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São Paulo
2013
São Paulo
2013
CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO
Biblioteca
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
Almeida,
Ana Julia Melo
Design e artesanato : a experiências das bordadeiras de Passira
com a moda nacional / Ana Julia Melo Almeida ; orientadora, Maria
Sílvia Barros de Held. – São Paulo, 2013.
166 f. : il.
Aprovado em:
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
Durante os dois anos de realização desta pesquisa acadêmica, foram muitas as ajudas e
são inúmeras as gratidões.
À artesã Maria Lúcia Firmino, em especial, por ser tão generosa com o seu
conhecimento. Levarei para sempre comigo sua luta e seu discernimento sobre o que o
bordado representa em sua vida e na vida das pessoas ao seu redor.
Sou muita grata às professoras que fizeram parte da minha banca de qualificação,
prof.ª Regina Lara Silveira Mello e prof.ª Francisca Nogueira Mendes. As reflexões
apresentadas durante o exame foram muito esclarecedoras, vocês me ajudaram a encontrar
caminhos para que esse trabalho fosse finalizado da melhor maneira possível.
Agradeço com muito carinho a prof.ª Maria Sílvia Barros de Held, minha orientadora,
por acreditar desde o início nesta pesquisa e me possibilitar realizar este estudo. Muito
obrigada por sua confiança, disponibilidade e apoio; suas palavras e seu encorajamento foram
fundamentais para que eu chegasse até aqui.
Não tenho palavras para agradecer ao meu companheiro amado, Eduardo Paschoal.
Obrigada por me escutar e me incentivar ao longo desse árduo percurso. Agradeço a tua
compreensão e paciência em diversos momentos que precisei soltar os meus pensamentos
para que eu pudesse entender os processos deste trabalho. E acima de tudo, obrigada por
entender a importância desta pesquisa em minha vida.
A minha avó, Francelina Almeida, por sua presença forte. Obrigada por me ensinar a
não ter medo do desconhecido e a ser guiada por minha teimosia e determinação.
Por fim, agradeço enormemente aos meus pais, a quem dedico esta pesquisa. Muito
obrigada por todo amor, carinho e dedicação. A verdade que vocês me ensinaram a ter é a
minha maior riqueza.
Geertz
Tony Fry
RESUMO
O trabalho apresenta uma reflexão acerca da aproximação entre o design e o artesanato. Para
abordar esse contato, a pesquisa tem como objeto de estudo o encontro das bordadeiras de
Passira (PE) com a moda nacional. O estudo expõe como esses dois campos se relacionaram e
as repercussões dessa interação no trabalho das artesãs. Desse modo, analisa como os
processos criativos e produtivos dialogam, além de compreender o que é gerado por meio
dessa ligação.
ABSTRACT
This work presents a reflection about the approach between design and handicraft. To broach
this relation, the research aims to study the encounter of Passira (PE) embroiders with
brazilian fashion. The study exposes how these two fields are related and the repercussions of
this interaction in the artisans’ work. Thus, analyzes how the creative and productive
processes dialogue, besides understanding what is generated through that connection.
LISTA DE FIGURAS
Figuras 45 e 46 – Imagens dos desenhos do designer Ronaldo Fraga para a coleção “Turista
Aprendiz”................................................................................................................................128
Figura 47 – Imagem dos motivos aplicados em uma das peças desfiladas em junho de 2010
por Ronaldo Fraga...................................................................................................................129
Figuras 48 e 49 – Imagens de uma peça com a utilização do bordado casinha de abelha,
apresentadas na coleção “Turista Aprendiz” .........................................................................130
Figura 50 – Imagem do desfile “Athos Bulcão” do estilista Ronaldo Fraga.........................131
Figura 51 – Desenhos na cartolina utilizados para traçar os motivos nas peças da coleção
“Athos Bulcão” ......................................................................................................................132
Figuras 52 e 53 – Imagens de uma peça da coleção “Turista Aprendiz” bordadas pelas artesãs
da AMAP, com a utilização de bordados não acabados.........................................................133
Figuras 54 e 55 – Imagens da feitura do ponto sombra em sua face direita e do seu lado
avesso......................................................................................................................................134
Figuras 56 e 57 – Imagens de peças da coleção “Turista Aprendiz” bordadas pelas artesãs da
AMAP, com a utilização do ponto sombra invertido na gola.................................................135
Figuras 58 e 59 – Imagens de uma peça da coleção “Turista Aprendiz” bordada pelas artesãs
da AMAP, com pontos não acabados e seus nomes bordados................................................136
Figuras 60 e 61 – Imagens de uma peça da coleção “Turista Aprendiz” bordada pelas artesãs
da AMAP................................................................................................................................137
Figuras 62 e 63 – Imagens de dois riscos que foram desenvolvidos pelo designer Ronaldo
Fraga para serem bordados pelas artesãs da AMAP...............................................................140
Figura 64 – Imagem da instalação da exposição “Rio São Francisco navegado por Ronaldo
Fraga: cultura popular, história, moda” .................................................................................140
Figura 65 – Imagem de uma peça produzida pela artesã Maria Lúcia, com o ponto
doidinho..................................................................................................................................142
Figura 66 – Imagem de peça do desfile “Athos Bulcão” do designer Ronaldo Fraga, bordada
pelas artesãs de Passira...........................................................................................................145
Figura 67 – Imagem de peça desenvolvida pelas artesãs da AMAP para o Centro
Pernambucano de Design........................................................................................................148
Figura 68 – Imagem de peça desenvolvida pelas artesãs da AMAP para o Centro
Pernambucano de Design........................................................................................................149
Figuras 69 e 70 – Imagens de peças produzidas pelas artesãs da AMAP para o Centro
Pernambucano de Design, com o emprego do ponto nó.........................................................149
Figuras 71 e 72 – Imagens de peças bordadas pelas artesãs para o desfile “Turista Aprendiz”
com a utilização do ponto nó..................................................................................................150
Figura 73 – Imagem da máquina overloque utilizada para a costura profissional na sede da
AMAP.....................................................................................................................................154
Figura 74 – Imagem do interior da sede da AMAP...............................................................157
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................... 18
Percurso metodológico ............................................................................................................. 23
Parte I
Como a cultura popular entrou na moda brasileira ........................................................... 34
1. A moda brasileira e o artesanato popular .................................................................... 35
1.1. A cultura popular como síntese da identidade brasileira ....................................... 41
Parte II
Os bordados e as artesãs de Passira ...................................................................................... 67
2. Artesanato: a trajetória de um ofício, entre objetos e pessoas ..................................... 68
2.1. Os bordados manuais de Passira ............................................................................ 71
2.2. Associação das Mulheres Artesãs de Passira ........................................................ 76
2.3. Um ofício transmitido de geração a geração ........................................................ 81
2.3.1. Descrição do processo do bordado manual ............................................ 89
2.3.2. Os pontos e as composições do bordado manual .................................... 94
Parte III
As transformações e os caminhos dos bordados de Passira ............................................. 107
3. A intervenção do design no artesanato ....................................................................... 108
3.1. A fundação da AMAP: as primeiras transformações .......................................... 111
3.2. O projeto “Pernambuco com Design” em Passira ............................................... 117
3.2.1. A aproximação entre o design e o artesanato em Passira ..................... 124
3.2.2. O surgimento de um novo ponto .......................................................... 139
Introdução
Dessa maneira, o uso desordenado do termo o distanciou da ideia de uma prática que
propõe solucionar problemas de forma inteligente e aproximou-o da produção de objetos
exclusivos e efêmeros.
Santos (2008:61) escreve que houve uma significativa mudança no papel do design da
sociedade industrial do século vinte ao atual. Dentro da prática, surgiram novas maneiras de
pensar o design, entre elas abordagens que enfatizam a cooperação entre diversos campos e a
19
integração com outras áreas de conhecimento. Para a autora, a compreensão do design deve
ser ampla e englobar todos os aspectos envolvidos em seus processos.
Design indica o trânsito da ideia para a forma e esse percurso entre a ideia e a forma
é complexo e integra vários aspectos – tecnológicos, sociais, culturais, econômicos,
daí a necessidade de desenvolvermos uma compreensão integradora e
interdisciplinar do design. (SANTOS, 2008:61).
as bordadeiras inventaram um novo ponto, nomeado “doidinho”, para atender aos objetivos
desse produto que não estavam habituadas a fazer.
Magalhães (1997:180), ao escrever sobre o contexto e as peculiaridades do artesanato
nacional, ressalta a capacidade do artesão brasileiro de criar, recriar e adaptar-se às situações
de seu próprio contexto, e acrescenta que a tradição presente na produção artesanal brasileira
não é estática, mas mutável.
A palavra “invenção” será utilizada neste trabalho de acordo com o pensamento de
Wagner; o autor (2011:77) emprega esse termo de maneira mais ampla e o associa a um
fenômeno inerente à criatividade humana.
Percurso metodológico
1
Ronaldo Fraga é um designer de moda mineiro, nascido em Belo Horizonte. Gradou-se em Estilismo pela
Universidade Federal de Minas Gerais, já participou de diferentes semanas de moda, como o Phytoervas
Fashion, a Casa de Criadores e a São Paulo Fashion Week. O estilista se destaca por abordar temas vinculados à
cultura brasileira e por defender a moda como vetor social e cultural.
24
eram seus processos produtivo e criativo. Por fim, me contaram sobre a experiência de
trabalhar com a moda nacional.
Durante a semana em que passei na cidade, gravei os relatos de cinco artesãs2, fiz
anotações e fotografei os produtos e o ato de fazer o bordado. Além disso, colhi material de
acervo e demais documentos necessários ao andamento deste trabalho, como os “riscos”3
desenvolvidos por elas. Tudo com o consentimento e a ajuda das bordadeiras, sempre solícitas
e acolhedoras.
Ao relatarem suas experiências de contato com o design, elas comentaram do
surgimento de um ponto, nomeado por elas “doidinho”, que marcou o trabalho feito para
Ronaldo Fraga. Achei bastante curioso a forma como elas desenvolveram esse ponto e as
circunstâncias nas quais ele foi criado. Dessa maneira, o ponto doidinho tornou-se importante
para que esta pesquisa analisasse o contexto do produto artesanal contemporâneo e as
transformações pelas quais vem passando.
Ao retornar para São Paulo, após a primeira estadia em Passira, comecei a organizar o
material colhido. Nesse momento, muitas dúvidas surgiram. As pequenas, referentes ao
trabalho em si das artesãs, foram sanadas por conversas ao telefone. Outras, mais ligadas a
questionamentos e reflexões profundas sobre o trabalho desenvolvido em Passira e as
interferências e transformações causadas pelo contato com a moda, deixei para esclarecer em
um momento posterior, durante a segunda fase do trabalho de campo.
Em agosto de 2012, retornei a Passira com o intuito de preencher as lacunas da
pesquisa. Já estava com um objeto de estudo melhor delimitado e entrevistas estruturadas em
grandes tópicos, que permitiam um diálogo fluido com as artesãs. Passei mais uma semana na
cidade, dessa vez com foco na experiência das bordadeiras em trabalhar com o design – cujos
processos são diferentes dos que elas estavam habituadas – e nas repercussões que esse
contato acarretou em suas vidas e em sua produção.
Mantive a mesma rotina da visita anterior. Quem me recebeu, novamente, foi a
bordadeira Maria Lúcia. Expliquei os novos passos da pesquisa e os objetivos dessa segunda
etapa do trabalho. Organizamos as entrevistas com as demais artesãs (Marcília, Marilene e
Severina) e distribuímos os encontros ao longo da semana.
2
No dia 4 de janeiro de 2012, a bordadeira Maria Lúcia me apresentou às artesãs Marcília, atual presidente da
AMAP, e Severina, conhecida por todas como Vani.
3
Risco é um desenho feito em papel que serve como guia para a execução do bordado. Uma definição detalhada
do processo pode ser encontrada no capítulo dois desta pesquisa.
26
4
O perfil das artesãs entrevistadas para esta pesquisa encontra-se no final do percurso metodológico.
27
O trabalho de campo acaba por aproximar o pesquisador de seu objeto de estudo. Ele
se engaja com pessoas e suas coisas em uma variedade de maneiras, muito além do fato de
estar em contato e escrever sobre elas. As dificuldades e inquietações enfrentadas no ato da
pesquisa de campo são capazes de ditar novos rumos para o estudo, traçar novas proposições
de abordagens teóricas, conduzir o pesquisador a um novo olhar sobre o que é estudado.
O texto construído é permeado por falas das artesãs, obtidas por meio de suas
oralidades. Todas as minhas reflexões foram formuladas a partir do contato com as
bordadeiras, observando como elas realizavam seu trabalho e a importância dele para suas
vidas. Seria inviável analisar o produto artesanal contemporâneo brasileiro e o seu contato
com o design de moda sem conhecer o contexto em que ele é criado. Foi esse o propósito que
me levou a Passira.
Acerca dos trabalhos que envolvem essa forma de coletar material, José Carlos Meihy
(2010:180) afirma que a produção de textos com a utilização de fontes orais implica em
alterações na “forma usual de pesquisa”.
28
Após a primeira visita a Passira, notei a diferença entre a experiência vivida em campo
e a análise que eu havia estabelecido ao meu estudo. Isso me fez pensar que a vivência em
campo, por meio do contato com as bordadeiras, modificou minha abordagem inicial.
Nesse momento, compreendi a direção que a pesquisa tomava; percebi por meio
daquele rico material colhido e da experiência vivenciada em Passira que seriam as
bordadeiras quem me possibilitaria refletir sobre o contato entre o design e o artesanato.
Ainda assim, acreditei que um contato com o designer Ronaldo Fraga seria
enriquecedor para este estudo. No entanto, após várias tentativas de contato por telefone e e-
mail, não obtive mais respostas. Prossegui com a pesquisa e encontrei formas de estruturá-la
com base na compreensão das transformações que as artesãs vivenciaram. Essa experiência,
por si só, trouxe subsídios para que entendesse o papel do design nessa aproximação.
Passei algumas semanas em busca de compreender os depoimentos colhidos e
encontrar os significados. A observação e o material registrado serviram de suporte para
minha interpretação e para a construção de um discurso coerente com todas as partes
envolvidas na pesquisa – pesquisador, sujeitos e objetos estudados –, mediada pelas
experiências vivenciadas.
Para Geertz (2011:10), a pesquisa etnográfica consiste em compreender muito mais do
que simplesmente escrever sobre algo. A cultura é um contexto; os acontecimentos sociais, os
comportamentos, as instituições ou os processos presentes devem ser “descritos com
densidade”.
O autor (2011:4) entende a cultura como uma teia de significados construída pelo
homem. Não é uma ciência experimental em busca de leis, é uma ciência interpretativa, à
procura do significado. O autor vincula o conceito de cultura a uma trama de relações
dinâmicas.
Nesse sentido, procurei compreender o artesanato em seu contexto, visando não
eliminar seus elementos intrínsecos e as peculiaridades de suas relações, principalmente as
relações entre o objeto artesanal e seus produtores.
29
5
Clifford Geertz (2011:11) usa o termo “ficções” no sentido original de fictício: o texto é construído, modelado
pelo pesquisador. Isso não quer dizer que as afirmações contidas nos textos antropológicos sejam falsas, não-
factuais ou experimentos do livre pensamento.
6
O termo “inventar” é utilizado com base nas proposições de Roy Wagner (2010:30), conforme postulado
anteriormente. Segundo o autor, deve-se compreender a invenção “como um processo que ocorre de forma
objetiva, por meio de observação e aprendizado, e não como uma espécie de livre fantasia”.
30
31
32
33
34
I.
Como
a
cultura
popular
entrou
na
moda
brasileira
35
O primeiro capítulo desta pesquisa promove uma reflexão sobre a inserção dos
produtos artesanais, fragmentos da cultura popular, na moda nacional. A reflexão proposta
nessa primeira parte organiza-se em torno de três eixos que pretendem argumentar e
contextualizar a entrada da cultura popular na moda, a saber:
- A cultura popular como síntese da identidade brasileira;
- O produto artesanal como bem de distinção;
- O artesanato associado ao “sustentável” e ao “comércio justo”.
7
Referência à localização geográfica das principais capitais da moda (Paris, Milão, Londres e Nova York).
8
Informação encontrada no sítio oficial da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT). Disponível em:
http://www.abit.org.br/Abit.aspx#4 (acessado em 8 de outubro de 2012).
36
Figura 1: Anúncio da primeira edição da FENIT, publicado na Revista Manchete de 1958. Imagem retirada da
tese de doutorado da pesquisadora Maria Claudia Bonadio9.
9
A tese da pesquisadora, “O fio sintético é um show! Moda, política e publicidade; Rhodia S.A 1960-1970”, está
disponível no seguinte endereço eletrônico:
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?view=vtls000365054 .
37
Figura 2: Capa da primeira publicação da Manequim em 1959. Imagem retirada do sitio oficial da revista.
Disponível em: http://manequim.abril.com.br/moda/historia-da-moda/50-anos-da-moda-no-brasil/despertar-da-
moda2.shtml (acessado em 8 de fevereiro de 2012).
Há também outro evento realizado nessa época com o intuito de promover a moda
brasileira. Trata-se do Festival de Moda Brasileira, promovido pela tecelagem Matarazzo-
Boussac. Ainda que não se possa confirmar o ano de início do evento, o auge aconteceu já na
década de 1960. O festival laureava os costureiros locais com os prêmios “Agulha de Ouro” e
“de Platina”. Destacam-se os costureiros Dener Pamplona de Abreu e Clodovil Hernandes.
Em entrevista à revista O Cruzeiro, em 1962, Dener Pamplona atribui ao evento
caráter de ponto inaugural da moda brasileira: “Não se pode determinar, precisamente,
quando nasceu [a moda brasileira], pois foram diversas tentativas isoladas. Mas podemos
dizer que o movimento mais positivo, com força de marco inicial foi o Festival da Moda”.
(apud Braga e Prado, 2011:246).
Essa busca por uma moda nacional também se refletia na imprensa. Com os
surgimentos das revistas Jóia (1957), Manequim (1959) e Claudia (1961), os primeiros
38
Figura 3: Edição da Revista Jóia de 1967, com o ensaio “A moda conta a história do Brasil”. Disponível em
http://www.iconica.com.br/?p=3191&utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=
Feed%3A+iconica-feed+%28Iconica+Blog%29 (acessado em 8 de fevereiro de 2012).
Na década de 1970, a moda nacional tem destaque pelas mãos de Zuzu Angel. A
estilista se destacou ao apresentar roupas que buscavam referências na cultura brasileira, sem
o que ela considerava traços típicos de colonização.
Zuzu quis reivindicar para si o mérito de ter criado uma moda com características
brasileiras, sem ranços colonizados. É verdade que ela perseguiu esse caminho e,
também, que buscou fazer uma travessia da moda em ateliês sob medida – como era
a alta moda de Dener e de Clodovil, por exemplo – para um prêt-à-porter chique
com identidade nacional. (BRAGA e PRADO, 2011:356).
39
Figura 6: Cartaz da campanha “Brasil, mostra a tua cara” da marca Forum, que traz retratada à esquerda Marilyn
Monroe, ícone pop americano, equiparando-a a Leila Diniz, atriz conhecida por seu comportamento libertário
nas décadas de ditadura militar no país, representando a beleza nacional. Disponível em:
http://forum.com.br/_novosite/timeline (acessado em 8 de outubro de 2012).
10
O Programa de Exportação da Indústria da Moda Brasileira (Texbrasil) está disponível em:
http://www.texbrasil.com.br/texbrasil/TexBrasil.aspx?tipo=1&pag=1&nav=0&tela=TexBrasil (acessado em 17
de outubro de 2012).
41
Ainda para fortalecer o mercado, mas dessa vez a partir da reunião de estilistas, é
criada três anos depois a Associação Brasileira de Estilistas (ABEST)11, entidade sem fins
lucrativos, que visa fortalecer e promover marcas nacionais de moda e design.
Esses são alguns marcos da consolidação do mercado de moda no Brasil. A partir de
então, a indústria têxtil e os criadores nacionais começam a se organizar a fim de buscar uma
unidade de expressão para os produtos de moda feitos no país, como inserir elementos da
cultura popular em suas peças.
Este eixo tem por objetivo discutir a tentativa da moda brasileira de criar uma unidade
de expressão para o produto interno, construindo um discurso de pertencimento à cultura
nacional para seus produtos. Com a entrada de estilistas brasileiros no mercado internacional
e o aumento da visibilidade dos eventos de moda no Brasil, em meados da década de 1990,
começou-se a buscar uma imagem para a produção de moda no país. Os estudos do que seria
“brasilidade” incorporam-se aos bens e serviços; conhecer e definir o Brasil, transmitindo
para os artefatos as peculiaridades da cultura brasileira seria uma vantagem para sua
comercialização.
O artesanato, como parte do repertório de símbolos das “coisas populares”, vinculado
às características mais genuínas do país, passa a ser buscado como referência e é inserido no
mercado de moda para solidificar o que seria uma síntese da identidade brasileira.
Arantes (2006:15) afirma que é “manipulando repertórios de fragmentos de “coisas
populares” que, em muitas sociedades, inclusive a nossa, expressa-se e reafirma-se
simbolicamente a identidade da nação como um todo”.
Segundo Ortiz (2003:127), a temática do popular e do nacional sempre esteve presente
na história da cultura brasileira; “em diferentes épocas, e sob diferentes aspectos a
problemática da cultura popular se vincula à da identidade nacional”.
Magalhães (1997:47) compartilha desse pensamento e propõe uma reflexão sobre os
componentes fundamentais da cultura brasileira, quando enfatiza que só os bens culturais e o
11
Disponível em: http://www.abest.com.br/abest/ (acessado em 8 de outubro de 2012).
42
A “cultura popular” surge como uma “outra” cultura que, por contraste ao saber
culto dominante, apresenta-se como “totalidade” embora sendo, na verdade,
construída através da justaposição de elementos residuais e fragmentários
considerados resistentes a um processo “natural” de deterioração. (ARANTES,
2006:18).
Essa identidade, para Canclini (2008:190), “seria, antes de mais nada, ter um país, uma
cidade ou bairro, uma entidade em que tudo é compartilhado pelos que habitam esse lugar se
tornasse idêntico ou intercambiável”.
Segundo Guibernau (1997:83), o conceito de identidade está relacionado com os
elementos fundamentais da identidade nacional, pois expressam a semelhança entre os
indivíduos de um mesmo território e a diferença em relação aos outros:
A partir da afirmação “a nação não é apenas uma entidade política mas algo que
produz sentidos – um sistema de representação cultural” (Hall, 2004:49), é preciso analisar
como esse sistema se estrutura no conjunto de valores, símbolos e sentidos que representam o
povo brasileiro.
44
É difícil responder qual seria a essência da cultura brasileira. DaMatta foi um dos
estudiosos que se debruçou sobre esse tema. O autor (2001:15) examina alguns aspectos da
sociedade brasileira e propõe uma leitura do Brasil que está em toda parte, o Brasil das
pessoas e das suas coisas. Ele parte da afirmação que “tanto os homens como as sociedades se
definem por estilos, por seus modos de fazer as coisas”.
Ao se perguntar “o que faz o brasil, Brasil?”, o pesquisador (2001:14) enfatiza que
esta é uma pergunta de caráter relacional; é da própria sociedade brasileira a característica de
juntar, aglomerar e misturar, e para pensar o Brasil é preciso articular contextos diferentes e
“descobrir como é que eles se ligam entre si; como é que cada um depende do outro, e como
os dois formam uma realidade única que existe concretamente naquilo que chamamos de
‘pátria’”.
Após o esclarecimento desses conceitos, abordo como a identidade nacional é expressa
no design e em seus artefatos materiais e como ela se transforma em identidade de design
nacional.
Bonsiepe (2011a:47) afirma que a busca por uma identidade é uma questão que
aparece constantemente nos debates sobre o design nos países latino-americanos. “Na
Periferia uma política de design oscila entre dois polos: de um lado uma política
heterodirigida e, de outro, uma política de auto-afirmação, uma política para consolidar a
Segunda Independência, uma política de fortalecimento da identidade” (2011b).
O autor (2011a) utiliza os termos “Centro” e “Periferia” para analisar as diferenças
políticas e econômicas entre os países e também para refletir como essa tensão opera no
campo do design.
Magalhães (1998:11) analisa o contexto brasileiro e constata a existência de duas
realidades distintas: a originalidade que permeia as áreas pobres; e o gosto mimético, a cópia
de elementos externos ao nosso país, comum em regiões de alta concentração de riqueza.
Segundo Bonsiepe (2011a:62), quando os países praticam a política de autoafirmação,
é comum o uso de recursos locais, como o artesanato, para a criação da identidade no design.
Uma das posturas adotadas é considerar as práticas artesanais locais “como base ou ponto de
partida para o que seria denominado como verdadeiro design latino-americano”, intitulado
pelo autor de “enfoque culturalista ou essencialista” (2011a:63).
Como recurso de representação dos aspectos que, de algum modo, estão
“convencionalizados” como pertencentes a uma cultura brasileira, o artesanato é inserido na
moda brasileira contemporânea em uma tentativa de sintetizar e identificar a produção desse
setor.
45
Dessa forma, a moda articula no campo simbólico dos seus artefatos traços comuns e
reconhecíveis no país e mobiliza esses elementos para que eles sejam destacados como
portadores de uma identidade nacional. Assim, os objetos carregam atributos ligados a
concepções de “brasilidade”12.
Leitão (2009:160) reflete a respeito das representações de Brasil na moda nacional. A
pesquisadora afirma que a produção cultural elaborada pelo mundo da moda brasileira é
caracterizada pela inserção de temáticas nacionais, por meio de referências ao Brasil e às
identidades brasileiras.
12
O termo “brasilidade” é constantemente utilizado por pensadores para refletir sobre o significado de ser
brasileiro e compreender como os elementos que compõem a realidade social, econômica e política do Brasil
formam um povo com características particulares.
46
“regionais” para esclarecer esse conflito e completa que são “duas solicitações divergentes,
mas igualmente imperiosas”; a identidade se constrói duplamente.
Conforme já afirmado no texto, a moda brasileira se caracterizou por muito tempo,
exclusivamente, como uma extensão do que é criado nas capitais influentes e centrais para o
setor, como Nova Iorque, Paris, Milão e Londres, por adotar os valores, as formas e as cores
estabelecidos durante tais semanas de moda.
Em relação à postura de “seguidismo”, Flusser (1998:139) escreve que essa adoção é
comum na cultura brasileira. Há um olhar atento em direção ao que é feito na Europa e nos
Estados Unidos, “não apenas para espiar modelos a serem copiados, mas mais ainda para ser
‘aceito’ lá e assim adquirir legitimidade”. Para o autor (1998:140), “isto não é diálogo, como
alguns pretendem, mas submissão abjeta”.
Para Magalhães, o caminho de fazer o que os outros já realizaram não é sinônimo de
ser universal. De acordo com o autor, “o universal não é o igual”; é uma monotonia, um
achatamento, uma igualdade a que chamam de universalidade. “Universalidade, meus
senhores, não é igual; universal é o diversificado, é a interligação, é a interface de diversas
coisas” (Magalhães, 1997:90).
A busca por uma identidade nacional, nessa conformação de construção de uma moda
enquanto processo autêntico de pertencimento à cultura brasileira, tem como elemento
participante o artesanato popular. Essas especificidades constituem a produção de moda
brasileira.
O emprego do artesanato nesse processo se relaciona com a auto identificação de um
povo e se perpetua devido a suas características, a seu caráter atemporal, vinculados à
tradição.
Com base nos conceitos apresentados ao longo do texto, pode-se afirmar que a
identidade e a cultura são construções, processos: “as identidades não são coisas com as quais
nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (Hall, 2004:48).
Bonsiepe (2011b), ao falar sobre o modo como a identidade se manifesta no design,
sugere que não devemos limitá-la aos aspectos estético-formais, mas encará-la nos tipos de
problemas que surgem em determinada realidade, pois, apenas dessa forma, o design será
capaz de atender ao contexto e, assim, expressar características específicas do objeto.
Ao invés de pensar os artefatos apenas como portadores de funções e veículos de
mensagens simbólicas, é relevante questionar a importância dessa produção para aquele
contexto.
47
Figura 7: Imagem de sapatos bordados no desfile “Turista Aprendiz” do estilista Ronaldo Fraga. Foto: Acervo
AMAP.
Este segundo eixo busca compreender como o produto artesanal tornou-se um bem
distinto, pertencente a uma classe de objetos “singulares” no contexto contemporâneo e como
a moda o incorpora. Para isso, é necessário esclarecer a configuração atual do produto
artesanal enquanto mercadoria. Alguns fatores que contribuem para o aumento da valorização
dessa mercadoria serão abordados neste tópico, tais como: o objeto como bem cultural,
procedente do fazer popular, e como mercadoria distinta, por meio dos processos de
mercantilização restrita e desvio de rota.
Segundo Denis (1998:22), é preciso entender o papel dos artefatos em uma sociedade
onde o consumo de mercadorias constitui um fenômeno de grande importância social e
cultural. O mesmo autor (1998:31) afirma que “os artefatos existem no tempo e no espaço e
vão, portanto, perdendo sentidos antigos e adquirindo novos à medida que mudam de
contexto”.
49
Dessa forma, o produto artesanal adquire significados que vão além do seu valor de
uso e se tornam objetos tidos como “singulares”. Elementos diferenciadores são enfatizados e
incorporados pela lógica capitalista, como ferramenta de distinção.
Em relação às estratégias do mercado capitalista e ao seu duplo movimento de
consumo – ao mesmo tempo em que o mercado visa expandir e divulgar sua produção, ele
utiliza elementos para diferenciar os produtos –, Canclini (1983:65) argumenta que o
artesanato é integrado como uma necessidade própria do sistema capitalista e pode colaborar
para uma revitalização do consumo, ao renovar a produção para não se estagnar na repetição
de objetos uniformizados.
Os elementos característicos do produto artesanal, oriundos do contexto social e
cultural de seus produtores, são utilizados nesse “jogo” com o objetivo de fornecer
diferenciação ao objeto, ou seja, agregar valor a esse produto e incentivar a renovação do
consumo.
O artesanato, além de ser uma atividade produtiva, também está intimamente
relacionado com quem o produz. O artesão, produtor de tais objetos, imprime sua história, sua
50
técnica e seu repertório cultural; esses elementos característicos de sua comunidade vinculam
o produto à região.
Geertz (1997:181) define esse saber local como “construção feita a partir da
compreensão de significados localizados, próprios dos contextos culturais em que são
produzidos”. Esse saber é condensado no objeto ali confeccionado e transformado em valor
de mercado, e é um dos fatores que leva o produto a sua diferenciação.
Os artefatos expressam, desse modo, ações e relações com seus produtores. Em outras
palavras, são as redes de interações, compostas pelos produtores, que dão aos objetos
significados que ultrapassam o seu uso utilitário.
Leite (2005) afirma que não é possível compreender o artesanato dissociado do
contexto social de seus agentes produtores e entendê-lo como tal implica considerá-lo produto
e processo:
mercadorias, uma biografia rica de uma coisa é a história de suas várias singularizações, das
classificações e reclassificações num mundo incerto de categorias cuja importância se desloca
com qualquer mudança de contexto.” (Ibidem:121).
Outra forma de singularizar objetos é também esclarecida por Kopytoff (Ibidem:101)
como “mercantilização restrita”; por meio dela, alguns produtos são confinados a uma esfera
muito restrita de troca. Nessa direção, o autor utiliza como exemplo o sistema dos Tivs, povo
da África Ocidental. Poucos itens constavam na esfera de prestígio dos Tivs e estes eram
menos mercantilizados que o número bem maior de itens destinados à subsistência. Ao torná-
los mais restrito, eleva-se o valor de troca.
Na medida em que o mercado torna as coisas e o seus valores homogêneos, ele
também cria condições para que algumas delas permaneçam restritas e “confinadas” a uma
esfera de singularidade, ou melhor, de objetos singulares.
Dentro dessa estratégia encontrada para o aumento no valor de troca das mercadorias,
está o desvio de rotas. Se as coisas são possuidoras de uma vida social, conforme escreve
Appadurai, os objetos carregam consigo o contexto em que são produzidos e, ao circularem,
adquirem características específicas, podendo ganhar ou perder reputação e valor.
Ao discorrer sobre o fluxo de coisas e mercadorias, Appadurai (2008:31) afirma que
elas oscilam entre dois polos: “rotas socialmente reguladas e desvios competitivamente
motivados”. O primeiro polo refere-se às rotas usuais, antes definidas e especificadas; já o
segundo, ocorreria por meio de desvios, alterações das rotas já estabelecidas.
As mudanças nas rotas costumeiras modificam a significação e a biografia dos objetos,
isto é, quando um produto é deslocado por meio da alteração de sua rota usual, ele pode
perder significados e adquirir novos. As rotas usuais e os desvios são, assim, elementos
definidores na biografia das coisas e podem intensificar ou diminuir o valor dos objetos.
O autor acima (2008:38) ilustra essa oscilação com o caso do sistema Kula13 para
esclarecer como a manipulação de “rotas culturalmente definidas” e o potencial estratégico
dos “desvios” influenciam a biografia das coisas e das pessoas, de modo que o movimento das
coisas pode alterar o destaque das pessoas perante a sociedade.
13
Segundo Appadurai (2008:33), “Kula é um sistema regional extremamente complexo para as circulações de
tipos particulares de objetos de valor, normalmente entre homens de posses, no arquipélago Massim, ao longo da
costa na extremidade leste da Nova Guiné”. Ao moverem de um lugar para outro e à medida que os homens que
os trocam ganham e perdem reputação e valor, esses objetos adquirem biografias muito específicas que
influenciam na definição de seu próprio valor também.
52
Não apenas pelo interesse em expandir o mercado, mas também para legitimar sua
hegemonia, os modernizadores precisam persuadir seus destinatários de que – ao
mesmo tempo que renovam a sociedade – prolongam tradições compartilhadas.
Posto que pretendem abarcar todos os setores, os projetos modernos se apropriam
dos bens históricos e das tradições populares (CANCLINI, 2008: 159).
É com o intuito de explorar a configuração atual dos produtos artesanais que este
trabalho pretende analisar as transformações pelas quais as pessoas e as mercadorias, inseridas
na produção artesanal, passam e a forma como elas se relacionam. Que modificações estão
ocorrendo na estrutura interna do artesanato? A partir do estudo etnográfico com as
bordadeiras de Passira, pretendo descrever como pequenas comunidades tradicionais
interagem com um sistema de produção econômica e socialmente mais hegemômico, como é
o caso da moda.
54
Este terceiro eixo pretende relatar o aumento da visibilidade das práticas artesanais à
medida que as discussões acerca da sustentabilidade se destacaram nos contextos social e
econômico. Isso levou a um crescimento considerável do número de adeptos do consumo
consciente, que tem por princípios a valorização de materiais naturais e o emprego de técnicas
artesanais tradicionais, entre outros.
Também se pretende entender como as práticas sustentáveis refletiram no campo de
atuação do designer de moda, que passou a valorizar atitudes mais ecológicas e éticas em seus
processos. Nesse contexto, o artesanato foi inserido por apresentar um modo de produção não
convencional e mais equilibrado.
Por fim, serão apresentadas algumas experiências de interação entre moda e artesanato
brasileiros, com o intuito de esclarecer ainda mais as relações existentes entre as duas
atividades.
A moda se relaciona com diversos setores da sociedade, seja como fenômeno social ou
como atividade econômica. Para Fletcher e Grose (2011:8), “a moda reúne a autoria criativa, a
produção técnica e a disseminação cultural associadas com o ato de vestir, unindo designers,
produtores, varejistas e todos nós, usuários de roupa”.
Segundo Souza (1987:50-51), para que se possa compreender a moda em toda a sua
riqueza, é preciso inseri-la no seu momento e no seu tempo, além de descobrir as ligações que
esse fenômeno mantém com a sociedade. Nesse sentido, não há dúvida de que a moda joga a
todo instante com os valores socialmente estabelecidos e compartilhados.
Quando as práticas sustentáveis começaram a ser discutidas na sociedade, essa
discussão repercutiu também para o campo do design de moda, que passou a se interessar por
meios de produção e consumo mais equilibrados e a buscar atitudes mais sustentáveis na
produção de suas mercadorias.
Iniciou-se um questionamento sobre as estruturas internas e os ciclos presentes no
sistema de moda. O aspecto ambiental foi o primeiro a ser discutido; o mercado começou a
debater o uso adequado dos recursos naturais e a redução do volume de resíduos lançados
durante todas as etapas de produção.
Gradativamente, as questões relacionadas à esfera social também passaram a fazer
parte das discussões sobre práticas sustentáveis na moda. Dessa forma, as condições de
55
trabalho justo e digno, o respeito às diferenças étnicas e culturais dos povos e o consumo
socialmente responsável entram como princípios para nortear a atividade.
O conjunto que se passou a buscar foi o de um desenvolvimento viável, para evitar as
catástrofes ambientais e garantir condições de vida adequadas a todos os que habitam o
planeta, nessa e nas futuras gerações.
Para compreender a configuração do contexto atual, é necessário esclarecer como a
discussão sobre sustentabilidade se iniciou no campo do design e quais os princípios e
práticas que esse conceito carrega.
O termo “sustentável” é usado para designar uma condição de vida mais harmônica
com os recursos do planeta, um acordo equilibrado entre o homem e a natureza. No entanto,
existe pouco entendimento sobre este conceito. A palavra se tornou, em muitos casos, um
rótulo, transformando-se em mais um recurso usado equivocada e superficialmente.
Bonsiepe (2011a:256) esclarece que o termo “sustentabilidade” engloba tanto os
aspectos ambientais quanto os sociais; portanto, uma interpretação que reduza a
sustentabilidade nos aspectos ambientais, desconsiderando os sociais, limita as possibilidades
de contribuir mais fortemente para os problemas ecológicos.
Pauline Madge (1997:51), ao fazer uma análise crítica sobre a trajetória da abordagem
ecológica no design, utiliza três termos – “Green Design”, “Ecological Design” e “Sustainable
Design” - com o objetivo de explorar e contextualizar as diferentes facetas e fases dessa
prática no movimento ambiental e social.
Segundo a autora (1997:51), o despertar das discussões foi com o movimento do
“Green design”. O “verde” tornou-se palavra de ordem e houve uma profusão súbita de
discurso a favor dele na mídia. Já o termo “sustentável” substituiu o “verde” e tornou-se
palavra de ordem na década de 1990, como o verde era para os anos 1980.
A diferença entre eles é que no “Sustainable Design” a discussão engloba mais fatores,
como a inclusão de condições sociais adequadas e práticas éticas, enquanto no “Green
Design”, a preocupação se limita à esfera ambiental. Em síntese, o “Sustainable Design”
propõe uma aproximação das questões sociais e ambientais e deve ser um conceito norteador
de atitudes e práticas.
Manzini (2008:23) esclarece que a sustentabilidade ambiental deve ser
complementada por princípios de natureza social e ética, ou seja, esse processo deve ocorrer
por essas duas esferas, ambiental e social, juntamente com a econômica.
Além desses aspectos, a sustentabilidade trouxe termos como a reciprocidade e a
complexidade. Para Fletcher e Grose (2011:11), “essa visão reflete um modo de pensar que
56
concebe cada fase de um sistema como vinculada a todas as outras”, portanto, para tornar os
produtos de moda mais sustentáveis é preciso pensar os ciclos, as redes e os equilíbrios em
jogo em todo o seu sistema.
Com base nesses conceitos, um desenvolvimento que equilibre as esferas ecológica,
econômica e social só será impulsionado se houver uma reorientação das práticas e uma nova
organização dos modos de produção e consumo atuais, em que cada parte seja pensada em
conjunto e não de forma isolada.
Tony Fry (2011:21), ao refletir sobre a sustentabilidade, define a estrutura atual como
insustentável; segundo o autor, a apropriação dos recursos naturais tem levado a humanidade
a um estado que ele chama de “defuturing”.
A partir dessa constatação, o filósofo (2011:23) propõe um novo conceito, que ele
nomeia de “Sustainment”, norteado por três fundamentos: a criação de um novo paradigma
que abandona a noção de crescimento quantitativo contínuo; a reformulação do mundo
material; e o reconhecimento de uma estrutura atual insustentável.
Fry (ibidem:23) escreve que as ações de redução dos impactos ambientais não são
suficientes enquanto estiverem amparadas no sistema econômico atual. “Tudo que as nações
mais progressistas fazem é negociar a redução dos impactos ambientais enquanto preservam a
permanência do atual modelo econômico” (versão livre desta autora)14.
Dessa forma, para proteger o ambiente natural e seus recursos finitos e garantir uma
qualidade de vida decente para todas as pessoas, é preciso que mudanças estruturais efetivas
sejam feitas por toda a sociedade, resultando em uma ruptura com o modelo econômico atual.
Assim, a sustentabilidade começou a questionar o modelo econômico e político atual e
a propor valores mais justos e éticos nas negociações. Esse aspecto acarretou a discussão de
outras dimensões do desenvolvimento sustentável, como os princípios da equidade – relações
mais justas e decisões que atendam à necessidade de todos – e da participação – envolvimento
efetivo dos cidadãos (Madge, 1997:56).
Bonsiepe (2011a:39) também sugere um enfrentamento mais equitativo e afirma que
para atingirmos esse desenvolvimento é necessário diminuir as distorções na participação e
nas tomadas de decisão atuais.
Em síntese: a principal questão que se apresentou como debate inicial acerca da
sustentabilidade foi a ambiental. Com o tempo, outros questionamentos relacionados às
14
Na versão original: “All that even the most progressive nations do is to trade on the basic of reducing
environmental impacts while upholding the existing economic paradigm”.
57
esferas social e ética foram inseridos nessa discussão. Além da preocupação com o uso
adequado dos recursos naturais e com as mudanças climáticas, a sociedade começou a debater
sobre as práticas presentes nos processos de produção e consumo e a buscar atividades que
cumprissem valores de ética e justiça, tais como: condições de trabalho adequadas, respeito à
diversidade cultural, equidade entre os setores da sociedade, participação de todos e consumo
socialmente responsável.
Diversas iniciativas surgiram com a preocupação de usar adequadamente os recursos
naturais e de garantir bem-estar a todas as pessoas envolvidas com a produção das
mercadorias.
Os produtos ecológicos entraram no mercado como alternativa ao consumo e com o
objetivo de garantir uma produção em limites seguros para o ambiente e para as pessoas. No
entanto, as dúvidas acerca do modo de produção e dos materiais utilizados para confeccionar
esses produtos persistiram, dando margem à desconfiança se eles estavam sendo produzidos
da mesma forma que os convencionais ou se realmente eram baseados nas diretrizes da
sustentabilidade.
Dessa maneira, surgiu o termo “fairtrade” (comércio justo), para fornecer confiança a
esses produtos e assegurar que as exigências sociais e ecológicas fossem cumpridas.
Segundo Fletcher e Grose (2011:21), a palavra “fairtrade” é utilizada para referir-se a
produtos que recebem o padrão de certificação de “comércio justo”. Após a verificação se as
condições da produção e do trabalho respeitam as questões ambientais e sociais, os produtos
recebem o selo.
O termo “comércio justo” também é utilizado para descrever produtos que estimulam
o uso de materiais naturais e sustentáveis em conjunto com o design contemporâneo, além de
impulsionar a manutenção de técnicas antigas e artesanatos tradicionais, em que o emprego
regular e o desenvolvimento de habilidades podem devolver dignidade a pessoas e a suas
comunidades desfavorecidas (Udale, 2009:38).
Devido a essas implicações éticas no ato de consumir, as empresas têm procurado
dotar seus produtos de referências e significados que vão além do valor estético e de uso. As
atividades artesanais se encaixam nesses parâmetros, estabelecendo pontos de contato com o
consumo consciente.
Udale (2009:36) escreve que os produtos oriundos de técnicas artesanais dão aos
tecidos qualidade e individualidade: uma peça jamais será igual à outra e essa é uma forma de
“agregar valor a um produto como consequência do tempo e da habilidade necessários para
criá-lo”.
58
Essa característica faz com que o produto artesanal seja avaliado pelo mercado para
além do seu valor de uso. O artesanato atrai um nicho de consumidores saturados com a
padronização e a despersonalização das mercadorias.
Além disso, a relação com o tempo e a forma de produção em que nenhuma peça é
igual à outra intensificaria as relações entre produto e princípios defendidos por essa classe de
consumidores.
Esses consumidores, que procuram uma nova maneira de consumir, encontrariam nas
peças artesanais uma lógica de produção diferente da convencional, em uma escala menor de
fabricação e um vínculo de personalização nos produtos.
Assim como as iniciativas mundiais, o artesanato foi incluído no mercado brasileiro
como resposta às demandas éticas e sociais e por corresponder a muitas das premissas da
sustentabilidade. Braga e Prado (2011:620) escrevem que as práticas sustentáveis começaram
a ser discutidas na moda ainda na década de 1980:
Diante desse contexto, a moda brasileira inicia uma relação com o desenvolvimento
sustentável, à procura de uma convivência mais equilibrada entre os setores e as regiões do
país, buscando promover a inclusão social de comunidades desfavorecidas economicamente.
Em relação ao processo de desenvolvimento no Brasil e sua natureza contrastada,
Magalhães discute uma nova conceituação da prática do design no país e a importância de
aproximar as realidades distintas e diminuir as desigualdades existentes: o design em nosso
país teria “a responsabilidade ética de diminuir o contraste entre pequenas áreas altamente
concentradas de riquezas e benefícios e grandes aréas rarefeitas e pobres” (1998:11).
De início, as atividades artesanais entraram em discussão na sustentabilidade
justamente pelo viés da esfera social; dentre as iniciativas que buscavam atitudes mais
ecológicas e éticas estava o incentivo a essas técnicas e à melhoria das condições de vida de
populações em fragilidade econômica.
59
Com base em dados levantados sobre o mercado de trabalho nas atividades culturais
no Brasil, Silva (2007)15 apresenta um quadro do artesanato que retrata a condição de
vulnerabilidade econômica e social desse segmento da cultura. É possível observar que os
mais baixos rendimentos econômicos e os menores níveis de escolarização pertencem ao setor
em que o artesanato está inserido, o de “patrimônio e cultura popular”.
Figura 8: Imagem da tabela 4 – Rendimento médio do mercado de trabalho cultural, 1991 – 2001, apresentada
na pesquisa “Economia e Política Cultural: acesso, emprego e financiamento”. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/cadvol3.pdf (acessado em 11 de janeiro de 2013).
15
A pesquisa coordenada por Frederico A. Barbosa da Silva faz parte de um conjunto de análises empreendidas
pela Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo
apresenta dados do mercado de trabalho no setor cultural do Brasil e nos seus diversos segmentos entre os anos
de 1992 e 2001.
60
Figura 9: Imagem da tabela 6 – Mercado de trabalho cultural: média de anos de estudo entre 1992 e 2001,
apresentada na pesquisa “Economia e Política Cultural: acesso, emprego e financiamento”. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/cadvol3.pdf (acessado em 11 de janeiro de 2013).
Para Fletcher e Grose (2011:149), esse tempo da produção artesanal pode acarretar
mudanças no modo como as pessoas consomem; “confere um senso de moderação ao
consumo, um limite de quantidade e velocidade, pois afinal só é possível consumir na
quantidade e na velocidade que o artesão é capaz de produzir”.
Além dessa moderação no consumo, as autoras (2011:149-150) afirmam que o
artesanato combina questões políticas com ação prática e pode funcionar como agente na
mudança da cultura material e do modelo de negociações sobre igualdade, condições
ambientais, produção industrial, entre outras questões.
A partir do momento em que as práticas sustentáveis foram intensificadas e o
artesanato passou a ser utilizado no mercado, diversos questionamentos surgiram acerca dos
papéis dos atores envolvidos nesse processo; neste trabalho, procuro compreender como essas
atividades podem trabalhar de uma forma equilibrada e catalisadora de mudanças sociais e
econômicas.
Para Fletcher e Grose (2011:108), “fazer com que as prioridades locais sejam
relevantes para o setor da moda, para promover a sustentabilidade, é um processo
potencialmente transformador, que visa fomentar a solidez econômica e, ao mesmo tempo, a
diversidade cultural”.
Porém, alguns problemas foram detectados a partir dessas iniciativas de inserção do
artesanato no mercado de consumo convencional. Um deles é que da mesma forma que a
globalização incorpora as comunidades locais, ela anula o potencial transformador dessa
mudança, ao inseri-las de forma contraditória; em muitos casos, os elementos que pertencem à
sabedoria popular de uma determinada localidade são usados apenas como inspiração para o
desenvolvimento de novos produtos, com uma estética que remete aos processos artesanais
para atrair esse novo nicho de consumidores. “Isso reduz o elemento cultural a mero
ornamento superficial, diminui a viabilidade e as tradições locais e acelera a padronização de
mercados e produtos” (Ibidem).
Em outros casos, a produção inicial é feita no local e depois ela é deslocada para
lugares de menor custo. O artesanato utilizado ou como elemento de inspiração ou por meio
de interações curtas não propicia uma transformação de fato. O intuito sustentável inicial
esbarra na estrutura econômica e, dessa forma, o potencial ético e cultural dos produtos é
anulado.
Fletcher e Grose descrevem que a introdução das comunidades tradicionais de forma
mais igualitária seria amparada no conhecimento cultural e histórico de cada uma dessas
comunidades, inclusive na utilização de matéria prima e mão de obra disponíveis no local.
62
Em vez de obter o “menor preço possível a todo custo” e aplicar à peça ornamentos
exóticos na forma de estampa ou adorno, desenhar com sensibilidade para com o
local em que os produtos são fabricados e consumidos demanda que os designers
naveguem em uma zona intermediária entre o comércio e a cultura. Requer construir
um conhecimento das tradições, mitologias e simbolismos locais e entender o
significado de cores e ornamentos na perspectiva local e histórica. Essa abordagem
apoia-se em materiais regionalmente disponíveis e em habilidades de moradores
locais, que contribuem para o produto com um conhecimento cultural que lhes é
inerente. (FLETCHER E GROSE:108-109).
O tema do artesanato e sua relação com o design também é discutido por Bonsiepe
(2011a:63). O autor afirma que esses projetos são associados a atributos como sustentável e
socialmente responsável, além de comunicarem uma postura ética. Porém, “nada se fala sobre
a capacidade dessas iniciativas de fomentarem a autonomia das artesãs e artesãos”.
É difícil certificar-se se por trás de uma iniciativa que adota a sustentabilidade como
discurso exista uma atitude similar ao que é comunicado. Outra dificuldade encontrada para
analisar essas parcerias é que na maioria das vezes o contato é breve e, dessa maneira, as
possibilidades de detectar os efeitos positivos e negativos ficam reduzidas.
Fletcher e Grose (2011:110) afirmam que a interação entre o sistema de moda e as
comunidades de artesãos requer uma relação cuidadosa entre as características inerentes do
artesanato - como tradição e estrutura social - e as exigências usuais do mercado. Essa atitude
pode ser catalisadora de mudanças sociais, econômicas e ecológicas, porém é preciso uma
negociação cautelosa, transparente e duradoura.
A principal discussão deste trabalho é refletir como as comunidades tradicionais
dialogam com o sistema de moda e relatar as transformações pelas quais elas passam. Como a
tradição persiste nas formas de produção atuais e de que maneira os artesãos pretendem
inserir seus produtos no mercado?
Essas questões serão elucidadas por meio da observação dos trabalhos realizados pelas
bordadeiras de Passira em contato com o mercado de moda. Pretendo discutir mais à frente
como as atividades – design e artesanato – se implicam e quais as reais contribuições dessa
aproximação.
Para retomar a discussão sobre o contato da moda brasileira com o artesanato, destaco
alguns projetos que assumiram posição de relevância nas últimas décadas por aplicarem em
suas coleções produtos feitos artesanalmente.
O estilista Walter Rodrigues participou em 2000 do projeto “Moda e Artesanato”,
promovido pela organização não governamental A Casa – Museu do Objeto Brasileiro. O
objetivo da iniciativa era o de propiciar um diálogo entre artesãs brasileiras e um estilista de
63
Figura 10: Imagem das artesãs da Associação das Rendeiras de Morros da Mariana, em Ilha Grande, Piauí, que
participaram do projeto “Moda e Artesanato”. Disponível em: http://www.acasa.org.br/objeto/MF-00285/EV40
(acessado em 14 de fevereiro de 2013).
16
A exposição apresentou o resultado do projeto “Moda e Artesanato” no espaço cultural Citibank, em São
Paulo, entre os meses de outubro e novembro de 2001. Em 2003, a exposição foi disponibilizada virtualmente. É
possível visualizar no seguinte enderenço eletrônico: http://www.acasa.org.br/ exposicoes/index_moda.htm.
64
Figura 11: Imagem de peças elaboradas pelo designer Walter Rodrigues em parceria com as artesãs da
comunidade de Morros da Mariana, em Ilha Grande, Piauí. Disponível em: http://www.acasa.org.br/objeto/OB-
00724/8aeb74092f85651ca79f3f4cfe3bf5e2 (acessado em 14 de fevereiro de 2013).
Outra iniciativa que envolveu moda e artesanato foi a da indústria têxtil Marles, em
comemoração ao seu 30º aniversário. A empresa desenvolveu um projeto, em 2001, intitulado
“Designers e Artesãos – Extratos da Moda Brasileira”, com o intuito de promover o setor de
moda nacional no exterior. O projeto resultou em um livro e em duas exposições: uma em São
Paulo e outra em Lyon, França.
O projeto contou com oito estilistas – sete brasileiros e um francês – e com
comunidades de artesanato do Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo. Cada estilista
escolheu uma comunidade e sua tipologia para mesclar o manual com a tecnologia da
indústria Marles. André Lima, um dos designers participantes, afirmou que o projeto deveria
continuar vivo como um direcionamento para o trabalho dos estilistas brasileiros, pois, para
ele, “não existe tecnologia sem artesanato”17.
O estilista Walter Rodrigues também participou desse projeto. O designer elegeu duas
comunidades do Ceará que trabalham com o bordado manual de ponto cruz: Ladeira Grande,
em Maranguape; e Pitombeira, em Itapajé.
17
O depoimento do estilista André Lima está presente no livro “Designers e artesãos: extratos da moda
brasileira, 30 anos Marles”.
65
Figura 12: Imagem de peça produzida pelo estilista Walter Rodrigues em parceria com comunidades de
artesanato cearense. A imagem foi retirada do livro “Designers e artesãos: extratos da moda brasileira, 30 anos
Marles”.
Outro trabalho que repercutiu no cenário de moda nacional foi o de Ronaldo Fraga. A
coleção apresentada em julho de 2010 pelo estilista foi inspirada na obra “Turista Aprendiz”
de Mário de Andrade, que consiste em um registro de impressões do autor modernista acerca
das viagens que ele realizou pelas regiões Norte e Nordeste nos anos 1920, na tentativa de
extrair raízes ou origens do que era genuinamente brasileiro. As roupas apresentadas no
desfile são frutos de um trabalho realizado em parceria com as rendeiras de Pesqueira e as
bordadeiras da cidade de Passira, ambas no agreste pernambucano.
Esse traço é bastante marcante no trabalho do estilista. Segundo Braga e Prado
(2011:591) “as temáticas de suas coleções conseguiam, ainda, a façanha de transformar o
local em universal, partindo de referências brasileiras”.
66
Figura 13: Croquis da coleção “Turista Aprendiz”, do estilista Ronaldo Fraga, apresentada em julho de 2010 na
29ª edição da São Paulo Fashion Week. A imagem foi obtida no blog oficial do estilista na web:
http://www.ronaldofraga.com/blog (acessado em 7 de julho de 2011).
II.
Os
bordados
e
as
artesãs
de
Passira
68
O lugar ocupado pelo artesanato na sociedade atual é reflexo de sua trajetória e das
significações adquiridas por essa atividade ao longo do tempo. As transformações ocorridas
na divisão social do trabalho acarretou uma nova organização caracterizada pela separação
das etapas de concepção e produção dos objetos. Esse processo impactou e influenciou o
próprio conceito de trabalho artesanal, evidenciando os possíveis fatores de sua condição
social e econômica nos dias de hoje.
Um dos objetivos desta pesquisa é explorar os elementos envolvidos na produção
artesanal, os saberes e as competências presentes nesse ofício, buscando, ao mesmo tempo,
entender como os artesãos lidam com esses valores provenientes de um determinado contexto
e as relações existentes entre os objetos e seus produtores.
Segundo Canclini (1983:83), não se deve estudar o artesanato como um objeto final,
mas sim como um produto inserido em relações sociais; é preciso entendê-lo como um
processo. Isso significa, sobretudo, que os elementos mobilizados pelos produtos artesanais
expressam diretamente o que se passa no contexto social e cultural no qual se inserem e
revelam delicadas conexões com seus produtores.
O artesanato está ligado à própria história do homem e a sua capacidade de produzir,
manualmente, utensílios e adornos. Para Sennett (2009:19), a habilidade artesanal retrata um
impulso humano básico e permanente e designa o desejo de um trabalho benfeito por si
mesmo.
Antes de compreender como a prática artesanal e os seus produtores se inserem na
sociedade contemporânea, é importante desenhar uma linha histórica dessa atividade e
perceber os seus diferentes contornos ao longo dos anos, culminando no momento em que o
artesão – agente do trabalho artesanal – passou a ser entendido como aquele que apenas
executa um fazer, sem elaboração intelectual.
O predomínio do modo de produção artesanal sobre os demais está situado na Idade
Média e possui como estrutura particular de organização social as corporações de ofício. Não
existia uma divisão clara entre o trabalho intelectual e o manual; o artesão era o profissional
responsável tanto pela concepção quanto pela execução dos objetos. “As corporações
existiram na Antiguidade Clássica, isto é, na Grécia e Roma, e tiveram o máximo esplendor
na Idade Média, quando a Europa inteira se constituiu em Corporações”, segundo Bardi
(1994:16).
69
Conforme afirma Ethel Leon, foi em Florença, no Renascimento, que houve uma
separação evidente entre o trabalho manual e intelectual, criando uma cisão entre a atividade
do artista e do artesão.
que essa separação ocorre tanto no nível intelectual quanto no social: “a cabeça e a mão não
são separadas apenas intelectualmente, mas também socialmente” (2009:57).
Dessa forma, a tradição artesanal foi empobrecida. Os trabalhos manual e intelectual
se distanciaram cada vez mais, figurando em categorias diferentes. Devido a essas
articulações, o artesanato tem sua produção marginalizada e passa a ocupar um terreno de
vulnerabilidade social e econômica.
Os trabalhos manuais passam a ser executados pelos trabalhadores comuns. Dentro da
sociedade capitalista, “o que é popular é necessariamente associado a fazer desprovido de
saber”, segundo Arantes (2006:14). O autor reforça que essa dissociação entre “fazer” e
“saber” é parte de uma estrutura de manutenção das classes sociais, em que uns têm poder
sobre o trabalho de outros.
Por mais que o artesanato utilize técnicas tradicionais, o que confere a ele uma
impressão de prática do passado, essa atividade se modifica e se reconfigura ao longo do
tempo. Canclini (1983:51) afirma que os produtos artesanais se reestruturam nos dias de hoje
devido às “transformações de significado das culturas populares segundo três dimensões
correlacionadas entre si, isto é, enquanto processos sociais, culturais e econômicos
contemporâneos”.
Em outras palavras, é por meio dessas transformações que as tradições populares se
reconfiguram; e por mais que algumas formas de produção pareçam persistir, há outros
fatores que se redimensionam, refletindo a própria mudança histórica da sociedade.
Hall (2009:248-249) esclarece que a cultura popular não é algo puro e inerte, mas um
“terreno sobre o qual as transformações são operadas”. Ou seja, as culturas populares seriam
conduzidas muito mais por meio das associações de elementos e atores sociais do que por
meio do cárater de persitência em forma de vida e técnicas tradicionais. Seriam estas
transformações que permitiriam a existência e continuidade dessas manifestações culturais.
Mendes (2011:80), em seu estudo com as louceiras do Córrego de Areia (localizado
em Limoeiro do Norte, CE), relata que apesar dos princípios das atividades artesanais
continuarem os mesmos, a tradição e a modernidade se fazem presentes, coexistem, “uma vez
que as práticas artesanais não são arcaicas nem estão fechadas”.
Magalhães (1997:180) escreve que a ideia de deixar o artesanato estagnado em um
determinado ponto, como uma atividade imutável, é inadequada. Segundo o autor, “o
artesanato é um monumento da trajetória, e não uma coisa estática”.
Conforme já discutido acima, o artesanato não retrata apenas os objetos, mas também
as práticas sociais, os processos envolvidos e seus produtores. Por essa razão, não é uma
71
Quem chega a Passira pela rodovia estadual PE-095, logo percebe que por lá se borda
muito. Há, nessa estrada, um Centro Cultural e Comercial do Bordado. Do outro lado, é
possível avistar o centro da cidade. Basta caminhar um pouco pela Rua da Matriz, principal
via de Passira, que encontramos em muitas casas e no comércio local a presença do bordado.
Foi essa prática que deu fama para o lugar, um produto artesanal destacado pela sua beleza e
qualidade, próprios de lá.
O município de Passira fica localizado no agreste pernambucano, a cerca de 100
quilômetros da capital do Estado, Recife. Com uma população de pouco mais de 28 mil
pessoas, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a
cidade é conhecida como terra do bordado manual e do milho. A maioria de seus habitantes
está situada na zona rural (51,3%, segundo mesmo levantamento) e pouco mais de 65% é
alfabetizada. A distribuição de gênero em Passira é de 51,2% mulheres e 48,8% homens. O
salário médio por habitante era de R$ 246, em 2010. Mais de 80% da economia local é
baseada em serviços.
72
Figura 14: Mapa de Passira no Estado de Pernambuco. Imagens retiradas dos sites Google Maps e Wikimedia
Commons, ambos com conteúdo livre (acessados no dia 23 de abril de 2012).
Até 1963, Passira era conhecida como Vila Malhada, e pertencia ao município de
Limoeiro (PE). Com a elevação à categoria de município, o povoado passou a ter o nome
atual, em um decreto assinado pelo governador do Estado à época, Dr. Miguel Arraes de
Alencar.
A bandeira da cidade exalta as principais atividades da região: o milho e o bordado,
além do algodão, produto agrícola muito cultivado no passado. Há também uma frase,
“acordar suave”, que se acredita ser o significado do nome “Passira” em tupi-guarani.
73
As principais festas que figuram no calendário turístico oficial da cidade são a Festa
do Milho e a Feira do Bordado Manual. A primeira teve início em 2005, já que Passira é uma
das principais produtoras de milho do Estado. Já a segunda, faz parte da tradição artesanal da
cidade, tendo início em 1986.
Passira não é uma exceção no cenário nacional. Segundo o IBGE18 (2007:94), o
bordado é a atividade artesanal mais representativa nos municípios do Brasil; está presente em
75,4% deles.
O bordado manual é uma forma de criar desenhos em um tecido, utilizando para este
fim agulhas e linhas, de maneira que os fios sejam manuseados até conceber o desenho
desejado. O bordado feito à mão tende a ser mais caro que o elaborado à máquina, devido à
paciência, ao tempo dedicado a sua feitura e ao conhecimento de quem o produz.
18
Pesquisa de Informações Básicas Municipais – Perfil dos Municípios Brasileiros – Cultura – 2006. IBGE,
2007. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/
cultura2006/cultura2006.pdf (acessado em 30 de janeiro de 2013).
74
Eu acho que deve ter vindo alguma coisa de Portugal porque eu fui uma vez, no ano
de 2000, em Cuba. Eu ganhei uma passagem para visitar Cuba, uma pessoa da
Unesco [...] tava querendo ajudar lá. Aí ela encontrou o trabalho de Passira, ela
disse que encontrou em Paris. Aí ela foi em Fortaleza e veio em Pernambuco
também, ela queria dois representantes que trabalhassem com artesanato para fazer
uma oficina lá em Cuba. Uma colega minha (de uma associação de Olinda) me
indicou e eu fui. (...)Eu fiquei lá uns vinte dias e encontrei com duas pessoas de
Portugal, foi aí que eu imaginei, era uma jovem e uma senhora mais idosa. Quando
elas viram, elas falaram: Ai que coisa linda! Meu Deus, não poder ser uma coisa
dessa! Aí eu disse: Por quê? Aí ela disse: Porque tinham portuguesas que faziam
isso do mesmo jeito que vocês fazem, esse estilo, esses pontos. (...) Ela ficou muito
encantada porque ela disse que as pessoas mais antigas de lá faziam muito. Ela
ficou surpreendida quando soube que tinham cidades em Pernambuco que faziam. É
por isso que eu digo que podem ter sido os portugueses (...) eu acho que teve uma
contribuição daquele povo.
nos paramentos eclesiásticos e nas toalhas dos altares, com seus belos motivos florais e
geométricos: rosas, flores, cruzes, estrelas, letras”.
Durante a primeira etapa da pesquisa, busquei encontrar referências de como as artesãs
aprenderam a fazer o bordado e de como ele chegou até Passira. Elas não souberam
mencionar quando esse saber havia chegado à cidade; dizem que aprenderam com seus
antepassados, seja por vínculos familiares ou sociais, por meio de membros de sua
comunidade. A tradição está nas famílias por muitas gerações e acompanha a história da
localidade.
A bordadeira mais antiga da Associação das Mulheres Artesãs de Passira (AMAP),
Maria Lúcia Firmino, relata a figura de Antônia19, que era uma das artesãs mais antigas do
município quando ela era criança e ensinou sua mãe e sua tia a bordar.
Minha mãe contava que teve uma senhora aqui que chamou um bocado de mocinha
pra casa dela e ensinou. Minha mãe e minha tia se interessaram em aprender e
ficaram morando com ela uns meses, cuidando dos meninos e da casa; e em troca
aprenderam a bordar. Ela era adolescente, minha mãe não gostava de ir pra roça e
foi por isso que decidiu aprender a bordar na casa da família dessa senhora.
A artesã Maria Lúcia relatou que Dona Antônia havia estudado em um convento em
Recife e teria aprendido muitos pontos diferentes por lá. “A mãe dela, na época, levou ela
para um convento porque ela queria ser freira, aí ela passou um tempo lá em Recife”20.
Maria Lúcia explica também que D. Antônia ensinou alguns pontos que ela tinha
aprendido no período do convento às bordadeiras da região. D. Antônia teve papel de
destaque na disseminação desses pontos que hoje são bastante praticados em Passira. A artesã
relata como aprendeu dois pontos específicos: a bainha simples e a bainha oito.
Tinha uma senhora [Antônia], ela morreu quase com cem anos. Ela estudou em
colégio de freira em Recife quando era nova. Aí ela fazia esse ponto aqui, esses dois
[referindo-se a bainha aberta e a bainha oito]. Aí as bordadeiras começaram a se
aproximar dela e perguntavam: Que coisa linda, como é que faz? Aí ela dizia:
Venham que eu ensino. Aí a gente sentava assim perto, ela sentava numa cadeirinha
de balanço. Sentava três, quatro, cinco meninas e ela ensinava. Eu aprendi com ela
e já ensinei para várias pessoas, vai passando de uma para a outra e a cidade toda
aprendeu. Eu sei que começou por ela.
19
Segundo as artesãs da AMAP, a bordadeira Antônia morreu quase aos 100 anos e bordava divinamente bem.
20
Entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em janeiro de 2012.
76
21
Entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em agosto de 2012.
77
Figura 16: Logo da Associação das Mulheres Artesãs de Passira. Foto: Acervo AMAP.
Sennett (2009:88), ao falar sobre a estrutura das oficinas artesanais, escreve que elas
estabelecem um movimento de coesão entre as pessoas por meio do trabalho e da troca direta
de informações. As falas das artesãs esclarecem que o surgimento da AMAP também está
vinculado a uma questão de organização para fortalecer o trabalho das bordadeiras e com isso,
garantir uma maior representatividade, além de auxiliá-las em sua relação com o mercado.
A AMAP conta atualmente com 39 associadas, todas mulheres e bordadeiras. A
associação é composta por uma presidente, escolhida pelas próprias artesãs, além de vice-
presidente, secretária, segunda secretária, tesoureira, presidente do conselho fiscal, primeiro
membro e segundo membro. Qualquer pessoa que desejar pode pedir seu ingresso na
associação, desde que seja mulher e pratique a atividade do bordado.
A fala da atual presidente da associação, a bordadeira Marcília, retrata seus afazeres
dentro da AMAP e a rotina de compromissos das associadas:
No início de 2012, quando visitei pela primeira vez a AMAP, ela já estava em seu
terceiro espaço. Sua sede era localizada em uma sobreloja na Rua da Matriz, principal rua de
comércio da cidade. Nesse local de cerca de 80 m², havia uma pequena loja com produtos que
as próprias artesãs deixavam expostos, um escritório funcional, uma sala de convivência e
uma área com mesas e máquinas de costura, ambiente onde aconteciam as reuniões da
associação.
Figura 17: Sala de convivência do terceiro prédio da AMAP. Esse espaço era utilizado para a realização de
cursos. Foto: Acervo AMAP.
As artesãs Marilene e Maria Lúcia22 contam que quando a AMAP começou todos os
gastos com a abertura e funcionamento eram pagos pelo grupo de bordadeiras. Em 2010, as
artesãs receberam um auxílio da prefeitura de Passira, que passou a pagar o aluguel do prédio
da associação.
Ao retornar a Passira, em agosto de 2012, as bordadeiras haviam mudado para uma
casa mais afastada do comércio, em uma rua sem asfaltamento. Segundo elas, isso aconteceu
porque o aluguel do prédio anterior aumentou de forma abusiva e a prefeitura não aceitou
pagar o novo valor. Com isso, para continuar com o auxílio municipal, as artesãs decidiram
procurar um espaço com um valor próximo ao que pagavam anteriormente.
Figura 18: Sede atual da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
22
Entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em agosto de 2012.
81
Figura 19: A artesã Maria Lúcia Firmino na sala, local em que as bordadeiras instalaram as máquinas de costura
na nova sede da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
No novo espaço, elas se organizaram de forma diferente: não há mais a loja com o
mostruário dos trabalhos, por conta da distância do comércio local. Os bordados ficam agora
guardados em um dos cômodo da casa. Também não há mais espaço para os cursos, que têm
de ser ministrados fora dali23.
“A arte popular manifesta a sensibilidade geral dos que a praticam, por uma seleção
de motivos que são uma espécie de linguagem cifrada. Por detrás desses elementos
aparentemente simples, - aparentemente desconexos, muitas vezes, ao observador
estranho ou desavisado, - estão as infinitas e variadíssimas experiências realizadas
por muitas gerações”.
23
A condição atual das artesãs da AMAP será melhor detalhada na parte III, "As transformações e os caminhos
dos bordados de Passira”, página 107 desta pesquisa.
82
Eu comecei a bordar quando eu tinha 8 anos de idade. Ainda frequentei uma escola
de bordado. Na época a prefeitura dava. O nome da professora é Geni. Eu fui
frequentar a aula só que eu não consegui aprender com ela. Ela ensinava do modo
técnico, não consegui aprender com ela. Eu fui aprender com a minha mãe.
Quando eu aprendi, eu era louca para aprender. Com 10, 11 anos, eu já bordava
com minha mãe. Muitas aprendiam escondido da mãe, porque a mãe achava que
estava jovem, a gente aprendia escondido. Quando ela achava que não, a gente já
tinha aprendido os primeiros pontos.
O bordado vem sendo repassado ao longo das gerações de modo instintivo e cultural;
aprende-se a bordar observando o trabalho de outra pessoa em um processo repleto de
tentativas. Segundo Porto Alegre (Ibidem:59), “o aprendizado costuma se dar de maneira tão
espontânea que a pessoa nem se dá conta de como aprendeu: “aprendi sozinho”, “aprendi
vendo o povo fazer”, dizem”.
Mais ou menos uns oito anos eu já estava aprendendo, com as minhas tias, irmãs da
minha mãe. Minha mãe bordava, mas nessa época ela não tinha tempo, cuidava dos
meninos e não dava tempo. Deixou para lá o bordado. Eu estava com uns oito anos,
minhas tias bordavam, eu ficava perto delas olhando, aperriando e quando deu de
fé eu estava com um pano e assim eu aprendi.
As artesãs explicam que é comum as crianças iniciarem a prática a partir da feitura dos
pontos mais simples, como o ponto atrás, o haste e o nozinho24. Começa-se com pontos
menos elaborados e, de acordo com a evolução do aprendizado, experimentam-se pontos mais
complexos. Cada etapa aprendida dará sustentação e apoio para a seguinte.
Por não dominarem todos os processos de produção do bordado, elas começam a partir
do ato de bordar, preenchendo o desenho que já foi riscado por outra artesã mais experiente;
elas recebem o objeto iniciado por outra pessoa que irá retomar aquele trabalho
posteriormente.
Eu ensinei minhas meninas. Elas faziam, quando grandinhas 8, 9 anos, elas iam
fazendo os pontos mais fáceis e eu fazia os outros pontos.
No começo, geralmente a gente aprende o ponto atrás e a fazer bolinhas, que são os
poás, que são os pontos mais fáceis. Depois a gente aprende os pontinhos mais
abertos, os pontos de casear que eram os matames, depois fui aprendendo o
restante.
24
Os pontos mais utilizados em Passira serão detalhados em um tópico posterior.
25
O poá é também conhecido em Passira como “ponto nó”, “nozinho” ou ainda “ponto bolinha”.
84
como compor os desenhos de maneira harmônica; como conciliar o trabalho das mãos e da
mente; e como cada uma pode organizar e memorizar a atividade por meio das repetições.
Nesse sentido, as bordadeiras aprendem a atividade em um processo de
experimentação com o próprio trabalho; a capacitação ocorre por meio do treinamento e a
observação das artesãs mais experientes. O desenvolvimento das habilidades vem com o
tempo e a prática, e é preciso envolvimento para conquistar e dominar a técnica.
Sennett (2009:328) escreve que a habilidade das práticas artesanais amadurece com o
tempo; os artesãos, ao evoluírem em determinada etapa da atividade, sentem-se orgulhosos
com a conquista, e é esse sentimento que os impulsionam. Sobre essa dinâmica, o autor
afirma:
Os artífices orgulham-se sobretudo das habilidades que evoluem. Por isso é que a
simples imitação não gera satisfação duradoura; a habilidade precisa amadurecer. A
lentidão do tempo artesanal é fonte de satisfação; a prática se consolida, permitindo
que o artesão se aposse da habilidade. A lentidão do tempo artesanal também
permite o trabalho da reflexão e imaginação – o que não é facultado pela busca de
resultados rápidos. Maduro quer dizer longo; o sujeito se apropria de maneira
duradoura da habilidade. (SENNETT, 2009:328).
Figura 20: Imagem do “pano de amostra” destinado ao ensino. Foto: Ana Julia Melo, em janeiro de 2012.
do bordado, com D. Lucia, quando entrou na associação; já Marilene afirma que a artesã tem
muito conhecimento nessa atividade:
Olha, bordar, eu comecei logo cedo, acho que com 10 anos eu já estava bordando,
agora riscar, eu vim riscar de um tempo desse para cá. Eu vim aprender a riscar
depois que eu entrei na Associação, eu me empolguei com as meninas riscando e fui
aprendendo. Dona Lúcia foi minha professora [...] Ela é a mais velha, a gente tem
ela como a mãe da associação.
Eu não queria nunca que acabasse essa tradição na minha cidade, eu não queria.
Porque se Passira hoje é reconhecida, é por conta do bordado manual. Não tem
outra atração aqui na cidade. Já veio muita, muita gente visitar a cidade por conta
do bordado. Se acabar esse bordado, as pessoas vão vir fazer o que aqui?
26
Entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em janeiro de 2012.
87
Porto Alegre (1994) afirma que o fato mais importante para o artesão é a busca
constante pela perfeição de seu trabalho, acima até mesmo da originalidade.
As artesãs buscam a perfeição; conseguirem executar uma atividade que nem todos
são capazes de fazer é motivo de orgulho entre elas. A respeito disso, a artesã Maria Lúcia
afirma: “Nem toda mulher consegue ser bordadeira, tem umas que não aprendem de jeito
nenhum. Muita gente diz que consegue fazer e não faz”27. Ela completa essa ideia e comenta
que para bordar é preciso ter amor à profissão.
Você observa logo, quando pega na peça de uma pessoa que faz com carinho e a
pessoa que faz porque está precisando do dinheiro, que é diferente. Você chega a
ver, o acabamento perfeito, a pessoa trata aquelas linhas bem certinhas, tem as
entradinhas, faz bem direitinho. E tem pessoas que fazem uma rosinha que parece
um pneu de um caminhão, porque faz tudo redondo.
27
Entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em janeiro de 2012.
88
Quando as bordadeiras enfatizam que “tiram o sustento do bordado” e citam “as coisas
que conseguiram por meio do bordado”, demonstram sentir orgulho de manter
financeiramente a família com o seu trabalho, ainda mais por obterem essa conquista por meio
de uma atividade que faz parte de sua própria história.
O artesanato ajudou muita gente aqui, ajudou demais. Muita gente que não tinha
nem uma casinha mais humilde para morar e hoje tem graças ao seu bordado [...]
Eu mesma consegui muita coisa com o bordado, eu construí minha casa e ajudei os
meus filhos a construir a deles.
As bordadeiras que conseguem êxito nessa atividade, não conseguem mais parar e o
bordado passar a ser parte integrante de suas vidas, muito além de uma atividade econômica.
Eu nunca parei, não consigo parar, todo dia se você chegar lá em casa, eu tenho
28
bordado. Eu acho que eu nasci para isso.”
O bordado é crucial, sempre foi. É uma coisa que, vamos dizer assim, para viver
sem ele é difícil. Foi aquilo que eu aprendi, foi aquele exemplo que eu aprendi com
a minha mãe [...] O bordado é o que eu tenho pra contar.
A partir dessas afirmações das bordadeiras, surgem outras concepções e noções que
nos ajudam a entender essa prática em uma dimensão mais ampla. As artesãs não
compreendem seu produto apenas do ponto de vista econômico; ao relatarem que não
conseguem parar de bordar e que nasceram para isso, o bordado adquire uma significação em
suas vidas, um aliado que as ajuda a seguir e a suportar as adversidades.
Segundo Porto Alegre (1994:109-110), o significado do artesanato para uns pode ser
apenas associado a um meio de sobrevivência. Porém, para outros, ganha uma dimensão
maior: “o trabalho torna-se o centro de toda a vida do indivíduo”.
28
Idem.
89
Percebe-se, assim, que o ato de bordar e a vida cotidiana das artesãs se entrelaçam.
Para a mesma autora acima (Ibidem:136), “talvez seja essa forte relação entre trabalho e modo
de vida que atrai e fascina o observador, o fato de que os objetos produzidos revelam pedaços
da vida diária” de quem os produz.
A gente fazia, nós 3 [referindo-se às duas filhas, que aprenderam também crianças o
ofício do bordado] juntas, até meu filho ajudava, meu marido, todo mundo. Todo
mundo fazia. Cada qual fazia a parte que sabia. Aí eu ensinei meu filho a passar o
desenho, meu marido já lavava e passava. As meninas faziam os acabamentos e
bordava os pontos mais fáceis. A gente sempre tinha encomenda, às vezes eu fazia,
não tinha nem terminado de lavar, o pessoal chegava e dizia a gente leva assim
mesmo. Aí depois eu juntei mais umas pessoas, minha irmã mais nova também ficou
um tempo comigo para ajudar nas encomendas.
I. O riscado
Figura 21: Risco elaborado pelas artesãs da AMAP para a preparação do bordado. Foto: Ana Julia Melo
(janeiro, 2012).
91
Após isso, coloca-se o molde sobre o tecido a ser bordado e aplica-se um retalho
embebido em uma solução de anil em barra dissolvido em óleo mineral, de modo corrido
sobre a peça, formando um guia em azul que será coberto com bordado.
Figura 22: Desenho após ser transferido para o tecido com a solução de anil. Foto: Ana Julia Melo
(janeiro/2012).
Essa etapa requer muito cuidado das artesãs, principalmente quando fazem peças
maiores, como jogos de cama e mesa. As formas e os pontos escolhidos para o bordado
precisam estar distribuídos de forma harmoniosa; e o esboço deve ser passado para o tecido
com muita atenção para conduzir o trabalho das bordadeiras na próxima etapa, quando as
artesãs irão preencher os desenhos.
O desenho pode estar lindo, mas se não cobrir direitinho não adianta.
Você vê, pegar um desenho e dar vida a ele. É um risco, sem nenhum significado e
quando você colocar a linha nele você dá vida. Quem faz um bordado bem feito,
você olha uma flor e diz “meu Deus do céu, que coisa”.
Outro fator relevante para a boa execução dessa etapa é a preocupação com o lado
avesso do produto. Quanto mais parecido com o lado direito da peça, melhor executado terá
sido o trabalho. Para a bordadeira Vani, é esse acabamento que define um bom bordado.
Às vezes eu até dava peça minha para alguém fazer. E agora só se eu tiver muito
apressada para dar um bordado para o outro fazer, porque quando vem, vem um
acabamento que quando a gente bota a goma, que passa o ferro, fica aquele
bordado todo feio por trás. O avesso do bordado é muito interessante, para a gente.
Valoriza nosso bordado.
O material necessário para bordar compreende tecido, agulha, linha e tesoura. O tecido
é cortado de acordo com a peça que se pretende bordar. Os tecidos mais usados são os que
possuem bastante composição de algodão na trama, pois são ideais para a feitura das bainhas
abertas e do crivo29.
As bordadeiras usam dois tipos de linhas para bordar: a linha “Anchor Mouliné”30 e a
linha “Cléa”. A escolha do material é imprescindível para a realização do bordado; usa-se a
primeira quando o objetivo é produzir um bordado de qualidade superior, já a segunda é
apropriada para trabalhos mais simples, que não requerem muitos detalhes.
29
A bainha aberta e o crivo são bordados em que os fios do tecido são desfiados, retirados e reagrupados. Os
tipos de bordado serão melhor detalhados mais à frente.
30
A linha tem seis fios separáveis que são frouxamente torcidos juntos. Os seis fios podem ser usados juntos, ou
podem ser separados e usados em grupos de dois, três ou quatro. A composição é de algodão e cada meada tem
oito metros de comprimento. É possível encontrar em Passira dois tipos dessa linha: a Mouliné (uma tonalidade
apenas) e a Mouliné Multicolor (várias tonalidades na mesma linha).
93
A artesã Maria Lúcia Firmino31 contou que gosta de utilizar a linha “Anchor” para
fazer as flores, pois ela é bem brilhante e faz o bordado saltar do tecido. Assim, para ela, o
bordado fica mais bonito.
Figura 23: Imagem da linha Anchor. Foto: Ana Julia Melo (janeiro, 2012).
Para puxar o fio - método usado para a feitura de determinados tipos de bordado, como
o crivo e as bainhas abertas - as bordadeiras utilizam uma tesoura pequena, com lâmina
pontiaguda. Além disso, usa-se esse instrumento para aparar e recortar os tecidos.
Ao finalizarem o ato de cobrir o desenho, as artesãs começam a etapa de acabamento.
Elas utilizam o “ponto matame”32: um ponto firme, que contorna a peça ou uma determinada
parte da peça, e impede o tecido de desfiar. Depois disso, as bordadeiras passam para a etapa
final da produção.
31
Entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em janeiro de 2012.
32
Uma imagem do ponto pode ser conferida na página 103 desta pesquisa.
94
Nesta parte, descreverei a feitura dos principais pontos usados pelas artesãs de Passira.
O objetivo é conhecer os pontos mais comuns e o modo como as bordadeiras os empregam na
composição do desenho de seus bordados.
Os bordados de Passira são elaborados por meio de um repertório compartilhado entre
a maioria das artesãs, que varia de acordo com a técnica de cada uma delas. O mesmo
desenho pode ser executado de maneiras diferentes, devido à escolha dos elementos em sua
composição: pontos, cores, materiais.
O bordado é uma coisa que ninguém faz ele igual, todo mundo tem o toque diferente
[...] Depende muito da delicadeza, é uma coisa muito de si da pessoa. Vai depender
muito do jeito que a pessoa está. Ela tem que estar bem. O meu bordado, acho que é
bem parecido comigo.
33
O ato da engoma é quando o produto é mergulhado na goma e depois passado a ferro para deixar o tecido mais
rígido e esticado.
95
I. Pontos de preenchimento
Esses pontos são usados para completar a forma do desenho, ao dar volume e relevo
para o trabalho. São eles:
- Ponto cheio
O ponto cheio sempre vai. É o que está mais presente, ele nunca foge. Mesmo que a
gente faça outros pontos, alguma coisa tem que ter. Porque para mim eu só faço
bonito mesmo se tiver algum toquezinho cheio. Tem que ter algum pouquinho dele,
porque ele dá mais textura, eu acho.
É o ponto mais comum no bordado de Passira. Ele é feito inserindo a agulha de uma
extremidade da forma a outra, aproximando bastante os pontos para criar efeito de
preenchimento e relevo. Esse ponto é muito utilizado para preencher flores e folhas.
As artesãs relatam que para que o ponto fique bem executado, sua borda deve ficar
uniforme e seu verso igual à face principal do bordado.
96
Figura 24: Imagem do ponto cheio em bordado elaborado pelas artesãs da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, janeiro
de 2012.
- Ponto matiz
Esse ponto tem o mesmo princípio do ponto cheio: preencher as formas, como flores,
por exemplo. No entanto, ele é usado em desenhos maiores, já que não seria possível cobri-los
indo de uma extremidade a outra, como é o caso do ponto cheio.
Para garantir a exatidão da forma, as artesãs o executam em várias camadas, que
podem ser compostas de cores e tons diferentes, criando efeitos de sombreado e dégradé.
As camadas são intercaladas e compostas de fios descontínuos. Esse preenchimento é
feito em etapas; o movimento sucessivo dos fios e das camadas de cores dá dimensão à peça.
97
Figura 25: Imagem do ponto matiz em peça elaborada pelas bordadeiras da AMAP. Foto: Ana Julia Melo,
janeiro de 2012.
- Ponto sombra
O ponto sombra é feito pelo avesso do tecido e cria um efeito de relevo na face
principal do bordado. No avesso, ele é composto por vários pontos cruzados, de uma
extremidade a outra da forma. Já no direito do tecido, o que fica aparente é apenas seu
contorno, como um alinhavo, e o relevo proporcionado pelos pontos feitos no outro lado.
98
Figuras 26 e 27: Imagens de peça desenvolvida pelas artesãs da AMAP com a utilização do ponto sombra em
sua face direita e seu avesso. Fotos: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
- Ponto nó
É um ponto em formato circular, com relevo, conhecido em Passira como “nozinho”,
“bolinha” ou ainda “poá”. Para executá-lo, as artesãs enrolam a linha várias vezes em volta da
agulha, puxando-a em seguida. Seu tamanho depende da espessura do fio utilizado e do
número de vezes em que se laça a agulha. Em Passira, as bordadeiras costumam envolver o
fio três vezes ao redor da agulha para fazer esse ponto.
Figura 28: Imagem do ponto nó em peça elaborada pelas artesãs da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, janeiro de
2012.
99
Figura 29: Imagem do ponto casa de abelha em peça desenvolvida pelas bordadeiras da AMAP. Foto: Acervo
AMAP.
São utilizados para cobrir o desenho do bordado, formando um tracejado. Podem ser
usados separadamente ou em conjunto com pontos de preenchimento. São eles:
- Ponto atrás
Esse ponto é executado a partir de um movimento de retrocesso; a agulha perfura o
tecido do avesso para o direito e caminha para trás até dar a distância do ponto pretendido.
Sua aparência é de uma linha reta e, segundo as artesãs, para que ele seja bem feito, é
importante manter uma mesma distância entre os pontos.
100
Figura 30: Imagem de produto elaborado pelas artesãs da AMAP com a utilização do ponto atrás. Foto: Ana
Julia Melo, janeiro de 2012.
- Ponto haste
É como o ponto atrás, porém ao invés de retroceder na distância do ponto pretendido,
volta-se apenas a metade, em um movimento da direita para a esquerda e, dessa forma, fica
ligeiramente torcido, diferente do atrás, que é reto. É usado para curvas suaves e linhas sem
ângulos muito acentuados.
Em Passira, esse ponto é utilizado para compor as ramificações das flores.
101
Figura 31: Imagem de ponto haste em peça desenvolvida pelas artesãs da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, janeiro
de 2012.
- Ponto corrente
O ponto corrente é feito por meio de laçadas. Os pontos são presos uns aos outros em
cadeia, formando uma corrente. Esse ponto é muito utilizado para contornar flores e ramos.
102
Figura 32: Imagem de peça feita pelas artesãs da AMAP com a utilização do ponto corrente. Foto: Ana Julia
Melo, janeiro de 2012.
São utilizados para finalizar o bordado, decorando as bordas das peças. São eles:
- Ponto matame
Para executar o ponto, a linha envolve a borda do tecido, saindo um pouco do limite da
peça e retorna ao tecido pelo avesso, formando um ponto ao lado. O objetivo do matame,
além de ornamentar o trabalho, é também impedir que a extremidade do tecido desfie.
103
Figura 33: Imagem do ponto matame em peça produzida pelas artesãs da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, janeiro
de 2012.
São bordados em que os fios do tecido são desfiados, retirados ou reagrupados. Para a
feitura desses bordados são utilizados tecidos estruturados como o linho, em que a trama é
visível, para facilitar a retirada dos fios. Esses elementos vazados criam uma aparência de
renda.
Udale (2009:103) usa uma terminologia semelhante para designar essa técnica:
bordados de fios retirados. “Os fios do urdume ou da trama são puxados do tecido, e os
restantes são fixados com pontos de bordado. Os espaços são decorados com costura, bordado
ou renda de agulha, que também servem para fortalecer as estruturas abertas”.
Os fios a ser retirados são contados e desfiados de acordo com a especificidade do
bordado desejado. Eles servem de suporte a todo trabalho. Os pontos são feitos por meio do
desfiar do tecido; sua trama é alterada e os fios restantes (perpendiculares aos retirados) irão
compor o bordado juntamente com a linha. São eles:
104
- Bainha simples
Para confeccioná-la, é necessário definir o tamanho do retângulo de acabamento, que
se localiza um pouco antes da borda do tecido. Depois disso, retiram-se os fios horizontais
desse trecho (em Passira, normalmente são cinco ou seis fios) e agrupam-se os verticais, de
acordo com o efeito almejado por cada bordadeira: quanto mais vazado, mais fios são unidos.
Para finalizar, são feitos pontos de arremate e definição das estruturas abertas, evitando que os
espaços vazados se desfaçam.
Figura 34: Imagem da bainha simples em peça elaborada pelas artesãs da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, janeiro
de 2012.
- Bainha oito
É feita da mesma forma da bainha simples, mas os fios verticais são agrupados de
quatro em quatro. Após isso, dois agrupamentos são torcidos um sobre o outro, com uma
linha ao meio, formando um conjunto de oito fios.
105
Figura 35: Imagem da bainha oito em peça elaborada pelas artesãs da AMAP. Foto: Ana Julia Melo, janeiro de
2012.
- Crivo
Esse ponto é muito utilizado para compor o interior de flores e desenhos, quando se
procura um padrão de vazado. A sua forma mais comum, em Passira, é a que os fios são
retirados de forma espaçada e uniforme, por exemplo: para cada fio retirado, deixam-se três.
Esse trabalho é feito tanto na horizontal quanto na vertical e o trabalho ganha um aspecto de
xadrez. O número de fios pode variar de acordo com o tecido ou o desenho desejado. Depois
de desfiado, as artesãs concluem o ponto reforçando os fios que restaram. Dessa forma, o
trabalho fica ao mesmo tempo vazado e ornamentado.
106
Figura 36: Imagem de produto feito pelas bordadeiras da AMAP com a utilização do crivo. Foto: Ana Julia
Melo, janeiro de 2012.
III.
As
transformações
e
os
caminhos
dos
bordados
de
Passira
108
“Se nossa cultura é criativa, então as “culturas” que estudamos, assim como outros
casos desse fenômeno, também têm de sê-lo. Pois toda vez que fazemos com que os
outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, negando-lhes
sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de
vida e as tornamos subservientes a nós. E se criatividade e invenção emergem como
as qualidades salientes da cultura, então é para elas que nosso foco deve voltar-se
agora.”
34
Disponível em: http://www.icsid.org/about/about/articles31.htm (acessado em 10/01/2013).
35
Na versão original: “- Enhancing global sustainability and environmental protection (global ethics)/- Giving
benefits and freedom to the entire human community, individual and collective/- Final users, producers and
market protagonists (social ethics)/- Supporting cultural diversity despite the globalisation of the world (cultural
ethics)/- Giving products, services and systems, those forms that are expressive of (semiology) and coherent with
110
natureza contrastada e desigual da realidade econômica e social brasileira, que abriga tanto
formas de fazer primitivas e pré-industriais quanto as que empregam tecnologias sofisticadas.
O papel do design seria o de equilibrar essas realidades distintas.
Do encontro entre o artesanato e design surgem importantes questionamentos a
respeito das implicações e da real contribuição desse contato. Como acontece a intervenção de
designers em uma comunidade artesanal? Em quais diretrizes deve ser pautada essa
aproximação? Qual é o papel do design nesta relação e até em que ponto ele pode intervir?
Como aproximar os elementos presentes no desenvolvimento produtivo artesanal aos do
mercado?
Tais discussões são recorrentes nos estudos que permeiam essas duas áreas.
Incorporando essas indagações ao meu objeto de estudo e aplicando ao que observei no
recém-contato do bordado de Passira com o design de moda nacional, busco esclarecer as
seguintes questões ao longo deste capítulo:
- Como aconteceu, na prática, o encontro entre o bordado de Passira e o design de
moda?
- Que tipos de procedimentos foram aplicados nessa interação e quais reflexos isso
trouxe aos produtos e seus produtores?
- Como as bordadeiras de Passira dão continuidade aos seus trabalhos depois de
participar de projetos que uniram essas áreas?
- Como elas pensam o seu produto antes e depois desta interação?
- O que esperam do artesanato após o contato com o design?
Nesse sentido, esta pesquisa buscará compreender as modificações que estão
ocorrendo na estrutura interna da comunidade artesanal de Passira, sua aproximação com o
design e as repercussões dessa interação no trabalho das artesãs.
tinham de ser partilhadas entre várias bordadeiras para que pudessem entregar em tempo
hábil.
Elas marcavam encontros em suas casas semanal ou mensalmente, dependendo do
volume de pedidos e atividades. Nessas reuniões, as artesãs dividiam as encomendas que
recebiam e cada uma realizava seus bordados em sua própria casa.
Nesse período, além do bordado tradicional (artigos de cama e mesa), as bordadeiras
recebiam produtos de duas marcas de vestuário, uma de Recife e outra de Caruaru. Essas
peças eram entregues já costuradas para que elas aplicassem os bordados em determinadas
partes.
Figura 37: Imagem de uma peça produzida pela marca Seaway (vestuário masculino) e bordada pelas artesãs da
AMAP. Esses pedidos, iniciados antes do surgimento da associação, persistem até hoje e são o único trabalho
regular que recebem de empresas de moda. Foto: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
Mudou muita coisa quando eu entrei na AMAP, a gente conhece um mundo novo,
completamente diferente, as pessoas começaram a ver que a gente não era única, a
gente era um grupo, começavam a olhar pra gente de forma diferenciada, que a
gente era mais forte [...]Muitas aqui buscam apoio, renda, muitas aqui tiram renda
para sobreviver.
114
37
Disponível em: http://www.cultura.gov.br/culturaviva/wp-content/uploads/2012/03/Apresentacao-cultura-
viva-2012-site.pdf (acessado em 8 de fevereiro de 2013).
38
Disponível em: http://www.fundarpe.pe.gov.br/politicacultural_pontos.php (acessado em 8 de fevereiro de
2013).
115
Figura 38: Imagem de uma das oficinas ministradas pelas artesãs para o projeto Ponto de Cultura na sede da
AMAP. Nessa foto, a artesã Severina, conhecida como “Vani”, ensina o macramê - técnica de tecer os fios
usando apenas as mãos - para as crianças e mulheres mais jovens da comunidade. Foto: Acervo AMAP.
A gente dava as oficinas. A gente ia para a zona rural, para os quilombolas, para
dar cursos, trabalhar com a comunidade de lá. Nós demos cursos de casinha de
abelha, macramê e bainha aberta. A gente capacitava essas pessoas.
39
A AD Diper é um órgão estadual vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de
Pernambuco. O foco de suas ações está na captação de investimentos e projetos que incentivem o crescimento da
economia local. Disponível em: http://www.addiper.pe.gov.br/site/page.php?page_id=58 (acessado em 12 de
fevereiro de 2013).
40
Segundo nota emitida pela assessoria de imprensa da AD Diper. Disponível em: http://www.addiper.pe.
gov.br/site/imprimir.php?idNoticia=474 (acessado em 30 de março de 2013).
41
Disponível no portal de parcerias apoiadas pelo governo federal:
http://api.convenios.gov.br/siconv/id/proposta/1433029 (acessado em 30 de março de 2013).
117
42
Idem.
43
Disponível no portal de parcerias apoiadas pelo governo federal:
http://api.convenios.gov.br/siconv/id/proposta/1433029 (acessado em 30 de março de 2013).
118
As artesãs contam que ele ficou impressionado com o trabalho delas, principalmente
com um conjunto de papoulas feitas em ponto matiz, desenvolvido por D. Nêga, e com os
bordados em casinha de abelha.
Ela [D. Nêga] tinha uma peça em casa, se não me engano era um lençol e ela
gostava muito. Quando a gente fez o registro das nossas peças, ele pediu para quem
tivesse uma peça em casa que gostou de fazer, que trouxesse. Todo mundo se
apaixonou quando viu a peça de Dona Nêga.
Ele mandava a gente criar. Teve uma parte da oficina dele que ele mandou a gente
pensar o que a gente queria bordar.
Figura 39: Entre os desenhos que foram criados durante a oficina estava o do “sol atrás das nuvens”, nome dado
ao bordado pelas artesãs. Ele representa o momento descrito acima e foi utilizado em uma das peças produzidas
em quantidade para a marca Ronaldo Fraga, mesmo não tendo sido desfilada. As artesãs contam que essa peça
teve muita aceitação no mercado. Foto: Ana Julia Melo Almeida/Acervo da AMAP.
Ronaldo Fraga reuniu o trabalho das artesãs e levou para seu ateliê, onde selecionou os
bordados de que mais gostou. Um mês depois, o designer retornou a Passira com esses
trabalhos, alguns desenhos elaborados por ele e pedaços de tecidos a serem bordados para o
desfile “Turista Aprendiz”. Ele detalhou a temática da coleção e traçou com elas um
cronograma de trabalho.
Essa coleção foi inspirada e leva o mesmo nome da obra de Mário de Andrade, que
consiste em um registro de impressões do autor modernista acerca das viagens que ele
realizou pelas regiões Norte e Nordeste nos anos 1920, na tentativa de extrair raízes ou
origens do que era genuinamente brasileiro.
De março a junho, elas ficaram responsáveis por produzir todos os bordados que
seriam utilizados nas peças do desfile. Segundo as artesãs, as roupas não vieram costuradas,
mas sim em recortes que, após bordados, seriam unidos pelo ateliê de Ronaldo Fraga para dar
origem aos produtos. Alguns deles já vinham com o desenho riscado; em outros, as
bordadeiras aplicavam os seus motivos, apresentados anteriormente ao designer, e também
utilizaram os desenhos desenvolvidos durante a oficina.
120
Ele mandou todo mundo colocar as ideias, a imaginação e todo mundo fez. Depois
de um mês, ele veio com aqueles que ele tinha mais gostado. Ele disse “gostei de
todos, mas esses aqui eu acho que vai ser melhor” [...] Aí a gente foi fazendo as
peças que ele selecionou, só em tecido. A gente não sabia como ele ia usar.
Não sabíamos que seria um vestido. As peças vinham cortadas com “frente, costa,
mangas”. Lá eles costuravam.
Segundo a artesã Maria Lúcia, essa seria a etapa inicial do projeto e só depois elas
passariam por oficinas de capacitação, em que aprenderiam o processo completo de produção
das roupas, incluindo a modelagem e costura. O intuito era divulgar o trabalho delas e depois
treiná-las por meio de cursos para dar continuidade com um produto mais atualizado e
competitivo para o mercado.
A gente só fez o bordado, a gente não cortou nem um lenço nem costurou, porque a
intenção não era essa. O objetivo era que a gente ia bordar apenas as peças para o
desfile. Tinha que ser rápido, porque faltava pouco tempo e que depois a gente ia
ser capacitadas para confeccionar as roupas. Já entregar as roupas prontas.
Figura 40: Imagem das artesãs Maria Lúcia Firmino (centro) e Marcília Cristiane Firmino (direita) no desfile
“Turista Aprendiz”, apresentado em junho de 2010 durante a São Paulo Fashion Week. Foto: Acervo AMAP.
Figura 41: Imagem de uma das instalações da exposição “Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga:
cultura popular, história, moda”. Ela representa o primeiro projeto de moda incentivado pela Lei Rouanet, que
marca o reconhecimento da moda como vertente cultural brasileira. Disponível em:
http://saofranciscoronaldofraga.com.br/ (acessado em 31 de março de 2013).
Figura 42: Imagem do desfile “Athos Bulcão” de Ronaldo Fraga, apresentado em janeiro de 2011. Disponível
em: http://modaspot.abril.com.br/desfiles/desfiles-spfw/spfw-inverno-2011/ronaldo-fraga-3#11 (acessado em 7
de fevereiro de 2012).
A gente conheceu uma das donas. Quando ela veio com a Gabriela conhecer
Passira, antes de Ronaldo, ela veio informar do projeto, como ia acontecer. A gente
conheceu essa menina, Ana Paula, a dona do Espaço Elas. Depois que ela viu as
peças, desfilou para Ronaldo, ela pediu para a gente fazer uns vestidos, umas
calças, uns guardanapos.
Outra marca com a qual as artesãs trabalharam foi a Serpui Marie, de agosto a
novembro de 2010. Elas bordaram em pedaços de tecidos de tamanhos pré-definidos, que
mais tarde foram enviados à sede da empresa, em São Paulo, e utilizados para a confecção de
bolsas. Nesse trabalho, elas não tinham conhecimento do produto que iria ser gerado a partir
de seus bordados.
Durante a execução desses trabalhos, elas continuaram com os seus bordados
tradicionais. As artesãs produziam artigos de cama e mesa e enviavam para outras cidades,
como Recife. Por mais que ficassem entusiasmadas em trabalhar com algo novo, como a
moda, elas tinham receio de que essa produção fosse perene e por isso buscaram conciliar a
nova demanda com os trabalhos que já faziam parte de sua rotina.
A fala da bordadeira Maria Lúcia demonstra esse medo: “A gente sabe que esse
negócio de roupa é coisa passageira”44. A insegurança deriva do senso comum de que a moda
trabalha em ciclos passageiros. A produção que hoje se pratica é efêmera e alterada
constantemente, por conta das tendências que norteiam o mercado de moda.
44
Em entrevista concedida no mês de janeiro de 2012.
125
destreza e cuidado que o executor emprega na medida em que trabalha. Por isso, classifica os
produtos provenientes dessa atividade como “manufatura de risco”45.
O autor contrasta esse tipo de produção com a “manufatura de certeza”46, que seria
sempre produzida em quantidade e de forma automatizada. Nesse caso, a qualidade do
resultado é determinada antes da execução de qualquer produto, o que traz uma garantia de
que o produto final sairá exatamente como o planejado no início.
A prática do design é guiada por diretrizes já definidas na fase de concepção dos
produtos. Os processos posteriores são calculados por quem concebe a peça e executados por
outras pessoas.
Já no artesanato, o artesão modifica o produto ao longo das etapas de seu trabalho. A
intenção inicial funciona como um guia, mas ainda existe flexibilidade durante a produção. Se
ele julgar pertinente alterar os materiais envolvidos e a forma como ele os emprega a fim de
obter maior êxito na conclusão de sua peça, ele o fará. Ele próprio concebe e executa a
atividade. Acerca disso, Silva (2011:149) argumenta:
45
O conceito originalmente utilizado por David Pye é “workmanship of risk”.
46
O conceito originalmente utilizado por David Pye é “workmanship of certainty”.
126
A divisão podia ser tanto pelas etapas de produção do bordado, quanto por pontos
específicos. O que contava nessa seleção era a rapidez, mas também a boa execução de
determinada fase ou ponto.
Figura 43: O documento mostra como as artesãs dividiram o trabalho durante o projeto “Pernambuco com
Design”, dando destaque para a habilidade de cada uma delas. Foto: Acervo AMAP (Alguns dados foram
manipulados por se tratarem de informações pessoais das associadas, como seus números de documento).
Diferente dos produtos que estavam habituadas a fazer, dessa vez as artesãs não
tinham domínio de todas as etapas necessárias para a confecção daquela peça. As bordadeiras
não sabiam exatamente a quais adições e mudanças esse material seria submetido após passar
por elas.
127
Era tanto pedaço de pano que eu nem sabia que ia dar nisso tão bonito no final. A
gente bordou as partes e ele [Ronaldo Fraga] levou e montou lá.
Figura 44: Detalhe de tecido estampado por Ronaldo Fraga e bordado pelas artesãs de Passira. Foto: Acervo
AMAP.
Ele dizia que a gente tinha bom gosto das cores. Nunca ele reprovou nenhuma cor,
quando a gente colocava ele dizia ‘perfeito’. Ele dizia ‘olha, quero tons escuros’, aí
a gente procurava. Tons claros, aí a gente já sabia. Aí ele não teve muito problema
com cor não, ele não deu cor nenhuma [em relação à coleção “Turista Aprendiz”].
A gente usava ponto cheio, ponto sombra, ponto de casear, ponto atrás, qualquer
ponto. Era bem livre. Eu lembro de uma peça que foi bem livre. Ele disse ‘olha,
agora vocês façam aí o que vocês imaginarem, agora eu quero uma diversidade
bem grande de pontos e de cores’.
Outros desenhos chegavam até as bordadeiras impressos em papel vegetal. Elas eram
responsáveis por passar os motivos para o tecido, elaborando a composição que achassem
mais adequada, além do emprego de pontos e cores.
Figuras 45 e 46: Imagens dos desenhos do designer Ronaldo Fraga para a coleção “Turista Aprendiz”. Fotos:
Acervo AMAP.
129
Figura 47: Imagem dos motivos aplicados em uma das peças desfiladas em junho de 2010 por Ronaldo Fraga.
Foto: Acervo AMAP.
Figuras 48 e 49: Imagens de uma peça com a utilização do bordado casinha de abelha, apresentadas na coleção
“Turista Aprendiz”. Foto: Acervo AMAP.
No segundo trabalho, as cores já foram determinadas, porque ele disse assim ‘são
cores escuras’. Aí a gente usou cinza, preto, aí em peça escura a gente usou branco.
Aí ele ligou ‘mas só branco não, bote uma cor bem ativa’. Aí a gente pensou
‘laranja’, ele disse ‘perfeito!’. Aí a gente chegou em um amarelo quase laranja.
Pela primeira vez, as artesãs se depararam com um tecido de cor escura. Até então,
elas estavam habituadas a trabalhar com tons claros, principalmente branco e bege. Essas
cores possibilitavam o uso do anil azul claro para marcar o risco a ser seguido na etapa de
bordar.
131
Figura 50: Imagem do desfile “Athos Bulcão” do estilista Ronaldo Fraga. Disponível em:
http://modaspot.abril.com.br/desfiles/desfiles-spfw/spfw-inverno-2011/ronaldo-fraga-3 (acessado em 7 de
fevereiro de 2012).
Figura 51: Desenhos na cartolina utilizados para traçar os motivos nas peças da coleção “Athos Bulcão”. Foto:
Acervo AMAP.
Tiveram peças que quase todas participamos, cada uma ia deixando sua marca.
Não façam completo, ele disse. Para mostrar como é o começo e o final [...]A gente
dizia para todo mundo fazer um pouquinho. Todas faziam um pontinho, uma
coisinha. A maioria participou.
A utilização desse bordado não concluído já sinalizava para as artesãs que o designer
empregaria o trabalho delas de uma forma diferente da que elas praticavam. A princípio, elas
133
acharam estranho e inusitado não concluir o desenho, deixando a peça incompleta. Essa
composição não era harmoniosa para elas.
Quando iniciaram essa nova prática, elas relatam que gostaram do emprego de várias
cores e pontos de maneira aleatória. Era um trabalho divertido, como demostra a fala da artesã
Maria Lúcia:
Teve umas peças que a gente colocou muito bordado, tinha muita coisa aí. Olha,
teve um vestido todinho[a artesã refere-se à foto abaixo], onde você imaginasse,
frente, costa, tinha um negócio aqui, umas abas, todo canto mesmo tinha bordado.
Estava fazendo um ponto, aí de repente a gente já mudava, já fazia outro. Mas eu
achei bom, achei bom porque a gente se divertia. Quando a gente estava na metade,
já começava outra. Foi divertido. Era o mesmo que tá brincando. Muitas cores.
Enquanto tivesse uma perna de linha, nunca era pra terminar uma rosa com aquela
mesma linha. Esse vestido a gente tinha feito outros bordados, aí o restante das
linhas todinhas que tinham sobrado, a gente juntou as sobras pra fazer um. Têm
todas as cores, o vermelho, o amarelo, toda cor.
Figuras 52 e 53: Imagens de uma peça da coleção “Turista Aprendiz” bordadas pelas artesãs da AMAP, com a
utilização de bordados não acabados. Imagem à esquerda: disponível em
http://modaspot.abril.com.br/desfiles/desfiles-spfw/spfw-verao-2011/ronaldo-fraga#26 (acessado em 8 de
fevereiro de 2013). Imagem à direita: Acervo AMAP.
até que visualizaram os produtos prontos. Ele costurou alguns pedaços de tecido pelo avesso
do bordado, deixando aparentes os detalhes do acabamento dos trabalhos.
Porque teve peça que a gente fez que ele usou o avesso. A gente bordou e ele
costurou a peça pelo avesso e a gente pensou ‘Oxe, que doidera costurar isso pelo
avesso!’. Cada ideia, né. Ele disse ‘olha, deixe parte bordada, parte não bordada,
de um jeito, de outro jeito’. A gente fazia muita coisa, muito ponto na mesma peça.
No final a gente achou que ficou interessante, a gente nunca tinha pensado em fazer
um negócio daqueles.
Quando eu vi, para mim foi uma surpresa. Quando eu vi eu pensei ‘nossa, gente,
para que ele colocou do avesso?’ para mostrar que a perfeição era o avesso que a
gente fez.
Alguns pontos ao serem invertidos não aparentaram muitas modificações, já que era
difícil distinguir o lado avesso do direito. No entanto, o ponto sombra é um dos que ao ser
costurado pelo avesso adquiriu uma aparência muito diferente. Enquanto na face direita ele é
ponto de relevo e o que fica evidente é apenas seu contorno, no avesso ele é uma sequência de
pontos cruzados, dando uma ideia de preenchimento.
Figuras 54 e 55: Imagens da feitura do ponto sombra em sua face direita (foto à direita) e do seu lado avesso
(foto à esquerda). Fotos: Acervo AMAP.
algumas alterações na apresentação desse saber-fazer e no emprego dos bordados nas peças.
Na foto abaixo, o ponto sombra aparece na roupa utilizado ao avesso; um ponto de contorno
passa ser de preenchimento com a mudança do lado.
Figuras 56 e 57: Imagens de peças da coleção “Turista Aprendiz” bordadas pelas artesãs da AMAP, com a
utilização do ponto sombra invertido na gola. Fotos: Acervo AMAP.
Essas novidades despertaram a atenção das bordadeiras, especialmente por expor todo
o seu repertório e habilidade. Dentre as peças feitas por elas, destacaram algumas que
marcaram o seu trabalho. Uma delas leva o nome das artesãs que executaram os bordados na
peça.
136
Figuras 58 e 59: Imagens de uma peça da coleção “Turista Aprendiz” bordada pelas artesãs da AMAP, com
pontos não acabados e seus nomes bordados. Fotos: Acervo AMAP.
Eu gostei dessa peça porque ela reúne muitos trabalhos em uma peça só. Esse é um
trabalho livre, que a gente reunia bem muitos pontos misturados. Cheio, não cheios,
pontilhados, tudo. Eu gostei tanto. Se eu não me engano eu fiz 12 vestidos desses.
Todo mundo deixava lá e eu ia buscá-lo porque eu gostava de fazer.
Figuras 60 e 61: Imagens de uma peça da coleção “Turista Aprendiz” bordada pelas artesãs da AMAP. É
possível perceber que o produto também foi costurado ao avesso, o nome das artesãs está ao contrário nas
imagens. Fotos: Acervo AMAP.
Tudo partiu dela [D. Nêga], o risco, as cores, os pontos, a decisão de colocar as
folhagens. Só os nomes que foi no final. Essa composição ela tinha não sei quantos
anos atrás. Tinha gente que não sabia fazer, por ser um ponto antigo. Além de
gastar muita linha, esse ponto é muito trabalhoso de fazer. Muita gente não soube
fazer. Eu me lembro que na época quem soube fazer foi minha mãe junto com ela e
aí depois que ela começou a ensinar as meninas [...] Essa foi uma das mais
marcantes. Ela estava bordando aquela peça. Ela começou a bordar na terça-feira.
Ela começou a fazer essa peça com a gente. Começou com as papoulas vermelhas.
Ronaldo estava presente. Ele achou divinamente lindo. Ela bordou quarta, quinta e
sexta de manhã. Foi para casa porque estava se sentindo mal. Faleceu no sábado.
Aí nos juntamos 7 pessoas, eu, minha mãe, Marilene, Denir, Vani, Nataly e Alcione.
A gente bordou, terminamos e aí quando terminou ele teve a ideia de a gente
colocar o nome das pessoas que bordaram. Colocamos o nome das 7 mais o de D.
Nêga.
O designer optou por costurar o pedaço de tecido ao contrário e pediu para as artesãs
bordarem seus nomes em meio à composição. No detalhe da foto acima, pode-se perceber que
o trabalho, embora estivesse ao avesso, estava muito bem acabado e demonstra a qualidade
dos bordados produzidos na associação.
138
Foi uma experiência muito boa. A gente nunca tinha despertado, a gente nunca
tinha imaginado que era possível. Aí depois que a gente fez essas coisas é que a
gente foi ver de perto como era a reação do público, aí a gente viu que a gente pode
fazer e que todo mundo gosta. A gente estava lá nos eventos e as pessoas ficaram
admiradas, e perguntavam ‘nossa, mas como fizeram? Por que vocês nunca fizeram
antes?’.
Ao sair de seu contexto e adentrar outro, as artesãs mudaram a concepção que tinham
dos seus bordados. O trabalho era apreciado e elogiado por todos; as pessoas se admiravam
por não ter visto os bordados de Passira em roupas antes, isso possibilitou às artesãs
enxergarem novos caminhos.
Transformou muito. Abriu a mente da gente. Assim, levou a gente a conhecer novos
horizontes. A gente viu que a gente podia ir além, que a gente era capaz. A
autoestima melhorou muito. Se alguém chegar aqui e disser que tem umas roupas
para bordar, a gente não vai ter medo, porque o que a gente viveu, se capacitou
para tudo isso.
O ponto doidinho era para a gente preencher um longo espaço. A gente fez para a
coleção do São Francisco, uma coleção bordada, onde a gente tinha que preencher
muitos espaços. Se colocasse muita linha, a peça ia ficar muito pesada. A D. Lucia
foi fazendo uns pontinhos e foi ficando interessante. A gente sempre tem costume de
colocar apelido nas coisas e a gente disse ‘esse é o ponto doidinho’. A gente
também chamava aquilo de ‘bora encher para não ficar murcho’.
Figuras 62 e 63: Imagens de dois riscos que foram desenvolvidos pelo designer Ronaldo Fraga para serem
bordados pelas artesãs da AMAP. Essas peças compuseram uma das instalações da exposição “Rio São
Francisco navegado por Ronaldo Fraga: cultura popular, história, moda”. Fotos: Acervo AMAP.
Figura 64: Imagem da instalação da exposição “Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga: cultura
popular, história, moda”. Algumas dessas peças foram bordadas pelas artesãs de Passira. Destaque para o vestido
141
localizado à direita, que leva um dos riscos apresentados nas imagens anteriores. Foto: Disponível em
http://saofranciscoronaldofraga.com.br (acessado em 30 de janeiro de 2013).
As bordadeiras foram procurar em seu repertório de pontos quais deles eram mais
adequados para aquele intuito e começaram a fazer testes variados naquele material. Elas
perceberam que para bordar grandes espaços em tecidos mais delicados, elas teriam de pensar
em algo que tornasse o bordado mais leve.
Após uma semana de tentativas, em que conversaram umas com as outras, buscaram
os pontos em bordados já realizados e compararam os tecidos com os quais já estavam
familiarizadas com aquele material novo, elas chegaram à conclusão de que poderiam utilizar
os pontos de uma forma aleatória, sem completar o desenho, criando apenas o efeito de total
preenchimento.
O ponto doidinho não segue uma direção fixa, como os demais pontos. Ele é feito de
forma mais livre; o tamanho e a distância entre os pontos não são determinados. O motivo não
é preenchido totalmente, havendo espaços vazios.
Sennett (2009) explora o vínculo entre “mão” e “cabeça” para ressaltar as relações
entre concepção e execução na atividade artesanal; uma prática que demanda habilidades e
capacidades específicas, consideradas não apenas manuais, mas, sobretudo criativas. “Todo
bom artífice sustenta um diálogo entre práticas concretas e ideias; esse diálogo evolui para o
estabelecimento de hábitos prolongados, que por sua vez criam um ritmo entre a solução de
problemas e a detecção de problemas” (2009:20).
142
Figura 65: Imagem de uma peça produzida pela artesã Maria Lúcia, com o ponto doidinho. Pode-se perceber
que há espaços vagos entre um ponto e outro e o tamanho deles é variado. Foto: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
O ponto novo brotou do contato constante das artesãs com os materiais envolvidos e
suas técnicas, além de se engajarem umas com as outras. Não há autoria individual da
invenção, fruto de uma prática coletiva.
Segundo Wagner (2010), a produtividade ou criatividade estão vinculadas à
manipulação das técnicas de trabalho e à forma como elas se adaptam às novas finalidades e
aplicações dessa atividade. Dessa maneira, o seu sentido se constrói na relação que possui
com seu contexto e saber.
Pode-se mesmo afirmar que, no processo de evolução de uma cultura, nada existe
propriamente de “novo”. O “novo” é apenas uma forma transformada do passado,
enriquecida na continuidade do processo, ou novamente revelada, de um repertório
latente (MAGALHÃES, 1997:51).
próprio contexto formam um saber não cristalizado. A tradição contida nessa produção não é
perene, não possui o caráter de permanência, ela é mutável.
"O artesão brasileiro é basicamente um designer em potencial, muito mais do que
propriamente um artesão no sentido clássico" (Magalhães, 1997:181). Com base nessa
afirmação, pode-se concluir que essa produção é caracterizada por um alto índice de invenção.
O artesão seria detentor de uma atitude de pré-design, um designer em potencial, por trabalhar
com saberes e materiais vernaculares, próprios do contexto em que vivem.
Outra autora que aborda esse potencial criativo presente nos saberes populares
brasileiros é Meireles. Para ela, existe uma propensão a mudar por se tratar de uma prática
não cristalizada.
O doidinho surgiu assim de repente. A gente não tinha noção de como ia fazer o
trabalho, aí surgiu o doidinho.
As pessoas estavam cansadas de ver o bordado, aí quando o doidinho veio, ele veio
para modificar, para melhorar o bordado e fortalecer ainda mais. Quando a gente
sai para vender, todo mundo pergunta por que em Passira é sempre a mesma coisa.
As peças que a gente fez com o doidinho, nós vendemos bastante, porque aquilo era
novidade. Não só para o Ronaldo Fraga, a gente vendeu pro Espaço Elas, pra
Seaway. Em peças que a gente levou para o Centro Pernambucano de Design, a
gente colocou o doidinho na cama e mesa [...]E o pessoal sempre pergunta como é
esse ponto, como surgiu isso.
145
Considerando que o produto desenvolvido pelas artesãs foi inserido em outro contexto
social, ou seja, na cultura de moda47, penso que se deva indagar também o que é modificado e
gerado por essa interação.
As relações estabelecidas entre culturas diferentes é denominada por Canclini
(2008:XIX) como “processos de hibridação” e caracteriza-se por “processos socioculturais
nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetos e práticas”.
Figura 66: Imagem de peça do desfile “Athos Bulcão” do designer Ronaldo Fraga, bordada pelas artesãs de
Passira. Disponível em: http://modaspot.abril.com.br/desfiles/desfiles-spfw/spfw-inverno-2011/ronaldo-fraga-3
(acessado em 7 de fevereiro de 2012).
massas. Dessa forma, o artesanato brasileiro convive com outras esferas culturais e é fruto
desse processo de fusão entre elas.
O bordado é o espaço de trabalho em que as artesãs aplicam sua criatividade e
espontaneidade. É por meio de sua prática constante que esse saber continua vivo e mutável.
O tópico seguinte aborda os reflexos dessa aproximação com o design, a forma como as
artesãs incorporaram essa experiência e os caminhos que elas veem para o artesanato daqui
para frente.
Foi um despertar para mim, um despertar muito grande, porque a gente nunca tinha
despertado. Teve uma época que Passira fez blusas, mas era de uma maneira
diferente, a gente bordava só como se fosse bordado para bebê, coisa pequena, e
não era colorido, só fazia tom sobre tom. Geralmente era blusa, aí a gente fazia
umas tirinhas de bordado. Mas para fazer assim, desenhos grandes, cama e mesa
para botar em peça, a gente nunca tinha despertado para isso. Aí foi uma
experiência muito boa.
147
A fala da artesã Maria Lúcia demonstra o despertar para novos produtos e o processo
de reformulação pelo qual passou o trabalho delas. Elas perceberam que as pessoas gostavam
das roupas com bordados coloridos, o que diferenciava da produção tradicional de artigos de
cama e mesa.
A gente não tinha despertado para isso, a gente só tinha despertado para cama e
mesa, mas para roupa não. Teve uma senhora que um dia falou que comprava as
coisas para fazer vestido. Aí eu disse ‘nossa, não bate bem. Como é que uma pessoa
vai fazer isso’. Agora eu acredito que tenha feito mesmo. Lá a gente viu que as
pessoas gostam e que a gente pode fazer.
Figura 67: Imagem de peça desenvolvida pelas artesãs da AMAP para o Centro Pernambucano de Design, com
motivos inspirados nas cerâmicas e azulejos de Olinda (PE). Foto: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
Elas montaram uma pequena coleção de artigos de cama e mesa para o Centro
Pernambucano de Design, em que elaboraram o bordado empregando o ponto sombra
invertido. Em suas peças, Ronaldo Fraga já havia utilizado o trabalho das artesãs do lado
avesso, em toda sua composição. Porém, ao utilizarem esse recurso, as bordadeiras aplicaram
apenas o ponto sombra dessa forma, já que consideraram interessante essa mudança.
149
Figura 68: Imagem de peça desenvolvida pelas artesãs da AMAP para o Centro Pernambucano de Design.
Nesse produto, as bordadeiras aplicaram o ponto sombra ao contrário. Foto: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
O contato com outras formas de criação e aplicação dos bordados nas peças refletiu no
trabalho das artesãs. Elas absorveram algumas utilizações de pontos e composições que
julgaram bonitas, como é o caso do ponto nó, que após o contato com o designer elas
passaram a chamar de “poás”.
Figuras 69 e 70: Imagens de peças produzidas pelas artesãs da AMAP para o Centro Pernambucano de Design,
com o emprego do ponto nó. Foto: Ana Julia Melo, agosto de 2012.
150
Esse ponto, que anteriormente era utilizado apenas para ornamentar as flores, foi
utilizado de forma independente, sem outros elementos e desenhos, criando um motivo
diferente e sem um risco tão elaborado. Esse emprego é semelhante ao que elas fizeram para o
designer Ronaldo Fraga.
Figuras 71 e 72: Imagens de peças bordadas pelas artesãs para o desfile “Turista Aprendiz” com a utilização do
ponto nó. Fotos: Acervo AMAP.
Teve uma senhora que perguntou ‘nossa, nunca mais a gente viu aquelas coisas
bonitas de vocês. O que vocês estão fazendo, heim, dormindo? Eram umas coisas
151
tão bonitas, a gente vem para Passira pensando que tem roupa também, mas só tem
cama e mesa’.
Essa notícia foi vazada aí em algum jornal e na internet e chegaram várias pessoas
depois atrás dessas peças prontas. A gente estava lá mesmo [na Fenearte] e aí chega
uma pessoa ‘onde é que estão os vestidos lindos de vocês?’ A gente não sabia nem
cortar, nem cortar um decote. Aí a gente ficou ‘não, a gente ainda vai fazer’, a
gente ficou dando desculpas. ‘E aí, quando é que vocês [os organizadores do projeto
Pernambuco com Design] vêm aperfeiçoar a gente, para a gente aprimorar a
costura?’ A gente ficou com essa cobrança, com essa cobrança e eles sempre dando
uma desculpa qualquer.
Para a gente, foi um encanto. Sabe aquela coisa de conto de fadas, para a gente foi
um encanto que a gente não pensava de chegar tão longe. Até esperávamos ter uma
repercussão maior, que assim, tinha sido a gente que tinha feito e que tinha
bordado. Eu acho que talvez eu idealizei, que a fama não seria tanto do estilista,
seria nossa também. Assim, o reconhecimento seria nosso também. A gente que
estava fazendo. Porque assim, é muito emocionante, vindo de onde a gente veio, o
nosso passado, pra gente ter uma peça em um desfile que é um dos mais importantes
aqui no Brasil, é muito emocionante.
Teve uma parte positiva, com certeza teve, mas a gente também tem que ver que foi
muito dinheiro investido. Porque antes, prometeram um monte de coisa. Quando foi
depois eu já senti que estavam balançando. [...] Aí agora tá todo mundo silencioso,
viu. Quando chegar bem pertinho da eleição de governador, aí eles começam a
visitar as bases produtivas, mas só que a gente já tá bem preparada para a
resposta. Eles divulgam em jornais, não sei o que mais... Aqui nada acontece.
Telles (2006:65) questiona essa mentalidade paternalista que aparece fortemente nos
programas de apoio a comunidades carentes. Segundo a autora, essa visão oferece perigos aos
cidadãos que sobrevivem de trabalhos autônomos, pois reafirmam sua condição de exclusão
social.
Em Passira, a maior frustração das artesãs foi a distância entre a maneira como o
projeto foi apresentado e como foi executado. Elas destacam a falta de compromisso do poder
público em honrar um acordo estabelecido anteriormente.
Após a finalização do projeto “Pernambuco com Design”, as artesãs retomaram sua
rotina habitual, produzindo artigos de cama e mesa de forma esporádica. Com os pedidos
reduzidos, o desejo de fazer peças de vestuário aumentou, por enxergarem uma possibilidade
de incrementar a produção dos bordados.
Alguns dos cursos que as artesãs não obtiveram com o projeto, foram buscar de forma
autônoma, para conseguirem a capacitação necessária para a produção de roupas. No final de
2011, em torno de 20 associadas participaram de um curso de corte e costura promovido pelo
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), em parceria com a prefeitura de
Passira. Nem todas as bordadeiras demonstraram interesse em aprender a costurar.
154
Figura 73: Imagem da máquina overloque utilizada para a costura profissional na sede da AMAP. Foto: Ana
Julia Melo Almeida, agosto de 2012.
Depois desse curso, a artesã Maria Lúcia entrou em contato com o SENAI de Caruaru
para participar de aulas de modelagem e garantir o domínio de mais uma etapa para a
produção de peças de vestuário. A bordadeira também participou posteriormente do curso
“Auxiliar de Modelista”, promovido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE) em parceria com o Centro Pernambucano de Design, em Recife.
Após esses dois cursos, ela ministrou oficinas ao longo de seis meses a quinze
associadas que despertaram interesse em aprender. Elas se reuniam uma vez por semana por
quatro horas na sede da AMAP.
A gente não tem noção de modelagem, por enquanto só corte e costura. Agora
minha mãe [referindo-se a Maria Lúcia] está ensinando em um curso de modelagem.
Ela fez curso no SENAI de Caruaru e agora está dando aula de modelagem. Para
155
O bordado em Passira a gente não pode deixar para trás de jeito nenhum. Aquele
desfile foi uma porta para mostrar que a gente era capaz de fazer, de vender, de
levar para as feiras. [...] A gente tem vontade de unir, a gente parou aqui para
pensar de fazer saia, calça, vestido. Para poder fazer peças piloto para sair
oferecendo aos lojistas e pegar encomenda e trazer e fazer a coisa acontecer. Não
deixou de pensar nisso. A gente pensa seriamente nisso. A gente tá começando a
entender de costura. O intuito é a gente aprender a costura para depois a gente unir
o bordado com a costura.
Outra razão para essa busca é a proximidade com importantes polos têxteis do agreste
pernambucano, como os de Caruaru e Toritama, onde surgiram várias facções48 para atender a
demandas na produção de roupas.
Com a falta de encomendas de bordados e após aprenderem a costura, as artesãs da
AMAP encontraram um novo meio de complementar sua renda e também treinar o que
haviam aprendido durante o curso. O objetivo delas é adquirir prática na costura e modelagem
para, no futuro, unirem isso com sua atividade artesanal e, a exemplo do que fizeram durante
o projeto, produzir peças de roupas bordadas.
Eu dizia sempre ‘eu acho que não vou costurar não, eu quero bordar’. Nesse tempo
eu sempre dizia isso. E chegou assim, as coisas vão acontecendo e quando a gente
pensa que não, acontece. Na época a gente só sabia o bordado. Agora a gente já
sabe os dois, tá na prática. [...] E tem que ter muita prática. [...] Uma costura bem
feita, isso leva tempo.
48
Facções são pequenas empresas de produção têxtil responsáveis pela costura de roupas já concebidas, e
portanto dominam apenas uma das etapas da produção de peças de vestuário. Normalmente, são contratadas por
empresas maiores que terceirizam seus serviços.
156
Eu acho que o bordado ele tranquiliza mais. Costurar é tudo muito corrido, a
atenção na costura é redobrada. Eu estou bordando, eu bordo e converso. Costurar
eu não posso costurar e conversar. Tem que estar atenta mesma, não é igual ao
bordado não. Ele é uma atividade prazerosa.
Figura 74: Imagem do interior da sede da AMAP. A presença das máquinas de costura retrata a proximidade
com outro ofício e as transformações vivenciadas pelas artesãs nos últimos anos. Foto: Ana Julia Melo, agosto de
2012.
Atualmente, as artesãs não possuem mais uma loja na sede da associação por conta da
distância do centro da cidade. Desde então, passaram a expor seus produtos em um estande no
Centro Cultural e Comercial do Bordado. O prédio foi inaugurado em novembro de 2010,
pouco antes da feira anual do bordado manual que ocorre na cidade.
O espaço foi construído com o objetivo de divulgar o bordado manual da cidade e
também de atuar como ponto de atração aos turistas, um local que reunisse os artesãos do
munícipio e facilitasse o contato deles com os compradores. As artesãs criticam que ele foi
construído tarde demais: os turistas já tinham desistido de ir até a cidade, pois não havia
estrutura alguma. Elas contam que o movimento é muito reduzido e que dificilmente vendem
peças que estão expostas no local.
As artesãs encaminham mensalmente artigos de cama e mesa para venda em
consignação no Centro Pernambucano de Design, em Recife. As encomendas costumam ser
poucas, em média 5 a 10 peças por mês.
A marca Seaway, que trabalha com as bordadeiras desde antes mesmo de se
organizarem em uma associação, demanda esporadicamente algumas roupas para serem
158
bordadas. Os pedidos são mais fracos durante o primeiro semestre do ano; a cada dois meses,
as artesãs bordam de 60 a 90 peças de um mesmo modelo de produto, que elas chamam de
ficha, em referência à ficha técnica utilizada na indústria da moda. Já no segundo semestre, as
encomendas aumentam e todo mês elas recebem uma ficha.
As associadas também recebem peças de jeans para aplicar bordados da marca Niran,
de Toritama. Esse trabalho é recente e teve início nos primeiros meses de 2013; nem todas as
bordadeiras estão envolvidas ainda, cerca de 5 associadas e 20 novatas, mulheres que ainda
não são credenciadas na associação, participam dessa produção. Elas têm recebido em média
de 3 a 4 modelos de um mesmo produto por mês. A partir de cada ficha, são produzidas cerca
300 peças iguais; a maior parte dos bordados difere do tradicional de Passira, as artesãs
bordam pedrarias nas peças de jeans.
Além disso, elas complementam sua renda com trabalhos que envolvem apenas a
costura, atividade recém-aprendida. São, em sua maioria, peças de camisas e camisetas de
marcas de Caruaru. As artesãs também tentaram trabalhar com alguns produtos de malha, mas
não se adaptaram ao material e aos diferentes modelos; elas relatam que era trabalhoso e as
empresas pagavam muito pouco.
Apesar de todas essas dificuldades enfrentadas até aqui, as bordadeiras possuem
esperança em continuar vivendo do seu artesanato, daquilo que sabem fazer de melhor. Elas
pretendem trilhar novos caminhos com o bordado e querem oportunizar novas perspectivas, e
para isso, buscam outros saberes que as capacitem para ampliar suas possibilidades de
trabalho e renda.
O artesanato popular brasileiro é vivo por meio das mãos de quem o faz, é expressão
de seu povo. Portanto, o seu caminho deve ser guiado por eles; os artesãos devem ser parte
integrante do processo para que eles mesmos sejam capazes de traçar os percursos e as
possibilidades dessa prática.
No caso do projeto “Pernambuco com Design”, as artesãs desenvolveram peças que
lhes eram externas, elas perderam o domínio de todas as etapas do trabalho. E como os cursos
que as capacitariam para esse novo produto não foram organizados por parte do poder
público, elas não detém as técnicas e os conhecimentos necessários para produzir roupas com
bordados.
Dessa maneira, elas não conseguem prosseguir sem o auxílio de agentes externos, o
que reafirma a condição de desprestígio na qual estão inseridas. Elas buscam sanar essa falta e
procuram por meio de seu próprio empenho os cursos que necessitam para absorver esse novo
ofício.
159
Considerações Finais
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