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REVISTA SUBMARINO

“Democracia racial é uma camisa


de força da literatura negra”
O poeta e militante negro Luiz Silva, o Cuti, diz que
a falsa idéia da boa convivência faz parte da
ideologia racista
MARIA JULIA COUTINHO
O poeta, ensaísta e escritor negro Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, é um dos mais
engajados militantes da literatura afro-brasileira. Nascido em Ourinhos, interior
de São Paulo, em 31 de outubro de 1951, Cuti foi um dos fundadores do
Quilombhoje-Literatura, grupo paulistano de escritores, surgido em 1980 e
dedicado a discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura. Autor
de livros como “Poemas da Carapinha” e “Batuque de Tocaia” (Edição do Autor),
Cuti está também entre os criadores da série Cadernos Negros, “nascida no bojo
de um incipiente movimento que pretendia dar continuidade à histórica epopéia de
uma imprensa negra”.
Em entrevista à Revista Submarino, Cuti dispara suas críticas às desigualdades
raciais que dificultam a qualidade de vida e a produção intelectual da comunidade
negra no país. “O racismo para o branco é um trunfo, ilusório, mas trunfo”, diz.
Fala também da autocensura do negro à sombra do chicote, da visão obtusa da
esquerda brasileira sobre a harmonia racial brasileira e a cristalização na língua
portuguesa de expressões racistas de difícil reversão.
Revista Submarino – Como surgiu o Quilombhoje?
Cuti – Em 1978, havia, no Bexiga, um bairro de tradição negra de São Paulo, uma
das Escolas de Samba mais importantes da cidade, a Vai Vai. Era lá também que,
no passado, existiu o chamado Quilombo da Saracura. Havia uma entidade
chamada Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan). Esse centro era muito ativo, e
ali nasceu uma organização que pretendia aglutinar as outras organizações: a
Federação das Entidades Afro-Brasileiras do Estado de São Paulo (Feabesp).
Nessa época, no Cecan, chegamos a publicar um jornal chamado Jornegro. No
Cecan se uniram pessoas muito ligadas às letras e dali nasceu a idéia de fazermos
uma antologia que fosse capaz de publicar poemas e contos de outros negros.
Revista Submarino – E a origem do nome?
Cuti – Trata-se de um neologismo que inclui a atualidade do Quilombo, a noção da
nossa retomada histórica e também inclui a palavra bojo, ou seja, a nossa
literatura está no bojo de um movimento maior, que é o Movimento Negro
Nacional. Além dos encontros para discussão, o grupo passou também a realizar
recitais de poemas. Hoje, ele é uma instituição legal, cuja finalidade me parece que
continua a mesma, pelo menos em termos de Cadernos Negros. (Sobre o
Quilobhoje, citar...)
Revista Submarino – Por que razão você se afastou do grupo?
Cuti – Minha preocupação era de que o Quilombhoje se tornasse realmente uma
empresa, que entrasse no mercado e pudesse caminhar com suas próprias pernas,
que não dependesse de dinheiro de instituições. No momento em que temos verbas,
realizamos eventos, mas não temos condições de enraizar um trabalho, de fazer
com que o trabalho se torne auto-suficiente.
Revista Submarino – Segundo o escritor e historiador Joel Rufino, a contumaz
invisibilização da afrodescendência na sociedade brasileira e o monopólio de
representação pelos brancos explicariam a “inexistência” de obras literárias que
retratem o negro como herói, sábio etc. Você concorda com esta afirmação?
Cuti – Sim e não. O que os brancos mais fazem com os negros é desanimá-los. No
campo literário e em outros que concorre a inteligência e o discurso é assim. A
ilusão do racismo faz com que o branco em relação a nós negros sustente, com
esforço, a noção de que é superior. Ora, reconhecer que negros são iguais tira o
branco de sua ilusão. Em uma sociedade competitiva, todos querem ser os
melhores. O racismo para o branco é um trunfo, ilusório, mas trunfo. Negar
capacidade ao outro é uma forte maneira de atribuí-la para si mesmo. Manter o
negro invisível é procurar manter sua visibilidade. Racismo faz parte do “levar
vantagem em tudo”. Mas cedo ou tarde a armadura da ilusão vai mostrando suas
fragilidades. O poder da representação não será jamais doado, mas sempre
conquistado. É o que nós, escritores negros, temos feito. (Citar).
Revista Submarino – E a receptividade do mercado diante dos escritores negros?
Cuti – O ‘Deus Mercado’ é uma criação do branco. Eu não o adoro. Para mim nem
tudo que se vende é bom. Essa lógica é perversa. Há uma necessidade de libertação
interior. Os descendentes de africanos sabem disso, lutam por isso. A literatura
negra vai encontrar dificuldade sim, porque o tal mercado é um deus, como todos,
vaidosíssimo. Tem suas vontades e quer um mundo refletindo a sua ideologia.
(Citar no rodapé)Mercado é reflexo da ideologia dominante. A vontade da maioria
é imposição de uma minoria branca, machista e racista. O que sinto, portanto, é a
imposição de pontos de vista, de estereótipos, de uma visão de Brasil para inglês
ver: branco, loiro e de olho azul. Mas há aí uma luta. Inevitável. Porque a
receptividade é ideológica também. Em um jogo de cartas marcadas é preciso
desmascarar o jogo.
Revista Submarino – Por que existem tão poucos escritores contemporâneos da
raça negra?
Cuti – Porque há racismo no plano subjetivo e objetivo. Há uma instância
subjetiva muito importante a ser vencida: romper com a “desidentidade” que o
racismo nos impõe. Quando uma pessoa começa a escrever, ela sabe que está
produzindo algo que terá a sua permanência e trará respostas. Ora, a sombra do
chicote ainda está madura no inconsciente coletivo da afrodescendência. Ser negro
no momento da escrita é, pois, o primeiro desafio para o poeta e ficcionista negro.
Saber que se trabalha com o branco no horizonte de leitura é enfrentar, na raiz da
criação, a opção em libertar-se ou manter as correntes invisíveis. Por isso vemos
que muitos negros tornam-se branquíssimos quando escrevem. Ou seja, nada de
sua subjetividade negra aparece. Ele cultiva uma sentinela de censura em seu
subconsciente porque sabe que o branco é o leitor para o qual suas palavras serão
dirigidas.
Revista Submarino – Você acredita que o fato de muitos autores negros não
produzirem livros desvinculados da questão racial pode denotar um comodismo,
ou seja, é mais fácil se “proteger” com o escudo da raça?
Cuti – Muito pelo contrário. Tudo tende a enterrar no desdém a chamada
“questão racial”, como se ela fosse algo atinente ao complexo de inferioridade do
negro. Por isso é mais cômodo se falar de outras coisas e não tocar na questão
racial, colocá-la debaixo do tapete. A convivência entre negros e brancos impõe
que se faça silêncio com relação a raça no Brasil. Essa é uma maneira que se
encontrou de manter o racismo, ou seja, a vantagem dos brancos em todos os
campos. Veja, quando há nos meios de legitimação literária a idéia de
superioridade branca reinando, falar de racismo é tocar em um tabu. Somos
levados, portanto, em nome de uma falsa boa convivência, a silenciar as variadas
experiências de vida no tocante aos contatos inter-raciais. Todo texto que silencia é
muito melhor aceito pelas instâncias de legitimação. No fundo, o que os brancos
quase sempre dizem, ao avaliar o texto de um autor negro que silencia, é o
seguinte: “Olha como ele não se deixa levar pelo rancor. Olha como ele é
universal.” No fundo, a idéia do Pai Tomás está muito sólida na expectativa que o
branco tem do negro. Por aí que se valoriza e desvaloriza textos. E o próprio leitor
negro acaba embarcando nessa.
Revista Submarino – Por que a grande maioria da produção de selos e de autores
negros da atualidade está voltada quase somente para a própria comunidade?
Cuti – Não está voltada só para a comunidade. Os demais é que têm medo de tocar,
queima a mão e incendeia os olhos. Faça um teste. Deixe a “Revista Raça” em um
consultório de classe média, entre outras tantas revistas. Filme. Você certamente
vai perceber como a imagem do negro e sua mensagem serão repelidas. É a ilusão
do branco, o seu complexo de superioridade. Racismo tem em sua base funcional a
rejeição do outro, a recusa.
Revista Submarino – E como você aborda a questão racial em suas obras?
Cuti – Procuro, em primeiro lugar, libertar-me da autocensura. Para isso é
fundamental permitir-me vislumbrar um horizonte de leitores negros. Depois,
deixo-me brincar com as palavras, entrelaçando a questão racial em seus vários
ângulos, inclusive abordando os brancos e seus complexos enquanto matéria
ficcional. Também é importante para mim o jogo de desmontar os estereótipos.
Revista Submarino – Você se interessa por outros temas desvinculados das
questões raciais?
Cuti – Parece que, no fundo, a sua pergunta vem na direção seguinte: você é
também não-racista? Minha obra não tem centro temático. Não me escondo para
outras dimensões do ser humano. A preocupação de que o negro escreva textos que
não falem sobre a questão racial é a preocupação da própria ideologia racista.
Quem mais escreveu sobre questão racial, tentando minimizá-la, foram brancos.
Nós negros temos muito ainda que produzir. Mergulhar na história dos séculos de
colonização e abordar a contemporaneidade é uma tarefa imensa para várias
gerações. A temática racial convive com todas as outras em meus textos.
Revista Submarino – Como lutar contra essas barreiras?
Cuti – Creio que o esforço pessoal pode vencer tais barreiras internas, mas é
imprescindível que surja, em grande quantidade, o leitor negro. Este é
fundamental para libertar a criação. Os brancos nos “coisificam” em suas
produções intelectuais porque não nos tem no horizonte de sua recepção. Um
escritor branco jamais pensa em leitor negro. Daí que se dirige a um outro branco,
no seu íntimo. Para o escritor negro se dá o contrário. Ele sabe que quem legítima
a literatura é branco e, por isso, tem dificuldade de se libertar do leitor ideal
branco, que, por tabela, remete o criador a uma profunda autocensura. O
monopólio do branco é, sobretudo, da mente dos negros. Esse domínio subjetivo é
a mais séria escravidão. E, sem dúvida, dificulta e muito a criação literária
afrodescendente.
Revista Submarino – Você escreveu um artigo em que falava sobre a cristalização
da língua portuguesa no Brasil. Como isso influencia o trabalho do escritor negro?
Cuti – Ao cristalizar-se, a língua portuguesa enfeixou em seu conteúdo semântico
uma série de expressões racistas de difícil reversão. A própria palavra “negro”. Os
vários significados pejorativos são empregados até hoje. Sem contar os novos
termos que os brancos vão cunhando ao longo do tempo, como por exemplo,
“crioléu” é a nova versão de “neguinho”. O sujeito fala reiteradamente “neguinho
faz isso faz aquilo”, querendo dizer com isso que é um sujeito qualquer de péssima
índole, folgado, irresponsável, ou que tais, agiu de tal maneira. Quando você diz
“branquinho fez isso e aquilo”, ele acorda e te chama de racista. É isso, dorme-se
em “berço esplêndido”, sendo racista. O despertar é sempre um espanto.
Revista Submarino – Como você vê a produção literária do negro no Brasil
comparada a outros países?
Cuti – Diante dos Estados Unidos, por exemplo, a literatura afro-brasileira é muito
pouco numerosa e bastante intimidada. A ausência de uma luta declarada, a
existência da camisa-de-força chamada “democracia racial” desanima, confunde,
atrasa o desenvolvimento dessa literatura. Escritores com grande capacidade
literária, em nome de uma integração espúria na vida intelectual dos brancos,
acabam por silenciar a sua subjetividade e a de sua gente negra. São chamados
muitas vezes de crioulos, negões, e acham que tudo vale, desde que sejam
considerados escritores pelos que monopolizam a opinião pública. Daí que
preferem, os que se pretendem de esquerda, veicular a noção de harmonia racial
brasileira, impedida, apenas pela exploração de classe. É a cartilha de Jorge
Amado. Os que se pretendem de direita, então, vão basear a identidade negra
apenas em traços de cultura popular de origem africana e farão um completo
silêncio quanto à zona de conflito étnico. Passam longe.

Entrevista para Eduardo de Assis Duarte


com Maria Nazareth Fonseca e
Maria José Somelarte

21 de maio de 2007, São Paulo


[versão 3]

Eduardo de Assis Duarte - Em artigo de 1988, Domício Proença Filho, poeta e


crítico afrodescendente, estabelece dois sentidos para a expressão Literatura
Negra: um, restrito à produção “de autoria de negros ou descendentes assumidos
de negros e, como tal, reveladora de visões de mundo, ideologias e modos de
realização que se caracterizam por uma certa especificidade, ligada a um intuito de
singularização cultural.” E outro, mais amplo, entendido como “arte literária feita
por quem quer que seja, desde que reveladora de dimensões peculiares aos negros
ou aos descendentes de negros”. O que pensa dessas definições?
CUTI – É, em outras palavras, a mesma divisão feita por Luiz Santa Cruz: a
poesia negra do negro e a poesia negra do branco. Veja, a preocupação parece-me
resguardar o direito do branco de participar da Literatura Negra, de ela não ser
um território de discriminação às avessas. Estamos, afinal, todos voltados para o
branco, preocupados em garantir o quinhão de uma supremacia secular. Não
considero tão importantes as definições de literatura. Todas elas serão sempre
cambiantes. Arte não cabe em definições. Extrapola, deslimita. Contudo, creio que
o mais importante quando me refiro à Literatura Negra é localizar uma
desconstrução a partir do lugar de onde parte o discurso. Essa desconstrução não
diz respeito tão-somente à produção, mas também à recepção ou, melhor dizendo,
à relação de ambas. Refiro-me ao leitor negro, feito personagem, com a concepção
de um interlocutor negro que habitará o texto. O branco, por mais que tematize o
negro, ainda não teve distensão psicológica para chegar a essa empatia na criação.
O leitor negro não passa em seu horizonte criativo. A subjetividade intransferível
ainda continua sem o exercício mimético por parte dos autores brancos. Daí que
um querer-se negro no momento da criação é o que mais importa no tocante à
consideração do que é Literatura Negra. Tematizar é fácil. Essencializar é um
outro exercício que passa, sobretudo, pelo despojamento da brancura. É o que os
escritores negros vêm fazendo.
EAD - Nesse mesmo ensaio, Proença Filho alerta para o risco terminológico
implícito na expressão Literatura Negra, qual seja, o de, “sob a capa de aparente
valorização”, acabar fazendo o jogo do preconceito. Qual a sua opinião a respeito?
CUTI – O negro não tem limite. Semog dizia num verso que desejava ser negro até
nos dentes... "Risco" é para ser corrido. Não aceito nenhum desses "cuidados",
dessas cautelas que abrigam no fundo a domesticação ideológica costumeira que se
fazia com os africanos no Brasil e que continua a ser feita com a afro-descendência.
"O jogo do preconceito" está dado, há que se jogar, sim. Literatura, como dizia
Iser, é um jogo, e nele a interpretação é um suplemento que se atinge apenas depois
do jogo, não antes. Na realidade não é a definição da Literatura Negra que a
realizará. Os escritores não precisam de definição para produzir. Esse é um
problema da crítica e da didática literárias que, no meu entender, precisam
auscultar mais os textos, as fontes primárias, e não seus posicionamentos prévios
com relação à questão racial no Brasil. A Literatura Negra vem sendo prejudicada
pelo viés estritamente sociológico que a vê apenas como representação.

EAD – Voltando à questão do risco: não te pareceria um risco maior o de não


nomear? Não nomear não seria jogar a literatura afro-brasileira na invisibilidade?
CUTI - Eu acredito que sim. Nomear para mim é importante. Nós vamos chegar a
uma outra pergunta que você fez que é no sentido de que palavra escolher para
nomear. Creio que nós podemos avançar nesse sentido, de mostrar que o nome que
você dá à coisa tem um comprometimento ideológico e inclusive estético.
EAD - Passemos agora a uma outra pesquisadora, também afro-descendente:
Benedita Gouveia Damasceno, em seu livro Poesia negra no Modernismo
Brasileiro, discute a existência de uma poesia negra no Brasil e afirma que, no
caso, “o menos importante é a cor do autor”. A meu ver, tal definição se identifica
com o “sentido lato” da conceituação do Domício. Passados 15 anos, como você vê
essas definições nos tempos de hoje? Elas não estariam restringindo a Literatura
Negra ao negrismo, ou seja, à temática negra? E aqui, eu não me refiro aqui ao
negrismo cubano, mas a algo como o indianismo praticado pelos românticos
brasileiros. Ou seja, o negro apenas como tema do escritor branco.
CUTI – Novamente são os cuidados para que o negro não faça racismo ao
contrário. Estamos ainda às voltas com autores e não com textos. E nisso fica
patente a preocupação em colocar Macunaíma, de Mário de Andrade, Martim
Cererê, de Cassiano Ricardo, Poemas Negros, de Jorge de Lima, como Literatura
Negra. Textos feitos a partir de um ponto de vista branco e racista. Há que se ter
uma ética mínima para perceber que o centro do discurso é o que mais importa.
Qual o branco brasileiro escreveu como um negro, ou seja, como se fosse? Não
tenho notícia. Se começarmos a pensar as coisas por aí, vamos sair do biografismo
e começar a encarar o que interessa de fato, as obras. E eu acho que você coloca
aqui indianismo nos românticos: você viu que eu citei os modernistas, que eu acho
que fizeram o mesmo e de uma maneira um pouco pior, pelo viés da folclorização.
Pelo menos nos românticos nós tivemos um Castro Alves, que deu a palavra à
personagem negra em seus poemas, idealizando ou não, mas deu. E ainda dotou de
dignidade a personagem negra, coisa que os modernistas não fizeram, muito pelo
contrário: folclorizaram, ridicularizaram a figura do negro. Então eu vejo que é
por aí.
EAD - Continuando nessa revisão teórica, o que pensa da definição de Literatura
Negra de Zilá Bernd, como sendo aquela que expõe um sujeito de enunciação – um
eu negro – que se apresenta e quer ser visto como negro? Isso basta?
CUTI – Não. Não basta, mas é um ponto de partida importante, pois contempla
um elemento fundamental no que diz respeito à produção. Mas como eu disse,
literatura vai além da produção. Por isso, creio que é preciso se levar em conta
outros aspectos do fenômeno. Por isso me referi à preocupação do escritor de
ensejar um interlocutor, que poderíamos até chamar de “leitor ideal negro”. Nisso,
a experiência de todos os leitores será redimensionada. Sartre, já no prefácio de Os
Condenados da Terra, de Frantz Fanon, dirigindo-se ao leitor branco, realçava a
importância de o branco não ser nem o centro do discurso nem o destinatário
deste. Isso traz um enriquecimento para todos. Por outro lado, os leitores desses
textos, que não os acadêmicos, desempenham um papel de relevo para a Literatura
Negra. Quase nenhum escritor escreve pensando na academia. Ela não é a
destinatária ideal do texto literário. Como está sendo recepcionada a Literatura
Negra é uma tarefa interessante de investigar. Creio que nós estamos criando
leitores onde não havia nenhum.
EAD - Uma outra limitação do conceito de Zilá Bernd é o seu centramento na
poesia. Este eu ao qual ela se refere é basicamente um eu-lírico... E então como é
que fica o romance? O romance conjuga um dialogismo com vários eus. O
romance por sua própria natureza é um gênero dialógico. Pensemos em Cidade de
Deus: há vários eus falando ali, eus negros, eus nordestinos, eus pobres, inclusive
racistas, que têm inveja do negro... A cena do cearense que entrega o negro para
polícia pode ser um exemplo. Um outro caso detectamos em Maria Firmina dos
Reis que, em seu romance Úrsula, de 1859, narrado em terceira pessoa, cria
personagens que eram livres na África e que contam sua vinda para o Brasil.
Então, como avaliar a performance do sujeito afro-descendente na prosa de
ficção? Importante...
ICUTI - Essa é um questão séria. Mas, se você observar, a primeira pessoa é um
dos grandes desafios. Nós temos, por exemplo, o próprio Machado de Assis na
primeira pessoa de uma mulher. Machado chegou a escrever contos nessa
perspectiva. Eu não me lembro, pode ser que exista, um escritor branco que
escreveu em primeira pessoa de um negro, que escreveu prosa, romance, contos...
Eu não me lembro. Por aí nós começamos a observar o limite que o racismo impõe
para o próprio escritor branco. Ele não concebe um leitor ideal negro. Então, ele já
está travado no seu próprio ato de criar. Pensa que não, certamente, envolto que
estamos todos pelas noções de mercado. Mas está. Do ponto de vista da criação. Eu
vejo que, por exemplo, nós temos uma possibilidade de desenvolver uma maior
flexibilidade nesse sentido. Quando você falava das várias perspectivas do Cidade
de Deus, eu lembrava de uma questão ideológica que tem no livro. Em nenhum
momento o discurso do Movimento Negro é vazado por nenhuma personagem.
Entretanto, existe no livro um carpinteiro chamado João Batista – repare a alusão
bíblica –, que em certo momento veicula seu discurso esquerdizante, dizendo-se
marxista-leninista. É um discurso articulado. O que você vê de discurso referente à
questão racial vem pela voz do narrador interpretando o sentimento das
personagens, sobretudo dos marginais Marimbondo e Grande, que não gostam de
brancos. E esse sentimento se manifesta com atitudes de mero rancor. Não se trata
de discurso articulado, não há primeira pessoa elaborando ideias para expor sua
visão de negro, portanto não há possibilidade de ideologia. É como dizer que negro
não pensa. O sentimento das personagens vazado pelo narrador não tem horizonte,
não propõe transformação, é matéria bruta. Além disso, o sentimento anti-negro
das personagens brancas cai naquele diapasão do “racismo cordial”, de que já se
falou na imprensa brasileira. Aparece de forma ingênua, disfarçando a ideologia
que o sustenta. Essas coisas fragilizam o livro, pois correspondem à ideologia da
democracia racial. Mas, voltando então à primeira pessoa: quando você falava, eu
me lembrei de um pequeno conto do Abílio chamado “Sete Viagens Coletivas”, que
está nos Cadernos Negros 18. É um conto onde várias perspectivas são mostradas.
Só que o Abílio não deixa de mostrar a perspectiva negra. Há um conflito no
ônibus em que uma senhora quer que o motorista limpe o banco e daí dá toda uma
confusão. Ele constrói o conto com sete perspectivas. Acho que essa flexibilidade
nós desenvolvemos muito mais, nós estamos muito mais aptos para isso. Eu já
escrevi, por exemplo, um conto na primeira pessoa de uma garota de programa
branca, mostrando o seu conflito racial. Quer dizer, acho que nós temos mais essa
flexibilidade. Agora, de onde parte o discurso? Parte de um eu que se quer negro, e
nisso eu acho que a Zilá tem razão. Este querer-se negro pressupõe um
interlocutor negro. Um leitor ideal negro, daí o texto estar, vamos dizer
assim, mais arejado com relação a esses cuidados que se tem em relação à
possibilidade do racismo às avessas. Se o racismo às avessas é um risco, nós vamos
correr esse risco para realizar nossa humanidade. Não há o que se temer no
momento em que nós estamos seguros, cientes de que a nossa convicção não é
racista. Não temos medo de correr esse risco. Mas acho que a sua questão da prosa
tem ainda outros elementos que precisariam, talvez, ser considerados. Por
exemplo, os valores culturais. Quando você escreve a partir de uma perspectiva
negra, esses valores culturais não são apenas valores de fora, o Orixá não está
desvinculado do seu filho, o Orixá não é alguma coisa folclórica. Não é, por
exemplo, como o João Ubaldo desenvolve em Viva o Povo Brasileiro. Ele mesmo
chegou a dizer que reproduziu Homero ao tratar da influência dos Orixás em uma
batalha. Ora, o Orixá não é aquele deusinho que está fora e entra na cabeça da
pessoa para ela agir. É outra dimensão, está, vamos dizer assim, “in” e não “out”,
compõe a própria pessoa, sua conformação energética profunda. Quando você vai
falar do samba, não é o samba sem a vida do sambista, sem a existência do
sambista, sem o drama do sambista. Porque essas coisas são experienciadas, são
vividas, e é exatamente essa vida é que eu acho que nem todos conseguem plasmar
em literatura. (Defesa do lugar de fala pelo autor...) Assim, o escritor branco no
Brasil, pela profundidade com que o racismo entrou na cultura brasileira, tem se
limitado no sentido dessa empatia profunda com o negro. Acaba escrevendo quase
sempre contra a personagem negra, seja pelo desdém, invisibilizando-a, ou pela
estereotipia. E também contra o leitor negro, que ele sequer admite que existe. Só a
partir de uma empatia profunda, quando o branco for capaz de se desvestir da
brancura, que podemos falar que no Brasil não tem importância a cor do escritor,
a raça do escritor. Por enquanto, eu acho que é muito cedo.
Maria Nazareth Fonseca: na África você já tem, desde o movimento em prol da
libertação dos países de língua portuguesa, eu estou falando especificamente dos
países de língua portuguesa, você tem escritores brancos que chegaram a essa
criação desse eu enunciador negro (Exemplo: Mia Couto) Quer dizer, eles falavam
de um lugar de negrura. É o que você vai ver, por exemplo, no Luandino Vieira,
naqueles poetas que hoje mesmo eles falaram que eram brancos. Então você tem
isso: é um trabalho cultural mesmo; é um trabalho de estar empenhado em uma
causa, ou de deslocar desse lugar que a sociedade colocou o escritor branco. Ele se
desloca desse lugar e ele entra de corpo aberto mesmo nesses outros lugares, que é
o que eu acho que o Paulo Lins não fez.
CUTI: O trabalho que nós estamos fazendo hoje é o de se despojar da brancura
que nos impregna. Sem esse despojamento, realmente, não é possível realizarmos
plenamente a nossa literatura.
EAD - Pois é, é muito polêmico tudo isso, tudo muito rico...
Maria José Somelarte Barbosa: eu acho que o Cuti tem toda a razão quando ele
fala que a nossa sociedade é tão racista, tão sutilmente racista, que ela não deu
ainda nem condição... Olha, não é ela que tem que dar, a gente nem percebe que
você fala de lugares ainda muito estratificados. Então mesmo quando o escritor
branco quer falar do lugar do negro, quer falar como negro, quer criar uma obra
como negro ele ainda está tão marcado por essas demarcações, essas
compartimentações de que falava Fanon, elas são tão arraigadas em nós que nós
nem percebemos isso. Achamos, às vezes, que estamos falando de um outro lugar, e
continuamos falando do mesmo.
EAD- Eu penso que essa questão da experiência angolana e moçambicana, em que
escritores brancos se colocam no lugar de um eu negro, passa por um projeto de
nação cuja maioria é negra. Aqui no Brasil, existe um projeto de nação distinto,
porque querem nos impingir um rosto e um padrão estético gregos. E isto está até
no nosso dinheiro... Um dos maiores símbolos de uma nação é a moeda, e o nosso
Real foi feito por um Presidente da República que antes era ministro da fazenda, o
Fernando Henrique Cardoso, que é um sociólogo com um grande estudo sobre os
negros do Rio Grande do Sul. E quando ele cria a moeda, ele põe um rosto grego
para nos espelhar. Isto, implicitamente está dizendo para nós: “olha como nós
somos feios! Nós nunca vamos chegar a ser isso aqui.” Como se o rosto grego fosse
o Belo universal. O signo estampado na moeda é apenas um dos elementos dessa
cadeia ideológica que impede o escritor branco de se colocar efetivamente no lugar
de um eu negro e, ao mesmo tempo, pensar um leitor implícito negro. Em relação a
África, que diferenças haveria?
Maria Nazareth Fonseca: Eu não saberia dizer concretamente a diferença... A
diferença que eu vejo é que um escritor como, por exemplo, Luandino Vieira, um
escritor como Mia Couto, escritores como Antonio Jacinto, eles conseguiram se
colocar nesse lugar do escritor negro. Eu penso que ser negro era maior do que ser
simplesmente um indivíduo negro, era ser uma nação negra, era uma nação
africana, uma nação com um projeto de negrura.
Maria José Somelarte: Eles participaram das lutas da independência ativamente.
Maria Nazareth Fonseca: Exato. Participaram como parte de um projeto de uma
nação negra, e um projeto de nação africana. Então naquele momento ser negro
não era simplesmente ser negro, de pele negra; ser negro é estar defendendo um
projeto de africanidade.
Eduardo: De pátria.
Maria Nazareth Fonseca: de pátria africana. Aqui no Brasil também nós
defendemos projetos de pátria, mas os negros e os índios estavam totalmente fora
deles. (Trecho Importante!)
EAD - Na guerra do Paraguai, eram pegos à força e levados para a frente de
batalha, que eram os que iam na vanguarda. Eram os batalhões de escravos, que
eram levados à força para a frente de batalha. Eis que tudo isso reflui para essa
discussão da literatura.
CUTI - Exatamente, e você veja: quando se fala em um projeto de Brasil, antes
mesmo do projeto, o próprio processo de independência é uma das coisas mais
absurdas que se tem. Eu detesto essa data. Quer dizer, como poderíamos ter
considerado o Brasil independente, com a maioria da população escrava,
legalmente escrava? Só se não se considerar essa população toda. E só depois de 66
anos ela tem a sua liberdade que ainda tem-se que conceber que foi uma benesse de
uma princesa. Então hoje, como uma criança negra vai celebrar isso, ela vai
marchar, ela vai cantar o hino nacional no dia da independência? O soldado negro
vai marchar no dia da independência, sendo que se ele tiver um pouquinho de
conhecimento histórico ele se conscientiza de que está fazendo uma coisa absurda,
para uma data absurda. Então, tudo isso precisa ser rediscutido e eu creio que esse
processo de alienação, voltando para a literatura, traz um problema sério: assim
como o escritor branco é limitado para essa empatia com o negro, o negro se
autocensura no seu processo de criação. E na MPB é a mesma coisa. É por isso que
nós temos um samba quase sempre alienado da questão racial. Os sambistas ficam
nervosos quando você fala de questão racial. Alguns têm quase um espasmo
quando você fala de Movimento Negro. Já tive experiência de falar de Movimento
Negro em escola de samba e causar um grande mal-estar. Porque eles sabem que
estão carregando uma alienação, uma autocensura terrível e ninguém pode
mostrar isso. É aquilo: “não me vem meter o espelho na minha cara que eu não
estou a fim de me ver.” Imagine o que representa essa autocensura para uma
pessoa que se inicia na literatura. Qual é o seu destinatário? Quem vai ler a sua
obra? Aí aparece o branco como leitor ideal, constituindo-se como censura. E veja
que nós tivemos enfrentamentos muito difíceis como o de um Cruz e Sousa, como o
de um Luís Gama, que chegou a escrever: “Desculpe, meu amigo/ eu nada te posso
dar/ na terra que rege o branco/ nos privam té de pensar”. O Gama escreveu isso
em mil oitocentos e cinqüenta e pouco. Quer dizer, ele tinha consciência desse
travamento do pensamento pelo fato de o seu destinatário ser um branco, de o seu
leitor ser um branco. E ainda hoje é assim. Por isso eu digo que o Quilombhoje tem
um significado muito especial e os Cadernos Negros, que são anteriores, também.
Exatamente porque eles arejam a nossa mente, eles permitem que a gente pense
que vai ser lido por um negro, e isso no íntimo da criação é uma liberação
fantástica, porque você foi ao lançamento, você conversou com o seu leitor, você
sabe que há uma receptividade. Você sabe que determinadas dores ele vai
entender. Você sabe que determinadas questões muito íntimas você terá uma
recepção boa por parte daquele indivíduo. E isto eu acho que é fundamental para o
processo de criação, porque senão ele fica travado exatamente no seu nascedouro,
fica travado, e eu acho que ainda está muito travado. Aí a literatura fica sendo um
exercício de fazer malabarismos metafóricos para se esconder. O que nós estamos
realizando com a Literatura Negra é justamente o destravamento, e, no momento
que a gente conseguir isso com bastante desenvoltura, creio que nós vamos
destravar os demais escritores brasileiros com relação a essa empatia profunda
com o universo subjetivo negro.
EAD - Nessa linha, ainda falando desse eu de enunciação, Márcio Barbosa, em
1986, configura a existência de uma “consciência negra” como pré-condição para o
advento da Literatura Negra. Você concorda?
CUTI – Eu diria que o mais importante seria uma inconsciência negra, algo que
não é resultado de mera elaboração intelectual, algo que por ter sido já elaborado
vai além dela. Pertence mesmo ao estar-no-mundo. E quando digo isso, não estou
pensando só naquela dimensão antropológica que valoriza os mitos do inconsciente
coletivo. Refiro-me a algo mais abrangente, que envolve o presente e o futuro. Uma
mãe negra, diante do que é ser negro no Brasil, pensa no futuro de seus filhos. Ela
sabe que o racismo precisa acabar para que eles sejam felizes amanhã, que não
corram tantos riscos. Ela sente e sabe de seu próprio passado enquanto negra. Sua
dimensão humana traz algo especial quando o caso é a preservação dos seus. As
referências históricas estão ali, as culturais e míticas também. É essa totalidade
que considero importante, que chamo deste estar-negro-no-mundo. Isso, associado
à consciência de linguagem é que é pré-condição para a Literatura Negra. Não é
que agora eu quero ser negro no meu texto e eu vou escrever. Vai além. Agora,
quando eu falo da consciência de linguagem, significa que eu sei para que serve a
linguagem, eu sei quais são as armadilhas que eu posso cair na Língua Portuguesa.
Então isso é consciência. Isso é consciência negra de linguagem e aí eu estou com o
Márcio.
EAD- Já Ironides Rodrigues estabelece quatro condições para a existência da
Literatura Negra: “a presença de um autor negro ou mulato”; “a presença de um
assunto da raça”; “a consciência do significado do que é ser negro”; e, por fim, ‘o
tratamento de problemas que concernem ao negro”, tais como religião, sociedade,
racismo, etc. O que você pensa dessas conceituações? Afinal, como se definiria
para você a Literatura Negra? Qual seria a especificidade desta literatura?
CUTI – Cheguei a conhecer o estudioso Ironides já no fim de sua vida. Pela pouca
conversa que tivemos pude perceber tratar-se de um detalhista. Chegou a mostrar-
me seus inúmeros cadernos manuscritos. As conceituações que ele elaborou são
respeitáveis. Associadas com as considerações de Zilá e Márcio, creio que podem
servir à preocupação de definir. Eu acrescentaria, no processo de criação, o ensejo
do destinatário, a inconsciência negra e a consciência de linguagem, ambas
pressupondo a transgressão dos limites do próprio idioma como está organizado.

EAD – E aí nós caímos na questão da estética. A questão da estética, na


Universidade, vem sendo colocada quase que “no banco dos réus”, porque durante
séculos uma estética branca, ocidental, masculina, cristã, nos foi colocada como
algo universal, como uma essência supra-individual, supra-nacional, como uma
essência que todos deveriam seguir. Em seguida, isso passa por um processo de
desconstrução, em que o que é o local é bem demarcado em sua localidade, e essa
aspiração ao Universal é desmascarada. Hoje, não se fala mais, via de regra, em
uma Estética tout court, se fala sempre de uma estética, a qual se anexa algum
adjetivo: uma estética branca, uma estética masculina, uma estética gay, por
exemplo. Há um cinema homossexual, cujo olhar não é o masculino. Há o cinema
feminino, cujo olhar é um olhar feminino, e por aí vamos. Você acredita na
existência de uma estética literária negra em oposição a uma estética literária
branca ou ocidental e, entre nós, dominante?
CUTI – A idéia de oposição abriga no meu entender a idéia de limitação.
Certamente poder-se-ia fazer a pergunta que se fazia aos escritores da Negritude:
como escrever na língua do colonizador? Ou: como desprezar o acervo das
literaturas européias? Ora, não estamos isolados no mundo que também
construímos. A Língua Portuguesa não é dos portugueses. Nós a fazemos e
refazemos diariamente. A estética também é um campo minado, onde os conceitos
sempre pisam em explosivos e se vão pelos ares. Creio que a estética negra é uma
questão de sobrevivência. Trata-se de nos reinventarmos para não sermos aquilo
que o branco criou para que fôssemos. E aí, estamos também recriando o branco,
minando seus pés de barro, sua prepotência de simbolizar toda a humanidade.
Quando você cria, não necessariamente você se opõe. O Modernismo já mostrou
isso com toda a sua proposta de deglutição. A oposição pressupõe que você está
preocupado com. Criar é ir além da preocupação com o outro. Criar quilombos
quase nunca exigia a destruição da casa-grande. Mas defendê-los pressupunha
uma resistência. E resistir, no caso da literatura, é continuar produzindo-a.
EAD - No prefácio a O arco-iris negro, de Éle Semog e José Carlos Limeira,
Oswaldo de Camargo afirma que o poema deve “valer por si”, independente de ser
ou não “poesia negra”: "a palavra negro não está mais servindo para se fazer
aceitar um poema". Essa é uma afirmação de 1978. Passados 24 anos, o que você
pensa desse posicionamento?
CUTI – O Oswaldo sempre foi preocupado com a qualidade literária. Atuou
naquele momento como responsável mais velho por algo que parecia um
movimento. Mas, em arte não há guardião que não se veja ultrapassado, tanto pelo
que não vislumbrava, quanto pelo simples desrespeito no terreno livre da criação.
Qualquer pessoa tem seu conceito do que é bom ou ruim em todos os campos.
Nada “vale por si”. Valor é algo que alguém empresta à coisa ou a pessoas. Tudo
vale por quem valoriza. Não é possível mais cair nas fontes idealísticas da arte
como verdade única. Foi uma atitude conservadora para chamar à atenção gente
que achava que fazer poesia negra era só repetir a palavra negro várias vezes. O
Oswaldo alertou também para a complexidade da arte literária. E isso foi muito
válido. Depois, por exemplo, o próprio processo de seleção para os Cadernos
Negros passou a ser opinativo, incluindo leitores e críticos. Qualidade todos
querem, embora seja algo discutível. No nosso caso, temos que nos preocupar até
com o que é bom em poesia para quem nunca leu poesia. Ficar ancorado no
cânone, creio eu, é um suicídio para os escritores.
Maria Nazareth Fonseca: Eu penso assim, penso exatamente nesse sentido. Se a
gente ficar pensando em rotular as coisas, então, criar uma estética negra, criar
uma estética de tal coisa, criar uma estética de tal maneira antes de tentar fazer tal
arte eu acho que isso aí inibe porque eu acho que primeiro você vai fazê-la, você
vai escrever a poesia, vai escrever o conto e dessa prática é que você vai
elaborando um modo de dizer, um modo de fazer, um modo de se estar no mundo.
Eu acho que, muitas vezes, se preocupa com a estética antes de preocupar com a
arte, por exemplo, ou antes de se preocupar com o objeto em si.
EAD - Como o Cuti bem interpretou, a fala do Oswaldo tinha um alvo certo: o
ativismo, a militância. Esse é o argumento sempre utilizado quando se cobra dos
poetas revolucionários de todas as épocas: que antes de fazer poesia
revolucionária, se deve fazer primeiro poesia. Mas qual conceito de poesia? E nesse
momento, corre-se de novo o risco do essencialismo. Por exemplo, a poesia do
“Violão de Rua”, do ativismo político dos anos 60, que usava o formato da
literatura de cordel, como poderia adotar o modelo erudito do Alto Modernismo,
do T. S. Eliot? Como Cuti colocou, no caso do texto de intervenção social, cada
receptor, em cada momento, vai indicar o que precisa. O importante é você
conseguir formar esse público receptor naquele instante.
CUTI - Eu acho isso e isso me faz lembrar uma vez que eu e Nete saímos pra ir à
casa de uma amiga com quem íamos a uma festa de terreiro. E lá chegando nós
fomos recebidos por uma senhora de uma certa idade, mãe daquela nossa amiga, e
ela veio com o Poemas da Carapinha na mão e me disse: “Olha, eu li todo o seu
livro e gostei muito dele”. Essa experiência pra mim foi muito rica porque era uma
senhora que eu jamais ia imaginar que leria um livro de poesia. Também a partir
do cd de poesia que eu fiz com o Carlos de Assumpção aconteceram coisas
semelhantes. O Assumpção me disse: “Olha, tem uma senhora que disse que todo
dia toca o cd”. Então veja: você está comunicando com um universo de ouvintes e
leitores que talvez antes não tenham sido leitores ou ouvintes de poesia. E esse
universo pensa, esse universo sente, esse universo tem em si uma concepção muito
própria do que ele gosta e é nesse contato que a gente vai fazendo, como disse a
Nazareth, a obra. É nesse contato, com essas experiências que a gente vai
elaborando e reelaborando, pensando e repensando a própria estética do trabalho.
Porque sem esse feedback a gente cai no cânone, cai naquilo que está padronizado
como sendo qualidade literária, texto bem acabado, todas essas expressões que
traduzem o gosto de uma minoria, como sabemos.
EAD - Voltando ainda à questão do ativismo, eu gostaria de saber a sua opinião
sobre a afirmação da crítica Luiza Lobo, em seu livro Crítica sem juízo (1993) de
que, no caso da poesia negra, deve-se pensar mais na “oportunidade” do que na
“qualidade”, ou seja, deve-se verificar mais o sentido (e o valor) político e cultural
de determinado texto e menos no valor propriamente estético. Complementando:
em seu “Fundo de quintal nas umbigadas” (1986), você afirma que “nenhuma
legitimação é apenas estética. No mais das vezes é ideológica”. Enfim, em tempos
de desconstrução, qual o lugar do valor estético?
CUTI – Não entendo o porque da tendência à compartimentação do estético e do
ideológico. Fico preocupado com o paternalismo que sempre ronda a produção
negra que não seja aquela da tradição de origem africana. No momento em que há
uma produção literária de negros que se querem negros em seus textos, a
qualidade é importante, sim. Mas, qual qualidade? O que é isso? Será que ao
buscar a qualidade estética de um texto, essa busca está isenta de ideologia? Afinal,
não lemos o que queremos ler em um texto? Parece-me que estamos esquecendo de
questionar a leitura que é feita do texto afro-brasileiro. O viés sociológico sobre
essa literatura é algo que impede de se fazer considerações estéticas. Como se ela
tivesse a função única de refletir o problema racial brasileiro. Entretanto, há muita
beleza em vários textos, capazes de levar o leitor a uma experiência profunda de
prazer, pelo que trazem de arranjo, harmonia e inusitado na linguagem. Em
“tempos de desconstrução” o valor estético precisa estar no lugar onde outros
valores estão e com eles se associar. Então é isso: eu não vejo a questão estética
dissociada de outras coisas, inclusive da ética e da ideologia. É preciso que ele (o
leitor) trabalhe exatamente com essas outras noções porque senão nós caímos no
idealismo, quer dizer, um estético estrito e daí nós vamos buscar no mundo das
idéias de Platão, estaremos ainda imaginando que em algum lugar há uma estética
pura ou certas noções que determinariam o que é belo e o que não é belo.
EAD - E quanto ao conceito de literatura afro-brasileira, seria ele menos radical
ou menos engajado politicamente na causa? Ou não, seria mais um sinônimo, com
o mesmo peso de Literatura Negra? Que diferenças haveria entre os dois
conceitos?
CUTI – Parece-me uma questão de tom. A palavra negro é muito mais polissêmica
e contundente. Afro-brasileiro é um termo apaziguado de conflitos. Muito menos
rico que aquele. No Brasil, a ideologia da democracia racial prefere palavras mais
amenas, que não tragam uma conotação conflituosa. Daí que, por detrás dessa
similitude semântica, encontra-se uma guerra pela palavra, “guerra sem
testemunhas”, em que Osman Lins alertava estar sempre empenhado o escritor.
Veja, um afro-brasileiro, não necessita ser necessariamente negro. Ele pode ser
branco. É isso: no afro-brasileiro cabe o branco. A polarização criativa perde seu
impulso, a crítica ao racismo também. À renúncia à branquitude perde o sentido.
EAD – Poderia discorrer sobre o seu conceito de literatura negro-brasileira?
CUTI – Uso atualmente a expressão “negro-brasileira” quando faço alguma
exposição sobre nossos textos, porque entendo que ela é composta por um
substantivo e um adjetivo. Negro é substantivo e brasileiro funciona como adjetivo.
Com isso resguardo a noção tão cara para a Negritude, que é a dimensão do ser-
negro-no-mundo. Isso é importante, pois, no Brasil, os intelectuais brancos racistas
vivem nos tratando como bichinhos de estimação que não devem ser contaminados
com idéias alienígenas, como se não tivéssemos, como eles, direito a toda a cultura
planetária, especialmente a da semeadura africana, como dizia Manuel Zapata, e a
africana. Por sermos ainda hostilizados em qualquer lugar do mundo, não
podemos perder essa dimensão mais ampla de nossa identidade negra, pois isso nos
fortalece e conforta.
EAD – Gostaria que abordasse a crítica que faz à idéia de afro-descendência.
Segundo declarações suas recentes à imprensa (O Globo, 28/04/2007), o mais
importante é a “vivência do preconceito”. Essa idéia de vivência, que remete a um
existir negro na atualidade, não limitaria o horizonte dessa literatura ao presente,
não implicaria um certo esquecimento do passado de lutas do qual os afro-
brasileiros de hoje descendem e sofrem as conseqüências?
CUTI – Há um equívoco de ser imaginar que a noção de vivência se limita à
atualidade. Certa vez escrevi que “hoje é amanhã e ontem”. Não existe ruptura
temporal. O tempo é um contínuo cheio de descontinuidade. Devíamos conceber o
tempo só no gerúndio. O passado e o futuro vão e vêm pela ação da memória e da
imaginação, fazendo também parte do circuito intersubjetivo das famílias negras.
Essa transmissão é feita tanto pela oralidade quanto pelo comportamento. Os
elementos da cultura de origem africana constituem apenas pequena parcela desse
legado. Por outro lado, a palavra “negro” caracterizou e caracteriza uma imprensa
de descendentes de escravizados, seu Movimento Social, o dia 20 de Novembro, etc,
conquistas da militância. Não se diz imprensa afro-brasileira, nem movimento
afro-brasileiro, nem há dia nacional da consciência afro-brasileira. Por que depois
dessas conquistas, nós escritores negros brasileiros, que nos queremos
reconhecidos como tal, devemos desistir do conteúdo ideológico da palavra
“negro” para caracterizar a nossa literatura? Creio que toda alteração
terminológica traz em si uma intenção de enfraquecer o termo de maior
significância e empregado para arregimentação. Ninguém no mundo é
discriminado por ser afro-brasileiro ou afro-descendente, mas, sim, por ser negro,
trazer inscrito em seu físico os traços da ascendência africana subsaariana. E esses
traços, a partir dos embates cotidianos, ganham dimensão subjetiva, pois acabam
se tornando até símbolos, como por exemplo o cabelo crespo nessa época em que
até as brancas fazem o alisamento chamado escova. A palavra “negro”, dessa
maneira, amplia o horizonte da identidade textual da nossa literatura, pois não
tergiversa.
EAD - “Literatura afro-brasileira” não seria mais abrangente? Mais amplo, menos
militante, e, por isto mesmo mais correto do ponto de vista da pesquisa e do
ensino? Creio que pode abarcar também a produção daqueles que não assumiram
uma postura política mais explícita quanto à questão étnica e racial no Brasil
como, por exemplo, Machado de Assis...
CUTI – Embora não conheça o nascimento e a evolução do termo “afro-
brasileiro”, entendo que ele nos remete à África como origem e ao Brasil como
destino, mas é vazio de vida, pois, em si, não carrega o sentido existencial. A
expressão “militante”, que você atribui ao termo “negro”, em termos de literatura,
pode servir para desqualificar o texto, porque nos remete à expressão “engajada”,
que supostamente traria um menor índice estético. Mas o que percebo é que nós
negros nos apropriamos da palavra “negro”. Dona Ivone Lara, compositora e
cantora, tem uma música em que fala: “Um sorriso negro / um abraço negro / traz
felicidade. Negro sem emprego / fica sem sossego / negro é a raiz da liberdade.”.
Incluir pessoas que recusaram e recusam a identidade negra em um conjunto que
afirma e reafirma essa identidade, parece-me uma estratégia inadequada. Se, por
um lado, aumenta o número de escritores, e, conseqüentemente, uma certa
respeitabilidade (quem não quer incluir um Mário de Andrade, um Machado de
Assis, um Jorge de Lima, uma vez que são autores de renome), por outro fragiliza
a identidade textual, além de ser, também, um aval para o veio folclorizante do
tipo modernista, que deitou profundas raízes nas letras nacionais, além de
banalizar toda a saga da descendência africana, escamoteando os conflitos que dela
fizeram e fazem parte até hoje. O sentido de amplitude que a expressão “afro-
brasileiro” possa ter é caracterizado pela conotação dissolvente da identidade
negra. Do ponto de vista da pesquisa e do ensino, creio que, com a tendência
acentuada de a escola veicular a ideologia da “democracia racial”, a expressão
“afro-brasileira” cai como uma luva, sobretudo por não apontar o pólo de onde
partiu e parte a discriminação racial. Afinal, no Brasil, ninguém usa a expressão
“euro-brasileiro”. Aí está o vazio do termo, a sua fragilidade ideológica.
Historicamente, a palavra “negro” vem sendo trabalhada pela população de
origem africana. Em várias de suas instituiçõe e efemérides, a palavra se faz
presente: Frente Negra Brasileira, Clube Negro de Cultura Social, Centro de
Cultura e Arte Negra, Movimento Negro Unificado, Dia Nacional da Consciência
Negra, já citado, Centro Ecumênico de Cultura Negra, Cadernos Negros, etc. No
campo da literatura, até mesmo a titulação das obras dá a dimensão do apreço pela
palavra. Veja o Lino Guedes com o livro Negro Preto Cor da Noite. Hoje, creio que
o termo “afro-brasileira” serviria mais aos brancos do que aos negros, à medida
em que para nós significa uma renúncia. Afinal, homens e mulheres negras não
renunciam apenas ao seu cabelo natural (vide os carecas e as alisadas e
emperucadas), renunciam também a outros aspectos de sua identidade. Por
exemplo, no caso das cotas, um afro-brasileiro loiro vai e reivindica. Só que ele não
sofre discriminação racial, razão da existência das cotas. Por outro lado, o termo
“afro-brasileiro” não estimula os brancos e os mestiços a pensarem as relações
raciais, a procederem a sua autocrítica, muito menos a se identificarem com
aqueles milhões de homens e mulheres que foram escravizados e que lutaram nos
quilombos. Especificamente com relação ao Machado de Assis, retornando à
questão discutida no final da pergunta, acrescentaria que o importante são os
textos. Menos os autores. “O Caso da Vara”, “Pai contra Mãe” e o relativismo do
Brás Cubas quando dá liberdade a seu escravo e este compra, por sua vez, um
para si e o espanca. Relativizar é uma fuga encontrada pelo “grego” Machado
diante de algo que lhe dizia respeito; isentar em seu íntimo o que era branco e
despistar seu “eu negro” para que ninguém desconfiasse que ele estaria realizando
a sua cruel vingança irônica.
EAD - Falando de Machado: ainda em seu texto “Fundo de quintal nas
umbigadas” (1986) você defende o autor da acusação de “traidor” e,
implicitamente, coloca a necessidade de se revisar o papel por ele desempenhado
em termos de uma literatura crítica das relações sociais no Brasil do século XIX e
da classe dominante, evidentemente branca.... Poderia desenvolver um pouco mais
a questão?
CUTI – Na resposta anterior está a minha sucinta idéia dos textos de Machado que
pude ler até o momento. E vou acrescentar o seguinte: pra mim o Machado fez isso
que eu digo mesmo. O Machado foi um homem que procurou realizar sua
vingança, e eu acho que é vingança mesmo, contra a sociedade que o oprimia,
elaborando essa grande obra para colocar em xeque todos os valores daquele
momento. Penso que foi uma estratégia assumida por ele. Machado tinha horror
ao confronto direto, ele dizia isso, tanto é que não sustentava polêmicas, era um
homem que não gostava de polêmicas. É uma estratégia que eu vejo que muitos
negros em vários campos da atividade utilizam. São estratégias que você vai
encontrando no decorrer da sua vida. Se fingir de morto é uma estratégia que o
negro utiliza quase sempre. E, com isso, vai tocando a sua vida, vai abrindo
caminho. É por isso que há escritores negros que até fazem isso conscientemente. E
eu acho que o Machado foi um. Senão não teria elaborado a obra que elaborou.
Lima Barreto, por exemplo, foi um escritor de confronto. Com relação a seu
primeiro livro, Recordações do Isaías Caminha, ele chegou a escrever que havia
realizado o livro justamente para escandalizar. Quis ir para o confronto. Cruz e
Sousa utilizou as duas estratégias: foi para o confronto e muitas vezes saiu pela
tangente, se fez de morto atuou pelas beiradas. E realizou algo, por exemplo, que é
muito criticado até hoje: cantou a mulher branca, como quase nenhum poeta
daquele momento cantou. Isso ele sabia que ia mexer com as pessoas, ele tinha
consciência disso. Ele, um negro externou, em prosa poética e verso, seus desejos
por mulheres brancas, em um tempo em que a escravidão estava ali presente, com
todos os seus horrores.
EAD – Era também o tempo do erotismo praticamente banido na poesia
brasileira...
CUTI - Exatamente, e ele faz isso demonstrando seu desejo abertamente, falando
dos seios, da carne. E outra coisa: cantou a mulher negra também e com uma força
telúrica muito grande. Ainda acho que nós temos muito a aprender com relação a
isso. Creio que hoje, não pela linha do politicamente correto, mas pela linha talvez
do pudor, nós escritores negros temos muito receio de extravasar a sensualidade, o
erotismo, porque é aquela preocupação: “puxa, a mulher negra foi violentada não
sei quantas vezes, etc, etc. quer dizer, como é que agora eu vou cantá-la com
erotismo?” E a gente sabe que o erotismo está muito ligado à violência. Então nós
ainda estamos muito presos, muito inibidos com relação a isso. Isso é autocensura
também que nós acabamos produzindo com relação ao assunto erótico.
Voz feminina: É um pouco de receio, talvez até inconsciente, de estar reafirmando
aquele estereótipo do negro sexual em excesso também.
CUTI - É, eu concordo com você. É talvez o receio de ser confundido com o ser
animalesco que foi tão realizado pela literatura brasileira de autores brancos, para
espelhar a sexualidade da personagem negra, como O Bom-crioulo, do Adolfo
Caminha. Aliás O Bom Crioulo é o encontro da homossexualidade com a
bestialidade do negro. É um dos primeiros livros que fala de homossexualismo e
exatamente também coloca o negro como a fera, o sexo emana dele de forma
doentia e ele termina como assassino. São dessas conotações que talvez a gente
queira se livrar, não cair nessa esparrela. Então, predomina uma série de
cuidados, mas eu creio que estamos fazendo isso mudar. Quando eu escrevi aquele
pequeno ensaio “O erotismo nos Cadernos Negros” quis destacar essa vertente que
vem surgindo.
EAD - Quando Mário de Andrade e outros modernistas, como Cassiano Ricardo,
Jorge de Lima, Raul Bopp ou os autores do grupo mineiro do Leite Criôlo deixam
escapar em seus escritos o discurso do preconceito, ainda assim estão fazendo
Literatura Negra? Se a resposta for “não”, como você classificaria esses escritos,
feitos muitas vezes por afro-descendentes, como Mário e Cassiano Ricardo?
CUTI – Racistas. Eles podem ser afro-descendentes, mas não são negros. Por isso
se acham no direito de demarcar bem a distância em relação ao negro, ou seja,
quando ridicularizam a personagem negra o fazem para sobretudo afirmar
a branquitude deles. É isso que lhes interessa mais. É isso que eles têm
necessidade. Portanto, seus sujeitos étnicos, aquela instância que preside o
discurso, são brancos.
EAD - Quais seriam, em sua opinião, os vínculos entre literatura e história
(sociedade, política)? Você usa personagens que tiveram existência real? Quais?
CUTI – Não gosto da idéia de sujeição da literatura à história. Isso porque limita a
criação. Não faço relato nem jornalismo e, sim, ficção. Tem gente que acha ter a
literatura obrigação de preencher lacuna deixada por historiadores ou servi-los
com um banquete de inspiração. O inusitado é o que mais me interessa. Estudar
literatura para entender a história pode ser um bom exercício, mas fruir literatura
é ler a si mesmo e se deixar levar pela fabulação que nos instiga a assumir posição
no mundo.
EAD - Qual a sua avaliação a respeito da trajetória de 30 anos dos Cadernos
Negros?
CUTI – Saldo positivo, pelas aberturas de espaços sociais para que novos leitores
possam “uso-fruir” do fluxo de uma vertente da Literatura Brasileira que tem
muito a desenvolver. Eu acho que 30 anos, do ponto de vista da edição, do ponto de
vista editorial, é muito pouco porque nós vamos contar aí talvez uns 30 mil
exemplares, e isso do ponto de vista editorial é muito pouco. Mas do ponto de vista
do desenvolvimento de uma literatura eu acho fundamental porque, como eu dizia
anteriormente, a grande questão no Brasil para o negro brasileiro é o
desenvolvimento de uma consciência. Porque a grande questão nossa é aquela
sensação de solidão. O negro quando ascende socialmente – e aí a gente pode
incluir a literatura como uma pequena ascensão, do ponto de vista cultural –, passa
a se deparar com a solidão, ou seja, ele vai cada vez mais se distanciando do seu
grupo. Essa solidão étnica é muito importante para o trabalho do escritor. Nela
ocorrem muitas vivências que a cultura de tradição africana não traz. É o novo, o
urbano, o indivíduo negro em sua crise de identidade, em sua procura de algo que
parece estar no passado mas não está em tempo nenhum, pois pertence ao
constante processo de se criar e se propor inovar, inclusive nas relações sociais. Os
Cadernos Negros fizeram com que pessoas que escreviam, ou tinham dúvidas em
se escrever como negros, pudessem se sentir muito à vontade. E, inclusive, os
Cadernos contribuíram e contribuem para a criação de novos leitores. Considero
isso muito positivo. Por outro lado também, nós estamos possibilitando ao leitor
branco a possibilidade do estranhamento, fundamental para a literatura. Quando
um leitor branco pega um texto e não se vê como referência, não se vê como
referência do destino do texto, ele passa a ter uma experiência muito mais
profunda do que essa coisa habitual de que eu sou o centro de tudo. Então, ele
passa a enxergar o mundo por outra ótica. Ou seja: “o Outro existe, o Outro me vê
com seus próprios olhos”. Acho isso importante. E quando eu falo do branco, eu
não estou falando do branco epidérmico, eu estou falando até de um negro que se
sente branco, que está arraigado a essa brancura, que no fundo é um desejo
neurótico de não ser negro, e que vem do branco. Os 30 anos de Cadernos Negros
tem esse saldo muito positivo, além de, nesse período, ter ensejado a publicação de
vários livros, de várias antologias, de vários textos críticos. Enfim, criou algo
importante na Literatura Brasileira, algo que necessariamente terá visibilidade
cada vez maior.
EAD - Hoje de manhã nós fizemos uma pergunta a Miriam Alves sobre essa
questão, mas pensando no futuro. Como você vê as perspectivas, não do grupo
Quilombhoje, mas da geração Cadernos Negros, daqui para a frente, no momento
em que esse leitor se vê profundamente seduzido pelos meios audiovisuais de
comunicação? Como fazer a geração da telinha se interessar pela poesia, pela
prosa de ficção?
CUTI: Essa é uma pergunta difícil. Sempre que eu vejo essa expressão “como
fazer” eu fico cansado porque eu me lembro das experiências quando eu estava no
Quilombhoje. No dia do lançamento várias pessoas vinham e diziam assim: “vocês
precisam divulgar mais isso; vocês precisam ir à favela, levar essa literatura para a
favela, para os presídios...” E a gente ali cansado de tanto distribuir convite, de
tanto fazer panfletagem em porta de baile, em eventos, em bares. Eu pensava:
“Você não sabe o quanto é duro fazer.” Os Cadernos Negros estão hoje aí, mas tem
muito sacrifício nessa história. Eu carreguei muito livro nos ombros. Eu e meus
companheiros e companheiras. No dia do lançamento nós, muitas vezes, trazíamos
os exemplares da gráfica no muque, a cola ainda fresca. Então, tem muita história
de sacrifício e as pessoas não fizeram e não fazem isso como uma atividade
profissional. Elas fizeram e fazem isso como uma atividade a mais no seu cotidiano.
É uma militância. Então para mim, esse “como fazer” é assim: eu vejo que existem
várias atividades. O Quilombhoje, por exemplo, criou rodas-de-poemas com muita
gente presente, muita gente mesmo, com pessoas que nós nunca vimos nem vamos
ver mais, e que entraram na roda e declamaram alguma coisa. Eu me lembro que,
certa vez, um indivíduo fez um poema com o corpo. Não disse uma palavra, ele fez
o poema com o corpo. Às vezes na roda emendava-se uma série de poemas críticos,
logo depois românticos... Eram atividades muito ricas. A roda-de-poemas nasceu
dentro da minha casa, no Bexiga. Estávamos eu, Paulo Colina e o Abelardo. O
Colina cantava muito bem, e nós estávamos dizendo poesia e ele entremeando
umas músicas. De repente, nós começamos a perceber que aquilo dava alguma
coisa, e daí então resolvemos fazer uma musiquinha para colocar entre um poema
e outro. E aí começou aquilo e ficou gostoso, e ia a musiquinha e voltava, e o poema
ia e voltava, daí nasceu a roda de poemas. O Quilombhoje tem, acho, uns dez, doze
pontos que nós fazíamos para a roda de poemas. Era uma maneira muito boa de
fazer também as pessoas se sentirem à vontade com a poesia: as pessoas cantavam
(a gente levava atabaque, etc, chocalhos), nós cantávamos, elas dançavam,
cantavam e diziam poesia. Era uma coisa muito negra, uma coisa muito próxima
da roda de samba.
E é curioso que a coisa pegou de tal maneira que nós fomos a Brasília no ano
passado e uma música feita em uma roda de poemas lá em Porto Alegre foi parar
em Brasília. Lá numa casa muito bonita... Acho que foi até o Oliveira Silveira que
compôs: ”Poesia na roda ê, quem chegou é bem chegado/Poesia na roda ê, quem
chegou é bem chegado/Umbigada em você/Para dar o seu recado”. Isso é o que eles
faziam lá em Porto Alegre, que tiraram daqui de São Paulo, levaram pra lá, e lá
fizeram, pra você ver como a musiquinha já foi... E no interior de São Paulo nós
soubemos também que várias pessoas faziam e ainda fazem roda de poema. Rodas
de poema é uma forma não muito eficiente para criar leitores, mas é uma das
coisas que nós fizemos, que gerou e está gerando, e as pessoas estão dizendo poesia
assim, que assim é que é gostoso dizer poesia, onde todos participem.
EAD - Em termos quantitativos, ou seja de mercado; e em termos de qualidade
literária haveria no presente um descenso ou uma descentralização da produção
literária afro-descendente?
CUTI – Creio que há uma maior concentração. Gaveta de escritor é fogão. É
provável que estejamos utilizando mais o forno. Tem assado que demora. Talvez
tenha passado o tempo das frituras.

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