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H I S T Ó R I A D A C I Ê N C I A

As comemorações
dos 500 anos da chegada
dos portugueses ao Brasil
têm despertado o interesse
A construção
‘500 ano
da mídia e do público pela
história do país.
Livros, filmes e exposições
estão entre as iniciativas
que tratam de resgatar

ciência no
estes cinco séculos
de acontecimentos.
O momento é propício
para conhecer, repensar
e discutir a trajetória
do país. Porém,
esse resgate não estará
completo sem que se
enfoque um aspecto pouco
conhecido dessa história:
as atividades científicas
aqui desenvolvidas.
Na tentativa de chamar
a atenção para isso,
a revista Ciência Hoje traz,
nesta edição, o cartaz
‘500 anos de ciência
no Brasil’, cronologia
com alguns dos principais
fatos e personagens
que marcaram a ciência
neste país desde
o ano 1500.

Ildeu de Castro Moreira


Instituto de Física
e Área Interdisciplinar de História
e Filosofia da Ciência (Coppe),
Universidade Federal
do Rio de Janeiro

Cássio Leite Vieira


Jornalista e bolsista
do Museu de Astronomia
e Ciência Afins (CNPq)

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o do cartaz ESTÍMULO AOS JOVENS

Uma das principais metas do cartaz é suscitar o


interesse e a curiosidade de jovens estudantes pela

os de
história da ciência em seu próprio país. É claro que
o conteúdo desta cronologia preenche apenas uma
parte mínima de uma lacuna de proporções amplas:
o quase total desconhecimento sobre aspectos his-
tóricos da ciência e da técnica no Brasil. Entre os
estudantes, a escassez de textos e materiais didáti-

o Brasil’
cos de qualidade é certamente um dos fatores para
isso. Mas, mesmo entre cientistas e professores, a
situação não é muito diferente.
No Brasil, a produção e a difusão de materiais
sobre a história da ciência, bem como da técnica e da
tecnologia, são precárias. Embora nos últimos anos
grupos de pesquisa e uma nova geração de historia-
dores interessados nesses temas tenham surgido, as
pesquisas e o materiais produzidos ainda são pou-
cos e raramente cobrem a diversidade de aspectos
existentes nesse processo histórico. Além disso, a
difusão desses estudos muitas vezes se restringe ao
meio acadêmico, sem chegar às salas de aulas do
ensino médio ou superior.
Desde os primeiros esboços desta cronologia, ti-
nha-se em mente projetá-la para atingir o público
mais amplo possível. Decidiu-se assim pelo formato
de um cartaz que pudesse ser afixado em salas de aula
de ensino médio, bem como faculdades, escolas
técnicas e mesmo instituições de pesquisa. Nosso
objetivo é o de tentar mostrar, principalmente aos
jovens, que existem outros fatos e interpretações
sobre nossa história que merecem ser conhecidos,
discutidos e analisados, além daqueles relativos à
história geral. Conhecer e compreender o que foi feito
em ciência (e mesmo o que não foi feito) pode
contribuir para tornar mais claras as dificuldades
enfrentadas no presente, embora isso não seja garan-
tia de um desenvolvimento consistente no futuro.

ENTRE DÚVIDAS E LIMITAÇÕES

A decisão de produzir uma cronologia ilustrada e


simplificada sobre um período tão amplo, referente
ao tema complexo da ciência no Brasil, já carrega em
si fortes limitações e questionamentos.
A própria escolha do título do cartaz, ‘500 anos
de ciência no Brasil’, é passível de críticas, pois as
atividades científicas, de forma organizada e
institucional, só começaram a surgir por aqui neste
século. Decidimos, porém, mantê-lo dentro de um
sentido mais amplo, abrangendo assim qualquer 4

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atividade científica, isolada ou não, aqui realizada. de 1995, editora da UFRJ), e A Formação da Comuni-
Isso nos permitiria estimular a reflexão sobre o lon- dade Científica no Brasil, de Simon Schwartzman
go período colonial e suas conseqüências para o (Finep/Companhia Editora Nacional, 1979), obra que
país, bem como sobre as diversas fases econômicas contém uma extensa cronologia. Uma segunda ver-
e sociais pelas quais o Brasil passou desde então. são, com 80 verbetes, foi enviada por carta ou correio
Com os primeiros contornos do cartaz, surgiram eletrônico a dezenas de cientistas e historiadores da
dúvidas que estavam enraizadas em perguntas apa- ciência de vários estados. Críticas, sugestões e acrés-
rentemente simples: faz sentido falar de uma ciên- cimos geraram uma sucessão de novas versões, em
cia brasileira?, pode-se falar de uma ciência ‘brasi- um número que ultrapassou duas dezenas.
leira’ antes da década de 1930?, como definir o que Quatro consultores científicos integraram o pro-
seria uma ‘contribuição’ científica?, como avaliar e jeto, todos com larga experiência na pesquisa em
escolher fatos e contribuições mais significativas?, história da ciência no Brasil: Antonio Augusto Pas-
como assinalar o contexto dentro do qual esses sos Videira (Departamento de Filosofia da Univer-
eventos aconteciam? etc. sidade do Estado do Rio de Janeiro), Carlos Alber-
Enquanto muitas dessas questões ficavam sem to Filgueiras (Instituto de Química da Universida-
resposta ou eram respondidas apenas parcialmente, de Federal do Rio de Janeiro), Flávio Edler (Casa
um cenário, de natureza mais prática, se colocava: de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz) e
eram os prazos a serem cumpridos e as restrições Simon Schwartzman (Fundação Getúlio Vargas).
que o espaço limitado impunha à extensão do texto. Esse comitê julgou, discutiu e aprimorou o conteú-
Ao lado – e, às vezes, acima – de questões conceituais, do textual do cartaz e sugeriu fontes para a pesquisa
estava a desconfortável tarefa de cortar conteúdo, iconográfica.
em número, extensão e profundidade. Um dos consultores (Schwartzman) optou por
Optamos por um enfoque menos centrado na estratégia diferenciada. Consultou, por correio ele-
figura emblemática do cientista e mais voltado ao trônico, cerca de 50 cientistas sociais sobre as 10
registro de acontecimentos relevantes de caráter obras, publicadas neste século por brasileiros, consi-
individual, coletivo ou institucional. Desde o iní- deradas mais influentes e relevantes para essa área. O
cio, decidimos não incluir fatos relativos à história resultado da enquete e sua análise podem ser vistos
da técnica e da tecnologia, porque o pouco espaço em texto que Schwartzman assina nesta edição (ver
disponível tornaria a empreitada impraticável. Ape- ‘As ciências sociais brasileiras no século 20’).
nas alguns eventos particularmente marcantes, como
o relativo ao aeronauta e inventor brasileiro Santos
Dumont, foram registrados.
A versão inicial do cartaz era vivamente robusta. DESIGUALDADES E CONTROVÉRSIAS
Cerca de 150 verbetes, extensos na maioria, colhidos
principalmente de duas obras sobre a história da
ciência no Brasil: As Ciências no Brasil, volumes I e Uma análise, mesmo que superficial, dos cerca de 80
II, organizados por Fernando de Azevedo (reedição verbetes finais do cartaz mostrará fortes desequilíbrios
Imagens do cartaz

[Moeda obsidional em ouro, mandada cunhar por Maurício de Nassau da aldeia Pau Seco, aquarela de Aimé-Adrien Taunay, 1827] Expe-
provavelmente entre 1645 e 1646] O Brasil e os holandeses , org. dição Langsdorff ao Brasil 1821-1829, Rio de Janeiro, Alumbramento,
Paulo Herkenhoff, Sextante Artes, 1999, p. 47 1988, vol. II, p. 98
[Engenho de açúcar, desenho aquarelado sobre papel, com traços de [José Bonifácio] José Bonifácio Cientista, exposição em homenagem ao
carvão, 1640, de Frans Post] O Brasil e os holandes, org. Paulo patrono da geologia na inauguração da sede do Museu de Geociências
Herkenhoff, Sextante Artes, 1999, pp. 138 e 139 da USP (espaço BNDES), São Paulo, Maily Comunicação e editora
Negra com frutas, óleo sobre tela, 1641, de Albert Eckhout] O Brasil e os ltda., 1988, capa
holandeses, org. Paulo Herkenhoff, Sextante Artes, 1999, p. 151 [Cuia indígena recolhida pela expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira]
[Flor, desenho de Maria Sibylla Merian] O Brasil e os holandeses, org. Memória da Amazônia, Coimbra, Museu e Laboratório Antropológi-
Paulo Herkenhoff, Sextante Artes, 1999, p. 195 co, Universidade de Coimbra, 1991, p. 124
[Capa do livro ‘Historia Naturalis Brasiliae’] O Brasil e os holandeses, [Expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira] Memória da Amazônia,
org. Paulo Herkenhoff, Sextante Artes, 1999, p. 201 Coimbra, Museu e Laboratório Antropológico, Universidade de
[Peixe, do livro ‘Historia Naturalis Brasiliae’, de W. Piso, G. Marcgraf e I. Coimbra, 1991, p. de abertura
de Laet] O Brasil e os holandeses, org. Paulo Herkenhoff, Sextante [Carta del Cantino, manuscrito iluminado sobre pergaminho, 1502]
Artes, 1999, p. 207 O Brasil dos viajantes, vol. I — ‘Imaginário do novo mundo’, Ana
[14 bis] Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa ilustrado , Maria de Moraes Belluzzo, Metalivros, 1994, p. 67
vol. I, São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 47 [Retrato de índio Tapuia, desenho em crayon e carvão de Albert Eckhout]
[Quartzo] Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa ilustrado, O Brasil dos viajantes, vol. I — ‘Imaginário do novo mundo’, Ana
vol. II, São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 1066 Maria de Moraes Belluzzo, Metalivros, 1994, p. 97
[Caravela] História do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Bloch, 1972, p. 27 [St. Salvador. Ville Capitale du Bresil, gravura de Froger] O Brasil dos
[Alguns bororos em visita a Ridel e Taunay, na casa que ocupavam perto viajantes, vol. I — ‘Imaginário do novo mundo’, Ana Maria de Moraes

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quanto à distribuição regional de instituições e even- particularmente quando fora das ciências biológi-
tos científicos julgados relevantes, quanto à contri- cas ou das ciências ditas exatas, foram levantados
buição das diversas culturas que formam a naciona- questionamentos e dúvidas sobre a real relevância
lidade brasileira e quanto às questões de gênero dos das obras de certos autores (como, por exemplo,
cientistas. Embora isso possa ser lamentado, não foi Josué de Castro ou Luís da Câmara Cascudo). Nos
motivo de surpresa, pois a ciência, em sua forma impasses, a decisão final coube aos dois editores,
atual, é uma atividade originária em grande parte na sobre quem deve pesar a responsabilidade de inclu-
cultura e no contexto europeus. A origem dessas são ou não de pontos polêmicos.
desigualdades está também inserida na própria es- Para não sobrecarregar o cartaz, preferimos não
trutura da sociedade brasileira, e seu conseqüente incluir, com poucas exceções, informações sobre
reflexo na história da ciência é inevitável. eventos e períodos relacionados ao contexto políti-
Não descartamos a possibilidade de ter ocorrido co, social, cultural e econômico mais amplo. Uma
exclusão de eventos e personagens relevantes, mo- das finalidades das ilustrações foi a de procurar
tivada por desconhecimento ou avaliação inade- estabelecer, mesmo que simbolicamente, alguns
quada de nossa parte. Porém, desde o início, toma- desses vínculos. Contudo, essa é uma limitação
mos o cuidado para não cairmos prisioneiros de evidente de um instrumento como esse, formado
enfoques que emanam de duas posições tradicio- por uma série de informações esparsas e em forma
nais (e diametralmente opostas) quanto ao desen- de ‘pílulas’. Evidentemente, reconhecemos que o
volvimento da ciência no Brasil. Tentamos escapar desenvolvimento da ciência, uma atividade huma-
do ‘pioneirismo ufanista’ de determinadas interpre- na como qualquer outra, está profundamente rela-
tações, bem como da visão igualmente estreita e cionado ao contexto histórico de sua produção.
limitadora de que, pela sua ‘nulidade’ ou porque Limitamo-nos a juntar as últimas três décadas
‘aqui nada se fez ou se tentou fazer’, não vale a pena deste século num só verbete. A razão foi a concor-
se falar em história da ciência no Brasil. dância de que não havia distanciamento histórico
Outro ponto muito discutido foi a inclusão de suficiente para uma análise sequer razoável dos
atividades científicas que aparentemente não tive- fatos e das contribuições científicas. Isso fez, sem
ram repercussão local direta, mas que foram, sem dúvida, com que muitos trabalhos importantes e
dúvida, de grande impacto para a ciência no exte- inúmeros pesquisadores de renome fossem deixa-
rior. Entre elas, estão as excursões científicas do dos de fora. Para citar apenas um exemplo, simbóli-
século 19 realizadas por naturalistas estrangeiros. co de todos os outros: a não inclusão dos trabalhos
Questão também complicada se refere à inclusão de de Otto Gottlieb na química.
experiências supostamente realizadas sobre as quais Foi, no entanto, uma escolha consciente, apesar
é escassa a documentação científica e coexistem da falha a que conduz ao deixar de fora os últimos 30
pontos de vista controversos. Um exemplo é a trans- anos em um cartaz sobre os cinco séculos de ciência
missão pioneira de sinais por telegrafia sem fio no Brasil. O potencial latente de injustiças com
atribuída ao padre Landell de Moura. cientistas, grupos de pesquisa e instituições, bem
Em vários momentos e com vários personagens, como o risco de controvérsias infindáveis, era muito 4

Belluzzo, Metalivros, 1994, p. 134 [Carlos Chagas combatendo epidemias pelo país] Revista IstoÉ —
[Modo de minerar e retirar diamantes, desenho aquarelado anônimo especial 7, São Paulo, ed. Três, 1999, p. 11
(escola portuguesa), séc. 18] O Brasil dos viajantes, vol. I — ‘Imagi- [Maurício Rocha e Silva (1910-1983)] Cientistas do Brasil — depoimen-
nário do novo mundo’, Ana Maria de Moraes Belluzzo, Metalivros, tos, São Paulo, edição comemorativa dos 50 anos da SBPC, 1998,
1994, p. 55 p. 715
[Gravura de 1881, mostrando o Imperial Observatório, no Rio de Janeiro, [Plataforma de petróleo] História do Brasil, vol. III, Rio de Janeiro, Bloch,
hoje Observatório Nacional, no antigo morro do Castelo] Rio de 1972, p. 753
Janeiro, Assessoria de Comunicação — O.N. Postais astronômicos [Gleb Wataghin a bordo de um avião cedido pela FAB e no qual realizou
(M.R.N.), 1989 medidas sobre os raios cósmicos] Os cinqüenta anos do méson p,
[Museu Nacional, 1870] As ciências no Brasil I, org. Fernando de Azeve- São Paulo, 1998, p. 16
do, Melhoramentos, p. 256 [Figura do artigo que anunciou a descoberta do méson p] Os cinqüenta
[Fritz Müller nos últimos anos de vida] As ciências no Brasil II, org. anos do méson p, São Paulo, USP, 1998, p. 24
Fernando de Azevedo, Melhoramentos, p. 208 [Laboratório dos irmãos Ozorio de Almeida] ‘Livro de Homenagem’ aos
[Vital Brazil tirando veneno de cobra] Brazil’s contribution to tropical professores Álvaro e Miguel Ozorio de Almeida, Rio de Janeiro,
medicine and malaria, Renato Clark Bacellar, Rio de Janeiro, Gráfica editado por colegas, amigos, assistentes e discípulos em honra às
Olímpica, 1963, p. 117 suas atividades científicas, Inst. Oswaldo Cruz, 1939, p. 25
[Locomotiva da Bahia and San Francisco Railway, foi a primeira da Bahia e [Entrada da Lapa da Lagoa das Pedras, de P.A. Brandt, folheto da
a terceira a funcionar no país, foto de Benjamin R. Mulock] Bahia, velhas exposição Dr. Lund — o homem de Lagoa Santa] Rio de Janeiro,
fotografias 1858/1900, Gilberto Ferrez, Livraria Cosmos, 1988, p. 73 Museu Nacional/UFRJ, 1999
[Charge de Oswaldo Cruz] Revista IstoÉ — especial 7, São Paulo, ed. [Eclipse do sol, 29 de maio de 1919] Einstein the life & times, Ronald W.
Três, 1999, p. 8 Clark, Nova York, Wings Books, 1995, p. 161

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grande. Revisões futuras ou outras iniciativas simi- Celso Furtado, com a Formação
lares poderão suprir essa deficiência. Leitores inte- econômica do Brasil (1954),
ressados nesse período encontrarão uma fonte pre-
e Gilberto Freyre, com Casa grande e
ciosa de informações no livro Cientistas do Brasil,
publicado em 1998 pela SBPC/Ciência Hoje. senzala (1933) e Sobrados e mocambos
(1936), são os autores brasileiros
mais importantes do século 20,
conforme o resultado de enquete feita
UNINDO FORÇAS
com cerca de 50 cientistas sociais
brasileiros em atividade. Logo a seguir,
Ressaltamos que a iniciativa não seria possível sem surgem Raymundo Faoro,
o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
com Os donos do poder (1958),
Estado do Rio de Janeiro, que financiou o projeto.
Agradecemos a todos que contribuíram generosa- Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes
mente com críticas e sugestões para a produção do do Brasil (1936), Victor Nunes Leal,
cartaz. Se muitas das sugestões não foram acolhi- com Coronelismo, enxada e voto (1948),
das, a razão principal está na severa limitação de e Caio Prado Júnior, com Formação
espaço, que, ao final do trabalho, fez vigorar uma
do Brasil contemporâneo (1942)
só lei: a inclusão de um verbete implicava a exclu-
são de outro. Texto e fotos deveriam se adaptar e Evolução política do Brasil (1933).
ao espaço de oito folhas da revista (tamanho do Em um patamar pouco abaixo, estão
cartaz); o contrário era impossível, como muitas Florestan Fernandes, com referência
vezes nos foi alertado por Vera Melo Oliveira e
a diversas obras a partir dos trabalhos
Núbia Melhem Santos, a quem coube a programação
visual e parte da pesquisa iconográfica. clássicos sobre os índios Tupinambá,
O trabalho de produzir o cartaz mostrou, entre e Oliveira Viana, autor de Populações
outras coisas, a enorme insuficiência de estudos que meridionais do Brasil (1920) e
analisam com mais profundidade a inserção do
Instituições políticas Brasileiras (1949).
Brasil no quadro geral da ciência e da tecnologia.
Para citar apenas dois aspectos que recebem pouco Euclides da Cunha, com Os sertões
destaque: a influência das navegações portuguesas (1902), ainda é bastante lembrado,
no Renascimento, a partir do qual começaria a e o livro de Fernando Henrique Cardoso
emergir a ciência moderna; e a contribuição local
e Enzo Falleto, Dependência
para o estudo da natureza, em particular dos conhe-
cimentos empíricos acumulados ao longo de sécu- e desenvolvimento na América Latina,
los pelos povos indígenas e populações aqui sediadas. publicado no Brasil em 1970,
Esperamos que essa iniciativa venha a unir for- é citado por muitos como livro dos mais
ças com outras já em andamento, como a criação de influentes, mas não é reconhecido como
bancos de dados sobre a história da ciência no
de importância equivalente do ponto
Brasil, a construção de páginas na Internet como
fontes permanentes e atualizadas de materiais sig- de vista do mérito. Além desses,
nificativos sobre o assunto, biografias e dicionários outros 12 livros ou autores deste século
biográficos de cientistas, a organização de exposi- foram citados por pelo menos duas
ções e mostras enfocando o trabalho de cientistas e
pessoas como pertencendo ao grupo
a história das instituições científicas.
Apesar de o cartaz ser um instrumento didático dos mais importantes ou influentes,
modesto e limitado, e em que pese às falhas porven- sem, no entanto, lograr maior consenso.
tura ocorridas, acreditamos que o trabalho despen- Na maioria, essas referências
dido valeu a pena. Se ele for visto afixado em salas
são específicas de certas áreas
de aula de cidades espalhadas pelo país, sendo
comentado e criticado por professores e estudantes, do conhecimento, não tendo maior
teremos atingido nosso objetivo. Por fim, resta-nos visibilidade fora delas.
ainda depositar alguma esperança em que as lições
destes 500 anos e o esforço de tantos cientistas Simon Schwartzman
sirvam de inspiração para o futuro. ■ Fundação Getúlio Vargas

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As ciências
sociais brasileiras
no século 20
UM POUCO DA METODOLOGIA Rio de Janeiro, e na Universidade Estadual de Cam-
pinas; os demais, na Europa e no Chile.
Nem todos interpretaram da mesma forma as
A amostra de respondentes limitou-se a uma lista de perguntas, e a distinção entre sociólogos e cientis-
cientistas sociais com endereços de Internet disponí- tas políticos não é muito nítida em vários casos.
veis na agenda do autor. Dos 49 que responderam a Além dos que não responderam, por razões variadas
tempo, 10 eram sociólogos, 13 cientistas políticos, 14 e não ditas, obtive uma recusa formal, e duas ou três
economistas, seis antropólogos e os demais historia- respostas que não se encaixaram no formato pro-
dores e pessoas da área do direito, da filosofia e da posto; várias pessoas se queixaram da limitação do
administração. É um grupo bastante sênior, tendo número, mas nem por isso deixaram de responder.
terminado em média os cursos de graduação em 1969 Por todas essas razões, os dados, apresentados na
e os de pós-graduação ao redor de 1983. Cerca de 40% tabela 1, não têm rigor estatístico, mas acredito que
FONTE: ENQUETE COM 49 CIENTISTAS SOCIAIS BRASILEIROS. CADA QUAL INDICOU ATÉ CINCO OBRAS MAIS IMPORTANTES E CINCO MAIS

das pós-graduações foram feitas nos Estados Unidos; sejam representativos das perspectivas dominantes
outros 40% no Brasil, sobretudo na Universidade de de um grupo significativo e influente de cientistas
São Paulo, no Instituto Universitário de Pesquisas do sociais. 4
INFLUENTES. QUANDO NÃO FOI FEITA A DISTINÇÃO, A OBRA FOI CONSIDERADA IMPORTANTE E INFLUENTE.

PRINCIPAIS AUTORES NAS CIÊNCIAS SOCIAIS DO SÉCULO 20


Total Economistas Sociólogos C. Políticos Antropólogos
Influência Mérito Influência Mérito Influência Mérito Influência Mérito Influência Mérito
Gilberto Freyre 44,9% 44,9% 28,6% 28,6% 50% 50% 46,2% 53,9% 66,7% 50%
Celso Furtado 42,9% 44,9% 92,9% 85,7% 0% 0% 53,9% 61,5% 0% 0%
Raymundo Faoro 34,7% 34,7% 28,6% 35,7% 20% 10% 38,5% 38,5% 50% 50%
Sérgio B. de Holanda 34,7% 28,6% 35,7% 35,7% 20% 20% 53,9% 15,4% 33,3% 50%
Victor Nunes Leal 20,4% 24,5% 7,1% 0% 20% 20% 38,5% 46,2% 33,3% 50%
Florestan Fernandes 10,2% 20,4% 14,3% 14,3% 20% 20% 7,7% 23,1% 0% 0%
Caio Prado Júnior 18,4% 20,4% 28,6% 28,6% 10% 10% 23,1% 30,8% 0% 0%
Oliveira Viana 16,3% 16,3% 0% 0% 10% 10% 46,2% 23,1% 6,7% 33,3%
Euclides da Cunha 14,3% 14,3% 7,1% 7,1% 0% 0% 15,4% 15,4% 33,3% 33,3%

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‘BRASIL REAL’ VERSUS BRASIL FORMAL ção social e política. Não se pensa mais que o Brasil
evoluiu de uma sociedade agrária feudal para uma
economia capitalista burguesa como a Europa, ou
Os resultados podem parecer óbvios e triviais, mas que tenha tido uma ‘revolução burguesa’. Não se
começam a ficar mais interessantes quando passa- acredita que a industrialização tenha sido um efeito
mos a pensar em como seriam as listas resultantes benéfico da crise de 1929 e ninguém pensa que o
de pesquisas semelhantes feitas em outros paí- sertanejo seja, ‘acima de tudo, um forte’.
ses. É possível que, em outras partes, os autores Ficaram, no entanto, as grandes questões do
e livros considerados clássicos fossem os de passado, e alguns encaminhamentos de resposta: a
pretensão conceitual e teórica abrangente, ou idéia de que a história, a cultura e as instituições são
que se dedicassem a temas e estudos mono- importantes; que não se pode entender o
gráficos específicos. Em outros países, tal- país, simplesmente, pela letra das leis ou
vez, sobressaíssem biografias, ou textos que pela lógica dos interesses em conflito; e a
tratassem da epopéia ou do destino de comunida- noção de que alguns padrões específicos
des ou grupos sociais, ou da criação de determina- presentes na formação do país – os pro-
das instituições, como o Estado democrático, as cessos de colonização, o inter-relacio-
universidades ou as grandes religiões. namento e os conflitos entre raças e
Vale mencionar de passagem pesquisa semelhan- culturas, os padrões e valores associa-
te feita pela International Sociological Association, dos a nossa antiga ‘nobreza’ urbana e
que apontou como obra sociológica mais importan- agrária, os padrões de dependência e
te do século Economia e sociedade, de Max Weber, subordinação do povo em relação
um grande painel histórico e conceitual das origens aos poderosos – tiveram conseqüências
e características das sociedades modernas. Todos os duradouras que ainda persistem na maneira pela
demais autores do topo da lista dessa pesquisa (C. qual o país se organiza e busca se entender.
W. Mills, Robert K. Merton, Luckman e Berger,
Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Jurgen Habermas,
Talcott Parsons, E. Goffman) escreveram trabalhos
de natureza teórica e conceitual. CONSENSOS E SURPRESAS
Na lista brasileira, o que chama a atenção em
quase todos os autores e livros é que eles têm o Brasil
como tema – as únicas exceções são os trabalhos A comparação entre as respostas de sociólogos,
mais antigos de Fernandes, de natureza monográfica, economistas e cientistas políticos mostra alguns
e o texto de Cardoso e Falleto, escrito no Chile, consensos inesperados, bem como algumas diferen-
tendo a América Latina por oposição ao Brasil. ças também surpreendentes. Os economistas são
Os resultados da enquete feita aqui apontam para unânimes em colocar Celso Furtado em primeiro
livros históricos, muitos deles notáveis pelas des- lugar, mas não incluem nenhum outro nome ou obra
crições detalhadas das circunstâncias e dos meios de economistas além de Furtado e Prado entre os
de vida da população em determinadas regiões e cinco primeiros em sua lista de preferências – mas
períodos, uma fenomenologia cujo valor transcende isso pode ser um efeito da amostra peculiar dos
as eventuais interpretações dos próprios autores, profissionais que responderam à enquete, provavel-
propondo uma nova visão a respeito do ‘Brasil real’, mente mais próximos das outras ciências sociais do
por oposição ao Brasil formal das leis ou dos precon- que a maioria.
ceitos e das visões importados da Europa pelas Os economistas ainda preferiram dar relevo a
elites. Mas, talvez, por isso mesmo, são livros que vários nomes da tradição sociológica, começando
mostram uma sociedade sem atores, sem iniciati- por Faoro, Buarque de Holanda e Freyre, mas desco-
vas, no máximo com instituições precárias, e popu- nhecem alguns dos autores considerados mais im-
lações vivendo as conseqüências e o peso de seus portantes para o entendimento da formação do sis-
determinismos. Falta o Brasil utópico, o Brasil em tema político brasileiro, como Oliveira Viana e
projeto e em construção. Nunes Leal.
Chama a atenção, também, o fato de Já os sociólogos colocam Freyre em
que os livros sobrevivem, mas a maior primeiro lugar, mas não encontram lu-
parte das teorias propostas por seus auto- gar para Furtado em suas preferências.
res são relíquias do passado. Hoje, nin- Os antropólogos, de forma semelhante,
guém fala mais do luso-tropicalismo, do também desconhecem os economistas
homem cordial ou dos determinismos e concentram suas preferências em
geográficos e raciais de nossa organiza- Freyre. Os cientistas políticos são os

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únicos que colocam nomes de outras que todos os estudantes deveriam ler
disciplinas em primeiro lugar (Furtado para entender em profundidade nossa
e Freyre) e mostram um âmbito de inte- realidade, para se tornarem herdeiros
resse mais eclético e multidisciplinar. condignos de nossas melhores tradições?
A concentração das preferências em Feita de forma impensada, essa propos-
autores mais antigos pode ter sido uma ta, ao lado dos benefícios óbvios, corre-
conseqüência da restrição que foi feita ria o risco de perpetuar as limitações e
ao número de autores e obras a serem insuficiências que caracterizam nossas
indicados ou até mesmo a um efeito da idade mais ciências sociais: a pobreza dos estudos comparados;
madura de muitos dos respondentes. Vale ressaltar a pouca reflexão teórica e conceitual; a ênfase talvez
que o que foi pedido era a indicação de obras e não excessiva nos aspectos atávicos e peculiares do
de autores; algumas pessoas, mesmo assim, preferi- país, em detrimento dos projetos, dos logros e das
ram ficar em nomes. Na análise dos dados, acabamos conquistas; e a grande dificuldade em entabular
também por tratar de autores, fazendo ressaltar diálogos criativos e enriquecedores com outras tra-
assim as contribuições intelectuais que não aparece- dições de trabalho e outros países.
riam – ou apareceriam menos – se as referências Será então, afinal, que os clássicos servem para
ficassem dispersas entre obras variadas. alguma coisa? Pela presteza com que a enquete foi
Uma outra possível explicação para esse tipo de respondida, e a pouca dificuldade que tiveram as
escolha é que as ciências sociais se expandiram pessoas em atender ao pedido de no máximo
muito nas últimas décadas, e as referências a autores cinco referências em cada categoria, acredito
mais recentes ficaram muito dispersas, em função que esses autores continuam bem presentes na
da crescente diversidade de metodologias, perspec- mente de nossos cientistas sociais, definindo
tivas e orientações. Não há maiores diferenças em suas questões e apontando caminhos e desca-
função de se as pessoas tiveram sua formação mais minhos para a busca de respostas.
alta nos Estados Unidos, na Europa ou no Brasil. Ao contrário do que dizia Robert K. Merton,
em seu livro Social Theory and Social Struc-
ture (The Free Press, 1949.), citando uma
frase famosa do matemático e filósofo bri-
PARA QUE SERVEM OS CLÁSSICOS? tânico Alfred N. Whitehead (1861-1947),
as ciências que temem esquecer seus fundadores
não estão perdidas, mas, ao contrário, podem sem-
Será que esses livros e autores, de alguma forma, pre buscar no passado os temas de diálogo e de
definem o ‘cânone’ dos cientistas sociais brasileiros, renovação. ■

Outras citações
Abaixo, está a lista de autores e obras cita- A integração do negro à sociedade de classes, RANGEL, IGNÁCIO. A inflação brasileira, São
dos duas ou mais vezes como de maior São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências Paulo, Brasiliense, 1978, 3a edição.
mérito ou influência. A referência, sempre e Letras da USP, 1964. SANTOS, WANDERLEY GUILHERME DOS. Cida-
que possível, é da primeira edição. A universidade brasileira: reforma ou revolu- dania e justiça, a política social na ordem
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Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geo- formação da família brasileira sob o regime do nacional, São Paulo, Difel, 1975.
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abril de 2000 • CIÊNCIA HOJE • 47

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