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REVISTA LUMEN ET VIRTUS

ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 17 DEZEMBRO/2016

IMPEACHMENT VERSUS GOLPE:


INTERINCOMPREENSÃO NO CENÁRIO
POLÍTICO
Profª Ms. Sônia Renata Rodrigues1
http://lattes.cnpq.br/9095402256041294

RESUMO – Neste artigo nos propomos a realizar um estudo do discurso no cenário


político atual. Nesse controverso palco de disputas pelo poder, em que alianças políticas são
feitas e desfeitas em um jogo contínuo de oposições, muitos enunciados são dispersos. O
corpus escolhido para análise se compõe de dois enunciados que atualmente estiveram
presentes no discurso político e se disseminaram na mídia – os termos impeachment e
golpe, representando sucessivamente o posicionamento da oposição ao governo e o
posicionamento do governo. Tendo como base esse espaço discursivo composto por
governo e oposição, pretendemos nos valer do pressuposto teórico-metodológico de
Maingueneau (2008) a respeito de interincompreensão como forma de tradução e criação de
22
simulacros sobre o discurso do outro. Também em Foucault (2008), encontramos respaldo
teórico sobre a natureza do enunciado e como este vai além da língua para se estabelecer
como discurso.
PALAVRAS-CHAVE – Discurso; Enunciado; Interincompreensão

ABSTRACT – In this article we propose to hold a discourse in the study in the current
political scenario. In this controversial scene of power struggles, where political alliances
are made and unmade in a continuous game of opposites, many statements are dispersed.
The corpus chosen for analysis consists of two statements that currently were present in
political discourse and disseminated in the media - the impeached terms and blow
successively representing the position of opposition to the government and the position of
the government. Based on this discursive space composed of government and opposition,
we intend to rely on the theoretical and methodological assumption Maingueneau (2008)
concerning interincomprehension as a form of translation and creating simulacra of the
discourse of the other. Also in Foucault (2008), we find theoretical support of the nature of
the statement and how it goes beyond language to establish itself as discourse.
KEYWORDS – Discouse; Enunciation; Interincomprehension

1
Doutoranda em Estudos de Linguagem pelo PPGL/UFMT na linha de pesquisa Práticas textuais e discursivas:
múltiplas abordagens.

Sônia Renata Rodrigues


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Introdução

Cenários políticos, ao longo da história de toda a humanidade, são formidáveis


palcos de disputas pelo poder. Muitos discursos produzidos nesse âmbito social desde então
vêm sendo produzidos e reportados pela mídia, e a velocidade com que se disseminam entre
os espectadores é notória.
Nesta atividade de análise discursiva, nosso interesse recai sobre o que se pode
chamar de atividades discursivas produzidas na esfera política, mais especificamente nossa
análise será feita a partir de dois termos que têm sido atualmente disseminados na mídia:
impeachment e golpe. Tal proposta de análise será feita no que podemos nomear de nível
discursivo, o que ultrapassa o nível linguístico e avança sobre a constituição dos sentidos
tendo em conta aspectos sócio-histórico-ideológicos.
Segundo Brandão (2012, p. 19-20), “o discurso ultrapassa o nível puramente
gramatical, linguístico” [...] “diz respeito a enunciados concretos, a falas/escritas realmente
23 produzidas (e não idealizadas, abstratas, como as frases da gramática)”.
Antes de, numa dada situação de interlocução, se tornarem enunciados concretos, os
termos linguísticos em geral são apenas palavras que fazem parte de um sistema linguístico e
cujo significado básico pode ser encontrado em um dicionário. Contudo, quando são
utilizadas em um espaço discursivo em que se têm ao menos duas formações discursivas
envolvidas, bem como um cenário político dividido e efervescente que abrange instituições
em nível nacional e internacional e evoca posicionamentos diversos, não mais podem ser
entendidas como simples palavras, mas sim como enunciados.
É assim que, antes da atual crise política brasileira, os termos impeachment e golpe
estavam no que Drummond em seu célebre poema “Procura da poesia” chamaria de estado
de dicionário, ou seja, palavras que sem uso estão paralisadas. Podemos considerar que em
seu estado de dicionário, as palavras mantêm significados extraídos de seus usos mais
frequentes e/ou consagrados, mas ainda assim não é o que se pode chamar de (efeitos de)
sentidos, pois eles somente ocorrem em uma situação real de uso da língua. Tal como
declara Courtine (1981, p. 12) “se os processos discursivos constituem a fonte da produção

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dos efeitos de sentido no discurso, a língua, pensada como uma instância relativamente
autônoma, é o lugar material em que se realizam os efeitos de sentido”.
Recentemente, em decorrência da disputa política no cenário nacional, duas palavras
foram despertadas de seu estado mudo/dicionarizado e postas em uso produzindo sentidos
positivos ou negativos de acordo com a formação discursiva que delas fazia uso. Ei-las:
impeachment e golpe.
Ao longo da história, bem como em se considerando atividades comuns de
interlocução, o uso do termo vocabular golpe é mais recorrente que o termo impeachment
no vocabulário nacional. Por exemplo, em referência histórica aparece em expressões como:
golpe de estado, golpe de 64, golpe militar etc. ou em falas comuns: duplo golpe de
boxeador, golpe de um charlatão, golpes financeiros ou mesmo em jargões humorísticos
como o da boneca Maria Santa “Olha o golpe” etc. Já o termo impeachment, emprestado
do inglês, cujo significado literal é impedimento, dificilmente seria usado em situações mais
cotidianas de interlocução tendo seu uso mais restrito a situações político-jurídicas. Se

24 postos em paralelo, eles não têm uma relação de significados ou sentidos preestabelecida,
não são sinônimos, antônimos, ou mantêm qualquer parentesco etimológico que possa ter
se evidenciado histórica ou linguisticamente.
Obviamente o aparelho linguístico detém-nos, mas não os juntou como obra do
acaso. Seu relacionamento é obra do universo discursivo e todo o aparato extralinguístico
que o circunda. Dada a flexibilidade da língua, juntos na atual conjuntura da política
brasileira, tornam-se elementos associados. Primeiramente, foi utilizado o termo
impeachment e, por conta dele, veio então o termo golpe como uma espécie de tradução
negativa feita por posicionamentos ideológicos opositores.
Como não tratamos aqui especificamente de significados de vocabulário e/ou
estudos morfológicos ou sintáticos da língua, mas sim da construção de sentidos
discursivamente constituídos, traremos à discussão conceitos basilares sobre a noção de
enunciado em Foucault (2008), pois a nosso ver a definição que o filósofo traz sobre
enunciado é muito bem-vinda para diferenciar o que é apenas um termo linguístico do que é
um enunciado. Na sequência teórica, nos valeremos de contribuições do analista de discurso

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Dominique Maingueneau (2008) sobre o postulado teórico de interincompreensão como


forma de tradução em termos de discurso.

Da palavra ao enunciado: uma breve incursão em Foucault


O conceito de enunciado – unidade elementar do discurso que extrapola o
linguístico ou puramente gramatical - de que nos valemos neste trabalho é de Foucault
(2008, p. 108), segundo o qual

Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as


relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer),
mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo
indivíduo para ser seu sujeito.

O filósofo preocupa-se primeiramente em definir o que o enunciado não é:


proposição, frase ou ato de fala, embora ele se valha materialmente desses tipos de suportes
linguísticos para se efetivar. Finalmente, Foucault (2008, p. 108) define o que é o enunciado:
25
enunciado é uma função que vai além do conteúdo linguístico, passível de ser descrita em
seu exercício, em suas condições, nas regras que a controlam e no espaço em que se
realizam.
Essas regras e/ou regularidades são por ele chamadas de função enunciativa. Assim
como o suporte de descrição de uma oração é a gramática, o suporte de descrição dos
enunciados é a função enunciativa e seu correlato é o referencial, elemento não passível de
análise formal, mas um domínio de possibilidades e diferenciações que permitem a
existência dos enunciados.
Quanto a esses últimos, o filósofo os descreve por meio da noção de “função
enunciativa”. Para o autor, o enunciado não é uma unidade linguística, como uma frase,
por exemplo, o é, sendo descrita no domínio de um texto, mas sim um elemento integrante
de uma ordem discursiva e, por isso, sendo passível de um entendimento e de uma descrição
apenas no domínio da formação discursiva:

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Um enunciado pertence a uma formação discursiva, como uma frase


pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo. Mas
enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua, e
as de uma proposição pelas leis de uma lógica, a regularidade dos
enunciados é definida pela própria formação discursiva. A lei dos
enunciados e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma
única e mesma coisa: o que não é paradoxal, já que a formação discursiva se
caracteriza não por princípios de construção, mas por uma dispersão de
fato, já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidade,
mas uma lei de coexistência, e já que os enunciados, em troca não são
elementos intercambiáveis, mas conjuntos caracterizados por sua
modalidade de existência (FOUCAULT, 2008, p. 132).

Um enunciado, na descrição foucaultiana, não pode ser pensado/confundido como


uma unidade da gramática ou da lógica e tampouco ser isolado, como uma frase em uma
análise puramente linguística. Ele, para ser descrito em uma ordem que transpõe o
linguístico, precisa ser posto em relação a outros enunciados como parte de uma formação
discursiva – um conjunto que define “as regras da enunciação” e, ao mesmo tempo,
26
encarrega-se da dispersão e repartição dos enunciados.
No nível discursivo, a enunciação é o fator primordial para que as palavras
impeachment e golpe ultrapassem a simples significação linguística e tornem-se enunciados,
a partir daí somente podem ter sua carga positiva ou negativa de sentido assumida pelos
sujeitos que fazem parte da formação discursiva que as mantêm.
Por hora, não pretendemos nos deter na problemática/conceitução de sujeito do
discurso, cremos que a basilar definição foucaultiana é suficiente para a análise que
pretendemos realizar: “É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado
por indivíduos diferentes” (ibidem, p 107).
Os enunciados “impeachment” e “golpe”, dependendo da posição de quem os
enuncia, assumem significados diferentes, sendo traduzidos/interpretados ora
positivamente ora negativamente. Para melhor entender como isso ocorre, nos valeremos
de contribuições de Maingueneau (2008) sobre o processo dialógico de interincompreensão
generalizada.

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Do enunciado ao simulacro através da interincompreensão


O primeiro passo para compreender o processo de interincompreensão é justamente
entender que não se trata de um simples gesto de incompreensão a respeito de algo, como
se, por exemplo, um ouvinte A não compreendesse a fala/ideia de um falante B ou ambos
não se compreendessem mutuamente etc.
A interincompreensão vai além da incompreensão porque, sendo um processo
muito mais complexo para ser descrito, ocorre dentro de um espaço discursivo e envolve
duas formações discursivas em relação de oposição ideológica e que disputam um mesmo
lugar/poder. Quando interagem, elas não compreendem o enunciado do Outro como tal, e
o resultado disso são simulacros, ou seja, representações negativas que um discurso faz de
seu oponente a fim de enfraquecê-lo.
A análise do interdiscurso pressupõe uma relação fundamentada em princípios
dialógicos para os quais a reciprocidade entre os discursos é uma constante, de tal forma que
um discurso não subsiste sem um Outro e vice-versa. Nessas relações de constituição e

27 trocas incessantes, vai-se criando uma rede de interação semântica entre as formações
discursivas. É, pois, nesse momento de interação que os sentidos tornam-se manifestos de
acordo com as posições enunciativas envolvidas no espaço regulado de trocas.

Não é por simples comodidade que determinados subconjuntos são


recortados (porque seria difícil apreender um campo discursivo em sua
totalidade), mas também e sobretudo porque uma formação discursiva dada
não se opõe de forma semelhante a todas as outras que partilham seu campo:
certas oposições são fundamentais, outras não desempenham diretamente
um papel essencial na constituição e preservação da formação discursiva
considerada [grifo do autor].

Um espaço discursivo bem delimitado pressupõe a coexistência de um Mesmo e de


um Outro que se opõem, constituem-se, delimitam-se, replicam-se etc. Cada uma dessas
relações é marcada por uma série de posições enunciativas que surgem de ambas as partes, daí
a inequívoca constatação de que essas posições enunciarão o que deve e pode ser dito no
interior de suas formações discursivas. Ao se defrontarem, os discursos  com o intuito de

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constituir e preservar sua identidade  são interpretados negativamente, produzindo uma


não compreensão mútua no processo de interação.
A análise de tal procedimento discursivo levou Maingueneau (2008, p. 99) ao
seguinte postulado:

Quando o espaço discursivo é considerado como rede de interação


semântica, ele define um processo de interincompreensão generalizada, a
própria condição de possibilidade das diversas posições enunciativas [ênfase
do autor].

A “interincompreensão” significa mais do que uma simples troca entre discursos.


Trata-se de um processo de interpretação recíproca, em que cada formação discursiva
somente “compreenderá” o seu Outro de acordo com as suas próprias regras, traduzindo os
gestos de interpretação do Outro como sendo negativos, ameaçadores, incompatíveis com
sua própria ideologia. Assim, aos olhos do Outro, uma posição será incompreendida e,
quanto maior a oposição, maior a não aceitação recíproca e, consequentemente, mais
28
delimitada será a identidade do discurso em relação à ameaça do opositor, pois entender
positivamente um Outro seria confluir com ele e, assim, perder a ilusória identidade.
No “jogo discursivo”, um discurso não interpreta a si mesmo, pois o trabalho de
interpretação cabe ao exterior por parte de um outro discurso. Maingueneau (2008, p. 100)
declara que esse processo de interpretação, movido pela interincompreensão, ocorre por
meio da tradução e do simulacro.
A tradução de que fala o teórico não se confunde com o conceito comum de
tradução, como o traduzir de uma língua por outra, por exemplo. No espaço discursivo,
um discurso reconhece/enxerga o outro a partir da criação de um simulacro. Maingueneau
chama de discurso-agente o discurso tradutor e de discurso-paciente o discurso traduzido. Esse
processo de tradução, no embate entre discursos, beneficiará o primeiro, pois o simulacro é
criado com a função de exprimir negativamente o Outro (paciente), a fim de conferir uma
identidade positiva ao agente.
Assim, é por meio desse processo de mútua tradução que os discursos preservam-se
na ilusão do fechamento semântico. Por estarem cerceados por suas próprias regras, por

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seus respectivos lugares de dizer, não podem “compreender” os sentidos outros que vão
contra a sua própria constituição. Em lugar de uma compreensão positiva do enunciado
Outro, uma posição discursiva criará simulacros dele, “para constituir e preservar sua
identidade no espaço discursivo” (MAINGUENEAU, 2008, p. 100).
Esse processo de interincompreensão é uma manifestação cabal de que os sentidos, ao
contrário do que comumente pensamos, não são imanentes às palavras, mas vêm a ser
positivos, negativos, polêmicos, ambíguos etc. no interior das formações discursivas, ao
abrigo das quais são produzidos, isto é, ganham “vida” e materializam-se nas atividades
linguageiras cotidianas.
A interincompreensão (= tradução versus simulacro) é um processo operante no
nível “constitucional” das próprias formações discursivas, ou seja, ela é um mecanismo
necessário e regular nos processos discursivos, de forma que os sentidos serão estabelecidos
de acordo com o tipo de tradução efetuado entre os discursos.
Daí decorre que um mesmo enunciado, por exemplo, poderá ser entendido de

29 diferentes formas, de acordo com as regras de cada formação discursiva envolvida no


evento, as quais determinarão que posicionamentos poderão efetuar-se, quais enunciados
poderão/serão proferidos. O fator determinante para a in(compreensão) encontra-se no
“interior de cada discurso”, ou seja, o fechamento semântico encontra-se repartido em dois
registros, um positivo outro negativo.
O registro positivo, marcado por aquilo que “pode e deve ser dito”, obviamente é a
parte reivindicada pelo discurso Mesmo. Os semas positivos e semas negativos pertencentes
a esse registro são os responsáveis pela aceitação dos enunciados associáveis às ideias desse
discurso, havendo então uma filtragem positiva. A outra parte, determinada pelo registro
negativo, detém semas que rejeitam os enunciados estranhos às ideias do Mesmo, vindos de
formações discursivas antagônicas. O princípio de heterogeneidade constitutiva é
fundamental para a explicação da inextricável amarração de um Mesmo e seu Outro.
Então, podemos depreender que o “discurso”, como tal, instaura-se em uma
situação constante de troca de enunciados. Nessa ininterrupta troca, cada discurso criará
simulacros um do outro. Assim, em discursos antagônicos, esses recíprocos simulacros
serão malvistos pelos oponentes, pois um discurso Mesmo não se reconhece na forma como

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é, negativamente, retratado/compreendido pelo Outro, daí o surgimento dos mal-


entendidos, dos equívocos criados na interdiscursividade e manifestos por meio da
língua(gem).
Maingueneau afirma que o conceito de polêmica como interincompreensão mantém-
se no mesmo patamar de um sistema global, ou seja, apesar de ser comumente entendido
como uma forma de conflito “perceptível” na superfície linguística, marcado por
controvérsias explícitas, a polêmica presentifica-se na forma de um dialogismo constitutivo
(idem, p. 107). Assim, o autor em suas observações teóricas procura não dissociar o
“superficial” do “profundo”. Os discursos relacionam-se constantemente, imbricam-se sem
que haja necessidade de uma forma de citação aparente/mostrada na superfície linguística.
Nesse nível, então, tanto uma citação ruidosa/polêmica que um discurso faz do seu Outro,
quanto o silêncio “calculado”, a denegação, que um pode manter em relação ao Outro, são
fenômenos de uma mesma face dialógica:

30 Não se deve concluir, entretanto, que seja preciso distinguir entre


formações discursivas que necessitam confrontar-se com suas concorrentes
e outras que se desenvolvem isoladamente. Na realidade, se a
interdiscursividade é constitutiva, uma tal distinção só poderia ser ilusória:
se um discurso parece indiferente à presença de outros, é porque,
semanticamente, lhe é crucial denegar o campo do qual depende e não porque
poderia desenvolver-se fora dele (Maingueneau, 1997, p. 122) [grifo do autor].

Golpe ou impeachment? Os adversários falam ou não uma mesma língua?


Os adversários fazem uso de um mesmo sistema linguístico – no sentido mais
abstrato e saussureano do termo –, mas, ao utilizarem-no, provocam efeitos de sentido
diferentes um ao outro, e a partir do momento que ocorre a enunciação, fluidifica-se
completamente a ilusória ideia de imanência, ou seja, já não se está no terreno da língua
abstrata, mas dos enunciados que através dela são materializados.
Abaixo selecionamos uma charge que exemplifica como formações discursivas
oponentes tendem a compreender negativamente enunciados que consideram ameaçadores:

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Figura 1
Charge2

Segundo Maingueneau (2008, p. 99-100), “a cada posição discursiva se associa um


dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro traduzindo-o nas categorias do
registro negativo de seu próprio sistema. [...] para constituir e preservar sua identidade no
espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas somente com o
31 simulacro que dele constrói.
A charge inscreve-se em um espaço discursivo formado por dois enunciadores
distintos: o governo federal, representado pela presidenta da República, Dilma Roussef, e o
Outro, representado pelos jornalistas que realizam a entrevista coletiva, cujos enunciados se
inscrevem como sendo da oposição política ao governo.
No âmbito jurídico, a ação de impeachment significa um processo legal, assegurado
pela Constituição: processo instaurado com base em denúncia de crime de responsabilidade
contra alta autoridade do poder executivo (p.ex., presidente da República, governadores,
prefeitos) ou do poder judiciário (p. ex., ministros do Supremo Tribunal Federal), cuja
sentença é da alçada do poder legislativo.
Para o governo, aceitar o termo impeachment como legítimo seria o mesmo que
assinar sua derrota política e assumir a culpa pelo crime de irresponsabilidade fiscal de que é
acusado. Na impossibilidade de aceitar como legítimo tal termo, foi preciso substituí-lo por

2
Disponível em:< http://www.psdb.org.br/imprensa/charges/page/2/>. Acesso em: 17 abr. 2016.

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outro que contivesse uma carga similar em negatividade e poder de contra-ataque ao


oponente.
Qual palavra poderia substituir um termo tão nocivo? Com análogo poder de ataque
e carga negativa? A palavra golpe foi a forma mais incisiva de os governistas traduzirem o
termo impeachment, dado que “no conjunto de enunciados que lhe são dirigidos, o discurso
responde àqueles que lhe parecem os mais ameaçadores” (MAINGUENEAU, 2008, p. 109).
O discurso do governo federal traduz o processo de impeachment sofrido pela
presidenta criando-lhe uma representação negativa e interpretando-o como golpe de estado,
ou seja, uma deposição ilegal do chefe de estado travestida de processo legítimo de
impeachment.
Apresento a seguir dois excertos de textos retirados dos sites do Partido dos
Trabalhadores e do Partido da Social Democracia Brasileira, ambos contendo enunciados
recíprocos de exclusão ao Outro.

- [...] Sob a liderança do ex-presidente Lula, vamos continuar combatendo


32 o golpe, aqui e no exterior. [...]
Vigilância, mobilização e luta, eis as tarefas a que a militância petista está
convocada para deter o golpe. 3

- [...] O Brasil amadureceu. Os brasileiros estão atentos. As instituições


cumprem o seu papel. É exatamente a soma desses fatores que robustecem
e sedimentam a nossa democracia. E é em nome dela, e rigorosamente à luz
da Constituição, que não vai ter golpe. Vai ter impeachment.4

Nos dizeres de Maingueneau (2008, p. 106), “a rejeição do universo semântico


contrário, como incompatível com a verdade” ocorre quando a disputa entre as formações
discursivas é tão profunda que chega a gerar a polêmica, ou seja, a mais complexa fase do
processo de interincompreensão. O estudioso dos discursos políticos E. Verón (apud

3
<http://www.pt.org.br/rui-falcao-militancia-petista-esta-convocada-para-deter-o-golpe/ >Acesso em 25 de
abril de 2016.
4
(Publicado no jornal Folha de S. Paulo – 23/04/16. < http://www.psdb.org.br/senado-deve-aprovar-
processo-de-impeachment-de-dilma-rousseff-sim-por-cassio-cunha-lima/> Acesso 25 de abril de 2016.

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Maingueneau, 2008, p. 106) declara que o discurso político “não pode suportar que haja
outro discurso político”, pois “sua tendência mais profunda é anular o discurso do outro”.
Na intenção de anular esse discurso outro, a ação principal é a de traduzi-lo com
representações negativas/simulacro. Para que o simulacro se torne fortalecido, outras
expressões são utilizadas, formando com ele um campo semântico. Por exemplo, no
primeiro excerto a carga de sentido de “golpe” é reforçada por outras expressões como
“combate, luta, deter”, relacionadas a duelo/resistência, termos que seriam comuns a um
discurso de tendência esquerdista.
Já o segundo excerto mostra a posição dos que são favoráveis ao afastamento de
Dilma Rousseff e não enxergam golpe algum no que seria um legítimo e
constitucionalmente previsto processo de impeachment da presidenta. Por isso seus
enunciados a respeito do processo político em questão estão sempre associados a termos
como “instituições, democracia, Constituição”, o que não necessariamente remete à luta,
mas sim à ordem.

33 Para Maingueneau (2008, p. 100), “de fato, não se dirá que o enunciador de um
discurso ‘interpreta’ seus próprios enunciados; esse é um privilégio reservado a uma
instância exterior. Ou seja, o enunciado pertence a uma formação discursiva, mas os efeitos
de sentido que ele pode provocar não, pois sua interpretação é totalmente dependente do
Outro.

Conclusão
Foucault abriu caminho em um terreno que até então era relegado pela filosofia e
pela linguística: o discurso. Sua teoria é basilar aos posteriores estudos do discurso e para a
constituição da disciplina Análise de Discurso.
Sem dúvida, um analista do discurso, principalmente de vertente francesa, reconheceria de
imediato um espaço discursivo constituído por dois discursos díspares que disputam um
mesmo espaço de poder e conhecimento na sociedade,
Os simulacros decorrem, então, da inevitável rejeição/distorção de cada parte em
relação à outra. Como diz Maingueneau (2008), nenhum discurso interpreta a si mesmo, a
interpretação vem do outro lado.

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Quando duas partes contrárias se confrontam, os simulacros surgem como


decorrência de um processo de interincompreensão recíproco. O simulacro não é o Outro,
mas a imagem negativa que o Mesmo faz do Outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. A rosa do povo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Enunciação e construção de sentido. In: FIGARO, Roseli
(org.). Comunicação e Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2012.
COURTINE, J.-J. (1981). Analyse du discours politique; le discours communiste
adressé aux chrétiens. Langages 62. Paris: Didier-Larousse.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008.
34
RODRIGUES, S.R. O português não-padrão no universo de livros didáticos do ensino
médio: posições discursivas. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem – MeEL).
Cuiabá: UFMT, 2010, p. 157.
RODRIGUES, S.R. Prática de leitura de um acontecimento discursivo midiático
polêmico. < http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem16/COLE_81.pdf> Acesso em 26 de
abril de 2016.

Sônia Renata Rodrigues

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