
desses pensamentos‖ (MARX, 1985, p. 103). Segundo Marx, é isso o que Proudhon
realiza a respeito da história humana. O pensador francês coloca os pensamentos
separados do homem, ou seja, ―trata-se da linguagem desta razão tão pura, separada do
113
indivíduo. Em lugar do indivíduo comum, com a sua maneira de falar e pensar, o que
temos é esta maneira comum inteiramente pura, sem o indivíduo‖ (MARX, 1985, p.
103).
Devido a isso, Marx vai dizer que, para Proudhon, ―as categorias econômicas
são expressões teóricas, abstrações das relações sociais de produção‖ (MARX, 1985, p.
106), ou seja, as relações de produção são encarnações das categorias econômicas,
porém, o pensador francês não observa que as relações sociais também são produzidas
pelos indivíduos:
114
relações sociais de acordo com a sua produtividade material produzem, também, os
princípios, as ideias, as categorias de acordo com as suas relações sociais‖ (MARX,
1985, p. 106). Não há separação entre o homem e a história, o que há é uma dialética
homem-história. Não podemos, então, colocar a abstração como princípio no
pensamento marxiano. Assim, as ideias, as categorias, são produtos históricos e
transitórios (MARX, 1985).
65
Compreendemos que a analogia de Carone é anatômica, naturalista. No limite, é anti-dialética. Por isso,
ele mesmo explica: ―é evidente que Marx não identificou os seus procedimentos como os do físico e do
biologista. Podemos inferir, entretanto, que o autor parte de uma perspectiva totalizadora na qual a
sociedade burguesa é compreendida como um sistema social sujeito a transformações‖ (CARONE, 1991,
p. 22).
115
‗conhecer tudo‘, mas como a consideração do objeto no interior de múltiplas
determinações‖ (MATA, 2016, p. 82).
116
considerando-se as relações concretas ou a lógica interna da história. Não há dualidade,
como a história, de um lado, e as relações concretas ou o homem, do outro lado. Se
considerarmos somente a história, cairemos no idealismo, no método puramente
especulativo ou mecanicista, mas se ponderarmos somente as relações humanas
concretas, cairemos no empirismo acrítico, que busca, em detrimento do real e da
dialética como concebida por Marx, fazer do marxismo uma ciência positivista que
toma o pensamento como atividade passiva e a realidade como algo já acabado, já dado.
Por isso, é preciso considerar a história como totalidade.
117
Com efeito, considerando o pensamento de Proudhon, com todas ―estas
eternidades imutáveis e imóveis, não há história; há, no máximo, a história na idéia, ou
seja, a história que se reflete no movimento dialético da razão pura‖ (MARX, 1985, p.
111). Portanto, o ponto de partida da investigação de Marx é a produção material, em
um determinado estágio do desenvolvimento social-humano, ―mas não a produção em
geral, que é não só uma abstração genérica, pobre e vazia, como também apologética‖
(CHAGAS, 2011, p. 65).
Em suma, para Marx, ―a história social dos homens é sempre a história do seu
desenvolvimento individual, tenham ou não consciência deste fato‖ (MARX, 1985, p.
207).
66
“what all these gentlemen lack is dialectics. All they ever see is cause on the one hand and effect on the
other. But what they fail to see is that this is an empty abstraction, that in the real world such
metaphysically polar opposites exist only in a crisis, that instead the whole great process takes place
solely and entirely in the form of interplay — if of very unequal forces of which the economic trend is by
far the strongest, the oldest and the most vital — and that here nothing is absolute and everything relative.
So far as they are concerned, Hegel might never have existed‖ (ENGELS, 2010b, p. 63).
118
Como anuncia o título deste tópico, realizaremos uma continuidade dos
conceitos presentes em O Ser e o Nada, mas, agora, fomentando uma análise sartreana
do marxismo. O que fica expresso aqui é que tal análise partirá, de início, da obra
mencionada, ao invés de partimos da Crítica da Razão Dialética, obra na qual o próprio
Sartre já fez a sua análise do marxismo.
Toda essa questão nos permite também uma leitura de que não há duas fases na
filosofia de Sartre, no sentido de que existe uma continuidade temática que atravessa a
obra O Ser e o Nada em direção à Crítica da Razão Dialética: a liberdade e o sujeito
social/histórico. Veremos mais sobre isso no decorrer deste trabalho.
É preciso destacar também que Karl Marx e Friedrich Engels não realizaram um
pensamento existencialista, como o existencialismo que é aqui colocado. Marx não fez
um diálogo com Sartre, até porque este é de uma época posterior. Marx desenvolveu o
materialismo histórico, como visto, e não um pensamento existencialista. Então, ao
citarmos Marx ou Engels é para que possamos desempenhar uma possível análise
sartreana do pensamento marxiano, marxista, pós-marxista e/ou neo-marxista. Em uma
perspectiva, essa análise não é exclusividade nossa, no sentido de que consideramos que
o próprio Sartre já a realizou em suas diversas obras posteriores ao O ser e o Nada67.
67
Obras como Questão de método (Editora Difusão Européia), Les communistes ont peur de la révolution
(Editora J. Didier), O Fantasma de Stalin (Editora Paz e Terra), O Idiota da Família (Editora L&PM) e
Crítica da Razão Dialética (Editora DP&A).
119
5.1 O Ser-com (Mitsein) e o Nós e a alienação entre Sartre e Marx: uma análise
sartreana do marxismo
O sujeito em comunidade também é objeto de estudo de Sartre. Não só a relação
com o outro, como igualmente com a sociedade e a comunidade, se tornou apreendida
pela filosofia sartreana. Não se nega, então, um sujeito social ainda em O Ser e o
Nada68.
68
Entendemos que intersubjetividade não é ser social, mas mostraremos como essa configuração é
possível em Sartre de O Ser e o Nada no decorrer desta atividade.
69
A rigor, apesar de cada uma dessas categorias ter seu sentido ou conceito próprio, não se nega um
reconhecimento do Outro enquanto ―unidade‖ com suas devidas características.
120
Esse é um exemplo bem básico de como os conflitos banais (como ser-objeto do
Outro para mim, meu ser-objeto para o Outro) se desfazem devido a uma finalidade
comum, como conferir um incidente na rua, pois todos do bar saem para ver o ocorrido,
tomando-se em uma mesma ação. Essa ação, que é tornar-se espectador do incidente,
me faz experimentar em consciência não tética (ou não posicional) junto às outras
consciências também que fornecem matéria para um Nós. Assim, me comprometo em
um conjunto ou Nós, cujo objeto tético, no caso, é o incidente na rua (SARTRE, 2012).
Mas Sartre ainda afirma que a liberdade não é perdida nesse exemplo, já que,
mesmo em um Nós, ele mostra que a singularidade permanece; que o Nós não poderia
ser o fundamento de nossa consciência do Outro, ou seja:
claro está que o Nós não é uma consciência intersubjetiva, nem um ser
novo que transcenda e englobe suas partes, tal como um todo
sintético, à maneira da consciência coletiva dos sociólogos. O Nós é
experimentado por uma consciência particular: não é necessário que
todos os fregueses do bar sejam conscientes de ser Nós para que eu
me experimente enquanto comprometido com eles em um Nós
(SARTRE, 2012, p. 513).
O que fica evidente é a crítica que Sartre faz a uma sociologia que considera o
coletivo como se fosse uma consciência enorme, ou melhor, uma consciência coletiva,
como se todos pensassem exatamente iguais ou que as suas singularidades se tornassem
uma única coisa consciente ou em uma massa ―amorfa‖. Em uma metáfora, é como se
todos se tornassem um sujeito gigante, único. Sartre não compactua com isso, pois
assim se perde a singularidade do indivíduo que, mesmo em um grupo ou
comprometido com algo, vai dar, cada um a sua maneira, um sentido, um olhar, uma
significação própria para o objeto tético em questão ou para uma finalidade em comum
(SARTRE, 2012).
121
um significado peculiar, ou próprio, a esses princípios. Por exemplo, ao dizerem que
querem liberdade, igualdade e fraternidade, um sujeito poderá estar nessa revolução por
interesses pessoais ou políticos, outros pelo interesse e compaixão por todos, já outros
por ter ódio devido a uma má experiência vivida na era da Igreja ou do feudalismo, mais
outro por ter aderido a uma ideologia antirreligiosa e por isso deseja o fim da Igreja ou
não encontra mais sentido na Igreja presente ou, ainda, porque alguns deles esperam que
a revolução traga menos desigualdade social para si mesmo.
122
novamente isso se constata como um erro ao interpretar a filosofia sartreana. Ou seja,
Sartre, na verdade,
aponta que nunca podemos manter exatamente o mesmo ponto de vista
que o Outro. Mas nem mesmo em O ser e o nada, em que os
elementos conflitantes são mais enfatizados, Sartre chega a negar que
se possam manter visões similares (BURSTOW, 2000, p. 111).
Com outras palavras:
Isto é, se está evidente que o Nós não poderia constituir uma estrutura ontológica
da realidade humana e, por isso, o sujeito continua livre e na sua particularidade, então,
o ―Nós é uma certa experiência particular que se produz, em casos especiais, sobre o
fundamento do ser-Para-outro em geral‖ (SARTRE, 2015, p. 514). Certa experiência
particular expressa o sujeito como uma consciência entre outras – mesmo que exista
uma finalidade comum a todos ou visões similares –, e não como uma consciência
única, universal e amorfa.
123
Então, quando Sartre afirma, ainda na sua obra O ser e o Nada, que no grupo, no
coletivo pressupõe haverem consciências aberrantes ou que a liberdade é preservada no
Nós (SARTRE, 2012), demonstra uma possível leitura existencialista da articulação do
pensamento de Marx e Engels, já que para estes a coletividade é formada de conflitos
entre as vontades individuais, considerando estas em condições particulares, singulares
de história de vida70. Ou seja,
124
projetos existenciais (SARTRE, 2012), contudo, agora na leitura de Engels, o que
emerge é uma vontade final não antecipada pelas singularidades envolvidas (ENGELS,
2010), isto é, na visão sartreana, os conflitos banais se desfazem devido a uma
finalidade comum sem a perda da liberdade, singularidades, dos envolvidos (SARTRE,
2012).
Outro ponto importante é compreender que, para Engels, mesmo o fato de que as
vontades individuais não obtenham o que querem, os sujeitos têm suas vontades
amalgamadas em um sentido coletivo, uma resultante comum, mas não deve ser
concluído que seus valores sãos iguais a zero (ENGELS, 2010), já que, retomando a
releitura sartreana, mesmo no coletivo, a liberdade é preservada. Sartre afirma que a
liberdade não é perdida, pois, mesmo em um Nós ou em um coletivo, a liberdade ou a
singularidade permanece, e que o Nós não poderia ser o fundamento de nossa
consciência do Outro (SARTRE, 2012). Dessa forma, os valores não podem ser iguais a
zero. A coletividade, mesmo com um resultado comum, não é de fato homogênea.
125
coletividade. Cada uma terá um sentimento particular para com tudo isso, já que cada
uma tem sua história, experiência de vida, ou melhor, seu projeto existencial.
A singularidade ou a liberdade, com efeito, não seria perdida nem em Sartre nem
em Marx, este considerado pelo viés de Engels. Cabe salientar que Marx, obviamente,
não discorreu sobre uma liberdade ao estilo sartreano, mas reconheceu que há uma
singularidade e desejos dos sujeitos no coletivo. Em suma, pela análise existencialista,
―o ser-Para-outro precede e fundamenta o ser-com-o-outro” (SARTRE, 2012, p. 514).
72
―the economic trend ultimately asserts itself as something inevitable‖ (ENGELS, 2010, p. 35).
73
―We make our history ourselves but, in the first place, under very definite premises and conditions‖
(ENGELS, 2010, p. 35).
74
Referimo-nos a afirmação: ―nós mesmos é que fazemos a história, mas o fazemos sob condições e
suposições definidas‖ (ENGELS, 2010, p. 35).
126
O que Sartre explana é que essa afirmação de Engels é facilmente entendida por
certos marxistas como a ideia de que o ser humano, apesar de fazer a história, é
determinado mecanicamente por ela, o homem é um produto passivo. Devido a isso,
estamos no terreno do idealismo. Mas, para o filósofo existencialista, há uma
contradição no entendimento a respeito dessa afirmação e, por isso, é necessário
apreendê-la da seguinte forma:
75
O Ser e o Nada e a Crítica da Razão Dialética
127
a facticidade, portanto, exprime-se nesse nível pelo fato de minha
aparição em um mundo que só se revela a mim por técnicas coletivas
e já constituídas, que visam fazer-me captá-lo com um aspecto cujo
sentido foi definido sem meu concurso. Essas técnicas irão determinar
meu pertencer às coletividades: à espécie humana, à coletividade
nacional, ao grupo profissional e familiar (SARTRE, 2012, p. 629).
Quando Engels comenta, pelo viés da Crítica da Razão Dialética, que é ―[...]
determinado meio que os condiciona‖; Sartre, já no O Ser e o Nada, também comenta
algo parecido a isso ao proferir que ―essas técnicas irão determinar meu pertencer...‖,
assim, entendemos que o filósofo francês já se respaldou sobre esse assunto antes da sua
obra Crítica, demonstrando mais uma vez que há uma continuidade temática em ambas
as obras. Sartre não precisou criar outra teoria para responder a afirmação de Engels
presente na Crítica, e sim que se utilizou de outras expressões com os entendimentos já
existentes na sua obra anterior, a saber, O Ser e o Nada. Entendendo isso, voltamos:
qual a resposta que o filósofo existencialista oferece como explicação a essas
determinações ou condicionamentos via técnica? Ainda que meu pertencer a tal ou qual
classe, a tal ou qual nação, não derive de minha ―facticidade enquanto estrutura
ontológica do Para-si, é evidente que minha existência de fato, ou seja, meu nascimento
e meu lugar, envolve minha apreensão do mundo e de mim mesmo através de certas
técnicas‖ (SARTRE, 2012, pp. 630-631) e as ―técnicas não foram criadas pelo Para-si
com o objetivo de alcançar a si mesmo: ele as tomou do Outro‖ (SARTRE, 2012, p.
637).
128
e perde seu caráter de técnica e se integra pura e simplesmente ―no livre transcender do
dado rumo aos fins‖ (SARTRE, 2012, p. 641).
Então, quando Sartre afirma, a respeito das condições existentes pregadas por
Engels, que pela práxis supera-as, conservando-as, o que o filósofo afirma, de fato, é
que esse ―superar‖ é nadificar ou transcender, é utilizar-se dessas condições, as
transcendendo rumo a seu fim, e a consciência estará sempre Para-além das condições
utilizadas / vividas. Isso porque ser livre não é ―escolher o mundo histórico onde
surgimos – o que não teria sentido –, mas escolher a si mesmo no mundo, não importa
qual seja‖ (SARTRE, 2012, pp. 639-640). A respeito disso, podemos usar um exemplo,
ou analogia, que tece sobre uma técnica já constituída e a capacidade de superação ou
transcendência desta, configurando a liberdade sartreana:
Em suma, quando Marx e Engels afirmam que ―são os próprios homens que
fazem sua história, mas em determinado meio que os condiciona‖ (SARTRE, 2002, p.
73) ou que ―nós mesmos é que fazemos a história, mas o fazemos sob condições e
suposições definidas‖ (ENGELS, 2010, p. 35)76, isso significa afirmar, seguindo uma
76
―We make our history ourselves but, in the first place, under very definite premises and conditions‖
(ENGELS, 2010, p. 35).
129
análise sartreana em O Ser e o Nada, que o ―Para-si é livre, mas em condição, e é essa
relação entre a condição e a liberdade que queremos precisar com o nome de situação‖
(SARTRE, 2012, p. 637).
Por isso, para Sartre, essa dicotomia sujeito e objeto deve ser superada. Se a
realidade humana é histórica, ela se dá por via da relação entre o sujeito – que é sempre
um agente histórico até mesmo para Marx, senão, este não poderia falar em revoluções,
transformações – e o conjunto de condições objetivas que contextualizam e ―limitam‖ a
ação, a liberdade, como a economia, a sociedade etc. (LEOPOLDO E SILVA, 2015).
―Pois se é verdade que o homem está na história, também é verdade que é ele que faz a
história‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2015, pp. 39-40).
Leopoldo e Silva vai enfatizar muito bem essa questão do sujeito histórico e
livre, quando afirma que o marxismo com o qual Sartre se defronta em seu tempo se
caracteriza por uma tendência materialista radical, fazendo da subjetividade algo
subordinado às determinações materiais, principalmente de ordem socioeconômicas
(LEOPOLDO E SILVA, 2015), só que
77
Chama-se também de materialismo mecanicista, que é o tipo de concepção materialista comum do
século XVIII. Esse tipo de materialismo considerava as leis da mecânica como base para se compreender
a natureza e as relações sociais. Tanto a natureza quanto os homens estariam sujeitos a um movimento de
causa e efeito. Portanto, ―[...] sendo absolutamente mecânico, estabelece uma relação causal com o
mundo exterior, de modo que ambos se tornem homogêneos. Assim, não haverá interrupção da
causalidade mecânica entre o mundo exterior ao corpo e o processo que se passa no próprio corpo. Tudo é
questão de movimento, de matéria em movimento‖ (BATTISTI, 2010, p. 37), ou seja, são ―ações e
reações puramente mecânicas, são processos mecânicos, são movimentos corporais numa relação entre
causa e efeito‖ (BATTISTI, 2010, p. 40).
78
“What all these gentlemen lack is dialectics. All they ever see is cause on the one hand and effect on the
other. But what they fail to see is that this is an empty abstraction, that in the real world such
130
Marx provavelmente não aceitaria essas concepções marxistas materialistas
mecanicistas em detrimento do seu materialismo histórico, já que, além da afirmação
acima de Engels, o próprio Marx buscou em Hegel a concepção dialética79 do devir,
―contrariando simultaneamente o idealismo metafísico de Hegel e o materialismo
mecanicista do século XVIII‖ (REICH, 1977, p. 36).
metaphysically polar opposites exist only in a crisis, that instead the whole great process takes place
solely and entirely in the form of interplay — if of very unequal forces of which the economic trend is by
far the strongest, the oldest and the most vital — and that here nothing is absolute and everything relative.
So far as they are concerned, Hegel might never have existed‖ (ENGELS, 2010b, p. 63).
79
Em suma, ―a dialética hegeliana se estabelece dentro de um sistema de compreensão da realidade,
diante de um processo em contínuo movimento no qual o antecedente (tese) se supera e conserva no
precedente (antítese), se transformando, imediatamente, em um novo antecedente (síntese), a ser
novamente superado e conservado, e assim por diante, em um ciclo interminável de crescente
determinação [...] A inovação introduzida pela dialética hegeliana está na compreensão de que o conflito
entre os opostos - tese e antítese - não é ideal, mas real, e que a superação dessa disputa não representa,
como na lógica formal, uma correção no conteúdo dos argumentos utilizados, mas um outro momento,
em que o próprio conflito se transmuta para um novo patamar [...] produzindo, na história, algo novo, não
dado previamente, cujo surgimento ou definição, ressalta-se, não decorre de procedimentos ideais, mas de
uma superação original, na qual se perfaz o processo histórico‖ (FERREIRA, 2013, p.183). No mais,
trataremos sobre a dialética na ótica de Sartre em uma nota de rodapé mais a frente e nos capítulos
"Dialética dogmática" e "Dialética crítica / razão dialética", deste trabalho.
131
subjetividade é esse projetar-se para o mundo objetivo, que caracteriza a realidade
humana: não há um ―dentro‖ e um ―fora‖, há uma relação, um processo nadificador
constante do Para-si. Ou seja, Sartre contraria a idéia do dualismo cartesiano (alma e
corpo, mente e cérebro, subjetivo e objetivo, interno e externo), pois há ―a concepção de
que o homem não é somatória ou coleção, mas sim totalidade‖ (LEOPOLDO E SILVA,
2015, p. 41).
Agora, também nos referimos à outra questão, que igualmente faz parte deste
capítulo, a saber: a alienação. Sartre comenta do mesmo modo que o Eu-objeto é uma
alienação de como o Outro me vê e é uma espécie de base de como o Nós-objeto nos
precipita no mundo, já que ―experimentamos o Nós-objeto através da vergonha,
enquanto alienação comunitária‖ (SARTRE, 2012, p. 524). Assim, entende-se, então,
que o Eu-objeto se torna em ―Eus-objetos‖, ou seja, o Eu alienado é agora ―Eus‖
alienados. Somos ―Seres-objetos‖ em comum, quando nos olham. Dessa forma, amplia-
se o conceito de Eu-objeto para ―Eus‖ alienados, obtendo-se o Nós-objeto (SARTRE,
2012).
Entendemos isso, só que em nossa análise ainda não levamos em conta, com a
devida ênfase, o fato de que a relação com o Outro acontece, na verdade, sobre um
fundo de relações com todos os Outros, em uma quase totalidade de consciências
(SARTRE, 2012). Por isso, Sartre afirma que o fato é ―que minha relação com o Outro
aparece sobre o fundo infinito de minha relação e de sua relação com todos os Outros‖
(SARTRE, 2012, p. 515). O Eu-objeto ou o Nós-objeto não é somente uma alienação
perante o outro ou ao olhar do outro, como também perante vários outros, em um fundo
de relações com todos os outros. O filósofo que dizer com isso que o Ser-Para-Outro é
um Ser-Para-Muitos-Outros, é o Ser-Em-Sociedade. Sartre está alegando, então, que
somos seres sociais e históricos, e isso é discutido em plena obra O Ser e o Nada. Ao
dizer que uma relação com o outro aparece em um fundo de relação com todos os
Outros, estes são a sociedade. Ou seja, não se pode esquecer, então, que Sartre busca
mostrar que esse Outro que olha não se resume a um indivíduo, como também o
132
indivíduo que olha é ao mesmo tempo a multidão e, no limite, a sociedade como um
todo (SARTRE, 2012):
133
Aproveitando a oportunidade desse tema ou desse contexto, realizaremos
também mais uma análise comparativa entre as obras sartreanas já referidas aqui.
Assim, outra questão é que precisamos retomar o conceito de Nós-sujeito, só que agora
com uma análise adicional a respeito disso, a qual é ainda encontrada na obra O Ser e o
Nada: a consideração de um terceiro. Por exemplo, posso ser Eu-objeto para o Outro,
mas pode aparecer um terceiro. Assim, o Outro me olha, e me experimento alienado, só
que aparecendo o terceiro que olha esse Outro que me olha, a situação é mais complexa
e, dessa forma, posso captar o Terceiro não diretamente, mas sim no Outro, que se torna
Outro-visto pelo Terceiro. Ou seja, ―me alio ao Terceiro para olhar o Outro, que se
transforma então em nosso objeto – e experimento aqui o Nós-sujeito‖ (SARTRE, 2012,
p. 515). Como também posso ser visto pelo terceiro enquanto olho o Outro,
experimentando, então, minha alienação não posicional, ao mesmo tempo em que
posiciono a alienação do Outro (SARTRE, 2012). O que se percebe é que há, enfim,
infinitas possibilidades de existir em um grupo ou em uma comunidade. Do mesmo
modo, Sartre diz sobre isso em sua outra obra, a Crítica da Razão Dialética, na qual
também tece sobre o Terceiro, alegando que essas infinitas possibilidades ―não prejulga
nenhuma hierarquia, uma vez que os três membros da trindade podem tornar-se o
terceiro em relação aos outros dois‖ (SARTRE, 2002, p. 232). O filósofo deixa claro
que o ―mesmo indivíduo ou o mesmo grupo pode estar comprometido em uma ação
recíproca e, ao mesmo tempo, definir-se como terceiro‖ (SARTRE, 2002, p. 232). Por
isso, nos convém lembrar que realmente a relação humana existe como Práxis ou Para-
si80, isto é, em síntese, como dita na Crítica da Razão Dialética, nada mais é do que a
―relação da práxis consigo mesmo‖ (SARTRE, 2002, p. 232), ou, nos remetendo
novamente ao O Ser e o Nada, é a relação do ―Para-si consigo mesmo‖ (SARTRE,
2012, p. 263). No decorrer deste trabalho compreenderemos melhor que essa práxis é
sinônima do Para-si, e este já foi bem discutido em O Ser e o Nada. Mais uma vez,
portanto, encontramos continuidade temática em ambas as obras sartreanas.
80
Considerando a Práxis entendida na Crítica da Razão Dialética.
134
(SARTRE, 2002) 81. Portanto, se o terceiro me olha e olha o Outro, pode ser, então, que
eu e o outro entremos em equivalência e nos solidarizemos, formemos um grupo ou
Nós-objeto (SARTRE, 2012). Mas essa equivalência é não tética, não é conhecimento.
O que experimento é um ser-fora, no qual estou organizado com o Outro, em
solidariedade com o Outro. ―E, na medida em que assumo por princípio meu ser-fora
para o Terceiro, devo assumir igualmente o ser-fora do Outro; o que assumo é a
comunidade de equivalência pela qual existo comprometido em uma forma que, tal
como o Outro, ajudo a constituir‖ (SARTRE, 2012, p. 518). O fato é que comprometido
com o Outro, consigo, lá fora, em mim constituir em experiência de Nós-objeto. ―Em
suma, eu me assumo como comprometido lá fora, no Outro, e assumo o Outro como
comprometido lá fora, em mim‖ (SARTRE, 2012, p. 518).
81
Através também do Terceiro, presente tanto na obra O Ser e o Nada como na Crítica da Razão
Dialética, mostra um Sartre que não adotou esta em detrimento daquela obra, pelo contrário, mesmo com
outras expressões, há uma continuidade temática em ambas.
135
baixo nível de vida que irá constituir uma classe oprimida, já que a dureza do trabalho
poderia também constituir em um ―Nós-sujeito‖ e não somente em um ―Nós-objeto‖.
Ou mais: poderia constituir em um ―Eu-sujeito‖. Com outras palavras, uma comparação
simples e pura da classe coletiva oprimida, apresentando a sua dureza e o seu fardo de
condição de vida, com a classe opressora apresentando os seus privilégios, não bastaria
por si só, em caso algum, para constituir uma consciência de classe, ―quando muito,
provocará invejas individuais ou desesperos particulares‖ (SARTRE, 2012, p. 521).82
Dando continuidade, o que foi compreendido é que, para Sartre, uma formação
de classe acontece por uma produção de verdade intersubjetiva que está no seio de uma
história, já que estamos lidando com a realidade humana, e que se a classe é produzida,
a história também é, pois há uma leitura histórica no seio do capitalismo como uma
tortuosa relação de classes, como apresentada no marxismo, por exemplo. Assim, é
preciso entender que uma verdade precisa ser produzida: como a da consciência de
classe, pois ―descobrir a verdade significa apontá-la a outros, apresentá-la para que a
incorporem como o já desvelado, assim como eu mesmo incorporo uma verdade ao vê-
la pela visão do outro que a ponta para mim‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2003, p. 48).
Com outras palavras, é em um processo de objetivação do subjetivo, seja no que se
refere à minha visão, seja no que diz respeito a visão do outro, que ocorre a apreensão
de uma situação, na realidade humana, como classe oprimida e a sua consciência de
classe, por exemplo (LEOPOLDO E SILVA, 2003). Então, se uma comparação simples
e pura da classe coletiva oprimida com a classe opressora não bastaria por si só, é
porque se faz necessário a intersubjetividade para a objetivação de uma consciência de
classe como oprimida. Só se constrói uma consciência de classe, por exemplo, pela
intersubjetividade (Para-outro). Dessa forma, o juízo sobre algo pelo qual manifesto
uma apreensão visa sempre o outro, pretende sempre comunicá-lo ao outro:
82
Percebe-se que essa análise de Sartre demonstra que já há uma discussão em plena obra O Ser e o Nada
a respeito das questões sociais encontradas no marxismo, a saber: a análise da formação da classe
opressora e da classe oprimida. O que, mais uma vez, nos parece possível uma continuidade temática
entre o O Ser e o Nada e a Crítica da Razão Dialética.
136
O que Sartre procura explicar é que, por exemplo, um membro da coletividade
oprimida que, como uma simples pessoa, está comprometido com os outros membros
desta coletividade, capta sua condição e a dos outros membros de sua coletividade
quando vista por uma consciência que está fora dessa comunidade (que seria o
Terceiro), mas, para isso, a verdade de tal membro é na intenção do outro, para que
relacione todos a um mundo comum como um mundo de consciência de classe. Por
isso, essa verdade não sendo fruto de uma contemplação, não sendo fruto de uma
condição de dureza e fardo de condição de vida (para se remeter à consciência de
classe), é na atividade humana, então, que ela se produz e "essa doação da verdade ao
outro é a manifestação de liberdade" (LEOPOLDO E SILVA, 2003, p. 49), e como toda
a liberdade é situada, o sujeito que capta sua condição como consciência de classe
oprimida, partilhada com outros membros, capta em uma situação que pressupõe a do
ser-Para-outro ou devido à presença do Terceiro, no caso, do opressor (SARTRE,
2012). Com outras palavras, Sartre afirma em O Ser e o Nada:
137
classe opressora e a expensas desta, ou seja, transformando-a por sua vez em ‗eles-
objetos‘‖ (SARTRE, 2012, p. 522).
Um exemplo de que não é o trabalho enfadonho em si, de fato, que faz uma
classe oprimida, mas sim a significação de uma coletividade que se apreende como
sendo oprimida frente ao Terceiro, são certos catadores de materiais recicláveis que,
devido à sociedade vigente, ao invés de se sentirem humilhados, se sentem orgulhosos
por terem formado uma cooperativa e não desejam sair desse ramo de trabalho: ―é com
estas poucas palavras que eu, Silvana, faço meu trabalho de Catadora e me orgulho da
minha dimensão dentro do desenvolvimento econômico solidário‖ (BRASIL, 2013,
p.21). Se acusarem, por acaso, que os catadores estão orgulhosos por causa de uma
alienação social capitalista, isso não desconstrói a nossa análise, pelo contrário, reforça-
a, já que tal alienação só existe se houver o ―capitalista‖ como sendo o Terceiro, ou seja,
o sujeito para se sentir como uma classe oprimida ou para se sentir como uma classe
orgulhosa do que faz só é possível em e para a situação ou o Terceiro, pois sem este,
essas significações como oprimidos ou não oprimidos poderiam perder o sentido.
Enfim, para Sartre, é também em situação em relação ao Outro que o sujeito se
configura, e não devido ao fardo em si do seu trabalho, ao se falar de consciências de
classes (SARTRE, 2012), pois, o sujeito só pode vislumbrar o sentido de alienação no
concreto, – e o concreto, no caso, é a relação de trabalho que agrega obviamente o
Outro –, na vivência apreendida como tal nas relações humanas, e não através de
conceitos abstratos (FERREIRA, 2014). Se o homem é um ser social e histórico, ―ele só
pode vislumbrar o sentido de alienação em um contexto real e concreto‖ (FERREIRA,
2014, p. 80) perante o outro e ao mundo já constituído. Não há como reduzir a alienação
a uma ideia, pois a alienação é concreta e ocorre no conflito das relações de trabalho. As
relações humanas não podem ser somente um conceito, logo a alienação também não
pode ser somente um conceito. ―Todo sentimento [como se alienar ou sofrer] deve ser
sentido [vivido] para que se possa assentir qualquer conhecimento acerca dele‖
(FERREIRA, 2014, p. 80). Não é uma contemplação que irá definir um sofrimento ou
alienação, é sua experimentação que será condição para sua conceitualização: o sujeito
sartreano existe na ação e em situação, apreende-se em uma realidade humana
(FERREIRA, 2014).
138
ao escolher o Eu-objeto fundamentado no Outro, ou no Terceiro, que é o opressor, na
minha significação. Somos Nós somente aos olhos dos outros, e é a partir do olhar dos
outros que nos assumimos como Nós (SARTRE, 2012).
Portanto, a existência do Outro me revela o ser que sou, sem que eu possa me
apropriar deste ser. Por isso, ―‗viver em meio a outros‘, para Sartre, significa padecer de
uma alienação a priori, ontológica da liberdade‖ (VINÍCIUS DOS SANTOS, 2014, p.
2).
Mas partindo desse ponto, Sartre ainda em O Ser e o Nada não só reconhece a
alienação ontológica como também a antropológica ou a sociológica: ―o trabalhador,
qualquer que seja, experimenta no trabalho seu ser-instrumento para o Outro; o trabalho,
quando não destinado estritamente aos fins próprios do trabalhador, é um modo de
alienação‖ (SARTRE, 2012, p. 524). Com outras palavras, o filósofo já disse, como
uma espécie de um pensamento marxista, que se o trabalhador é estranho ao produto de
sua atividade, que se tal produto pertence a outro e não aos fins próprios do trabalhador,
há a alienação do tal trabalhador. ―A diferença é que, agora, a alienação não ocorria a
partir do contato direto entre olhares, mas pela intermediação do campo material, no
domínio da produção social‖ (VINÍCIUS DOS SANTOS, 2014, p. 2).
Então, para Sartre, essa relação com o Outro, o Olhar, seria a alienação primária,
e a alienação característica dos modos de produção, que é exposta em Marx, seria uma
139
espécie de alienação secundária (VINÍCIUS DOS SANTOS, 2014). Assim, o fato de
Sartre tecer sobre a alienação intermediada pelo campo material ou pelos modos de
produção desde O Ser e o Nada, permite uma análise sartreana do marxismo já nessa
obra, como também há um reconhecimento de um pensamento que, depois, terá maior
ênfase e continuidade na sua outra obra Crítica da Razão Dialética: pensar a relação de
trabalho83.
83
Percebe-se que, além da alienação ontológica, já é encontrada a alienação sociológica ou mediada pelos
modos de produção na obra O Ser e o Nada, só que tal alienação, evidentemente, será mais aprofundada
em sua outra obra Crítica da Razão Dialética. Isso nos faz entender que há uma continuação temática em
ambas as obras, e que Sartre ao dar mais ênfase em uma ontologia não está negando uma sociologia ou
antropologia. Acreditar que Sartre realiza tal negação configura um pensamento frágil, sem base séria e
rigorosa para tal crença. Cabe também entender que o filósofo, como todo o ser humano, tem um dia de
24 horas, e, assim, era preciso optar por qual questão pesquisar, o que não impede de encontrar
claramente um sujeito social, uma alienação mediada pelos modos de produção já na obra O Ser e o
Nada, como estamos percebendo aqui.
84
A frase exploitation de l’homme par l’homme significa, como mostrada no rodapé da obra A Ideologia
Alemã (20007), a ―exploração do homem pelo homem‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 396).
140
submerso nas relações entre as coisas. A alienação, como a entendemos, seria
ocasionada pela divisão de trabalho e, de outro lado, pela separação entre o trabalhador
e o produto dele resultante (MARX; ENGELS, 2007). Nesse caso,
141
obra e não somente a partir desta, é quando Marx assegura, de acordo com que tecemos
acima, que a relação do homem com o objeto não é mais uma relação de quem produz
para a satisfação de suas necessidades, mas uma relação de estranhamento (alienação),
pois, o homem não tem o acesso direto ao produto, fruto de seu trabalho (MARX,
2010); do mesmo modo, Sartre assegura também, ainda em O Ser e o Nada, que ―[...] o
trabalho, quando não destinado estritamente aos fins próprios do trabalhador, é um
modo de alienação‖ (SARTRE, 2012, p. 524). Isto é, tanto o Sartre do O Ser e o Nada
quanto Marx, considerando a diferente premissa de cada um, alegaram que o trabalho
não sendo destinado estritamente aos fins próprios do trabalhador, é porque é destinado
ao Outro, e, deste modo, a alienação se manifesta.
85
As obras de Sartre, como O Ser e o Nada, Que é a literatura? e Em defesa dos intelectuais, abordam
essas questões: ética e responsabilidade, como também a obra O Existencialismo é um Humanismo,
contudo esta aborda tais questões de forma mais superficial por se tratar de um livro baseado em uma
palestra que o filósofo deu no Club Maintenant em Paris, em 29 de Outubro de 1945 e que o próprio
Sartre mais tarde rejeitou alguns dos pontos de vista que expressou nela e lamentou a sua publicação.
142
Entendemos que, mais uma vez, encontramos um sujeito social e histórico em O
Ser e o Nada, e também nos deparamos nessa obra com uma discussão sobre grupo,
coletividade, trabalho e classe social; discussão esta que também é encontrada na
Crítica da Razão Dialética, como veremos com mais evidência, e no pensamento
marxista. Com efeito, entendemos que Sartre, na obra O Ser e o Nada, não ignora os
problemas sociais e que, por isso, não irá somente considerá-los na obra Crítica da
Razão Dialética. O que há é uma ênfase a respeito da consciência naquela e uma ênfase
a respeito da história nesta, contudo em ambas não ignoram o sujeito singular, social e
histórico.
Portanto, fica evidente que mesmo ainda na obra O Ser e o Nada há a análise a
respeito dos problemas sociais, os quais já são objeto de estudo em Marx, como, do
mesmo modo, já há a aparição de um sujeito social e histórico nessa mesma obra
sartreana.
Um adendo: então, também, para aqueles que proferem que Sartre, ao escrever a
obra O Ser e o Nada, não levou em consideração as questões sociais, as quais são
questionadas especialmente pelo marxismo, precisam observar com mais rigor a tal obra
sartreana, como ainda observar a vida e a obra de Sartre que são relatadas pela sua
principal biógrafa, Annie Cohen-Solal na obra Sartre: uma biografia (2008), a qual nos
leva a compreender que, aparentemente, mesmo inicialmente não se voltando
diretamente ao pensamento de Marx até à publicação de sua obra O Ser e o Nada,
―Sartre era então um personagem fundamentalmente libertário [...] que a partir daí se
situaria dentro dos debates sobre modos de vida cotidiana que reuniam importantes
correntes do anarcossindicalismo [...] Jamais ele se desviaria dessa prioridade‖
(COHEN-SOLAL, 2008, p.7). Ou seja, Sartre já tinha a noção dos problemas dos
operários, das questões de classes sociais e da hierarquia na sociedade como algo
opressora, ao publicar a tal obra, já que
143
o anarcosindicalismo costuma apontar o sindicato como responsável
pela organização da sociedade no lugar dos partidos políticos, mas
frisando que esse sindicato seria diferente dos sindicatos tradicionais
existentes, pois representaria a federação dos conselhos operários e
não um órgão de defesa dos trabalhadores. Berthier (2002) descreve a
concepção anarco-sindicalista de sociedade partindo da definição de
autogestão: a elaboração de estruturas organizacionais que permitam
que os próprios trabalhadores sejam responsáveis por sua
emancipação. Essas estruturas seriam organismos de base que
permitem a expressão dos trabalhadores tanto no plano da empresa
quanto na comunidade em que estão inseridos, ou seja, organismos
que são simultaneamente econômicos e políticos (PAULA, 2008, p.
953).
Com outras palavras, o anarcossindicalismo é um método de análise sobre as
relações de classe e conflito social que pregava ou prega a ação revolucionária via
sindicatos. Cabe ainda salientar, grosso modo, que fundamentada em uma doutrina
própria, que conserva tanto elementos do anarquismo como do marxismo, os anarco-
sindicalistas acreditam que os sindicatos podem ser utilizados como instrumentos para
mudar a sociedade, substituindo o capitalismo e o Estado por uma nova sociedade
democraticamente autogerida pelos trabalhadores (PAULA, 2008).
Contudo, anarco-sindicalistas não são nosso foco principal, então, o que nos
interessa é indagar se esses fatos na vida de Sartre faziam desse filósofo um pensador
afastado da opressão operária? Dos problemas de classes sociais? Da relação de trabalho
contemporânea? Mesmo que ele, talvez, não tenha lido o próprio Marx ao publicar O
Ser e o Nada, o fato de seu engajamento no pensamento anarco-sindicalista pode ser
uma possível interpretação de que, ao desenvolver a tal obra, Sartre já tivera um
conhecimento a respeito de tais questões sociais e era simpatizante de uma análise a
respeito delas.
No que diz respeito ainda ao O Ser e o Nada, cabe salientar também o seguinte:
ao estourar a Segunda Guerra Mundial, Sartre foi convocado para servir como
meteorologista. Essa sua função, segundo o relato dele no trabalho biográfico de Annie
Cohen-Solal, daria muitas horas vagas. Assim, o soldado-escritor, como era chamado o
filósofo pelos companheiros de guerra, vai dedicar o tempo ocioso à escrita (COHEN-
SOLAL, 2008).
Sartre vai, portanto, dedicar em média quase doze horas por dia,
durante esses nove meses, para escrever nas salas de aulas, enquanto
todo mundo fica falando ao redor dele, para escrever em cima dos
joelhos lá fora, durante o serviço de vigilância, nos intervalos da
preparação da sopa (COHEN-SOLAL, 2008, p. 181).
E aqui há um fato interessante em sua vida: o filósofo, durante esse tempo,
escreveu de mais de quinze cadernos cheios de uma letra miúda que cobria todas as
margens da direita e da esquerda, em cima e embaixo (COHEN-SOLAL, 2008). ―Nele
Sartre entrecruza múltiplos temas: as leituras, as experiências do Havre [...] as relações
políticas‖ (COHEN-SOLAL, 2008, p. 183). Nessa época, dentre outras reflexões, Sartre
já refletia sobre política e filosofia, ou seja, havia ―fragmentos impressionantes que
misturam filosofia, crítica literária, análise da situação política entre Stalin e Hitler‖
(COHEN-SOLAL, 2008, p. 183). Cohen-Solal afirma, então, que nesses escritos, – que
ao mesmo tempo ―mistura Husserl e Heidegger, Flaubert e Guilherme II‖ (COHEN-
SOLAL, 2008, p. 183) –, estão presentes o seu entendimento de relações políticas e
análise da situação política entre Stalin e Hitler, e é nesse contexto que há uma ―gênese,
também, de obras então em andamento, como O ser e o nada, A idade da razão, obras
vindouras, mas já delineadas e pressentidas aqui, como As palavras ou Flaubert‖
(COHEN-SOLAL, 2008, p. 183), isto é, a obra O Ser e o Nada já estava em andamento
em um contexto envolto da Segunda Guerra Mundial, das análises de Sartre a respeito
da relação política, do stalinismo e do hitlerismo / nazismo; e era uma obra em
construção nas mãos desse filósofo, como soldado de guerra e prisioneiro de cativeiro,
que disse: ―mais uma vez aprendi o que é a verdade histórica: que eu era alguém que
vivia num país exposto a vários perigos e, como tal, ficava também expostos a eles‖
(COHEN-SOLAL, 2008, p. 190), portanto, O Ser e o Nada estava surgindo em uma
época de ―encontro verdadeiro do autor anarquista com o Social e a História‖ (COHEN-
145
SOLAL, 2008, p. 190). Será, nos perguntando mais uma vez, que o filósofo, ao
desenvolver O Ser e o Nada, não estava ciente e considerando as questões políticas, as
opressões e outras demandas da sociedade? Pois, ele analisava também isso em seus
cadernos, como bem disse Cohen-Solal, ao mesmo tempo em que havia nessa
conjuntura um ―local‖ da gênese do O Ser e o Nada.
Além desse exame do contexto no qual constituía O Ser e o Nada, esse jovem
Sartre, ao decorrer do tempo e ao retornar da guerra, se apreendeu cada vez mais a
respeito das dificuldades humanas, assim, Sartre compôs em 1941, antes mesmo de
lançar O Ser e o Nada, um grupo da resistência chamado Socialismo e Liberdade, a fim
de colaborar com a Resistência, produzindo panfletos clandestinos contra a ocupação
alemã e contra os colaboracionistas franceses. No decorrer de sua vida, atuou como um
pensador de fato que se posicionava publicamente contra a opressão, os preconceitos,
especialmente a discriminação racial e a questão da xenofobia aos judeus, publicando
ainda a obra Reflexões sobre a questão judia em 1943, mesmo ano também da
publicação da obra O Ser e o Nada (COHEN-SOLAL, 2008), demonstrando mais uma
vez que, paralelamente ao desenvolvimento desta obra, o filósofo já se fazia ciente a
respeito dos problemas sociais e os ponderava, e isso fica evidente na obra Reflexões e
na sua militância.
86
Cohen-solal ainda complementa: ―e se, mais tarde, muita gente fica atônita quando ele recusa, por
exemplo, o prêmio Nobel; se outros se espantam com as conferências de pós-guerra, é porque não
entenderam o ponto fundamental deste livro [O Ser e o Nada]‖ (COHEN-SOLAL, 2008, p. 230).
147
Cabe destacar também a importância de Simone de Beauvoir87, apelidada de
Castor, como interlocutora a respeito das obras de Sartre, especialmente O Ser e o
Nada, a qual ela discute o conceito de Liberdade com ele. Foi Beauvoir ―quem revisou
demorada, interminavelmente, o manuscrito de Melancholia, depois A náusea, quem
discutiu as teses de O ser e o nada, tornando-se a interlocutora privilegiada‖ (COHEN-
SOLAL, 2008, p. 246). E essa parceria intelectual com Castor somava com as já
existentes reflexões políticas de Sartre, as quais foram comentadas aqui, sendo mais
uma condição para que a filosofia sartreana não levasse o seu conceito de Liberdade
para uma espécie de abstração pura ou idealista. ―Quando Sartre lançou suas teorias
sobre a liberdade [...] foi ela [Beauvoir] quem argumentou longamente: ‗Muito bem,
então qual é a liberdade que têm as mulheres de um harém, por exemplo?‖ (COHEN-
SOLAL, 2008, p. 246). Sartre retruca a esse questionamento de Beauvoir. Mas, o que
importa para nós é que O Ser e o Nada não teve sua gênese em um mundo abstrato e
isolado da realidade social. Além da já presente reflexões políticas, da vivência como
prisioneiro de guerra, da militância e de testemunha das opressões nazistas, Sartre ainda
tinha, como uma soma para seu fundamento filosófico, as críticas intelectuais de
Simone de Beauvoir. Então, como dizer que essa obra surge de uma situação fora da
realidade social? E que o que há é somente um idealismo presente ali, uma ideia
altamente abstrata ou até devaneada, sem nenhuma relação concreta com o mundo?
Esse filósofo francês, como já percebemos, não negligenciou nada disso que vivenciou,
pelo contrário, tudo isso foi se transformando em materiais para sua base filosófica em
O Ser e o Nada88.
87
Simone de Beauvoir foi uma escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política e teórica
social francesa. Embora não se considerasse uma filósofa. Foi também a companheira de Sartre até a
morte deste. Beauvoir ―forma com Sartre o que se poderia chamar, na falta de coisa melhor, de casal de
escritores‖ (COHEN-SOLAL, 2008, p. 244).
88
Um adendo: de maneira idêntica, ―com a mesma reciprocidade, Sartre ajudou a dar à luz à obra A
convidada: momento decisivo para os dois escritores às voltas, cada um, com sua própria técnica de
romancista, Os caminhos da liberdade para ele, A convidada e, depois, Le Sang de Autres (O sangue
alheio) para ela (COHEN-SOLAL, 2008, p. 246).
89
Nessa obra, em Marx, Raymond Aron procurava uma explicação para a crise econômica que pesava,
por volta dos anos 30, sobre a Europa e a América. O autor tenta estabelecer a relação entre a necessidade
histórica e a ação humana, tratando dos dilemas necessidade-liberdade, teoria-prática e revolução-
reforma, que alimentaram toda a história do socialismo e do comunismo, ou seja, praticamente toda a
história do século XX.
148
interlocutor dos pensamentos filosóficos deste. Assim, junto à sua própria visão política
e experiência de guerra que o transformou bastante no que diz respeito a ter um contato
maior com o social e com a história, Sartre estava imerso ao um conjunto de críticas
intelectuais e trocas de conhecimentos que igualmente giraram em torno da obra O Ser e
o Nada ainda em desenvolvimento (COHEN-SOLAL, 2008).
149
considerando ainda uma relação entre o sujeito e a história. Descartes é um elemento
claro de que a afirmativa ―é verdade que o homem está na história, também é verdade
que é ele que faz a história‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2015, p. 40) é uma característica
comum para ambas as obras: Crítica da Razão Dialética e O Ser e o Nada, pois essa
observação de Sartre, em relação a Descartes, mostra um sujeito na sua liberdade sem
ignorar a universalidade ou a história.
Por isso, Descartes também precisou produzir uma verdade, que é a sua filosofia,
e o Outro, de certa forma, deve ser reconhecido e também reconhecê-lo. No início deste
texto expomos, de acordo com O Ser e o Nada, que ―descobrir a verdade significa
apontá-la a outros, apresentá-la para que a incorporem como o já desvelado, assim como
eu mesmo incorporo uma verdade ao vê-la pela visão do outro que aponta para mim‖
(LEOPOLDO E SILVA, 2003, p. 48). Há, assim, um processo de objetivação do
subjetivo. Seja no que se refere à minha visão, seja no que diz respeito à visão do outro,
90
Colocamos a ―dialética‖ entre aspas, porque, se antes a usamos como uma espécie de analogia, agora,
com mais rigor, ela não pode ser interpretada fielmente ao sistema de Hegel. Assim, poderíamos pensar
que se trata de uma relação dialética ou pelo menos de uma relação de dialética sem síntese, dado que no
pensamento sartreano, já sabemos, não há a possibilidade da síntese Em-si-Para-si. O próprio Sartre
indica, em uma nota de rodapé, que não devemos pensar assim: ―talvez sejamos tentados a traduzir em
termos hegelianos a trindade aqui considerada, fazendo do Em-si a tese, do Para-si a antítese e do Em-si-
Para-si ou Valor a síntese. Mas é preciso observar que, se ao Para-si falta o Em-si, ao Em-si não falta o
Para-si. Portanto, não há reciprocidade na oposição. Em resumo, o Para-si permanece não-essencial e
contingente com relação ao Em-si, e é esta não essencialidade que denominamos atrás a sua facticidade.
Além disso, a síntese ou Valor seria certamente um retorno à tese, e, portanto, um retorno a si, mas, como
o valor é totalidade irrealizável, o Para-si não é um momento que possa ser transcendido‖ (SARTRE,
2012, pp. 145-146). Ou seja, não apenas não se trata de uma dialética sem síntese, já que esta (ou como
Sartre nomeia, o Valor) é totalidade irrealizável, como também a relação entre Para-si e Em-si não é
dialética, na medida em que não há reciprocidade na oposição: se ao Para-si falta o Em-si, a este nada
falta (SOUZA, 2017). Há comentadores que consideram isso como a dialética sartreana, diferenciando-a
da dialética aristotélica e da dialética hegeliana, contudo, existem outros especialistas que preferem
entender essa questão como uma correlação, ―concretamente correlação, pois não podemos pensar a
consciência fora da relação com o mundo e este, mesmo que exista sem aquela, não tem sentido algum
fora dessa relação‖ (SOUZA, 2017, p. 163). Já se referindo novamente ao próprio Sartre, a respeito disso,
ele afirmou que há um ―duplo jogo de oposições unilaterais‖ (SARTRE, 2012, p. 146, nota de rodapé).
151
o que ocorre é o conhecimento e a verdade sobre algo, no caso, sobre a razão cartesiana
como uma verdade possível (LEOPOLDO E SILVA, 2003).
152
apreendemos a posteriori pela observação e em nosso esforço para
totalizar o conjunto do saber possível sobre essa questão. Valéry é um
intelectual pequeno-burguês, eis o que não suscita qualquer dúvida.
Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry (SARTRE, 2002,
p. 54).
Sartre, mais uma vez, esclarece que, apesar de que Valéry possa ter reações que
envolvam as de seu meio, esse escritor possui, mesmo assim, a sua singularidade. Dessa
forma, como no exemplo sobre Descartes, Sartre não nega o sujeito histórico, só que
considera de suma importância a singularidade deste. Considerando outra premissa, já
afirmamos aqui que Engels assegura que ―a história é feita de maneira que o resultado
final sempre surge da conflitante relação entre muitas vontades individuais, cada qual
destas vontades feitas em condições particulares de vida‖ (ENGELS, 2010, p. 35)91.
Então, ao considerarmos Valéry ou Descartes, como exposto aqui, consideramos as suas
vontades individuais feitas em condições particulares de vida, como quer Engels, que
caracteriza as singularidades do sujeito na história ou no meio em que vive. Mesmo
sendo sistemas de pensamentos diferentes, isso está próximo, de certa forma, do
pensamento de Sartre, quando este diz que Valéry a partir do grupo concreto de onde é
oriundo experimenta em consciência não tética junto às outras consciências também que
fornecem matéria para um Nós, no caso, para uma classe pequeno-burguesa. Assim, o
escritor se compromete em um conjunto, o Nós ou a sua classe, cujo objeto tético, no
caso, é ter reações que envolvam as de seu meio, sem negar a sua própria consciência.
Sartre afirma que a liberdade não é perdida nesse exemplo, já que, mesmo em uma
classe, Valéry mostra que a individualidade ou a singularidade permanece, e que uma
classe não poderia ser o fundamento de nossa consciência do Outro, pois, reafirmando,
―o Nós é experimentado por uma consciência particular‖ (SARTRE, 2012, p. 513). Com
outras palavras, Valéry é um intelectual pequeno-burguês. Mas nem todo intelectual
pequeno-burguês é Valéry (SARTRE, 2002). Assim, tanto no exemplo mais
aprofundado em Descartes quanto no exemplo de Valéry, a liberdade não é perdida no
coletivo.
Sartre, na Crítica da Razão Dialética, exemplifica, mais uma vez, essa questão,
se utilizando do escritor Flaubert. Sendo mais sucinto, de nossa parte, o filósofo nos diz
que
91
―history is made in such a way that the ultimate result is invariably produced by the clash of many
individual wills of which each in turn has been made what it is by a wide variety of living conditions‖
(ENGELS, 2010, p. 35).
153
não sabemos a razão pela qual Flaubert preferiu a literatura a tudo
mais, nem a razão pela qual viveu como um anacoreta, tampouco a
razão pela qual escreveu esses livros em vez dos livros de Duranty ou
dos Goncourt. O marxismo situa, mas nunca leva a descobrir mais
coisa alguma: [...] sendo as coisas o que elas são, tendo a luta de
classes tomado esta ou aquela forma, Flaubert, que fazia parte da
burguesia, devia viver como viveu e escrever o que escreveu. Mas
justamente o que se passa sob silêncio é a significação destas quatro
palavras: ―fazer parte da burguesia‖ (SARTRE, 2002, p. 55).
Sartre, novamente, questiona a ideia de universalidade que existe em
oposição/detrimento da singularidade, já que esse filósofo eleva a importância de uma
dialética e interroga o marxismo mecanicista. Ele coloca Flaubert no mesmo
questionamento que colocou Valéry: Flaubert é um intelectual pequeno-burguês, eis o
que não suscita qualquer dúvida. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Flaubert
(SARTRE, 2002).
154
tarefa fácil classificá-lo, haja vista o trânsito simultâneo de Sartre
entre a ficção, a filosofia, a dramaturgia, a crítica literária em revistas
e jornais, além de certa panfletagem política, somado às aspirações de
tornar-se sociólogo e psicanalista (CARVALHO, 2011, p. 61).
Ou seja, a trajetória de Sartre começa na crise dos valores ocidentais e
desemboca no marxismo, elaboração teórica ditada pelas necessidades da práxis do
proletariado, mas feita também por intelectuais pequeno-burgueses. Sartre é então um
intelectual pequeno-burguês que se aproximou do marxismo, porém, há uma grande
diferença entre ele e os outros (CARVALHO, 2011).
É preciso, então, observar que certos marxistas ―endeusam‖ as tão clamadas leis
da história ou a ―lei‖ economicista (conhecidos também como marxismo científico),
mas não há lei que tenha caído do céu ou sido escrita nas estrelas, o que existe são essas
relações humanas, essas liberdades que se cruzam, e esse conjunto de relações,
contradições, choques, conduzem a história. É isso que Sartre quer defender. Não existe
dialética que tenha origem em outro lugar qualquer senão no ser humano, caso
contrário, ao se apegarem em uma espécie de marxismo científico, as tais lutas sociais e
todo o processo são objetificados e enquadrados numa lei da história, o que faz a
mudança social problemática ou impossível. A ideia de uma lei da história encarrega em
retirar o sentido da luta social, já que ela age independente do ser humano, o que para
Sartre é um absurdo (SARTRE, 2002).
Os tais marxistas, segundo Sartre, procuram leis universais, leis da história, uma
dialética da natureza ou uma visão economicista que vigora na dialética social e
histórica, anulando a liberdade, a qual, na verdade, é que é a produtora de todas essas
leis que se desvelam na realidade humana (SARTRE, 2002).
155
6.2 Jean-Paul Sartre e Fiódor Dostoiévski: as leis como determinações
Não entraremos de fato na análise das obras do escritor Fiódor Dostoíevski, pois
o objetivo aqui é somente exemplificar92 através de personagens literários a filosofia
sartreana, que, por sinal, o próprio Sartre também fez. Então, poderemos mostrar essa
questão sobre as ―leis‖ mecanicistas ou universais, bem recebidas por certos marxistas,
a partir de Fiódor Dostoiévski93, este um clássico escritor russo do século XIX que
expõe em um dos seus famosos romances, Memórias do Subsolo, o seguinte
pensamento de seu personagem:
92
Aqui, como em outros tópicos que envolvem os exemplos, nos aproximamos do pensamento do
filósofo Frederic Cossutta, o qual considera o exemplo como algo importante para os conceitos
filosóficos. É o que ele procura intitular de Referência: sair do abstrato e colocar o conceito em uma
prática. No capítulo "A referência: do conceito ao exemplo", do livro ―Elementos para a leitura dos textos
filosóficos‖, Frederic Cossutta afirma que "o fechamento semântico do campo conceitual é uma exigência
de método, mas o filósofo não se fecha dentro de um discurso totalmente abstrato. A dimensão referencial
é uma dimensão essencial que permite escapar a uma dicotomia entre um 'mundo das abstrações' e um
'mundo das realidades'" (COSSUTTA, 1994, p. 73). Entendemos ainda que ―as descrições, definições,
exemplos, conceitualizações contribuem para a elaboração global do texto filosófico‖ (COSSUTTA,
1994, p. 99).
93
Citamos esse escritor, porque, segundo João Nuto, "nenhum escritor teve tanta influência na filosofia
moderna quanto Dostoiévski. Entre os admiradores da obra do grande romancista russo, figuram nomes
dos mais importantes da Filosofia: Nietzsche, Heidegger e Sartre. Esses filósofos, dentre outros, discutem
questões vivenciadas pelos personagens de Dostoiévski [...] Dostoiévski é considerado fundamental para
a corrente filosófica conhecida como Existencialismo‖ (NUTO, 2011, p. 130). Além disso, ―ao tomarmos
conhecimento da vasta literatura sobre Dostoiévski, temos a impressão de tratar-se não de um autor e
artista, que escrevia romances e novelas, mas de toda uma série de discursos filosóficos de vários autores
e pensadores‖ (BAKHTIN, 1997, p. 3), isto é, ―os grandes romancistas são romancistas filosóficos, ou
seja, o contrário de escritores com teses. Vejam Balzac, Melville, Stendhal, Dostoiévski, Proust, Malraux,
Kafka, para citar só alguns‖ (CAMUS, 2004, p. 116).
156
(SARTRE, 2002). Tanto o personagem como o próprio escritor Dostoiévski se revoltam
e superam o seu tempo, mostrando que é perfeitamente exato que o homem é produto de
seu produto: as estruturas de uma sociedade que se criou pelo trabalho humano o
definem, mas elas o definem na medida em que ele a supera constantemente pela sua
prática (SARTRE, 2002).
94
Tal questão também é abordada visceralmente em Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski: ―quando
todos os estudiosos no caso do assassinato do pai Karamázov tentavam mostrar, a partir de todas as leis
deterministas e regras possíveis da psicologia, que Michkín foi o real assassino do pai, que todos os
elementos que precederam o assassinato o indicavam, que Michkín já havia manifestado verbalmente sua
intenção etc. Ora, está aí o elemento de mistério e de incomensurabilidade no caráter humano, que não se
deixa resumir às leis de causalidade que poderiam ser aplicadas a um objeto natural‖ (OLIVEIRA, 2014,
p. 32).
157
Salientamos que Sartre, ao criticar os marxistas a respeito das tão aclamadas leis
da história ou leis universais, sofre crítica do filósofo marxista polonês Adam Schaff,
que afirma que a filosofia de um marxismo existencial, na Crítica da Razão Dialética, é
158
Adam Schaff acaba ―reproduzindo um determinismo tosco que nada tem de
marxista. A afirmação de Schaff só seria aceitável se ele mostrasse onde, na obra de
Sartre, se vê um apelo ao voluntarismo da liberdade absoluta‖ (VIANA, 2008, p. 153),
pois Sartre, como já comentado, se afasta de uma espécie de liberdade caprichosa e tece
sobre um conceito de liberdade que é sempre em situação. A relação entre o mundo já
aí constituído, as técnicas e as facticidades é o que o filósofo chama de situação
(SARTRE, 2002). Segundo Viana, Schaff não comprova sua afirmação e demonstra
apenas um preconceito infundado (VIANA, 2008). Isso também tem características
semelhantes à crítica que Dostoiévski fez em seu romance Memórias do Subsolo sobre a
visão científica determinista.
Cabe salientar que, para Sartre, não se trata, como sabido, de negar que o
marxismo tenha conseguido penetrar em certa dimensão da realidade, extraindo daí
certas verdades. O problema residiria na sua perspectiva unilateral, considerando o ser
humano de um ponto de vista muito limitado. Para o filósofo francês, certo marxismo
não desenvolveu uma crítica radical da visão mecanicista (SARTRE, 2002). Daí,
analogamente,
159
ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário. Mais
ainda: mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano,
mesmo que isto lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais
e da matemática, ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria
intencionalmente alguma inconveniência, apenas por ingratidão e
justamente para insistir na sua posição (DOSTOIÉVSKI, 2009a, p.
44)95.
Esses personagens dostoievskianos são uma espécie do que é o ser humano
sartreano diante das determinações sociais e ―que não se enquadra em nenhuma
classificação, e devido à qual todos os sistemas e teorias se desmancham continuamente,
com todos os diabos!‖ (DOSTOIÉVSKI, 2009a, p. 39).
95
Estamos cientes que Dostoiévski critica tudo e todos, inclusive o socialismo de sua época. Contudo,
como já frisamos em nota de rodapé, os personagens desse escritor é só a título de exemplo, de como
seria esse ―sujeito‖ sartreano.
96
O determinismo voltará mais uma vez a ser objeto de críticas em Crime e Castigo, outra obra de
Dostoiévski: ―eu te mostro o livro deles: eles defendem tudo isso porque para eles ‗o indivíduo é vítima
do seu meio‘ e nada mais! É a frase preferida! Daí se deduz diretamente que, caso se construa a sociedade
de maneira correta, todos os crimes desaparecerão de um só golpe, uma vez que não haverá contra o que
protestar e em um instante todos os homens se tornarão justos [...] Para eles não é a humanidade – que se
desenvolveu pela via histórica e viva até o fim – que vai finalmente converte-se numa sociedade [...] ao
contrário, é o sistema social que, saindo de alguma cabeça de matemático, vai imediatamente organizar
toda a sociedade [...] antes de qualquer processo vivo [...] É por isso que detestam o processo vivo da
vida: a alma viva é dispensável! [...] A alma viva não obedece à mecânica, a alma viva é desconfiada [...]
E mesmo que cheire a carniça, pode ser feita de borracha, mas aí não é viva, aí não tem vontade, aí é
escrava, incapaz de rebelar-se!‖ (DOSTOIÉVSKI, 2009b, pp. 265-266).
160
6.3 Dialética dogmática: marxismo idealista
A dialética dogmática nos leva, na visão de Sartre, também ao materialismo /
marxismo mecanicista, ou, com outras palavras, ao um marxismo que esmaga a
singularidade com seu determinismo universal. O existencialismo sartreano propõe,
então, resgatar esse sujeito na história, em toda a parte: no trabalho, em sua casa, na rua;
se opondo ao ―marxismo morto‖ com teorias a priori e universais, visões dogmáticas e
que só apreendem o ser humano na ideia (SARTRE, 2002). Na concepção de Sartre,
esse marxismo se transformou em uma espécie de idealismo absoluto:
Para Sartre, como percebido, o marxismo tem colocado os seus princípios como
dogmas, convertendo-se em um idealismo. O filósofo francês define o "marxismo
idealista" como aquele que teria como definição de ser humano algo análogo a um
produto passivo, uma soma de reflexos condicionados causados pelas condições
econômicas (SARTRE, 2002), ou seja, ao entender o ser humano como reflexo das ―leis
históricas universais‖, faz desse entendimento um uso que culmina
161
reprova esse marxismo por ter sido fisgado pelo idealismo (VIANA, 2008) que oferece
sempre uma teoria a priori e mecanicista, em detrimento da dialética crítica.
O filósofo francês entende que a atitude natural mecanicista trata o ser humano
equivalente a um objeto, onde este segue determinado padrão e suas reações são
definidas dentro de um conjunto delimitado, não havendo diferença entre as ações
humanas e as dos objetos, tudo se define em fenômenos (SARTRE, 2002).
Mas, é de presumir que tentam inverter o jogo aqui, pois frente às críticas rasas
contra o existencialismo sartreano, certos marxistas dessa natureza mecanicista acusam
o existencialismo de idealista. Para eles o que importa para o existencialismo é o velho
vale-tudo, cada um por si (um entendimento errôneo sobre a liberdade sartreana, ao
considerá-la como capricho), demonstrando que a filosofia existencial é uma ideia tão
antiga e mofada quanto a burguesia. Esse ponto é importante, porque muito se ouve
dizer, por parte de certos marxistas, que o existencialismo é tão mofado quanto a
burguesia, mas, além desse erro grosseiro, os marxistas não atentam a respeito de que a
teoria do reflexo, que eles mesmo pregam, segue a tradição que vinha desde os grandes
materialistas franceses do século XVIII, ou melhor, da concepção burguesa de ciência
que às vezes é mecanicista, às vezes é idealista e às vezes é duas coisas (SARTRE,
2002).
Para Sartre, essa visão mecanicista, apesar de certos marxistas a usarem como
influência para sua teoria, reforça uma ideologia burguesa por trás. Nas palavras do
filósofo:
162
Há mais uma questão a respeito disso que é o fato de que se o mecanicismo,
como característica fundamental de uma ciência, expressa o ponto de vista burguês,
como entender que marxistas busquem nela argumentos e provas do materialismo? É
inegável que a ciência seja materialista; mas também não a é a burguesia? (SILVA,
2017). A esse respeito diz Sartre:
97
Aqui, a infraestrutura compreende as forças e relações de produção, as relações humanas. A
superestrutura de uma sociedade inclui a cultura, instituições, estruturas de poder político, papel social,
rituais, ideologia, economia e o Estado.
163
conhecimento do mundo. Portanto, ―ignora-se e contempla na imobilidade total um
mundo em que o pensamento não existe‖ (SARTRE, 2002, p. 151).
Mas, Sartre não correu o risco de sustentar sua filosofia em um nada qualquer,
porque o Nada sartreano, no seu cerne, é um fluxo de consciência, é um ato nadificador
164
constante, que não pode ser capturado em si, no entanto pode ser recuperado, e provada
a sua existência pela vivência, experiência, em uma ação reflexiva ou cristalizadora,
senão, seria impossível cristalizar algo que não existe. O Nada, que é o Para-si, na
verdade, é um ato nadificador constante, e é pelo Para-si que o mundo se desvela
(SARTRE, 2012).
Com isso, Sartre quer dizer que o homem é uma construção que se faz mediante
a liberdade situada, a qual é ação ou escolha no mundo já aí constituído para criar seu
mundo humano singular. E esse ―se fazer‖, faz, ao mesmo tempo, o mundo,
conservando e superando o já dado. Esse fazer, que permite o projeto existencial e,
obviamente, sua finalidade, é a práxis. Por isso que o filósofo afirma que a razão
dialética revela-se – e fundamenta-se – na e pela práxis humana (SARTRE, 2002) ou na
e pela realidade humana. A razão dialética só faz sentido no mundo humano, pois o
mundo é humano, de fato; ―fora‖ dele só há conjecturas ou hipóteses, já que o ser
humano não pode ser neutro ou imparcial, ele é um ser que significa e ressignifica
(Intencionalidade) as coisas (Em-si) sempre (SARTRE, 2012). Assim,
165
O que Sartre afirma é que o ser humano é um ser significante; a razão dialética
revela-se por esses significantes na e pela práxis humana ou na e pela realidade humana.
É pela práxis ―sartreana‖, ou pela ação, ou pelo Para-si, que o homem significa as
coisas, em um mundo dado que ele supera dialeticamente (SARTRE, 2002). E,
considerando a história, esse humano não age sozinho (as liberdades se cruzam), pois,
como dito, o homem é, para si mesmo e para os outros, um ser significante. Assim, é no
―lugar‖ do Outro que se desenrola a cadeia significante: o Ser-Para-Outro (considerando
um fundo de muitos outros)98. É lá no Outro que se encontram os significantes que nos
representam para outros significantes: Eu-objeto ou Eu-sujeito, por exemplo (SARTRE,
2012). Dito de modo mais direto, o que Sartre pretende expressar com sua fórmula é a
tese de que nós, nossos projetos existenciais, nossas concepções sobre a vida, nossos
amores, nosso mundo ou nossa razão dialética, enfim, tudo o que ―decorre‖ de nós ou
da realidade humana, estaria na relação com Outro, com vários outros ou com a
sociedade e com a história (SARTRE, 2002).
98
O Ser-Para-Outro já foi discutido no capítulo ―O Para-Outro‖ deste trabalho.
166
tempo todo. Somos condenados a ser livres. Isso é a realidade humana sartreana
(SARTRE, 2012). Considerando o que foi dito até aqui, Sartre vai afirmar, então, que
99
A rigor, a ação é a própria liberdade (SARTRE, 2012).
167
que, sendo intencionalidade, mantém-se o tempo todo em relação com os seres que dela
diferem (Em-si): mesa, livro, caneta, linguagem, pensamento, sociedade, história etc.
Então, como não é possível dizer sobre a práxis sem o meio, não é possível dizer sobre
o Para-si sem o Em-si como fenômeno, por serem inseparáveis. Ao proferir que o meio
é constituído pela práxis, estamos no remetendo à facticidade do Para-si, que também o
condiciona e o aliena, e, ao mesmo tempo, constitui um mundo. Ao escolher, escolho os
meus limites e, ―nesse caso, precisamente, só tem alcance nos limites da experiência:
não encontro nas coisas senão aquilo que nelas coloquei‖ (SARTRE, 2012, p. 322).
Logo se pode manter a liberdade na alienação enquanto limites da experiência, porque a
facticidade é no e pelo projeto existencial, o qual é a escolha ontológica ou a
experiência vivida. Entende-se, por fim, que se ao escolher, escolho meus limites,
obviamente se compreende que não se pode encontrar outros limites para a liberdade
além dela mesma (SARTRE, 2012).
168
não uma dialética nessa afirmação, então, o que realmente isso significa? Essa escolha
mediada pela matéria é o que permite o ser humano fazer a história. Contudo, Sartre
salienta:
O fato de não haver uma unilateralidade a respeito das escolhas que têm como
―mediação‖ a matéria, é também devido ao entendimento de que
169
idealismo versus realismo, no sentido filosófico da questão, como já abordamos
(SARTRE, 2012).
Dessa forma, se a práxis é mediada pela matéria, o ser humano é essa própria
mediação, pois ele é intencionalidade, é um fluxo constante, sem dualidade, é esse
processo em si mesmo. Logo se entende que ―no par indissolúvel ‗matéria-
empreendimento humano‘, cada termo age como um transformador do outro‖
(SARTRE, 2002, p. 292). Então, a passividade do objeto determina circunstâncias
materiais que o sujeito ou o grupo superam pelo projeto existencial. Um exemplo disso
―é o que o primitivo apreende imediatamente quando teme e reverencia na flecha ou no
machado sua própria potência...‖ (SARTRE, 2002, p. 292).
Já tratamos sobre o fato sartreano de que o ser humano, o tempo todo, é um ser
que significa e ressignifica o mundo, o outro. Se eu sou responsável por meu ser-Para-
outro, então, quero dizer que estou escolhendo, em minha liberdade situada, ser o
significado perante o outro que é minha situação, ante o olhar do outro. Ou seja, ―o
170
homem é, para si mesmo e para os outros, um ser significante‖ (SARTRE, 2002, p.
115).
É o ser humano que significa a técnica, como também todo o mundo, apesar de
que é a técnica que indica a instrução de uso. Mas só usada se o sujeito souber do que se
trata, ou seja, a técnica depende da realidade humana e, esta, não pode ser determinada
de forma mecânica; até porque, o ser humano, de qualquer maneira, supera a técnica
para os seus fins: faz seu projeto existencial (SARTRE, 2002).
Aqui percebemos que a significação humana, como entendida por Sartre, é mais
uma crítica ao marxismo mecanicista. A significação, ao considerar o já dado, a técnica
ou o objeto, assume pela superação, um caráter de materialidade (SARTRE, 2002).
Além do mais, ao observarmos isso também por outro ângulo, ―significa que
uma infinidade de relações imprevisíveis se estabelece, por intermédio da prática social,
entre a matéria que absorve a práxis e as outras significações materializadas‖
171
(SARTRE, 2002, p. 272). Essa infinidade de relações junto às significações
materializadas, pela práxis, nos remete novamente à obra O Ser e o Nada, quando o
filósofo nos diz que ―o existente, com efeito, não pode se reduzir a uma série finita de
manifestações, porque cada uma delas é uma relação com um sujeito em perpétua
mudança‖ (SARTRE, 2012, p. 17). Ou seja, essa relação entre a matéria (ou o existente)
e a Práxis (ou o Para-si), vai permitir uma infinidade de relações imprevisíveis (com
outras palavras: relações não determinadas), e estas são as infinitas manifestações
intermediadas pela prática social.
100
―O vocábulo alemão ‗Abschattung‘ (literalmente = ‗isolamento‘) designa em Husserl a percepção do
objeto em determinada perspectiva ou perfil (não apenas no sentido configurativo) (N. do T.)‖ (SARTRE,
2012, p. 17).
172
humanas na exata medida em que os homens são coisas‖ (SARTRE, 2002, p. 290). O
que o filósofo pretende com esse discurso? Primeiro, as coisas são humanas, porque elas
existem na e pela realidade humana, onde o sujeito está o tempo todo dando significado
a elas, pois, lembrando, a consciência é intencionalidade e está sempre dando sentido ao
mundo; segundo, os homens são coisas, porque, no mesmo ponto da intencionalidade, o
Para-si procura coincidir consigo, tornar-se Em-si-Para-si, a consciência procura se
objetificar, se coisificar, se fundamentar, mas fracassa (SARTRE, 2012). Então, o ser
humano ao criar o sentido para o mundo, cria sentido para si mesmo. Poderemos
explicar isso com um exemplo contido em cada uma das duas obras sartreanas.
em certo sentido, sem dúvida, o homem é o único ser pelo qual pode
realizar-se uma destruição. Uma rachadura geológica, uma
tempestade, não destroem - ou, ao menos, não destroem diretamente:
apenas modificam a distribuição das massas de seres. Depois da
tempestade, não há menos que antes: há outra coisa. Até essa
expressão é imprópria, porque, para colocar a alteridade, falta um
testemunho capaz de reter de alguma maneira o passado e compará-lo
ao presente sob a forma do já não. Na ausência desse testemunho, há
ser, antes como depois da tempestade: isso é tudo. E se o ciclone pode
trazer a morte de seres vivos, esta morte não será destruição, a menos
se vivida como tal. Para haver destruição, é necessário primeiramente
uma relação entre o homem e o ser, quer dizer, uma transcendência; e,
101
Todavia não se trata aqui somente de juízo, como também de conduta pré-judicativa, ou seja, está
objetivamente no mundo. Trata-se de uma ―conduta pré-judicativa‖, isto é, ontológica, de interrogar o
mundo (SARTRE, 2012).
173
nos limites desta relação, que o homem apreenda um ser como
destrutível. (SARTRE, 2012, pp. 48-49).
Nesse outro exemplo, Sartre deixa clara a mesma tese mencionada na Crítica: de
que nada se pode falar se não há a realidade humana presente, pois o homem é o único
ser pelo qual pode acontecer uma ―destruição‖, ou seja, o qual pode significar as coisas
e significar a si mesmo. Em ambas as obras, o filósofo afirma que para haver
―destruição‖ é necessária, primeiramente, uma relação de transcendência entre o homem
e o ser, e, além disso, o homem precisa apreender um ser como destrutível (SARTRE,
2012).
Isso nos remete à obra O Ser e o Nada, na qual o filósofo francês tece sobre a
ação ou o ato, evitando o juízo de causa e efeito. Ou seja, considerando a afirmação de
que ―não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao
contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que condiciona minha liberdade‖
102
Na verdade, não podemos dizer nada a respeito, porém, aqui, é só a título de facilitação do
entendimento.
174
(SARTRE, 2012, p. 78), podemos entender o papel da Intencionalidade da consciência
como também não causal.
Mas, por que os motivos, como as ideias, são ineficientes? Porque não há leis da
consciência e sim consciência de leis (SARTRE, 2012). Aqui remetemos à implicação
suscitada: a intencionalidade da consciência. Então não podemos comentar sobre
determinismo psíquico ou psicológico. E mais do que isso:
175
para o ser humano) (SARTRE, 2012). Como já mencionamos, o que se tem,
basicamente, são as escolhas. Não há uma causa e efeito103.
Então, quando Jean-Paul Sartre (2002) afirma que não são as ideias que
modificam os homens, é porque essas modificações, essas ações, são a própria práxis
humana, que afirma que se a atividade prática por si só não é práxis, tampouco a
atividade teórica. Assim, a teoria não transforma o mundo, contudo ―pode contribuir
para sua transformação, mas para isso tem que sair de si mesma e, em primeiro lugar,
103
Para evitar me repetir, embora saiba que é quase impossível, encaminho o leitor ao tópico ―Ter, Fazer
e Ser – ser e fazer: a liberdade‖, deste trabalho.
176
tem que ser assimilada pelos que vão ocasionar com seus atos reais, efetivos tal
transformação‖ (VAZQUEZ, 1977, p. 207). Entendendo isso, entendemos melhor o fato
das ideias ou das teorias, por si só, não modificarem os sujeitos. Desse modo, como dito
pelo viés da Crítica da Razão Dialética, quando os sujeitos concebem tal modificação
na e pela práxis, é porque, agora de acordo com O Ser e o Nada, as ideias, como motivo,
―longe de determinar a ação, só aparece no e pelo projeto de uma ação‖ (SARTRE,
2012, p. 554).
177
Apesar de comentarmos anteriormente sobre o Para-si ou a consciência humana,
é preciso relembrar que o Para-si é transcendência, fuga, se volta para o futuro ou à
finalidade, ou, com outros termos, se volta para o que ainda não foi. Ele é também
negatividade ou negação (SARTRE, 2012). Entendido a peculiaridade da consciência
humana, essas características do Para-si se tornam bem evidentes na práxis:
178
recusa de existência‖ (SARTRE, 2012, p. 52). Assim, a decisão de lutar contra o
processo alienante ou aderir a esse processo pressupõe a liberdade humana que é
situada. O fazer a história e ser feito por ela são resultados das ações humanas no
mundo, em uma dialética. A alienação é a manutenção da situação determinista, a
negação dessa situação é a superação (SARTRE, 2002). Portanto,
Então, o sujeito, para Sartre, está sempre em vias de criar um futuro em função
dos possíveis que encontra no mundo que o rodeia. Ele age na situação, no que lhe
rodeia ou o que são os seus arredores, para um fim determinado. Assim, de acordo com
O Ser e o Nada, ―com a atitude, mostram-se os arredores, e, em última instância, o
mundo‖ (SARTRE, 2012, p. 480), mundo este que envolve os costumes, a sociedade, a
história, o já dado. Por isso, Sartre, na Crítica da Razão Dialética, afirma que ―o campo
dos possíveis é o alvo em direção ao qual o agente supera sua situação objetiva. E esse
campo, por sua vez, depende estreitamente da realidade social e histórica‖ (SARTRE,
2002, p. 78), já que a liberdade é sempre em situação (SARTRE, 2012).
180
reconhece em seu próprio produto, o seu Para-si, em busca de um fim para o seu
projeto, não concebe tal finalidade no tal produto, pois, este, é para o outro: o patrão ou
o consumidor, por exemplo; e isso corrobora com outra afirmação do mesmo filósofo
em sua outra obra, O Ser e o Nada: ―o trabalhador, qualquer que seja, experimenta no
trabalho seu ser-instrumento para o Outro; o trabalho, quando não destinado
estritamente aos fins próprios do trabalhador, é um modo de alienação‖ (SARTRE,
2012, p. 524).
O que se percebe, nessas duas obras sartreanas, é uma relação possível bastante
clara. Em ambas asseguram uma percepção sobre a alienação como uma espécie do
pensamento de Marx. Nas duas obras de Sartre se analisa o fato de que há alienação do
trabalhador relativamente ao produto de sua atividade, quando o produto não é
destinado aos seus fins.
181
contrário de qualquer outra coisa, um ser cuja existência precede a essência (SARTRE,
2012), ou seja, é na ação que o homem define sua essência. Assim, a ideia sartreana a
respeito da existência humana é também possível como uma análise existencialista do
conceito de Marx sobre o ser humano, pois Sartre dirá ainda que o ser humano não é o
que ele não propõe a fazer, sendo exatamente o que ele faz, como muito bem explicou
Marx sobre a relação de trabalho e a práxis, mas este na perspectiva do seu
materialismo histórico e aquele na perspectiva existencialista; cabe sempre destacar
isso. Respeitando as diferentes premissas de cada um desses filósofos, Marx, como
também Sartre, rejeita a concepção de uma natureza humana universal fundamentada
em uma essência imutável, ao entender que, para Marx, o ser humano se define pelo
trabalho e pela organização política do seu tempo histórico, pois ao produzir o seu
mundo humanizado, ele produz-se a si mesmo como humano. Como visto sobre a
práxis, a transformação da natureza é acompanhada da simultânea transformação da
―natureza‖ humana. O homem transforma a realidade objetiva ao mesmo tempo em que
molda a sua subjetividade. Ou seja, segundo Marx, ―toda a história não é mais que uma
transformação contínua da natureza humana‖ (MARX, 1985, p. 138)106. Não há uma
essência imutável, o ser humano está sempre se transformando.
106
Encontrada também na edição francesa: ―l'histoire tout entière n‘est qu'une transformation continue de
la nature humaine‖ (MARX; ENGELS, 1922, p. 179).
182
Mais um ponto importante é a outra análise sartreana possível do marxismo
ainda em O Ser e o Nada. Nessa obra fica claro que é a ação, o ato, que aparece como o
primeiro princípio do existencialismo, a partir da qual as demais noções se sobrepõem,
ou, o fato existencialista sartreano em ―que demanda o homem em movimento, esse
homem existindo para, possivelmente, ser‖ (BARROS, 2015, p. 258). Assim,
―perceberam os existencialistas que a reafirmação dos valores da existência é possível
unicamente na vida‖ (BARROS, 2015, p. 258). Com outras palavras, como afirmou
Marx, segundo Sartre: ―o fato humano é irredutível ao conhecimento, que ele deve ser
vivido‖ (SARTRE, 2002, p.26). Em suma, o fato humano deve ser vivido, ou, a
reafirmação dos valores da existência é possível unicamente na vida.
Aqui também percebemos, mais uma vez, que as obras O Ser e o Nada e Crítica
da Razão Dialética estão em sintonia, como do mesmo modo essas obras podem ser
sintonizadas com o pensamento marxiano.
183
significações que ele fornece, mas sim a partir do fato da existência das significações
que o Outro dá ao mundo (SARTRE, 2012). Uma analogia a respeito disso pode ser
realizada via ao pensamento do filósofo fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty, pois,
para este, por exemplo, é evidente que a língua possui certa quantidade de signos
fundamentais arbitrariamente ligados a significações já dadas. Entretanto, é a partir
dessas significações que a linguagem apreende a possibilidade de realizar infinitas
significações originais, isto é, a capacidade da linguagem em ser capaz de compor
qualquer significação nova a partir das antigas. Assim, quando escuto ou leio, as
palavras não vêm somente estabelecer significações já dadas (MERLEAU-PONTY,
2012), pois, usando os termos sartreanos, minha consciência nadifica ou transcende as
tais palavras, superando o já constituído, criando possibilidades na minha realidade
humana por onde brotam novos entendimentos de mundo (SARTRE, 2012).
Com efeito, essas significações que o Outro dá ao mundo não impedem a minha
liberdade. Se ―admitamos como fato fundamental da expressão um ultrapassamento do
significante pelo significado‖ (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 324), então, tomando
como referência a defesa merleau-pontyana da linguagem, é a partir dessas mesmas
significações pré-estabelecidas que detenho, ao ultrapassá-las ou ao superá-las, a
possibilidade de realizar infinitas significações inéditas (MERLEAU-PONTY, 2012).
Afinal, como afirma Sartre, ―o homem é, para si mesmo e para os outros, um ser
significante‖ (SARTRE, 2002, p. 115) que se ultrapassa (ou é fuga de si mesmo) e
ultrapassa o outro para um determinado fim ou à nova significação, e isso, de acordo
com Merleau-Ponty, é ―possível pela própria virtude do significante‖ (MERLEAU-
PONTY, 1960, p. 324) ou pela própria virtude do homem. Então, essas significações
caracterizam a facticidade que Sartre chama de ―existência-no-mundo-em-presença-dos-
outros‖, isto é, ―não somente estou arremessado frente ao existente em bruto: estou
jogado em um mundo operário, francês, lorenense ou sulista, que me oferece suas
significações sem que eu nada tenha feito para descobri-las‖ (SARTRE, 2012, p. 631).
184
relação à totalidade de meu ser-no-mundo (SARTRE, 2012). Ou seja, ao escolhermos
permitimos ―certa margem de contingência, imprevisibilidade e absurdo‖ (SARTRE,
2012, p. 592) e isso é também o que firma o fato de que a história não está em poder do
ser humano, ou de que a história me escapa, mas sem deixar de compreender que é ele
que a faz mesmo assim. E como isso é possível? Porque já sublinhamos que essa
liberdade requer algo dado107 (como a própria história ou a liberdade do outro que cruza
com a nossa), já que, ―em primeiro lugar, a liberdade só se concebe como nadificação
de algo dado (§ 5), e, na medida em que é negação interna e consciência, participa (§ 6)
da necessidade que prescreve a consciência de ser consciência de alguma coisa‖
(SARTRE, 2012, p. 592). Com outras palavras, a liberdade é sempre em situação.
Para clarear mais esse entendimento, no qual o ―Para-si surge em um mundo que
é mundo para outros Para-sis‖ (SARTRE, 2012, p. 638), vejamos o seguinte exemplo de
Sartre agora na Crítica da Razão Dialética:
107
Como já percebido, a palavra ―dado‖ também pode se referir ao mundo já constituído ou as
circunstâncias ―anteriores‖ estabelecidas em relação a uma realidade humana.
185
mesmo a querer (no sentido lato de escolher)‘. Em outros termos, o êxito não importa
em absoluto à liberdade‖ (SARTRE, 2012, p. 595) ou, com outras palavras, ao
escolhermos, permitimo-nos ―certa margem de contingência, imprevisibilidade e
absurdo‖ (SARTRE, 2012, p. 592), portanto, como já vimos, uma liberdade que
fracassa, é só uma liberdade fracassada (SARTRE, 2012). Isso também faz com que o
exemplo da Crítica da Razão Dialética postado aqui, sobre os movimentos provinciais,
retome o conceito de liberdade no O Ser e o Nada sem nenhuma contradição entre essas
duas obras.
186
projetando-nos em direção ao nosso possível para escapar às
contradições de nossa existência, acabamos por desvelá-las na medida
em que se revelam em nossa própria ação, embora esta seja mais rica
do que elas e nos leve a ter acesso a um mundo social em que novas
contradições nos conduzirão a novas condutas (SARTRE, 2002, p.
83).
As novas condutas são as novas escolhas. Os tais camponeses escolheram a paz
separadamente, e como as liberdades se cruzam, o mundo respondeu à eles: em
separado enfraqueceram sua classe e sua derrota voltou contra vocês quando os
proprietários fundiários, confiantes em sua força, negarem seus compromissos, ou seja,
exerceram suas liberdades. Assim, o conflito existencial se manifestou. Isto é, a
aparição do outro faz surgir na situação um aspecto não desejado por mim, do qual não
sou dono e ―que me escapa por princípio, posto que é para o outro‖ (SARTRE, 2012,
p.341). Isso ―significa que minha liberdade, escolhendo livremente, escolhe seus
limites‖ (SARTRE, 2012, p. 649), mas tais limites não são os limites, de fato, da minha
liberdade, mas sim a facticidade da minha escolha que, condenado a ser livre, exerço
novamente a minha liberdade sempre situada, projetando-me em direção ao meu
possível para escapar às contradições de minha existência. Tais limites, como
facticidade, é a situação. Dessa forma, o ser humano faz a história (SARTRE, 2012).
Não se nega que existem projetos ―anteriores‖, um mundo já dado, os quais podem não
serem previstos como resultados e que se apresentam como contradições. Cada um,
sejam os camponeses, sejam os proprietários fundiários, fazem o seu próprio projeto
(SARTRE, 2002).
O que é entendido é que há uma alienação, pois não se previu o resultado de uma
ação, mas os sujeitos fazem a história mesmo assim, já que, para tais camponeses havia
finalidades, agiram no mundo, tinha projetos próprios sendo feitos, só que os resultados
não são os esperados sempre, – e não são os esperados sempre até porque Sartre
combatia o Idealismo –, como esclarecido em outra oportunidade, por isso o sujeito está
o tempo todo fazendo novas escolhas, já que há os desdobramentos de suas ações
(SARTRE, 2002).
187
sob uma aparente, mas enganadora, aparência de tranquilidade e inércia‖ (SOARES;
EWALD, 2011, p. 13), como também algumas situações sociais se complementam,
como é o exemplo em que há momentos em que indivíduos, grupos e até uma sociedade
inteira poderiam operar numa só causa. Mas, não vamos abordar isso novamente, já que
nos leva aos temas como ―conflitos‖ de indivíduos na História, citado por Engels, e que,
mesmo conflitantes, podem arrastá-los a um bem comum, ou nos leva aos conceitos de
―Nós-objeto‖, ―Eu-objeto‖, dentro outros, em Sartre. Ou seja, partindo do que já foi
discutido neste texto a respeito dos conflitos pessoais, há também uma união por uma
causa, mostrando que a sociedade não só vive em guerra. O que entendemos é que, por
um lado, ―no próprio âmago da ação singular, é a presença do futuro como o que falta
[...] Por outro, é o futuro real e permanente que mantém e transforma, incessantemente,
a coletividade: quando as necessidades comuns implicam a criação de novos ofícios‖
(SARTRE, 2002, p. 78). Dito isso, há sim as necessidades em comuns ou a coletividade
na filosofia sartreana.
188
Isso corrobora com a obra O Ser e o Nada, na qual já discutimos tal tema, como ainda
corrobora com o pensamento marxiano, também trabalhado aqui no capítulo ―O
marxismo de Marx‖.
189
filósofo analisa e considera de fato a solidariedade, e que mesmo existindo conflitos,
sejam ontológicos ou antropológicos, é possível uma relação conciliatória, da mesma
forma que para Marx também há os conflitos, que no caso são sociológicos ou
antropológicos, no interior de um grupo e na história, e que, mesmo assim, ele ainda não
nega a existência das relações humanas de forma conciliatórias, como visto. No mais,
grosso modo, ―vale ressalvar, aqui, que conflito nem sempre é sinônimo de violência,
mas uma resolução inadequada de um conflito pode se transformar em um ato violento‖
(ALVES, 2009, p. 343).
108
A filósofa Simone de Beauvoir escreveu que ―Sartre pensava que qualquer situação podia ser
transcendida pelo esforço individual [...] Mas, ele reconheceu que circunstâncias podem, às vezes, roubar
nossa transcendência [...] Nesse caso, nenhuma salvação individual é possível, somente uma batalha
coletiva‖ (BEAUVOIR, 1985, p. 242 apud MORRIS, 2008, p. 203). Sartre também compôs em 1941,
antes mesmo de lançar O Ser e o Nada, um grupo da resistência chamado Socialismo e Liberdade e,
depois, se envolveu com o Partido Comunista Francês (COHEN-SOLAL, 2008), ou seja, ―combater o
racismo, o antissemitismo [...] e outras causas contra o mal no mundo não era algo capaz de ser exitoso
através da submissão à realização de conversões radicais [...] o objetivo tem de ser agora, através das
batalhas coletivas‖ (MORRIS, 2008, p. 203), batalhas coletivas como, no caso, o marxismo ou,
especialmente para o filósofo francês, o anarcossindicalismo. Dessa forma, isso reflete que ―em qualquer
caso, eu quero insistir, deveríamos admirar a disposição de Sartre de ‗pensar contra si mesmo‘ para atacar
preconceitos residuais em seu próprio pensamento inicial‖ (MORRIS, 2008, p. 203). Na verdade, mesmo
que Sartre recusasse para sempre à mediação de qualquer forma de organização, isso não seria o primeiro
caso na filosofia contemporânea, já que também ―o próprio Marx, desde 1850, divorciou-se
completamente de qualquer organização política, não se preparou para nenhum tipo de revolução
eminente‖ (ADMARDO et. al., 2005, p. 226). A este respeito veja ainda a carta de Marx à Freiligrath de
29 de fevereiro de 1869, onde Marx afirma que ―após a dissolução da Liga de Comunistas, em novembro
de 1852 não voltei jamais a pertencer e nem pretendo voltar a nenhuma sociedade secreta ou pública.
190
indispensável entre mim e mim mesmo‖ (SARTRE, 2012, p.290). Portanto, como uma
espécie de atuação de um psicólogo ou um psicanalista, o marxismo permitirá que o ser
humano tenha sempre a sua frente um ―leque‖ de possibilidades, que por sua vez se abre
em uma cadeia de variadas escolhas em cada uma de suas partes. Isso, porque tanto o
psicanalista como o marxismo também são o Outro que constitui a facticidade. E, deste
modo, se trata de uma situação em que se pode fazer escolhas. Até porque, se formos
mais evidentes, para Sartre, a capacidade de conceber a negação (ou interrogação) sobre
as coisas (o outro, o Em-si, o mundo já constituído etc.) constitui a liberdade de
imaginar outras possibilidades. O poder de negar é a possibilidade de escolher, é o
princípio da liberdade da consciência (de imaginar possibilidades) e da liberdade de
ação (o tentar realizá-las). Salientando que, a rigor, não existe essa separação que
expomos aqui, não há dualidade na filosofia sartreana, como a encontrada no
cartesianismo, nos fazendo firmar, então, que a consciência, a liberdade e a ação são
uma coisa só: o Para-si ou a Práxis (SARTRE, 2012).
Entendido isso, este tópico procura analisar a moral como uma relação do
indivíduo com o coletivo, em Sartre. Primeiro é preciso apreender que uma das
interpretações admissíveis no que tange a ―moral na obra sartreana‖ é a de Souza:
Portando, o Partido, neste sentido, inteiramente efêmero deixou de existir para mim há oito anos"
(Selected Correspondence 1846-1895. Nova Iorque, International Publisheres, 1942, pp. 146-147).
191
―a existência precede a essência, o fazer antecede o ser, de modo que nenhuma moral
universal abstrata (que está do lado do ser) pode realmente dar conta das decisões
concretas e pessoais‖ (SOUZA, 2014, p. 355).
109
Para evitarmos a simplificação sobre a liberdade, consultar novamente o capítulo ―A liberdade é
escolha e é sempre em situação‖ deste trabalho.
110
O Outro, como sabemos, constitui vários outros: uma pessoa, o psicanalista, um grupo, os marxistas, a
sociedade, a cultura etc. (SARTRE, 2012).
192
Portanto, a responsabilidade do sujeito não é pelo individual, mas pelo coletivo.
As decisões individuais são exemplo e ponto de partida para as decisões de toda a
humanidade. Ser isto ou aquilo é propor à humanidade que é bom ser isto ou aquilo.
―Não há liberdade do homem isolado; a liberdade está no todo social‖ (MAMAN, 2003,
p. 62). Em suma, ao agimos, ao existimos no mundo não só definimos a nós mesmo,
não só somos responsáveis em definir a nós mesmo, pois quando agimos no mundo
somos co-participes da definição da própria humanidade. Assim, o que há é sempre uma
renovada definição de homem a partir da vida de todos os homens. Nessa
responsabilidade intrínseca à escolha, Sartre encontra o elo entre o particular e o
universal. Então, entendemos como as condutas humanas a serem constituídas no
interior de um grupo surgem enquanto forma dos seres humanos agirem no mundo e nas
relações que os unem (SARTRE, 1978), além disso – como já vimos e veremos com
outro olhar – no grupo, cada um é também um terceiro (outro situacional), e esse
terceiro fortalece, dialeticamente, a existência do próprio grupo (SARTRE, 2002).
Mas, é claro que, segundo Sartre, a ontologia não pode formular princípios
morais (SARTRE, 2012)111. Com outras palavras,
193
assumisse suas responsabilidades em face de uma realidade humana
em situação (SARTRE, 2012, p. 763).
O que não quer dizer que o que tecemos até agora, sobre a moral, não faça mais
sentido. Não é disso que se trata aqui. Na verdade, o que queremos deixar claro é o fato,
firmado pelo próprio filósofo, de que do ponto de vista da ontologia nada disso,
enquanto moral, é possível. A existência precede a essência. O homem, em princípio,
não é nem bom nem mau. Primeiro o homem existe (SARTRE, 2012), isto é,
Porém, é preciso tomar cuidado para não abarcar uma interpretação superficial e
quase de ―fé‖ de que uma tomada de consciência moral seja uma larga medida
voluntarista de cada indivíduo para consigo mesmo e para com os outros. Não é assim.
Na verdade, essa intersubjetividade que leva em conta o outro e o compromisso com a
situação por ele significada, – na qual estão implicadas outras consciências também
livres, mas também imersas em um plano ôntico (a ordem do dado concreto da
experiência) –, é constituída por pessoas que estão presentes em sua temporalidade de
forma concreta, carregando consigo seu caráter de alteridade, e não como uma
194
existência abstrata. ―Nesse sentido, estar no mundo em presença de outros, significa
para o homem comprometer-se em um mundo cujas significações não foram
determinadas por ele‖ (CARVALHO, 2004, p. 236). Por isso, Sartre clama a cada
indivíduo a responsabilidade, pois por ser livre, ter autonomia de escolha, o ser humano
deve sempre e em todas as ocasiões assumir os desdobramentos de seus atos perante o
mundo, perante o outro e a si mesmo, já que a realidade humana se caracteriza pelo
fazer muito mais do que pelo ser.
É por o sujeito ser mesmo, antes de tudo, uma escolha, que ele angustia-se ante a
responsabilidade que pesa sobre seus ombros, pois é preciso escolher sempre, e, deste
modo, faz emergir uma escala de valores, um código moral determinado. Por isso que
quando foi comentado aqui que é a partir dessa liberdade que o homem se torna
responsável por todos os outros homens, é para dizer que isto não é uma imposição
arbitrária, mas um desdobramento lógico das escolhas de cada indivíduo. No entanto, –
já que é sabido que a liberdade que o filósofo comenta é sempre situada –, por mais que
nossas escolhas e a atribuição de significados e valores sejam livres, ―elas envolvem
diretamente os outros, pois usamos o mesmo ambiente e a partir deste encontro com o
outro é que somos chamados a responsabilidade‖ (BUENO, 2007, p. 106). Mas, mesmo
assim, é possível ao ser humano não ser responsável? Isso não é possível, pois, também
―essa decisão é humana e dela terei inteira responsabilidade‖ (LEOPOLDO E SILVA,
2004b, p. 59), isto é, o sujeito pode sempre optar por uma vida autêntica ou ainda
permanecer na má-fé. Então, o que precisa ser considerado é que seja qual for a escolha,
é a sua escolha. Além disso, para Sartre, não ser responsável seria o mesmo que não ser
livre (SARTRE, 2012).
Com efeito, esse projeto escolhido pelo sujeito não é um mero capricho ou
voluntarismo arbitrário, pois o ser humano nasce já em um mundo constituído, já existe
um mundo dado por outros com as suas significações, as suas regras e as suas morais,
ou seja, estamos considerando as facticidades internas e externas. O ―Para-si surge em
um mundo que é mundo para outros Para-sis‖ (SARTRE, 2012, p. 638). Há um mundo
objetivo que o homem ao nascer / existir já o encontra como constituído por Outros ou
por outras práxis: a história (SARTRE, 2002). Deste modo, apenas será possível falar de
critérios de bem e de mal, ou sobre a moral, dentro de uma perspectiva histórica e por
meio de referências temporais. O homem em contato com os outros, permitirá conceber
o empreendimento moral apenas realizando-se no seio de um compromisso concreto no
195
mundo, por uma moral que assuma as condições reais da ação. Ou seja, ―a criação moral
não poderá ser independente das circunstâncias históricas e deverá visar um fim
concreto‖ (MOURA, 2010, p. 101). Por isso, as circunstâncias históricas, o Outro,
enfim, as facticidades, longe de serem impedimentos, são o que permitem, efetivamente,
a eleição de valores e, portanto, o advento da moralidade. Como escreve Sartre: ―sem
mundo, não há valor. [...] É preciso estar separado de si mesmo por um mundo, é
preciso querer, é preciso ser limitado para que o problema moral exista‖ (SARTRE,
1983, p. 138). Devido a isso, a liberdade situada, a responsabilidade e a moral vinculam
condutas particulares a uma regulação universal. Essa dialética que vinculam condutas
particularidades a uma regulação universal também já foi descrita aqui, de outra forma,
como um processo em que nós ―interiorizamos o exterior‖ e modificamos este pela
―exteriorização‖ do que foi ―interiorizado‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2015). Isso
acontece, diz Sartre, porque a escolha subjetiva e a determinação objetiva não se
caracterizam como visões mutuamente exclusivas, mas sim uma relação de
reciprocidade que vem a ser propriamente a dialética do subjetivo-objetivo (SARTRE,
2012)112. Essa questão é importante para o tema sobre a moral que estamos expondo
aqui, porque
uma teoria moral que pretenda dar conta das condições históricas da
ação, e não apenas de suas condições formais ou transcendentais, tem
que considerar que a realidade do sujeito, agente moral, se constrói na
tensão dialética experimentada entre a subjetivação e a objetivação
(LEOPOLDO E SILVA, 2010, p. 272).
E, por isso, podemos dizer que a compreensão da tal condição histórica coincide
com a ―autêntica compreensão da condição ética do agir histórico ou do sujeito
histórico‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2010, p. 272).
112
Como dito com outras palavras a respeito do subjetivo e objetivo em Sartre: ―a separação é apenas
metodológica porque a apreensão real da objetividade da história somente se faz pela compreensão das
mediações subjetivas; e a compreensão do sujeito histórico somente se faz pela integração das mediações
objetivas. Nas tensões que surgem dessa relação é que se constrói o perfil ético da práxis‖ (LEOPOLDO
E SILVA, 2010, p. 273).
196
afasta-se uma ideia superficial de um gesto de vontade soberana dos indivíduos como
um voluntarismo idealista, no qual a experiência histórica e seu sentido poderiam ser
transformados, pois, claro ficou que quando o sujeito age e inventa o valor, isto é, cria a
norma, ele o faz, ―como sabemos, enquanto, também e ao mesmo tempo, se coloca sob
as determinações objetivas que interiorizou‖ (LEOPOLDO E SILVA, 2010, p. 273).
Sabido que essas determinações objetivas são a história, a cultura, o mundo, o Outro,
etc.
Lembramos bem que o Outro me diz quem eu sou lá fora, como eu,
reciprocamente, lhe digo quem ele é. Eu dependo do Outro que depende de mim
(SARTRE, 2012), ou seja, ―para obter qualquer verdade sobre mim é necessário que eu
passe pelo outro‖ (SARTRE, 2010, p. 47). Desse modo, não posso negar a existência do
outro, pois o que seria de meu ser sem ele?113 E aqui há um ponto relevante também, já
que ao exteriorizar a objetividade que interiorizei, ―antes‖ eu interiorizei também o
Outro que é o meu fundamento, que me permite ser um humano, então, ao inventar as
normas, as faço exteriorizando de forma que implica esse Outro (ou vários Outros), pois
ele é importante para minha existência, como já sabemos. Da mesma maneira, esse
Outro também age de forma a se implicar comigo, já que eu sou do mesmo modo um
Outro para ele, sendo igualmente importante para sua existência. Portanto, começo
―com o Outro-como-sujeito‖ (MORRIS, 2008, p. 162). Logo, essa dialética da
intersubjetividade, que conceitua o ―singular-universal‖ e o reconhecimento do Outro,
permite haver consciências conciliatórias usando o mesmo ambiente: um coletivo, por
exemplo114. Com efeito, essa nossa liberdade depende da liberdade dos outros e a
liberdade dos outros depende da nossa. Podemos, então, dizer que a liberdade ―deve‖
ser recíproca, na qual, a objetivação do valor e da moral acontece na exata medida em
que ocorre a reciprocidade (OLIVEIRA, 2013). O que se apreende é que para haver a
moral é preciso que o ser humano construa seus próprios valores morais como escolhas
situadas ―bem definidas que possam ser apresentadas a todos os outros homens como
possibilidades de realização por intermédio de uma escolha livre que confere o
113
O outro me humaniza: ―talvez não fosse impossível conceber um Para-si totalmente livre de todo Para-
outro [...] Só que esse Para-si não seria ‗homem‘‖ (SARTRE, 2012, p.361).
114
Isso não quer dizer que os projetos existenciais terão sempre pontos em comuns, há a enorme
possibilidade de existir conflitos. Inclusive, sobre os tais conflitos, Sartre já teceu bastante, como já
sabemos.
197
significado existencial e autêntico para aquilo que se escolhe, mesmo que inventado por
outrem‖ (PEREIRA, 2015, p.91).
198
circunstâncias a escolher sua moral no mundo já constituído, jamais ele deixa de
escolher dentre vários valores já dado, assim, podemos cogitar logicamente que outros
sujeitos, imerso na mesma situação de escassez ou falta, podem vir a escolher uma
moral semelhante à desse outrem, surgindo sujeitos que compartilham desse mesmo
valor, ou seja, surgindo o grupo. Precisamos entender isso um pouco mais: até o
momento abrangemos que, emersos em uma mesma situação ou frente à escassez, os
sujeitos são ―obrigados‖ a escolherem valores (já que nunca poderão deixar de
escolher), havendo condições de que mais de um sujeito compartilhe dos mesmos
valores, ou, dos mesmos princípios morais. Com efeito, cada sujeito identifica-se um
com o outro perante a escassez que, agora como grupo, procuram superá-la, mas não
porque a escassez é a causa desta identificação: não foi a escassez que determinou a
formação de um grupo para superá-la, foram as escolhas individuais que, encontrando
nesta situação um fim comum, constituiu a escassez como condição a ser superada. E
somando a isso, como dito, está também a importância do outro para a existência
humana, isto é, o sujeito agindo com base em valores reconhecendo a existência do
outro e a cultura onde está inserido (SARTRE, 2002).
199
superação de uma situação de forma original. Agora, devido a essa negação, há novas
finalidades que não mais aquelas já colocadas ou já dadas. Constata-se, nesse caso, uma
total subversão do que Sartre designa de situação. A subversão estrutura-se como ação.
O grupo subversivo se forma. Em suma, "ao homem é dado acusar pressões dos valores;
ao homem é dado escolher e agir com base em valores" (SILVA, 1995, p. 39). Então, a
base da formação de um grupo é uma dialética entre a escassez, o Outro, o mundo já
valorado ou constituído, a superação e a negação da situação. Salientando também que,
mesmo sendo um grupo, a liberdade individual continua, pois, apesar de existir uma
finalidade em comum, cada um vai dar seu sentido próprio à escolha da tal finalidade
em comum115.
Assim, antes de ser uma espécie de moral ―mística‖ ou idealista, Sartre, neste
sentido, coloca os princípios morais da responsabilidade, do compromisso e do
engajamento como ―conseqüências‖ lógicas do existencialismo sartreano pelos quais
apresenta toda realidade humana (OLIVEIRA, 2013). Dessa forma, mais uma vez,
temos também em Sartre um sujeito social e histórico sem perder sua liberdade em
situação.
Porém, por exemplo, não temos garantia de que certa revolução social aconteça.
Somente há condição para que possa acontecê-la. Não estamos mais no pensamento
determinista mecanicista, o qual é tão criticado por Sartre. Vejamos também que Marx é
reconhecido por fazer teleologia, por certos comentadores, mas, mesmo assim, uma das
interpretações possíveis é a de Admardo Serafim de Oliveira: o próprio Marx ―indica as
possibilidades históricas da revolução, mas nunca garante o seu sucesso‖ (ADMARDO
et. al., 2005, p. 226). Ainda a respeito disso, além do que foi proferido agora sobre
Marx, podemos nos remeter ao legado dos frankfurtianos116. Adorno e Horkheimer
tiveram o intuito de mostrar que soluções sobre a emancipação humana têm um
problema comum em boa parte da história da filosofia contemporânea: a teleologia. É
na segunda fase117 do pensamento de Adorno e Horkheimer, sobretudo a partir da
115
Consultar o capítulo ―O Ser-com (Mitsein) e o Nós‖, deste trabalho. Nesse capítulo há a discussão e os
exemplos de como um coletivo/grupo tem, em seu cerne, ainda a liberdade.
116
Referente à Escola de Frankfurt, uma escola de teoria social interdisciplinar neomarxista.
117
O autor Vital Ataíde da Silva divide o pensamento dos frankfurtianos em três fases possíveis, sendo
uma fase inicial em que tais filósofos ―estavam ligados à idéia de uma possível emancipação através de
uma revolução proletária. Na segunda, há uma descrença na possibilidade de transformação. Seus textos
são do período do exílio americano. A terceira fase é marcada pela crítica do ‗mundo administrado‘, em
200
publicação em conjunto da obra Dialética do Esclarecimento que temos uma visão
pessimista118: ―a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano,
está se afundando em uma nova espécie de barbárie‖ (ADORNO; HORKHEIMER,
1985, p. 11)119. Portanto, ―suas obras são marcadas por uma linha crítica e pessimista
em relação ao processo de emancipação do sujeito‖ (OLIVEIRA; FERNANDES, 2011,
p. 2)120. Isso mostra que uma certeza absoluta ou coisa que o valha, como teleologia ou
mecanicismo, sobre as ações humanas parece ingênua, seja na ciência, como a
psicologia e a sociologia, seja na filosofia121. Ainda a respeito disso, Luciano Donizetti
da Silva descreve tal ingenuidade de forma mais opositora, chamando-a de utópica da
mesma forma que é, segundo ele, o paraíso cristão. ―É, por exemplo, o caso do homem
pobre bem-aventurado (BÍBLIA, 1993, Lc 6:20) que, porque sofre fome, frio, doença,
etc., é feliz e será merecedor do paraíso cristão; e esse homem nada precisa fazer, visto
Jesus já tê-lo salvado‖ (SILVA, 2017, p. 229). Donizetti da Silva continua também
tecendo a respeito disso, só que agora fazendo comparações com o comunismo: ―ainda
que o Reino de Deus [...] sejam colocados como algo a ser alcançado, há que se
considerar que nesse caso não caberá ao homem escolher seu futuro: assim como a
história da luta de classes levará, irremediavelmente, ao comunismo‖ (SILVA, 2017, p.
231), como pensam certos marxistas, especialmente os mecanicistas e os teleológicos.
Segundo Donizetti da Silva, a realização dessas utopias calcadas no mito exigirá sempre
a ação de uma força estrangeira (Jesus, leis dialéticas, leis da história, leis da natureza,
mão invisível etc.), e não importa o que se faça, o resultado será sempre o mesmo. O
homem que confia em uma mão invisível não há nada a fazer tanto quanto também nada
pode aquele homem que deixa a cargo da lei da natureza ou da lei da dialética decidir o
que sobressaem a critica cultural e da educação e a busca de saídas, consideradas por seus críticos como
aporias‖ (SILVA, 2007, p.8).
118
Esse pessimismo advém do pensamento de que a razão que se queria emancipadora foi, desde a época
de Homero, uma razão que privilegiava a dominação da natureza e, por fim, do homem pelo homem
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
119
―o sonho de uma humanidade emancipada e ‗iluminada‘ transformou-se em uma nova barbárie‖
(SILVA, 2007, p.11).
120
Cabe salientar, como sabido, que a expressão ―pessimista‖, pelo viés sartreano, é já se situar em
mundo moral, é algo que só pode vir depois da reflexão ontológica.
121
Acerca da ingenuidade de uma perspectiva teleológica partindo de Marx, para certos comentadores, e
de Adorno/Horkheimer deve ter como base: apesar do necessário desenvolvimento das contradições
capitalistas tal regime não desapareceu – ao contrário, ele, aliando-se aos aparatos tecnológicos,
solidificou-se. Ou melhor, é importante notar como as angústias intelectuais de Adorno e Horkheimer se
realizaram através das perguntas que visaram responder em suas obras. ―Segundo Domingues (2004,
p.73), a principal questão a ser respondida para a Escola de Frankfurt, seria ‗o porquê da não-ocorrência
da revolução proletária socialista nos países avançados do Ocidente‘‖ (MACHADO, 2015, p. 71).
201
seu futuro (SILVA, 2017). Certo marxismo que retira um Deus da sua teoria, que queira
distinguir-se do modelo cristão, tem o fato de que, em nome da razão, a utopia ainda
realiza o mundo do homem racional. A exigência que diz respeito a uma razão em
detrimento de um Deus, ―faz do homem utopiense já um Deus; ou ao menos semideus,
pois somente assim a Utopia pode ser verossímil‖ (SILVA, 2017, p. 232).
202
a utopia [...] de todos os homens que negaram a liberdade em favor de
algum modelo de mundo e homem, repete-se nessa ciência utópica
que, por suas leis, vai realizar a história humana; a filosofia da
liberdade, ao contrário, não oferece modelos, não pode antevê-los, não
pretende controlar o que virá – saber do futuro não é muito diferente
de prometer que, no fim da história, o Reino dos Céus ou o Paraíso
Platônico serão realizados (SILVA, 2017, p. 239).
Então, segundo Donizetti da Silva, os outros tantos preferem o paraíso
imaginado a alguma livre realização de si, e ―preferem entregar sua liberdade na mão do
primeiro líder – religioso ou político – que, com mais eficiência, o aliviarão de si
mesmo (e de sua culpa)‖ (SILVA, 2017, p. 241). Mas, a liberdade quando engajada na
história revela que o homem é livre e responsável; revela mais: ―cada homem é livre em
sua situação, não importa qual seja ela. A ética, o futuro humano, é um caminho que se
trilha, e não a reificação do próprio caminho‖ (SILVA, 2017, p. 241).
Só que se uma possível revolução pode existir, ela é constituída pelos homens
em suas relações de modo intersubjetivo e pela responsabilidade que é intrínseca à
liberdade em cada um, visando um remanejamento em uma situação de necessidade que
o levarão à práxis revolucionária (SARTRE, 2002).
122
No sentido de tentar escapar dos assuntos que causam desconforto aos seus interesses, desviando o
foco das atenções do assunto principal (assunto ingrato ao sujeito) para outro assunto menos polêmico ao
mesmo, ou mais polêmico para outrem. Enfim, trata-se de manobra ou estratégia usada para desviar a
atenção do que está em discussão.
203
E, como dito, se eu escolho superar um dado, isso não é uma escolha arbitrária.
Como possibilidades, eu me reconheço na e pela situação perante o Outro e o mundo já
dado. Fica claro que a escolha somente é possível a partir da situação histórica e da
relação intersubjetiva. Portanto, diante da liberdade, o julgamento moral se torna
possível para Sartre, "justamente porque as escolhas se dão em face dos outros, ato no
qual o homem atribui sentido a si mesmo e também aos outros" (ALMEIDA, 2011, p.
50). Por isso, a moral deve ser histórica, ou seja, ―deve encontrar o universal na história
e devolvê-lo à história‖ (ALMEIDA, 2011, p. 49).
204
respeito de nós mesmos. Isso, à luz de Sartre, é o que o marxismo propôs a fazer: sendo
esse Outro como mediador, com sua ação de estar ―iluminando a ação do proletariado
pelo conhecimento do processo capitalista e da realidade objetiva dos trabalhadores‖
(SARTRE, 2002, p. 75).
Como já observado, Sartre destaca que o ser humano não é somente um Ser-
Para-Outro, é também um Ser-Para-Muitos-Outros. É um Ser-Em-Sociedade. Logo se
faz valer que esse nosso Ser-Para-Muitos-Outros é sustentado, em última análise, pelo
cuidado que nos engaja a nos preocupar conosco mesmos, assumindo o projeto de
atualizar nossas possibilidades existenciais, bem como nos leva a ajudar os outros a
fazerem o mesmo, dando sentido às coisas, na medida em que as inserimos, enquanto
instrumentos, a uma das dimensões de nosso projeto existencial. É a angústia do homem
ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe
ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si
próprio, a humanidade inteira. Assim, "a nossa responsabilidade é muito maior do que
poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade" (SARTRE, 1978, p. 219).
Em uma síntese sobre o que foi discutido até aqui a respeito da moral, é que
Sartre tenta evitar a sistematização do conceito de moral; na verdade, não há conceito,
205
uma teoria, apesar de que, como dito, de certa forma, a tal moral permeia a sua filosofia,
porque o filósofo, em última análise, mostrará que a moral é um empreendimento
individual, subjetivo e histórico que se dirige a um universal,
124
Como dito, a liberdade não suprime a relatividade de cada época: história/cultura.
125
“Longe de pensar em sua filosofia como voltada para um subjetivismo que levaria ao niilismo ou
individualismo exacerbado, a filosofia de Sartre representa [...] uma filosofia de ação e uma filosofia que
tem imiscuída em todos os seus princípios e fundamentos a questão da responsabilidade frente ao outro‖
(OLIVEIRA, 2010, p. 11).
206
Sartre pensa as dicotomias de modo a não separar os termos de forma concreta, evita um
dualismo:
207
Portanto, enfim, se o Outro é o meu fundamento, se sou Ser-Para-Outro, isso
implica repensar, escolher, agir, moralizar tendo consciência de mim mesmo e dos
outros envolvidos, isto é, ao escolher uma moral é também uma espécie de condição de
atribuir os sentidos pessoais e, parafraseando Silvia Lane, confrontá-los ―com as
conseqüências geradas pela atividade desenvolvida pelo grupo social‖ (LANE, 1991,
pp. 16-17)128, confrontá-los com a facticidade, e, com efeito, ―se processa a consciência
do indivíduo, que é indissociável enquanto de si e social‖ (LANE, 1991, p. 17). Em
outras palavras, como disse o próprio Sartre, ―podemos, no entanto, julgar moralmente,
porque, como já disse, é em face dos outros que escolhemos e nos escolhemos a nós‖
(SARTRE, 1978, p.19).
Aqui também não deixa de ser curioso que uma das frases mais conhecidas de
Sartre tenha sido responsável por colocar o Outro em uma dimensão de pura
radicalidade: ―o inferno são os outros‖. ―Esta famosa frase, escrita na peça Entre quatro
paredes, é radical porque [...] aquele [sujeito] não pode escapar – mesmo se for,
simplesmente, para negá-la – da alteridade e do encontro com o outro‖ (LIMA, 2011, p.
244).
Como, então, pensar uma possível moral em Sartre sem a implicação com o
Outro? Para nós, isso não nos parece admissível. Como visto aqui, ponderar o sujeito
diante de uma presumível moral sartreana exige que o outro esteja implicado nela.
128
Cabe salientar que ―consequências‖, aqui, não são para nós no sentido de causa e efeito. Podemos,
então, entender esse termo como uma espécie de desdobramento, já que causalidade, como existente no
método científico natural (ou enquanto ideias cartesianas), não faz sentido para a filosofia sartreana, como
sabido.
208
6.8 A formação dos grupos sociais na Crítica da Razão Dialética
Apesar de que este capítulo se remete à formação de grupo na Crítica da Razão
Dialética, estaremos, na medida do possível, nos remetendo à formação de grupo no O
Ser e o Nada, para demonstrarmos – em diferentes perspectivas admissíveis – mais uma
vez a continuidade temática entre essas obras, já que isso é também objetivo deste
trabalho.
A partir desta relação do ser humano com o mundo já dado é que se formam os
grupos sociais. Assim, como o grupo se constitui, mais precisamente? Inicialmente,
209
não forma basicamente uma comunidade (SARTRE, 2002), quando muito provocará
egoísmo, individualismo, desesperos particulares ou uma experiência da necessidade de
forma individual.
Não é a escassez, por si só, que fará com que os indivíduos em uma situação se
reconheçam como comunidade. Já entendemos que o objeto não pode absorver a ação
humana. Como já foi compreendido também que, por ser a consciência a responsável
por conceber uma situação futura (finalidade) e conceber o presente como insuportável,
não podemos pensar que o Em-si (a escassez, o objeto comum, a fome, o mundo já
constituído etc.) seja capaz de impor ou operar o agir e a mudança. Não é o estado das
coisas que determina mecanicamente a consciência, mas a consciência que capta, julga e
129
Veremos a importância da escassez na formação do grupo.
210
modifica as coisas do mundo, em uma dialética (SARTRE, 2012). Em suma, o Em-si
não pode levar/causar, por si, o Para-si. Mas, embora seja verdade para Sartre que o
Em-si por si mesmo não pode determinar o Para-si a agir, não há, neste exemplo, a
rigor, nenhum Em-si por si mesmo. Quando um indivíduo está perante a escassez, o que
ele está apreendendo não é um ―Em-si puro‖, e sim uma amálgama de Em-si e Para-si à
qual Sartre denomina situação, como já visto aqui. A situação pode sim (e
frequentemente acontece) ―levar‖ o indivíduo à ação. Na realidade, ela é o único
contexto possível da ação; não existe ação fora da situação e não existe situação sem
ação, pois não há uma causa e efeito na filosofia sartreana: situação e ação são
contemporâneas; ou, trazendo a discussão mais para âmbito do exemplo: não há uma
formação de comunidade ―ex nihilo‖. Todo ato é situado (BARROS, 2017).
Nesse caso, cada indivíduo precisa transcender tal objeto à ideia de comunidade.
Mas, de acordo com O Ser e O Nada, a ―transcendência do objeto se baseia na
necessidade‖ (SARTRE, 2012, p. 17), ou seja, se baseia na escassez em um contexto ou
situação. De acordo com os discursos já presentes em O Ser e o Nada, o fundamento da
ação humana é encontrado na necessidade, a qual é condição para que o sujeito a
instaure como a sua relação com a objetividade. ―Sendo assim, a necessidade é
característica específica do homem, marcando tanto a sua relação com as coisas quanto
com os Outros, numa reciprocidade‖ (BETTONI, 2001, p. 67), ou, nas palavras do
filósofo na Crítica da Razão Dialética, "o grupo se constitui a partir de uma necessidade
ou de um perigo comum e se define pelo objetivo comum que determina sua práxis
comum [...]" (SARTRE, 2002, p. 452). Por isso que, além da necessidade e da
consciência da mesma, é necessário também querer mudar a situação e, no caso, se
reconhecer como comunidade, o que nos leva ao parágrafo anterior que diz respeito à
relação original consigo mesmo, com o mundo e com o Outro.
211
No início dizemos que uma escassez pode ser fundamento para conflitos (como
individualismo ou desesperos particulares) e não necessariamente um reconhecimento
como uma comunidade ou grupo por partes dos indivíduos envolvidos. Agora, tecemos
que a mesma também é fundamento para formação de um grupo. O que queremos
explicar é que as relações humanas, enquanto realidades concretas, muitas vezes se
caracterizam como antagônicas e negativas, transcorridas pela escassez objetiva de bens
que é condição da hostilidade entre os sujeitos. Mas, a escassez também é fundamento
para toda formação de grupos. Pela escassez é possível encontrar condição de toda e
qualquer relação social conflituosa, como também de reciprocidade ou constituição de
grupos. O que se entende é que essa relação entre a escassez e a Práxis (ou o Para-si) vai
permitir uma infinidade de relações imprevisíveis (com outras palavras: relações não
determinadas), e estas são as infinitas manifestações intermediadas pela prática social
ou pelas relações humanas (SARTRE, 2002).
Sartre deixa claro que toda essa dialética, que envolve a escassez, ocorre no
campo do prático-inerte, um mundo objetivo que o homem, ao nascer / existir, já o
encontra como constituído por Outros ou por outras práxis (SARTRE, 2002). O prático-
inerte é uma declaração inserida por Sartre para significar as cristalizações da
experiência passada do indivíduo e da sociedade que se apresenta em formas sociais.
Assim, o prático-inerte constitui uma "ameaça" que ―sobrevoa‖ constantemente todas as
ações humanas, pois o projeto existencial do outro pode entrar em conflito com o meu
projeto: as liberdades se cruzam. Na verdade, esse prático-inerte é uma facticidade, e
como toda facticidade é fundamento para liberdade. Para que o ser humano ―construa‖
sua essência, ou exerça sua liberdade, ele tem necessidade do prático-inerte que, ao
mesmo tempo em que se mostra como limite a sua ação, age como força para uma
finalidade, ou seja, uma situação em que o sujeito tem que superar para um fim
(SARTRE, 2002). Estamos nos estabelecendo aqui na liberdade situada.
212
sujeitos reunidos num conjunto mediando e sendo mediado pela matéria, pelas as
escolhas morais em comum e pelo o outro, este também como o Terceiro.
Dessa forma, há, dentre outros, os seguintes conceitos sartreanos a respeito dos
grupos: série e serialidade, grupo em fusão, juramento e organização. Vamos discorrer,
em resumo, sobre cada um desses.
213
4) Juramento: no grupo há o risco permanente de nova dispersão (volta à série).
Surge, então, o "juramento", caracterizando-se como compromisso com o grupo
(RUBINI, 1999). É a liberdade de cada um comprometida com a permanência
no grupo, isto é, ―quando a liberdade faz-se práxis comum para servir de
fundamento à permanência do grupo, produzindo por si mesma e na
reciprocidade mediada sua própria inércia, esse novo estatuto chama-se
juramento‖ (SARTRE, 2002, p. 514);
Indo além desses conceitos, de acordo com O Ser e o Nada, o que experimento é
um ser-fora, no qual estou organizado com o Outro, em solidariedade com o Outro. ―E,
na medida em que assumo por princípio meu ser-fora para o Terceiro, devo assumir
igualmente o ser-fora do Outro; o que assumo é a comunidade de equivalência pela qual
existo comprometido em uma forma que, tal como o Outro, ajudo a constituir‖
(SARTRE, 2012, p. 518). O fato é que comprometido com o Outro, consigo, lá fora, em
mim constituir em experiência de grupo. ―Em suma, eu me assumo como comprometido
lá fora, no Outro, e assumo o Outro como comprometido lá fora, em mim‖ (SARTRE,
2012, p. 518). O conceito de ―Nós‖ também é sinônimo de um grupo que se fundamenta
em um Terceiro (SARTRE, 2012).
214
Ou seja, no grupo, cada um é também um terceiro, e esse terceiro fortalece,
dialeticamente, a existência do próprio grupo. O terceiro é absorvido na serialidade
porque está estruturado a priori como o Outro,
Enfim, apesar de outras críticas à Sartre que não cabe aqui, concordamos com
uma parte da alegação de Gerd Bornheim, quando este afirma que
215
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sartre é um filósofo polêmico, não só pelo seu conceito de liberdade que é
recriminado por diversos pensadores, especialmente por certos marxistas, como também
por suscitar questionamentos a respeito das teses sobre a Liberdade em O Ser e o Nada
(2012), ao serem confrontadas com os pensamentos sobre a História defendidos na
Crítica da Razão Dialética (2002). O problema aqui presente, então, é também uma
clássica interrogação acerca da continuidade temática entre essas duas obras sartreanas.
Com efeito, do mesmo modo buscamos compreender as discussões não tão amigáveis
entre Sartre e certos marxistas, nas quais analisamos de que forma é possível a
congruência entre as teorias de Sartre e as de Marx, frisando que deste pensador
obtemos como base as obras A Ideologia Alemã (2007), Manuscritos econômico-
filosóficos (2010), O 18 de brumário de Luís Bonaparte (2011) e A miséria da filosofia
(1985), a fim de investigar e compreender a aparente contradição entre sujeito/particular
e história/universal na filosofia sartreana.
216
reflexão sartreana a respeito de um diálogo entre a influência fenomenológico-
existencial e a questão do sentido da história, e entendemos que tal reflexão é possível.
Portanto, se, ao dialogar com o marxismo, certos críticos tecem a respeito de que
a alienação não é mais sustentada pelas posições de O Ser e o Nada, é porque não
compreenderam que antes da alienação nos modos de produções, descrita por Marx, se
mantém a alienação ontológica do sujeito face a face com outro ou com vários outros
(sociedade), ou que, mesmo mediada pelos modos de produções, a alienação, em última
análise, é em relação ao Outro (SARTRE, 2002).
217
com os consumidores do produto. A alienação transforma o operário em escravo de seu
objeto, mas o processo não se detém aí, já que o trabalho é mercadoria que produz bens
de consumo para o Outro. Na verdade, ocorre a alienação do homem perante o próprio
homem: ao produzir um bem que não lhe pertence, o homem propicia o jugo daquele
que não produz sobre a produção e o produto, deixando que o outro, alheio à produção,
se aproprie dela (MARX; ENGELS, 2007).
218
Uma das provas de que no existencialismo sartreano é possível uma relação
humana não conflituosa, é entender que apesar da alienação primária caracterizada
através do Outro ser um fato existencial na filosofia de Sartre, não o faz, obviamente,
condescender com a alienação secundária mediada pelos modos de produção que
permite a exploração do homem pelo homem. Até porque, mesmo considerando essa
alienação primária, para o filósofo francês é preciso começar reconhecendo o outro
como sujeito e não como objeto (SARTRE, 2012), ou seja, ―temos de começar com o
Outro-como-sujeito‖ (MORRIS, 2008, p. 162); dessa forma, nos fazemos responsáveis
pelas nossas próprias ações. Ao afirmar que o ser humano não apenas torna-se
responsável por si, mas também por toda a humanidade, Sartre afirma que a liberdade
individual requer a liberdade coletiva. Com outras palavras, a liberdade existe ligada ao
compromisso com toda a humanidade (SARTRE, 2014).
Então, longe de uma filosofia do sujeito isolado, que não permite a existência do
coletivo, Sartre mostra a importância do outro, das relações sociais que permite o
individuo ser um humano. Eu me humanizo com outro, me transformo homem mediado
pelo outro, pelo o olhar do outro. Não posso existir sozinho, mas ao mesmo tempo
tenho a minha liberdade. Um ―Eu‖ ou ―Ego‖ só é possível devido a minha relação com
o social, com o coletivo, com o outro. (SARTRE, 2012).
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Deixando claro também que a obra O Ser e o Nada perpassa, obviamente e
especialmente, pela Ontologia e Fenomenologia, além de considerar o entendimento de
aspectos psicológicos, então, para um leitor minimante razoável da tal obra, apreende
que quando Sartre comenta sobre os conflitos nas relações humanas, não está a fazer
necessariamente referência às brigas físicas ou desentendimentos morais, pois, dessa
forma, já estaríamos no plano de regulações normativas da vida em comum na esfera
objetiva, como sociabilidade, direitos etc., o filósofo tece também, mas não somente,
sobre os conflitos ontológicos, como o Para-si e o Para-outro, que é importante para o
Ser se reconhecer como humano, como já foi comentado aqui com mais propriedade, e
que por isso tais conflitos ontológicos não são menos relevantes para as relações
humanas concretas, pois entendido ficou que a nossa discussão a respeito do ―Marxismo
existencial‖ na Crítica da Razão Dialética considera o sujeito histórico nas relações
sociais, na sociabilidade; e ainda a respeito da obra O Ser e o Nada, tem nesta, além de
outras teses, um capítulo sobre as relações humanas concretas. Ou seja, é preciso
entender que Sartre está lidando tanto com o sujeito ontológico quanto com o sujeito
psicológico, antropológico, social e histórico, até porque todos esses ―níveis‖ de
análises não são excludentes, pelo contrário, estão interligados (SARTRE, 2012).
Dessa forma, é bastante evidente que, por ventura, se acusarem Sartre de fazer
uma filosofia de guerrilha, onde não é possível comentar sobre as relações humanas de
forma conciliatórias, devido ao seu dizer sobre os conflitos existenciais, é superficializar
uma filosofia tão complexa como o existencialismo sartreano, é esquecerem que o
filósofo analisa e considera de fato a solidariedade, e que mesmo existindo conflitos,
sejam ontológicos ou sociológicos, é possível uma relação conciliatória, da mesma
forma que para Marx também há os conflitos, que no caso são sociológicos ou
antropológicos, no interior de um grupo e na história, e que, mesmo assim, Marx ainda
não nega a existência das relações humanas de forma conciliatórias, como visto. No
mais, grosso modo, ―vale ressalvar, aqui, que conflito nem sempre é sinônimo de
violência, mas uma resolução inadequada de um conflito pode se transformar em um ato
violento‖ (ALVES, 2009, p. 343).
220
como diz Sartre, separaram a teoria da práxis: transformaram a práxis em um empirismo
sem princípios e a teoria em um saber puro e cristalizado. Faltou ao tal marxismo
refletir sobre as ideias pré-concebidas, olhando realmente a realidade humana. Ou seja,
faltou refletir o esclarecimento do ser humano e da sociedade, as suas histórias, as
culturas, o modo de cada um ser no mundo (SARTRE, 2002).
O tal marxismo também discorre sobre uma dialética da natureza, essa dialética
é teleológica. Porém, o existencialismo sartreano procura se apresentar como sendo a
filosofia que busca apreender a realidade humana e, por isso, é contrário a qualquer
forma de absolutização e determinação da natureza. Não existe dialética que tenha
origem em outro lugar qualquer senão no ser humano, caso contrário, ao se apegarem
em uma espécie de marxismo científico, as tais lutas sociais e todo o processo são
objetificados e enquadrados numa lei da história ou numa lei natural, o que faz a
mudança social problemática ou impossível. A ideia de uma lei da história encarrega em
retirar o sentido da luta social, já que ela age independente do ser humano, o que para
Sartre é um absurdo (SARTRE, 2002)130.
Os tais marxistas, segundo Sartre, procuram leis universais, leis da história, uma
dialética da natureza ou uma visão economicista que vigora na dialética social e
histórica, ―anulando‖ a liberdade, a qual, esta, na verdade, é que é a produtora de todas
essas leis que se desvelam na realidade humana ou na práxis. Por isso, o filósofo nega o
marxismo mecanicista, pois não se pode compreender a dialética sem levar em conta os
conceitos, que, por sinal, se encontram tanto em O Ser e o Nada quanto na Crítica da
130
Engels é visto como positivista e mecanicista também, e Sartre o crítica nessa concepção, na Crítica
da Razão Dialética, contudo Sartre reconhece alguns pontos menos mecanicista.
221
Razão Dialética, tais como: temporalidade, projeto, totalização-em-curso, negatividade,
que só existem na esfera da consciência (Para-si ou Práxis) (SARTRE, 2002).
Pode-se dizer também que para que haja a dialética, é necessário que uma
consciência entre em ação, pois, sem o Para-si, a natureza é neutra, ou melhor, dela
nada se pode dizer, simplesmente ela é. Daí a ação dialética se refere ao Para-si ou
Práxis. Por isso, Sartre critica a dialética da natureza, tecida por esse marxismo, já que a
dialética da natureza é uma significação / intencionalidade no mundo já constituído
válido somente no interior da história humana ou na e pela realidade humana. Se para o
filósofo francês a dialética é ação, ela é um modo de ser da consciência e a maneira
como a realidade humana modifica o mundo material e histórico (SARTRE, 2002).
Dessa forma, Sartre entende que a práxis é o ser humano em ação e que altera o
estado de mundo atual, indo além de uma situação objetiva dada, indo além do mundo
já constituído. Ou seja, o ser humano, como liberdade sartreana, está superando a
situação rumo à finalidade ou ao futuro como mundo de possibilidades. Portanto, o
sujeito faz história todos os dias, por suas próprias ações. E isso ocorre pela superação
continua da sua condição (SARTRE, 2002).
222
Também na Crítica da Razão Dialética, indo contra a tal lei universal marxista,
Sartre preserva a liberdade que é sempre situada, mostrando que é a práxis individual
que constitui toda a ação grupal, descrevendo as relações dialéticas do ser humano com
a matéria e dos sujeitos entre si, não esquecendo ainda o projeto individual, sua
totalização-em-curso como desdobramento do movimento histórico (SARTRE, 2002).
Assim, grosso modo, esse processo nos faz entender que na complexa ―dialética‖
sartreana, ou melhor, na correlação sartreana, a história pessoal e a história do meio
social convergem em uma unidade que revela, ao mesmo tempo, uma configuração
subjetiva e uma configuração objetiva. Teoricamente, o social se subjetiva para
converter-se em algo relevante para o desenvolvimento do indivíduo e o subjetivo se
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objetiva ao se converter em parte da realidade social, ―demonstrando a dinâmica
interação entre subjetividade e objetividade‖ (FERRARINI; CAMARGO, 2009, s/p),
mas, a rigor, essa dinâmica é sem dualidade cartesiana: há, na verdade, um subjetivo-
objetivo. O indivíduo é um sujeito singular, social, histórico e ativo, produtor de
sentidos sempre escolhendo em situação, ou seja, é a subjetividade e a objetividade
mediadas pelas características da base material da sociedade e vice-versa. Isto é, sujeito
e objeto não existem de formas independentes, são correlacionados (SARTRE, 2002).
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