You are on page 1of 96

Casos Clínicos

em
Psiquiatria Sumário
UMA PUBLICAÇÃO DO Departamento de Saúde
Mental da Faculdade de Medicina da UFMG e da Editorial ..................................................................................................1
Associação Acadêmica Psiquiátrica de Minas
Gerais – AAP-MG, Federada da Associação Auto-relatos
Brasileira de Psiquiatria - ABP
Fé e vida sem vida até ...............................................................................3
Conselho Editorial Nasci e morri louco...................................................................................6
André Lúcio Pinto Coelho Stroppa (Residência UFJF strop-
pa@medician.ufjf.br) • Carlos Eduardo Leal Vidal
(Residência Barbacena – FHEMIG celv@uol.com.br) • Artigos Originais
Cláudio Costa (Residência Centro Psicopedagógico –
FHEMIG clcosta@uai.com.br) • Guilherme Gregório Sintomas psiquiátricos na doença de Parkinson avançada .....................9
(Residência UFU ggregório@ufu.br) • Hélio Lauar Antonio L. Teixeira-Jr, João V. Salgado
(Residência Instituto Raul Soares – FHEMIG
lauar2000@uol.com.br) • Humberto Campolina França Jr. Abuso de substância psicoativa: relato de três casos...............................12
(Associação Acadêmica Psiquiátrica de Minas Gerais – José Antônio Zago, Sérgio Augusto Monteiro dos Santos, José Carlos Salzani
AAP-MG hcampolina@globo.com) • Maria Cristina de
Oliveira Contigli (Associação Mineira de Psiquiatria – Um caso de dependência alcoólica e suas possíveis relações com o
AMP amp@psiquiatriamg.org) • Maurício Viotti Daker
(Residência UFMG e AAP-MG, Coordenador do Conselho trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho................................16
Editorial daker@medicina.ufmg.br) • Paulo José Teixeira Lílian Erichsen Nassif
(Residência IPSEMG teixeirapaulo@uol.com.br)
Um caso clínico de esquizofrenia paranóide e possíveis implicações
Comissão Editorial com o trabalho...........................................................................................22
Alexandre Lins Keusen • Alfred Kraus • Antônio Márcio Mauro Nogueira Cardoso, Rafael Alvarenga Cosenza, Ricardo Argemiro Franco,
Ribeiro Teixeira • Betty Liseta Marx de Castro Pires •
Carlos Roberto Hojaij • Carol Sonenreich • Cassio Ada Ávila Assunção
Machado de Campos Bottino • Cleto Brasileiro Pontes •
Delcir Antônio da Costa • Eduardo Antônio de Queiroz • Parafrenia fantástica é esquizofrenia?........................................................27
Eduardo Iacoponi • Erikson Felipe Furtado • Fábio Lopes João Vinícius Salgado, Antônio Lúcio Teixeira-Jr., Ronan Rodrigues Rêgo
Rocha • Flávio Kapczinski • Francisco Alonso-Fernández •
Francisco Baptista Assumpção Jr. • Francisco Lotufo Neto Reação esquizofrênica em paciente indígena.............................................30
• Hamilton Miguel Grabowski • Hélio Durães de Alkmin • Maximiliano Loiola Ponte de Souza
Helio Elkis • Henrique Schützer Del Nero • Irismar Reis de
Oliveira • Jarbas Moacir Portela • Jerson Laks • John Transtornos alimentares em discussão multidisciplinar ............................33
Christian Gillin • Jorge Paprocki • José Alberto Del Porto • José Carlos Souza, Paulo André Machado Borges, Rosângela dos Santos Ferreira,
José Carlos Rosa Pires de Souza • José Raimundo da Silva et al.
Lippi • Luis Guilherme Streb • Luiz Alberto Bechelli
Hetem • Michael Schmidt-Degenhard • Marco Antônio Transtorno de conduta hipercinética: diagnóstico, abordagem
Marcolin • Maria Elizabeth Uchôa Demichelli • Mário
Renato Villefort de Bessa • Mário Rodrigues Louzã Neto • ludoterápica e conduta terapêutica abrangente ........................................38
Miguel Chalub • Miguel Roberto Jorge • Olavo Pinto • Marcelo Calcagno Reinhardt, Ceres Leonor Tavares Guedes
Osvaldo Pereira de Almeida • Othon Coelho Bastos Filho •
Paulo Dalgalarrondo • Paulo Mattos • Pedro Antônio Sessão Especial de Casos Clínicos
Schmidt do Prado Lima • Pedro Gabriel Delgado • Ricardo
Alberto Moreno • Roberto Piedade • Ronaldo Simões XX Congresso Brasileiro de Psiquiatria ....................................................45
Coelho • Sérgio Paulo Rigonatti • Saulo Castel • Sylvio de Coordenação: Hélio Elkis, Maurício Viotti Daker
Magalhães Velloso • Talvane Martins de Moraes • Tatiana
Tscherbakowsky de Guimarães Mourão
Casos Literários
Diretor Executivo
Amadeu Roselli-Cruz
Natal, mais uma vez ..................................................................................89
Editora Centenário de Pedro Nava e a Psiquiatria...............................................89
Cooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda (Coopmed)
Doncovim, Proncovô, Oncotô .................................................................91
Capa, projeto gráfico, composição eletrônica e produção
Folium Comunicação Ltda
Caso Histórico
Periodicidade: semestral
Um caso de hebefrenia descrito por Hecker ...........................................92
Tiragem: 5.000 exemplares

Correspondência e artigos Homenagem


Coopmed
Casos Clínicos em Psiquiatria Obituário do Dr. Hélio .............................................................................94
Av. Prof. Alfredo Balena, 190
30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil
Fone: (31) 3273 1955 Fax: (31) 3226 7955 Index CCP ............................................................................................95
E-mail: ccp@medicina.ufmg.br

Home page: http://www.medicina.ufmg.br/ccp Normas de Publicação ................................................................96


Capa:
Arte Bipolar, adaptação de obra de Inimá de Paula.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):1-96


Editorial

La circunstancia de que haya una revista de psiquiatría al The existence of a psychiatric journal with a reserved space
menos con un espacio reservado para la exposición de casos clíni- for clinical cases fulfils me with joy and proud. The feeling of joy
cos es un dato que me llena de júbilo y orgullo. Siento júbilo por- is because nowadays the publications have imposed too much
que en estos tiempos se ha impuesto en las revistas un modo de scientificism. The scientificism is disguised with statistical elabo-
publicación que con demasiada frecuencia incurre en el cientifis- ration that contains in more than 50% of the cases some kind of
mo. Se trata de un cientifismo enmascarado con una elaboración error. The dedication direct and prompt to the exam has been pos-
estadística, que contiene en más del 50% de las veces algún error
tponed and the assistance to the patient hic et nunc (here and
de cierto relieve. Se viene postergando la dedicación directa e
now) constitutes the usual procedure of the traditional clinical
inmediata al examen y la asistencia del enfermo hic et nunc (aquí
sessions. We cannot forget a popular saying “there are three types
y ahora) constituyen la pauta habitual de las sesiones clínicas tra-
dicionales, de las sesiones clínicas de siempre. No olvidemos por of truth: the absolute truth, the relative truth and the statistical
otra parte el dicho que se ha hecho popular de que "hay tres tipos truth”.
de verdades: las verdades absolutas, las verdades relativas, y las The psychiatric practice exemplified through individual case
verdades estadísticas". studies continues to be an essential formative and experiential
La ejemplificación de la práctica psiquiátrica a través del estu- component, even though very much delayed. There are psychia-
dio del caso individual continua siendo una pauta formativa y trists with “clinical eye” and psychiatrists with difficulties to
experiencial imprescindible, aunque demasiado postergada. Hay conduct the patient. The insight that we call “clinical eye” is
psiquiatras con "ojo clínico" y psiquiatras con dificultades para based more in previous similar cases than in theoretical knowled-
orientarse hacia el enfermo. Esta perspicacia que llamamos "ojo ge. Thus, the best of the formative is concentrated in psychiatric
clínico" se basa más en la evocación de otros enfermos análogos practice with theoretical knowledge. The dissociation between
vistos con anterioridad que en la actualización de conocimientos
practice and theory leads us to undesirable extremes: the unfoun-
teóricos. Desde luego, el respeto formativo máximo se concentra
ded speculation and the practionaire. The publication of clinical
en la práctica psiquiátrica con fundamento teórico. La escisión
cases will help us to avoid both extremes.
entre práctica y teoría nos lleva a dos polos indeseables: la especu-
lación gratuita y la practiconería. La publicación de casos clínicos As a psychiatric professor I have always adopted at least one
nos va a ayudar a salvar ambos extremos. clinical session per week, in which a patient is examined. This is
Como profesor de psiquiatría he celebrado siempre por siste- followed by discussion and a final conclusion in form of diagno-
ma al menos una sesión clínica a la semana, en la que se exponía sis and treatment. The clinical diagnosis is not a mere label nor
un enfermo y a continuación se establecía un debate, y al final una the patient is framed according to the book-catalogues such as
conclusión en forma del diagnóstico y el tratamiento. El diagnós- DSM and ICD (consultation books but not clinical).
tico clínico no es una mera etiqueta, pero tampoco es encasillar con The clinical diagnosis in the sessions under my supervision
"pista de detective" al enfermo en los libros-catálogo tipo los DSM was divided into the following: psychopathological diagnosis,
y los ICD (libros de consulta, pero no clínicos). syndromic, etiological, personality, somatic/biological, social and
El diagnóstico clínico en las sesiones por mí dirigidas se divi- as colophone, the nosologic diagnosis. It is always recommen-
día en los siguientes juicios: diagnóstico psicopatológico, sindró-
ded to start from the psychopathology, data avoided in the men-
mico, etiológico, de personalidad, somático/biológico, social, y
tioned books, when psychopathology continues to be the ground
como colofón, el diagnóstico nosológico. Siempre es recomendable
partir de la psicopatología, dato soslayado en los libros antes men- of psychiatry. However, to reach the true psychopathology it is
cionados, cuando la psicopatología sigue siendo el fundamento de necessary to master the phenomenological method, in one of its
la psiquiatría. Pero para llegar a la verdadera psicopatología se variants mainly the comprehensive phenomenology and the
precisa manejar el método fenómenológico, en algunas de sus structural phenomenology (see my book Basis of Current
variantes, sobre todo estas dos: la fenomenología comprensiva y la Psychiatry).
fenomenología estructural (véase mi libro Fundamentos de la As I said at the beginning, I also feel proud, and this is due
Psiquiatría actual). to the fact that one of the advanced publications in this aspect is
Como decía al principio también siento orgullo, y ello se debe from Brazil, people who I admire very much, besides it is run by
a que una de las revistas adelantadas en este aspecto sea del Brasil, psychiatrists to whom I am attached firmly with affection and
pueblo al que estimo muchísimo, y además estar dirigida por psi- friendship.
quiatras con los que me une un sólido vínculo de afecto y amistad. One final remark: please, avoid the confusion of misinterpre-
Una advertencia final: por favor, no se dejen llevar por la con-
ting classification and diagnosis. Classification is a theoretical
fusión de tomar como sinónimos clasificar y diagnosticar. La cla-
task magnificently performed by Linnaeus and his disciples.
sificación es una tarea teórica magnificamente realizada por
Linneo y sus discipulos. En cambio, el diagnóstico, debidamente Conversely, diagnosis, duly structured and accompanied by a
estructurado, y acompañado de una impresión pronóstica y una prognostic impression and a therapeutic orientation, constitutes
orientación terapéutica, constituye la tarea fundamental del clíni- the principal task of the clinician who knows how to perceive, to
co que sabe entender, comprender y ayudar a sus enfermos. understand and to support his patients.

Francisco Alonso-Fernández Francisco Alonso-Fernández


Auto-relato
FÉ E VIDA SEM VIDA ATÉ*
FAITH AND LIFE EVEN LIFE

Prezado Editor, bom dia e PAZ PLENA. meus escolhidos está o Padre Z.A.X., para o qual já escrevi qua-
tro cartas, expondo minhas teses bíblicas ou teológicas, como:
Estou enviando-lhe cópia de uma das minhas cartas, que é a 1) "Deus não Perdoa Nunca".
segunda para o teólogo Leonardo Boff, onde comento trechos de 2) "O Tentador de Jesus é o mesmo Espírito, que Moisés consi-
um dos livros dele e conto uma fantástica experiência que vivi no derou como Deus: Iahweh".
dia 2/2/1991, quando tive uma parada de coração por 15, 30 3) "A carta Joanina", que foi baseada no Evangelho Segundo São
horas. Durante essa experiência, tomei banho, dirigi carro, ali- João Evangelista".
mentei com alimentos líquidos e não consegui comer as refeições 4) "O Deus imperfeito da Bíblia ou o incompleto (ou errado)
normais. ensino sobre a Bíblia".
Estou à disposição para fazer outros esclarecimentos que o 5) "As comunicações bíblicas entre os planos visível e invisível".
senhor julgar necessários. Recebi respostas das duas primeiras cartas em dois cartões,
Paz Plena para todos no Planeta Terra. mas da terceira e quarta, escritas em 21/7/1993 e 2/1/1994, até
O amigo, hoje só o silêncio veio como reposta. Apesar de todo o silêncio e
Paulo B. Linhares de todas as portas fechadas, continuo escrevendo, pois tenho
plena certeza que escrevo para muitos no presente e no futuro,
Leonardo Boff, que o amor e a luz de Jesus possam envolver por isso tiro cópias de tudo e depois vou divulgando para outras
a todos nós, que a humildade, sabedoria e intuição de São pessoas. Essa é a minha responsabilidade, não posso ser omisso e
Francisco de Assis venham em nosso auxílio e assim possamos infiel a Deus-Pai-Mãe, que confiou e confia muito em mim. Dele
é que recebi essa missão.
encontrar, compreender e divulgar a Verdade, que liberta e paci-
A razão dessa carta é porque fui interrogado sobre o seu
fica o nosso espírito.
livro: "Brasa sob Cinzas", que foi lançado em Belo Horizonte no
Essa é a segunda carta que lhe envio, pois a primeira foi escri-
dia 16/4/1997. Depois, a mesma pessoa mostrou-me o livro e leu
ta em 12/2/1990 e nem sei se chegou ao seu conhecimento, pois
um pouco para mim dos capítulos I e II, que me espantou e até
até hoje não recebi resposta. Quando comentei com outras pes-
chocou. Enquanto ouvia a leitura, decidi comprar e ler o livro,
soas sobre a primeira carta, que ainda estava sem resposta, recebi
como também escrever-lhe. Mesmo que não venha a me respon-
o seguinte comentário:
der, mas tinha que pôr em prática a intuição recebida: "Deus
-"O Frei Leonardo Boff é muito ocupado e muito importan-
escreve certo em linhas tortas, mas não foi Deus que fez as
te para ler tudo o que lhe é enviado. Quase tudo passa ao crivo linhas tortas".
de uma secretária e ela decide se ele deve ou não tomar conheci- Com referência a Verônica, digo que você viu apenas o efei-
mento do assunto". to, mas para tudo temos que buscar a causa. Não podemos ver na
Atualmente sou um pesquisador teológico independente e observação da jovem algo sem causa. A doença dela não foi fruto
estudo a "Bíblia Sagrada" sem nenhum compromisso com esta ou do acaso ou uma falha na perfeita criação de Deus-Pai-Mãe, o
aquela doutrina, ou mesmo preconceito desta ou daquela doutri- pleno de AMOR E PERFEIÇÃO. O acaso não existe, para tudo
na. O meu compromisso é com DEUS-PAI-MÃE e com a VER- temos que buscar uma explicação, compreensão e entendimento
DADE. Por isso cheguei a conclusões muito interessantes, que do porquê e não lamentar o efeito. A justiça invisível é perfeita e
deveriam ser analisadas por especialistas em exegese, que tenham justiça é sempre cega, como também cobra até ao último centavo.
suas mentes abertas e "coragem para pensar no já pensado". Já a comparação do caso de Verônica, a jovem que morreu de
Com esse objetivo, já escrevi para muitos teólogos, membros leucemia e "virgem sem se sentir virgem", com a triste história
da Hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana, mas esses bíblica de Jefté e sua filha, julguei-a muito infeliz. Decepcionei-
homens estão muito ocupados com seus trabalhos, "quase profis- me muito mesmo com a sua atitude, pois você não condenou o
sionais" e não têm tempo de "buscar a ovelha perdida"; ou pos- nefando e vil voto e sua realização, mas justificou o choro das
suem um severo compromisso com o "direito canônico", por isso amigas da inocente jovem "porque ela não experimentou o êxta-
respondem-me com o silêncio, ou ainda considerando-me um se e o amor fecundo de um homem" (Vide Juízes, 11).
herege do século XX. Esquecem que "DEUS" é onipotente e Para mim, você perdeu uma ótima ocasião para condenar o
livremente escolhe os seus enviados ou mensageiros. Entre os bárbaro erro e crime do guerreiro Jefté, que cumpriu o vil voto

Endereço para correspondência:


COOPMED
Casos Clínicos em Psiquiatria
Av. Prof. Alfredo Balena, 190
30130-100 Belo Horizonte MG

*. O autor, de nome fictício, publicou auto-relato “Revelações” em Casos Clin Psiquit 1999; 1(1):3-11, discutido por Helio Elkis.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):3-6 3


Fé e vida sem vida até*

feito a um tirano invisível e nunca a Deus-Pai-Mãe-Amor. Se um tem que perdoar. Quem defende qualquer tipo de pecado, como
ato como aquele fosse realizado hoje seria crime perante a socie- ofensa a Deus, é um ignorante da sabedoria, perfeição e onisciên-
dade e perante Deus, então na antigüidade também deveria ser: cia de Deus.
quem evoluiu foram os homens e não Deus! Ou será que Deus Também o conceito do "Inferno Eterno" para aqueles que
também se aperfeiçoou? Para mim é mais outra grande ignorân- ofenderam e ofendem a Deus é um grande e grave erro filósofo
cia e os teólogos se calam perante o povo!!! dos teólogos católicos e protestantes, que no fundo são mais bito-
Existem muitos acontecimento bíblicos, que hoje seriam lados ainda, pois acreditam plenamente que tudo que está na
considerados como atos de "magia negra". Se hoje são, ontem Bíblia vem de Deus. Mas muitas coisas bíblicas vêm dos homens
também o eram. Não podemos nunca pensar que Deus-Pai-Mãe- e de "falsos deuses", que defendiam e ainda defendem seus terri-
Amor pôde aprovar atos de magia negra, como expus na quarta tórios conquistados; isto é: aqueles que os temem e adoram
carta para o Padre Z.A.X. cegamente.
No caso do seu encontro e diálogo, após o batizado, do capítulo Nós temos que perdoar, quando sentimos a ofensa e pedir
II, fiquei perplexo com sua meditação e vergonha de você perdão a quem ofendemos. Quem é beneficiado, perante as leis
mesmo. Aquele ato, ao qual você refere, nunca seria a expressão evolutivas, é aquele que perdoa, e não quem recebe o perdão, já
de um amor maior. Para mim, você faria um ato de muito amor que foi este que causou a ofensa. Quem ofende agride a Lei evo-
mesmo, se voltasse lá e a tratasse como uma pessoa digna de ouvir lutiva e Lei é sempre lei e é cega.
de sua boca o que Jesus nos ensinou a ensinar e amá-la como É um erro e muito orgulho nosso pensar que temos capaci-
Jesus nos ensinou a amar. Dizer para ela o que Jesus disse para a dade de ofender a plenitude da perfeição divina ou a presença
mulher adúltera (Jo 8,2 a 11) e para defender Maria, que derra- onisciente de Deus entre nós.
mou em seus pés nardo puro, ungindo-o (Jo 12,1 a 8). Em "A terra dos justos e dos bons", podemos ver a constan-
Nos dias de hoje, se confundem muito o ato sexual como te busca do paraíso perdido. Ensinar que este encontro só acon-
uma prova de amor e entrega, mas só o ato sexual coloca o ser tece com a morte física do corpo é ainda uma decepcionante fór-
humano num nível inferior aos animais irracionais, pois estes pro- mula de nos ensinar a beleza da vida, da libertação e da ressurrei-
curam e fazem o acasalamento só na época do cio para a repro- ção. Jesus mesmo já nos ensinou: "Conhecereis a Verdade e a
dução, não existindo amor e fidelidade plenos. Já o ser humano Verdade vos libertará" (Jo 8,32) e "Eu vim para que tenham vida
se guarda para aquele ou aquela, que juntos irão viver a beleza da e vida em abundância" (Jo 10,10), também: "O Reino de Deus
entrega de si mesmo em completa fidelidade. Só haverá a pleni- está dentro de vós". Temos que viver o "céu" já aqui na terra
tude do amor físico e da paz na terra quando existir fidelidade, mesmo. Céu não é um lugar, mas um "estado de espírito".
amor e entrega dos dois lados. Não havendo fidelidade plena, No capítulo XII: "Abraçar árvores", gostei de ler o relato de
existe o adultério, assim nos ensinou o mestre Jesus, ou o que está sua experiência e vivência com uma árvore. Mas é preciso ter
escrito é falso? Muitos confundem o amor com a infidelidade e muito cuidado para não cairmos no "monismo ou mesmo no pan-
traição, e a liberdade como a libertinagem!!! teismo", conceitos filosóficos contrários ao "dualismo". Quando
A nossa educação de católicos não nos preparou e nem prepara nos sentimos como árvores, como a natureza ou deixamos de ser
para a libertação e a vitória pela morte; isto é: a ressurreição, após nós mesmos e a natureza deixa de ser a natureza, temos um retro-
uma vida digna, honesta e pura, mesmo que seja em condições cesso com a negação do dualismo. Não existindo a dualidade,
indignas. O que vale, espiritualmente falando, é aquilo que as tra- então é o mesmo que defender o nosso fim, pois sempre quando
ças ou a ferrugem não consomem. um ser inferior se aproxima do (ou soma com o) superior, aquele
Do capítulo VIII: "A lata de lixo que Deus não tem", faço os pode desaparecer na imensidão deste. É como o sumiço dos rios
seguintes comentários: de água doce na vastidão das águas salgadas dos mares,
- "Deus não é família, mas utiliza da família para a evolução quase infinitos.
de sua obra e assim, pois, possamos vivenciar o seu grande amor, Tenho uma forte coincidência com o achado de Nag
já que participamos intensamente da evolução de sua obra criada Hammadi, pois foram 45 textos descobertos em 1945 e nasci em
e com muito amor, sendo nós mesmos os responsáveis por nossa 1945. Como para tudo existem planos e o dedo de Deus dirige
evolução (salvação). A trindade ensinada sobre Deus-Pai-Mãe foi tudo, respeitando plenamente a liberdade de todos, então a coin-
e é uma imensa gafe, como também um grande sofisma, que a cidência foi planejada. Em 1945, também, ocorreu o término da
ortodoxia buscou nos ensinamentos do Egito e Oriente (Índia) e 2ª grande guerra européia, asiática e africana, pois não houve
nos fez engolir algo como o "Mistério da Santíssima Trindade": batalhas na América.
um dogma e mistério, que nos foi imposto. Quem evolui somos nós, os seres humanos. Na hora certa,
Só existe "mistério" por causa da ignorância e orgulho dos que só o Pai sabe, Deus-Pai-Mãe intervém e vai se revelando à
sábios e "dogma" é a fórmula encontrada por aquele (ou aqueles) medida que aparece alguém que pode receber, entender e divul-
que mandavam ou mandam e sabem menos, impor a vontade gar a revelação do próprio "Espírito Incriado", que é Deus-Pai-
dele, já que quem discordava era considerado como um exco- Mãe. Esse alguém tem que ter coragem para enfrentar as estrutu-
mungado ou herege. Tivemos que calar perante muitos pseudo- ras organizadas, que só aceitam aquilo que está de acordo com
dogmas impostos como a verdade pura e cristalina. Como já disse elas ou com o interesse de seus dirigentes. Jesus foi crucificado
que: "Deus não Perdoa Nunca" e isso ocorre porque Deus-Pai- por causa disso. Quem escolhe os representantes de Deus na terra
Mãe é tão sábio, amoroso, bom, humilde, compreensivo e liberal é o próprio Deus e não as estruturas humanas, que foram e são
que nunca foi ofendido. Como Deus nunca foi ofendido, nada orientadas para só receberem aquilo que querem receber como

4 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):3-6


orientação do "Espírito Santo". Por isso tudo, muitas Verdades Logo em seguida, tudo voltou ao completo silêncio da
foram condenadas como heresias. madrugada e só ouvia o pulsar do meu coração.
Você sabe muito bem disso, já que sentou na mesma cadeira No dia 2/2/1991, voltei a acordar de madrugada, sentindo
que foi utilizada por Galileu Galilei e Giordano Bruno. Um foi uma grande tremura indolor no meu coração, que depois esva-
perdoado, porque retratou, e o outro, condenado a morrer na ziou-se por completo, como se um balão liberasse todo o ar con-
fogueira, já que era mais corajoso e cheio de fé, porque conheceu tido dentro dele. Senti um profundo silêncio interior, cheguei a
a Verdade, que liberta dos princípios que bitolam a nossa mente pensar que tinha morrido ou melhor finalmente libertado e res-
e a nossa liberdade de pensar. suscitado para a Vida Maior. Quando iniciou a tremura e forte
Se o nosso destino é Deus, ou melhor, o encontro com Deus, pressão no meu coração, fechei os olhos. Após uns instantes e
então teremos que buscá-lo primeiro dentro de nós e identificar- como me sentia bem calmo, pensei: "Se morri, tenho que assumir
mo-nos quem somos, quem é Deus e ou o que é Deus. Então não a minha nova realidade e não adianta ficar parado", então abri os
precisamos pegar o "trem", mas viver bem a vida, em plenitude e olhos e observei todo o quarto, só com o giro dos olhos: tudo
abundância, seja lá onde estivermos. Não podemos correr atrás estava igualzinho. Após um momento, tive coragem e levantei a
daquilo que ainda não temos ou não somos; ou mesmo querer- perna esquerda, olhando rápido para ver se havia uma separação
mos ser o que ainda não temos condição de ser. (como aquelas do filme "Ghost, do Outro Lado da Vida", a que
Lendo os livros: "Face Oculta da Mente" e os dois volumes de só assisti depois) e como não houve nenhuma alteração ou sepa-
"As Forças Físicas da Mente", do Padre Oscar Gonzalez ração, exceto a parada absoluta do meu coração, tentei sentir,
Quevedo, pode-se ver como a ignorância sobre DEUS por parte observar e pegar o meu pulso e nada. Levantei devagarinho e fui
dos teólogos é imensa. Esse grande sábio da Hierarquia da Igreja ao banheiro, acendi a luz: eram 3 horas da madrugada. Olhei-me
Católica Apostólica Romana e da parapsicologia desviou a igno- bem no espelho, não observei mudanças físicas, voltei a tentar
rância dele sobre DEUS para o "inconsciente", dizendo que tudo sentir o batimento do meu coração: nada mesmo, tudo em com-
tem sua razão e explicação no "inconsciente". Esses livros quan- pleto silêncio e profunda tranquilidade ou calmaria interior.
do referem e explicam sobre a "mente consciente" são fantásticos Sentia como se houvesse um vazio dentro do meu tórax.
Decidi não ir para nenhum hospital, onde poderia morrer
mesmos, mas quando referem à "mente inconsciente", não valem
nas mãos de excelentes médicos, pois poderia ficar sob a respon-
nada mesmo; isto é: uma ignorância plena ao lado de uma grande
sabilidade de médicos sem escrúpulo e puramente cientistas, que
sabedoria, que contradição!
poderiam fazer de mim uma simples cobaia, já que dentro de um
Para facilitar um pouco um provável diálogo, vou enviar-lhe
hospital estaria entregue à decisão e vontade deles, que saberiam
as cartas que escrevi para o Frei T.A.Z. ofm. e para o Padre
facilmente envolver os meus parentes. Essa minha decisão tam-
Z.A.X., deste apenas a quarta.
bém teve como base o meu "quase enforcamento dentro da clíni-
Como você escreveu sobre sua fenomenal experiência com
ca Pinel", no dia 12/1/1980, e por isso tive medo de entrar num
uma união, quase plena, vivida com uma árvore (cap. XII), vou
hospital daquele jeito. Não queria correr nenhum risco da parte
resumir aqui uma experiência que vivi, quase indescritível e irreal
dos profissionais da medicina. Sabia o que acontecia e isso dava-
mesmo para a medicina atual, que foi:
me muita coragem, confiança e fé na vitória final, pois estava com
- "No dia 31/1/1991, acordei às 3 horas da madrugada e tive Deus. Tudo tinha que ficar oculto da medicina...
uma fantástica visão, que foi assim: "Uma das paredes do meu Voltei para a cama, acordei calmamente minha esposa e disse
quarto desapareceu e vi bem longe um grande e perfeito círculo. para ela:
Dentro desse círculo, apareceu um rosto um pouco deformado, - "Veja como estou, como falo e vou andar aqui para você ver,
pois enchia todo o círculo, mas não tive nenhum medo, pois reco- já que vou lhe contar algo que irá assustá-la muito". Ela quis
nheci o rosto com facilidade. Imediatamente, essa visão começou saber imediatamente o que acontecia, quando relatei para ela o
a aproximar-se de mim e à medida que ia se aproximando, dimi- que estava se passando comigo, dizendo: "O meu coração parou
nuía de tamanho. Quando chegou a uma distância de uns três de bater!".
metros, tinha um raio de mais ou menos um metro e aí ouvi a - "O quê! Você está louco!". Disse-me ela, mas também ten-
seguinte frase: tou sentir a minha pulsação e nada, colocou as mãos espalmadas
- "O código é desnatadeira" (1 + 6 + 1 + 12 = 20). Logo desa- no meu pescoço e nada sentiu, por fim colocou o ouvido no meu
pareceu toda a visão." Decodifiquei o código e agi imediatamen- peito e nada ouviu. Aí ela ofereceu para levar-me a algum hospi-
te, chamando aquele que representava o código, o número 12, tal, dizendo-me assim:
que é um Bispo Católico. Logo que chegou, dei a seguinte ordem, - "Você quer que o leve para um hospital agora?".
assim: - "Do jeito em que estou, só entro em algum hospital amar-
- "Você tem superioridade ao Profeta Maomé, então vá a ele rado!". Respondi decidido. Ela aceitou a minha decisão. Ficamos
e dê a seguinte ordem: "Maomé vai ao Saddam Hussein, o líder conversando até amanhecer. Ali pelas 6 horas levantamos e tomei
do Iraque, e faz com que ele dê ordens para a retirada das tropas um bom banho. Depois fomos para Contagem, uma cidade da
iraquianas do Kuweit, da forma que ele puder: seja por sonhos, Grande BH, com o nosso filho de um ano e quatro meses, sendo
por intuição ou mesmo por aparição física." Agora você não pode eu o motorista do carro.
ir diretamente perante o chefe iraquiano, senão ele morrerá ime- Não consegui alimentar com nada de sólidos, devido ao meu
diatamente" (A morte aconteceria por causa da imensa diferença estado emocional, e só tomei líquidos. Quando voltávamos para
da vibração religiosa). a casa, às 18h30, e passávamos debaixo do viaduto do Carlos

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):3-6 5


Fé e vida sem vida até*

Prates, senti o meu coração dar um forte pulo dentro do meu libertador, mas ele não sabia quem eu realmente era e quem era e
peito, como se fosse dada uma bombada muito forte dentro de é o meu protetor. Eu estava trabalhando mentalmente para o fim
um balão vazio e depois voltou à plena calmaria. Contei à minha da "Guerra do Golfo" e agia contra os objetivos dele. Ele queria
esposa e ela perguntou-me se precisava parar o carro, disse que a vitória do Iraque e eu, mentalmente, forçava a retirada das tro-
não e que tudo estava sob controle. Os pulos foram repetindo e pas iraquianas do Kuweit, por forçar mentalmente uma decisão
diminuindo o intervalo de tempo entre eles, até que voltou tudo do líder iraquiano, Saddam Hussein, em abandonar o Kuweit.
ao normal, após uns seis a sete minutos". O "Velho Jó" me orienta para trabalhar para a "PAZ
Depois vim a saber que tudo que aconteceu comigo no dia PLENA" em todo o Planeta Terra e em qualquer situação. Aqui
2/2/1991 foi um terrível ataque de alguém (um espírito), que que- está a principal razão dessa carta: PAZ PLENA para todos.
ria me enganar e derrotar, como ocorreu na luta de Jacó com um Um abraço de quem é dirigido pelos poderes de São Francisco de
anjo (um espírito, que agia contra o Patriarca Jacó) e também no Assis e de São João Evangelista, como João Batista "caminhou
"drama do Getsâmani com Jesus". O objetivo desse espírito era com o espírito e poder de Elias..." (Lc 1,17).
me retirar do plano físico pela desencarnação, pois eu estava atra- Desejo-lhe muita paz, luz e liberdade...
palhando os planos dele e ainda desejava aparecer como o meu Paulo B. Linhares

NASCI E MORRI LOUCO


BORN AND DIED CRAZY

N.C.T.* Depois de três a sete dias que ocorre um motivo para a depres-
são, vou sentindo lentamente que ela está chegando e vou per-
De repente surge uma sensação gostosa e incontrolável. E eu, dendo as energias e me entregando a ela. Interessante que o meu
a partir deste momento, não comando mais o meu senso crítico, médico psiquiatra atual já identificou por duas vezes que eu esta-
as regras da sociedade ou as leis não existem, e começa o surto ou va em depressão, mas que foi considerada normal e não patológi-
a fase da crise “maníaca” da doença identificada como ca. Tinha realmente motivos fortes para estar em depressão.
Transtorno Bipolar. Na maioria das situações, existiu um motivo Nos últimos anos tive a oportunidade de conhecer algumas
para que eu tivesse agido daquela forma, em outras, não. pessoas portadoras do Transtorno Afetivo Bipolar. E a conclusão
É como se “algo” me dominasse e fizesse com que eu agisse
a que cheguei é que, apesar do diagnóstico ser o mesmo, cada
daquela forma, sem raciocinar ou avaliar em conseqüências pre-
caso é um caso. Alguns têm tendência a ter crises de mania,
sentes ou futuras. É como um arrepio enorme, e uma força inte-
outros de depressão, outros podem intercalar ou misturar essas
rior que me domina e me impulsiona a agir através do meu corpo,
crises. O período das crises também pode variar muito. Existem
apesar de eu, muitas vezes, não concordar com o que estou fazen-
do. Mas a partir do momento que eu começo, não consigo, de casos de pacientes que já ficaram até 15 anos sem a manifestação
forma natural, parar. E vai num crescendo, agindo de acordo com de alguma crise, apesar de a doença não ter cura.
o momento e com as oportunidades. Estes são os meus momen- Outro aspecto importante é que essa doença é, na maioria
tos de “euforia” ou de “mania” denominados pelos médicos. dos casos, hereditária. Na minha família só conhecia a existência
O outro lado da doença, que se chama Transtorno Afetivo de um tio materno, que era esquizofrênico. Posteriormente, vim
Bipolar, é a depressão. É impressionante como estou mais vulne- a saber e descobrir que, na família do meu pai, também existiram
rável a depressões do que a maioria das pessoas. E também, quan- alguns tios e primos com problemas mentais, apesar de nunca
do ela me pega, parece que é mais profunda e mais duradoura. terem sido declarados como tal para o restante da família.

Endereço para correspondência:


COOPMED
Casos Clínicos em Psiquiatria
Av. Prof. Alfredo Balena, 190
30130-100 Belo Horizonte MG

* N.C.T. também escreve neste volume na seção “Casos Literários”

6 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):6-8


Com 18 anos de convivência com esse diagnóstico, procuro Na minha adolescência e início da vida adulta, tive uma car-
descrever as minhas crises e todas as conseqüências desta doença reira brilhante como atleta, chegando à Seleção Brasileira que dis-
para mim e para os que me cercam, como uma forma de contri- putou torneios no exterior. Tive uma vida com muito sucesso na
buir para que determinadas situações constrangedoras que acon- área de administração, tendo inclusive freqüentado curso de
teceram comigo não ocorram com outros pacientes, familiares e Mestrado em Administração Pública na Fundação Getúlio
médicos, pois estão em jogo a vida e a aceitação deste ser huma- Vargas, interrompido por um acidente automobilístico. Minha
no na sociedade onde ele está inserido. Muita tristeza, dor e sofri- vida profissional, desde adolescente, foi rica em experiências
mento poderiam ter sido evitados se a postura e o comportamen- como estagiário e executivo de grandes empresas multinacionais,
to das pessoas, inclusive o meu e, principalmente, o dos médicos o que me possibilitou morar em vários países e regiões do país.
psiquiatras e psicólogos, tivessem sido diferentes. Fui empresário de micro e pequenas empresas, professor univer-
O meu diagnóstico foi dado em 1985, quando me obrigaram sitário e, durante mais de 20 anos, consultor empresarial, nova-
a me internar num hospital psiquiátrico, que nem existe mais. mente em grandes, médias, pequenas e microempresas.
Disseram para os meus familiares que eu tenho PMD, que signi- Sou pobre, mas sou feliz. Não devo nada a ninguém, reagi a
fica Psicose Maníaco-Depressiva. Nessa época, eu era consultor toda tentativa de falcatrua que pudesse me envolver, nunca fui
de importante banco e de importantes empresas, além de sócio corrupto nem corruptível, e faria tudo novamente se fosse preci-
em casas de alimentação conhecidas na cidade. Estava casado, já so. O maior privilégio de minha vida é poder deitar tranqüilo,
tinham nascido minha filha, que hoje tem 18 anos, e meu filho, com a consciência limpa e sabendo que meus princípios, na
que hoje tem 17 anos. É importante dizer que perdi tudo. Meu minha visão, sempre foram preservados, e me considero uma pes-
casamento acabou, os clientes esperaram terminar os contratos e soa de caráter. Gostaria de ver “um” falar algo da minha pessoa
os negócios quebraram. Em pouco tempo, materialmente falan- ou da minha conduta sincera, honesta e verdadeira. Não acredito
do, eu já não tinha mais nada, em relativamente curto espaço em polícia, advogado ou justiça no Brasil e, quando foi necessá-
de tempo. rio, resolvi os assuntos à minha maneira. Se considerarem isso
Os fortes medicamentos prejudicavam o meu raciocínio e doença, sou louco e louco assumido.
começaram os primeiros sinais de discriminação e preconceito. O ócio é como o cigarro. Mata devagarinho. A solidão é o
Lembro-me do meu primeiro médico psiquiatra, que aconselha- caminho do crescimento espiritual, se vista como solicitude. O
va: “deixe que te chamem de qualquer coisa, até de veado, mas que não posso admitir é a preguiça e a falta de criatividade para
não deixe que te chamem de louco”. A sociedade não aceita, tal- podermos, de alguma forma, contribuir para uma ou várias pes-
vez porque todos nós temos um pouco de loucura. Segundo soas, que muitas vezes, ou na sua maioria, estão em situações pio-
outro médico psiquiatra, com quem me tratei e gostei muito, res do que a nossa, por mais incrível que isso possa parecer. Mas
todos nós temos um diagnóstico na área psíquica. é. É só procurar que achamos, às vezes bem ao seu lado, um
Quando me tratei com outro excelente médico psiquiatra, parente ou um vizinho ou sua empregada.
tive a curiosidade de perguntar a uma colega dele na clínica sobre Foi em 2000, no dia 20 de março, meu aniversário, que por
alguma bibliografia da minha doença e fui para a Escola de volta das 22h30 eu tomei uma das decisões mais importantes da
Medicina conhecer mais detalhes. É uma doença que não tem minha vida. Não tendo recebido nenhum telefonema, nenhuma
cura. Chamava-se Doença da Afetividade e hoje é mais conheci- visita e já discriminado e vivendo cheio de preconceitos pela
da como Transtorno Bipolar. É hereditária. O que mais me inco- sociedade, somado ao fato de ter sido tratado por um médico psi-
moda é o desconhecimento por parte das pessoas em geral, prin- quiatra que me assegurou que se tomasse o medicamento cloza-
cipalmente da família, de que essa doença é cíclica em função da pina (cujo único inconveniente seria a dosagem semanal de san-
variação do humor, podendo, entretanto, o portador viver parte gue) eu “nunca mais teria crise”.
ou grande parte da sua vida no mesmo nível de normalidade de Coloquei um anúncio fúnebre no jornal de maior circulação
uma pessoa comum. No meu caso, após cerca de 60 dias que no estado, comunicando o meu próprio falecimento. Telefonei
passo por alguma “crise”, já estou pensando e agindo em função para o jornal, perguntei sobre o preço, tamanho e demais condi-
de algum novo projeto produtivo. ções e passei um fax, confirmando o anúncio, com todos os deta-
Minha família me coagiu a doar meu apartamento para meus lhes, excluindo, propositadamente, os nomes dos meus filhos. A
filhos e construíram uma casinha para eu morar, que é de todos. seguir, telefonei para um primo meu em outra cidade e lhe comu-
Como não consegui trabalho nos últimos anos, todo projeto que niquei o que havia feito, solicitando para que ele no dia seguinte,
apresentei para fazer em casa, com meus próprios recursos, foi no sábado, ligasse para minha mãe, por volta das 6h30, para
unanimemente rejeitado pela família, por uma razão ou outra. avisá-la que não era verdade, pois a mesma já sofre do coração e
Sei que aos 50 anos de idade, com uma experiência dura de tem o hábito de logo olhar os anúncios de óbito, ao receber dia-
cinco prisões, 15 internações em hospitais psiquiátricos (muitas à riamente o jornal. E fui dormir. No dia seguinte, no dia do “enter-
força) e mais de 35 médicos psiquiatras e psicólogos, quatro casa- ro”, peguei meu carro e fui até a fazenda do meu ex-sogro, para
mentos, esportista e profissional de sucesso, acredito que ainda avisar aos meus filhos Letícia e Luís José que tudo não passava de
tenho muita coisa para fazer e contar. uma “armação” e que eu estava bem e vivo.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):6-8 7


Nasci e morri louco

Comentário I: “Feridas-Cicatrizes” Comentário II

Luiz Ferri de Barros* Ricardo A. Moreno**

Meus comentários a propósito do auto-relato apresentado O senhor N.C.T. faz um relato didático evidenciando aspec-
nada podem dizer a respeito do relatado. Isso porque o editor da tos característicos da clínica, evolução e ônus causados pela doen-
revista de Casos Clínicos em Psiquiatria me solicitou explicita- ça bipolar. Nos primeiros parágrafos, relata a evolução da mania,
mente que os apresentasse na condição de portador de transtor- descreve seu curso autônomo e a perda progressiva da crítica e da
no mental - que sou - e sem utilizar-me de minha experiência edu- capacidade de julgar a realidade. Relata a progressão rápida do
cacional e acadêmica na matéria. Ainda que há mais de década eu episódio depressivo e aponta para possíveis sintomas residuais
atue na área de saúde mental, sendo inclusive meu mestrado e que muitas vezes passam desapercebidos para o médico. Vale a
doutorado em História e Filosofia da Educação, o primeiro, e pena ressaltar este fato já que sintomas depressivos residuais são
Filosofia da Educação, o segundo, ambos na área de saúde men- um dos principais desafios do tratamento e se correlacionam com
tal. O pedido de que eu me pronuncie apenas como portador, risco aumentado de recorrência e com a manutenção do prejuízo
feito pela Faculdade de Medicina da UFMG, representa, assim, a funcional. O caráter cíclico e recorrente da doença, o padrão
mesma estigmatização que também enfrentei junto à Faculdade individual variado dos episódios depressivos, maníacos e do
de Medicina da USP, que recusou meu pós-doutorado, apesar de intervalo livre de sintomas também é descrito.
seu Departamento de Psiquiatria o ter aceito. A diferença é que o A identificação de novos casos na família de N.C.T. é outro
estigma que me atinge vindo do Prof. Maurício Viotti é ameno e aspecto relevante e acontece com freqüência em portadores e
diluído na simpatia mineira da fala mansa, enquanto os mandões quando ele diz: “Muita tristeza, dor e sofrimento poderiam ter
da Medicina uspiana costumam ser sempre gente sisuda de cara sido evitados, se a postura e o comportamento das pessoas, inclu-
feia e sem tempo pra prosa de café com broa. Não creio que os sive o meu e principalmente o dos médicos psiquiatras e psicólo-
melhores médicos tenham preconceitos, como é o caso do Prof. gos, tivessem sido diferentes” aponta para a necessidade de inter-
Viotti e de muitos sisudos paulistas, o que sucede é que o estigma venção educacional para o paciente, sua família, seus amigos e
me persegue. Uma das principais características do estigma, demais interessados, sobre o Transtorno Bipolar. Infelizmente a
segundo ensina Erwin Goffmann, é a identificação na pessoa ape- vida do senhor N.C.T. não é muito diferente da de alguns clien-
nas de seus traços distintivos referentes às suas feridas-cicatrizes, tes bipolares, que tiveram prejuízos importantes na esfera pes-
deixando-se de se enxergar a pessoa como o todo que ela é e por soal, marital, profissional, declínio no status socioeconômico e até
todo o seu potencial. De tal sorte, pondero que se estivesse dis- problemas judiciais. Isso evidencia o ônus que o Transtorno
posto a atender às ordens de catedráticos, sejam mineiros ou pau- Bipolar pode ocasionar em função de baixa adesão ao tratamen-
listas, eu poderia comentar o texto conforme solicitado, na con- to, recorrências sucessivas ou efeito colateral de medicamentos,
dição de portador, e, neste caso, inevitavelmente estaria apresen- entre outros. Por outro lado, o senhor N.C.T. não perde a espe-
tando novo auto-relato meu. O que não é minha intenção no rança e pensa no seu futuro, relatando ainda ter muitas coisas
momento, até porque a prioridade de publicação pertence ao para fazer. Mudanças no estilo de vida e aprender a conviver com
auto-relato que recebi para análise. Não me sentiria à vontade, a doença são fatores que melhoram o prognóstico e dão esperan-
tampouco, analisando auto-relatos de pessoas que sofrem ou ça para os portadores. Novos tratamentos, como os relatados
sofreram tanto quanto sofri e por vezes volto a sofrer. Diante pelo paciente, também aumentam a chance de uma vida normal
deles, cabe-me o respeito, e não a análise. ou no mínimo com qualidade.

*Mestre em História e Filosofia da Educação - USP - Doutor em Filosofia da Educação - USP - Administrador de Empresas - FGV - E-mail:: lfbarros@hydra.com.br
**Professor do Departamento de Psiquiatria da FMUSP
Coordenador do Grupo de Estudos de Doenças Afetivas (GRUDA) – Instituto de Psiquiatria – HC FMUSP

8 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):6-8


Artigos Originais
SINTOMAS PSIQUIÁTRICOS NA DOENÇA DE PARKINSON AVANÇADA
PSYCHIATRIC SYMPTOMS IN ADVANCED PARKINSON’S DISEASE

Antônio L. Teixeira-Jr,* Caso clínico


João V. Salgado**
Identificação
Resumo AM, sexo feminino, 43 anos, divorciada, professora aposentada
por invalidez, procedente do interior de Minas Gerais.
Sintomas psiquiátricos estão freqüentemente associados com
a doença de Parkinson (DP). Incluem sintomas depressivos,
História da Moléstia Atual e Antecedentes Pessoais
ansiosos, psicóticos e cognitivos. Descrevemos o caso de uma
paciente de 43 anos com DP complicada por flutuações motoras, A paciente foi encaminhada para internação na enfermaria
discinesias e sintomas depressivos. Durante internação hospitalar do serviço de neurologia do Hospital das Clínicas da UFMG com
para otimizar o tratamento, a paciente manifestava intencional- quadro de descompensação de DP avançada, marcado por disci-
mente sinais de parkinsonismo, sobretudo bradicinesia. Foi diag- nesias e flutuações motoras significativas, com períodos off (aci-
nosticado, então, transtorno factício. No seguimento, não houve nesia) duradouros, e intolerância aos efeitos colaterais da levodo-
melhora do quadro clínico da paciente. Este é o primeiro relato pa, como náuseas, vômitos e hipotensão ortostática.
na literatura de transtorno factício no curso da DP avançada. A paciente era assintomática até os 31 anos de idade, quando ini-
ciaram-se sintomas de fadiga e lentificação motora. Aos 32 anos,
Palavras-chave: Doença de Parkinson; Transtorno de Humor desenvolveu tremores de repouso, sobretudo em dimídio esquer-
Depressivo; Transtorno Factício. do, recebendo o diagnóstico de DP após a exclusão de causas
secundárias de parkinsonismo. A terapêutica inicial consistiu no
Introdução emprego de anticolinérgicos. Contudo, diante da ineficácia des-
ses medicamentos, a paciente foi colocada em levodopa-terapia
A doença de Parkinson (DP) é tradicionalmente classificada aos 33 anos de idade, com tolerância parcial aos efeitos gastroin-
no grupo dos transtornos do movimento, em que sintomas moto- testinais desta. Posteriormente, utilizou vários esquemas de dro-
res, como rigidez, bradicinesia, instabilidade postural e tremor gas antiparkinsonianas associadas à levodopa, incluindo agentes
são característicos. Recentemente, sintomas psiquiátricos e com- anticolinérgicos e dopaminérgicos, sempre com o relato de into-
portamentais vêm sendo valorizados no contexto da DP, tendo lerância aos efeitos colaterais das medicações.
em perspectiva a significativa incapacidade a eles associada. Considerava nunca ter alcançado controle satisfatório dos
Incluem alterações da personalidade, depressão, ansiedade, psi- sintomas parkinsonianos, além de deterioração progressiva do
cose, demência e distúrbios do sono. Esses quadros podem cor- quadro motor, sobretudo da lentificação e da dificuldade de mar-
relacionar-se com o processo neurodegenerativo da DP, ao efeito cha. O esquema antiparkinsoniano da paciente usado então con-
dos medicamentos antiparkinsonianos, ou mesmo à limitação sistia apenas no emprego de levodopa/carbidopa 50/12,5 mg de
funcional secundária à DP1,2. 4/4 h (SIC). Dizia tolerar mal doses mais elevadas de levodopa,
Relatamos a seguir o caso de uma paciente portadora de DP desenvolvendo náuseas, vômitos e discinesias intensas, envolven-
avançada, em que sintomas ansiosos, depressivos e factícios do todo o corpo. Afirmava permanecer a maior parte do dia dei-
foram identificados como possíveis contribuintes para a falência tada ou sentada, sendo capaz de andar e movimentar-se apenas
do tratamento clínico antiparkinsoniano e para a significativa nos breves intervalos, de aproximadamente 30 minutos, de efeito
incapacidade funcional. terapêutico da levodopa.

* Médico psiquiatra e neurologista. Assistente da Clínica de Endereço para correspondência:


Distúrbios do Movimento do Serviço de Neurologia do Hospital Antônio Lucio Teixeira-Jr
das Clínicas, UFMG. Bolsista do CNPq, doutorando em Biologia Alameda das Amendoeiras, 581, Ouro Velho, Nova Lima MG.
Celular pela UFMG. Membro da Associação Acadêmica 34000-000
Psiquiátrica de Minas Gerais – AAP-MG. E-mail:altexjr@hotmail.com
** Médico psiquiatra, Doutor em Neurociências pela Universidade
Louis Pasteur de Estrasburgo e pela USP-Ribeirão Preto. Professor
de Neuroanatomia e Neurofisiologia da Faculdade Metropolitana,
Belo Horizonte, MG. Membro da AAP-MG.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):9-11 9


Sintomas Psiquiátricos na doença de Parkinson Avançada

Além da incapacidade motora, a paciente queixava-se de sin- súbita de estado off para on da paciente, com boa capacidade de
tomas depressivos presentes há um ano, acentuados nos dois deambulação, conforme sua própria conveniência. Era capaz de
meses que antecederam a internação. Descrevia sentimentos de comer sozinha, irritando-se se insinuassem auxílio. Foi flagrada
tristeza e fadiga intensos, além de idéias recorrentes de desvalia e também consumindo medicações que trazia consigo e desprezan-
morte, enfatizando: "Estou no meu limite." Referia também a do as que lhe eram oferecidas pela enfermagem. Eventualmente,
ocorrência de episódios esporádicos de ansiedade intensa, acom- suplicava à enfermagem a administração de maior dose de levo-
panhada de taquicardia, sudorese, dispnéia e idéia de morte, dopa que a proposta na prescrição.
sobretudo quando encontrava-se sozinha. Queixava-se de solidão Diante das evidências de alternância de acinesia e de capaci-
e da precariedade do suporte familiar. dade de movimentos conforme a presença do médico-assistente e
sem associação com o uso da levodopa, e de manipulação volun-
História social tária das drogas antiparkinsonianas com recusa e/ou automedica-
ção, levantamos a hipótese diagnóstica de transtorno factício.
Aposentada desde os 37 anos de idade, morava com o filho de 16 Outro dado que corroborou essa hipótese foi a incongruência
anos. Uma empregada doméstica a auxiliava nos cuidados com a entre o relato de imobilidade praticamente contínua e o fato de
casa e, eventualmente, nos cuidados pessoais. ser relativamente autônoma no domicílio.
Optamos, então, por manter o seguinte esquema antiparkin-
História familiar: ndn soniano: levodopa/benserazida 100/25 mg de 3/3 h e tolcapone
100 mg BID, evitando efetuar novas modificações. Mantivemos
Exame clínico: A paciente mostrava-se alerta, eufásica, nor- também a nortriptilina 75 mg MID. Não confrontamos a pacien-
motenaz, orientada, com pensamento de curso normal, lógico, te com a hipótese levantada. Mostrou-se impermeável a uma
com idéias de desvalia, humor deprimido, emotiva e choro fácil. intervenção psicoterápica breve, limitando o conteúdo discursivo
O escore no miniexame do estado mental foi 28/30. Encontrava- a questões relacionadas à DP.
se restrita ao leito, com grande dificuldade para realizar movi- Após 20 dias de internação, a paciente recebeu alta hospita-
mentos voluntários com os membros, praticamente acinética. lar, com quadro motor parkinsoniano inalterado. Relatava ate-
Exibia tremores de repouso de grande amplitude, sobretudo em nuação dos sintomas depressivos, não tendo referido episódios de
dimídio esquerdo, e significativa rigidez. Discinesias não foram pânico no período de internação. Recusou acompanhamento psi-
observadas no primeiro exame. quiátrico em nível ambulatorial.
No acompanhamento após a alta hospitalar, a paciente man-
Evolução clínica teve o quadro de DP avançada estático, com discinesias significa-
tivas e flutuações clínicas. Manteve o relato de imobilidade prati-
A paciente foi submetida a extensa avaliação laboratorial que camente contínua, a despeito de ainda morar apenas com o filho
não mostrou qualquer alteração. Modificações no esquema anti- e desempenhar algumas atividades domiciliares sem ajuda.
parkinsoniano foram sendo progressivamente implementadas e o Sintomas ansiosos e depressivos persistentes, menos intensos,
antidepressivo nortriptilina foi iniciado. também foram relatados. Modificou, por conta própria, o esque-
Nos primeiros dias de internação, apresentava episódios de ma de uso da levodopa, assim como suspendeu a nortriptilina e o
choro de longa duração associados a sentimentos de angústia e tolcapone.
idéias de morte. Dizia que "não iria resistir à internação". O dis-
curso limitava-se a questionar a gravidade da doença e as perspec-
Discussão
tivas terapêuticas. Queixava-se de múltiplas dores pelo corpo.
Com o acompanhamento, os sintomas ansiosos e depressivos A paciente apresenta DP de início precoce (antes dos 40 anos
atenuaram-se. Entretanto, a despeito da otimização da terapêuti- de idade), já avançada clinicamente, com significativas complica-
ca antiparkinsoniana, a paciente mantinha inalteradas as queixas ções motoras. As discinesias observadas, capazes de dificultar a
de fadiga e de imobilidade. Mostrava ainda crescente incômodo execução de inúmeras tarefas motoras, exibiam típico padrão de
com as mudanças nos medicamentos, questionando a eficácia dos pico de dose de levodopa e não podiam ser suprimidas nos exa-
mesmos e reclamando, reiteradamente, "que não era compreen- mes clínicos, dado o caráter involuntário das mesmas. A "acine-
dida". Passamos, então, a examinar a paciente, pelo menos, qua- sia" da paciente, por outro lado, não apresentava relação com os
tro vezes ao dia, procurando observá-la em períodos on (sob pos- níveis séricos de levodopa, mas com a presença do médico-assis-
sível efeito da levodopa, portanto, após a administração da droga) tente nas avaliações. A paciente tendia ainda a superdimensionar,
e em períodos off (na ausência de efeito da levodopa). Nos exa- em seu relato, a duração e a gravidade dos períodos off. Essas
mes clínicos, independentemente do horário, a paciente sempre observações associadas ao fato da paciente manipular deliberada-
se mostrava muito lentificada, incapaz de levantar-se do leito ou mente a prescrição médica, rejeitando drogas ou automedicando-
deambular. Discinesias difusas e de moderada amplitude eram se, motivou o diagnóstico de transtorno factício.
observadas nos exames após a administração da levodopa. A primeira distinção necessária seria com simulação (ou
Entretanto, outros pacientes da enfermaria e os técnicos de enfer- malingering, do inglês). A paciente não apresentaria qualquer
magem relataram-nos que a paciente freqüentemente saía do leito benefício objetivo, seja de ordem financeira ou legal, assumindo
para ir ao banheiro ou para dirigir-se a outros setores do hospital. intencionalmente atitudes que poderiam prejudicar a si própria,
Fomos surpreendidos, em uma oportunidade, com mudança o que torna improvável a hipótese de simulação. O caráter inten-

10 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):9-11


cional/voluntário dos atos e comportamentos exclui transtornos Concluindo, a presença de sintomas psiquiátricos no curso
somatoformes. As queixas de solidão e precariedade de suporte da DP pode comprometer significativamente a qualidade de vida
familiar, por outro lado, podem indicar a motivação dos compor- dos pacientes1,2. No caso, a concomitância de sintomas ansiosos,
tamentos assumidos, que seria o de reforçar o papel de doente depressivos e factícios ainda contribuiu para a falência do trata-
(do inglês, sick role). Isso corrobora o diagnóstico de transtorno mento clínico antiparkinsoniano e para a significativa incapacida-
factício3. Especula-se que, além de questões psicodinâmicas, fato- de funcional da paciente.
res orgânicos cerebrais poderiam contribuir na determinação de
transtorno factício4,5. Summary
Não encontramos relatos de transtornos factícios no curso da
DP1,2. A literatura descreve apenas casos de "parkinsonismo psi- Psychiatric problems associated with Parkinson's disease (PD)
cogênico", em que as causas prováveis de quadros parkinsonia- are frequent and include several syndromes, such as depression,
nos são atribuídas a fatores psicogênicos6,7. O estudo de Lang et anxiety, psychosis and cognitive dysfunction. We present a case of
al.7 apresenta a maior série de casos de parkinsonismo psicogêni- a 43 year-old woman with PD complicated with motor fluctua-
co, incluindo 14 pacientes selecionados em três grandes clínicas tions, dyskinesias and depressive symptoms. During hospital stay
de transtornos do movimento. Segundo os autores, quadros de for therapeutic optimization, the patient showed motor signs of
parkinsonismo psicogênico seriam infreqüentes, correspondendo parkinsonism, notably bradykinesia. Then factitious disorder was
0.17% dos pacientes parkinsonianos de um dos serviços estuda- diagnosed. On the follow-up there was no improvement in the
dos, o do Hospital da Universidade de Columbia, Nova York. Os clinical status of the patient. To our knowledge this is the first
autores apontam a busca de compensação financeira como a con- case report of factitious disorder in the course of
dição mais freqüente nos casos de parkinsonismo psicogênico, advanced PD.
sendo relatada em cinco casos. Diagnóstico psiquiátrico foi defi-
nido em alguns pacientes: conversão (quatro casos), transtorno Keywords: Parkinson's Disease; Depressive Disorder; Factitious
somatoforme (três casos) e depressão (quatro casos). Ressalta-se Disorder.
que depressão estava associada ou a outros diagnósticos psiquiá-
tricos (dois) ou à busca de compensação financeira (dois). Entre Referências Bibliográficas
os sintomas parkinsonianos, a lentificação motora (bradicine-
sia/acinesia) foi o único presente em todos os indivíduos. Doze 1. Melamed E. Neurobehavioral abnormalities in Parkinson's
pacientes apresentavam tremor, enquanto apenas seis, rigidez. No disease. In: Watts RL, Koller WC. eds. Movement disorders:
acompanhamento dos casos de parkinsonismo psicogênico, ape- neurologic principles and practice. New York: McGraw-Hill,
nas três remitiram o quadro, enquanto os demais permaneceram 1997:257-262.
com os sintomas praticamente inalterados. 2. Rabinstein AA, Shulman LM. Management of behavioral and
Em concordância com essas observações, foram identificadas psychiatric problems in Parkinson's disease. Parkinsonism
na paciente síndromes depressiva e ansiosa concomitantes e len- and Related Disorders 2001; 7:41-50.
tificação motora como sintoma parkinsoniano manipulado. A 3. Leamon MH, Plewes J. Factitious disorders and malingering.
evolução da paciente mostrou, ainda, a persistência dos sintomas In: Hales RE, Yudofsky SC, Talbott JA. eds. The American
motores "psicogênicos", nesse caso, de caráter factício. A nosso Psychiatric Press Textbook of Psychiatry. Washington:
ver, o mau prognóstico correlaciona-se, em parte, à impermeabi- American Psychiatric Press, 1999:695-710.
lidade da paciente a intervenções psicoterápicas, o que é comum 4. Diefenbacher A, Heim G. Neuropsychiatric aspects in
no transtorno factício3. Munchausen's syndrome. Gen Hosp Psychitatry 1997;
Depressão é o transtorno psiquiátrico mais freqüente na DP, 19:281-285.
acometendo 30% a 40% dos pacientes1,2,8,9. Postula-se que sua 5. Lawrie SM, Goodwin G, Masterton G. Munchausen's
manifestação esteja correlacionada ao processo neurodegenerativo syndrome and organic brain disorder. Br J Psychiatry 1993;
na DP8,9. Alguns autores defendem inclusive a incorporação da 163:545-549.
síndrome depressiva na definição da DP9. Certos pacientes podem 6. Koller WC, Marjama-Lyons J, Troster AI. Psychogenic move-
exibir sintomas depressivos mais intensos nos períodos off, com ment disorders. In: Jankovic JJ, Tolosa E. eds. Parkinson's
melhora nos períodos on1. Como a paciente exibia sintomas disease and movement disorders. Philadelphia: Lippincott
depressivos proeminentes no início da internação, com longos Williams-Wilkins, 2002:546-552.
períodos de choro, não foi possível estabelecer a presença desse 7. Lang AE, Koller WC, Fahn S. Psychogenic parkinsonism.
fenômeno. Entretanto, o comportamento de busca de levodopa Arch Neurol 1995; 52:802-810.
apresentado pela paciente pode sugerir uma forma de alcançar ou 8. Cummings JL. Depression and Parkinson's disease: a review.
alívio de sintomas depressivos ou mesmo euforia, o que caracteri- Am J Psychiatry 1992; 149:443-454.
zaria dependência da droga. Síndromes ansiosas, como ansiedade 9. Leentjens AFG, Verhey FRI. Depression and Parkinson's
generalizada e transtorno do pânico, também estão freqüentemen- disease: a conceptual challenge. Acta Neuropsychiatrica 2002;
te associadas à depressão, como na paciente1,2. 14:147-153.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):9-11 11


ABUSO DE SUBSTÂNCIA PSICOATIVA: RELATO DE TRÊS CASOS
PSICOATIVE SUBSTANCE ABUSE: THREE CASES REPORT

José Antônio Zago*; dentes, negligência de responsabilidades, problemas de relacio-


Sérgio Augusto Monteiro dos Santos**; namento familiar e social, dificuldades ocupacionais, dificuldades
José Carlos Salzani*** financeiras, problemas legais. Em suma, o abuso difere de depen-
dência por não apresentar padrões de uso compulsivo, nem de
Resumo tolerância, nem sintomas de abstinência.

São apresentados três casos por abuso de substância psicoa-


Relato de casos
tiva, atendidos no programa terapêutico para dependentes de
álcool e drogas do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira, SP.
São evidenciadas e discutidas as dificuldades tanto para a Caso 1
compreensão teórica do fenômeno quanto as dificuldades na
terapêutica. 47 anos, brasileiro, sexo masculino, professor universitário,
católico.
Palavras-chave: Abuso de Substância; Alcoolismo; Dipsomania; Bebe abusivamente por vários dias interrompendo um perío-
Cocaína. do de abstinência. A primeira situação de abuso de alcoólicos
ocorreu em janeiro de 1998, a segunda, em fevereiro de 1999, e a
Introdução terceira, em maio de 1999. Nesta última necessitou de internação
em hospital clínico para tratar os efeitos da intoxicação alcoólica.
O objetivo deste estudo é apresentar três casos, atendidos no Após, decidiu buscar ajuda em ambiente protegido.
programa terapêutico para dependentes de álcool e drogas do
Antes da internação já havia tentado tratamento ambulatorial
Instituto Bairral de Psiquiatria1 por abuso de substância psicoati-
com naltrexone e citalopram e, mais recentemente, com diazepan
va, evidenciando as dificuldades envolvidas tanto na compreen-
e cloridrato de clomipramina.
são do fenômeno quanto na prática terapêutica.
Nega depressão ou idéias de suicídio. Associa sua relação
No trabalho clínico diário, com pessoas em tratamento na
com o álcool quando está em dificuldade financeira. Afirma que
comunidade terapêutica para superar a dependência de substân-
cia, são raros os casos de abuso que procuram o ambiente prote- quando vem o desejo de beber não tem como se controlar. O que
gido como forma de ajuda. mais teme é que esses abusos com álcool venham prejudicar sua
Para Ferreira et al2, não existe fronteira nítida entre o que é carreira universitária, já que é dedicado e considerado entre seus
uso, abuso e dependência, mas um continuum. A droga vai assu- pares na sua profissão.
mindo gradativamente papel central na vida do indivíduo, surgin- Está em seu segundo casamento. O primeiro terminou após
do depois problemas decorrentes, que podem ser familiares, 16 anos por problemas de relacionamento. Tem um filho com 20
sociais, jurídicos, financeiros, etc. A rigor, o ponto de passagem e outro com 17 anos.
para diagnosticar abuso ou dependência é arbitrário e convencio- O paciente é filho único. Sem antecedentes psiquiátricos na
nado nacional ou internacionalmente. família.
Segundo a CID-103, o uso nocivo da substância é diagnosti- Há dez anos fez estágio profissional no exterior, quando teve
cado na ocorrência de dano real para a saúde física ou mental do seus primeiros contatos com bebida alcoólica.
usuário. Quanto ao uso episódico ou dipsomania, é classificado É tabagista. Ficou 17 dias internado, saindo a pedido, melho-
como dependência de substância. rado. Foi orientado a buscar ajuda psicoterápica e indicado o uso,
De acordo com o DSM-IV4, a característica essencial do se necessário, de diazepam 10 mg quando da vontade de usar o
abuso de substância é um padrão mal-adaptativo de seu uso, que alcoólicos.
ocorre em certas ocasiões especiais, de algumas horas a dias,
seguido por períodos mais longos (semanas ou meses) de absti- Caso 2
nência ou de uso ocasional e não-problemático. O comportamen-
to mal-adaptativo é os riscos decorrentes dos efeitos do uso Paciente de 28 anos, brasileiro, sexo masculino, solteiro,
adverso da substância, por exemplo, complicações médicas, aci- escolaridade média, comerciante, católico.

* Psicólogo do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira – SP; Endereço para correspondência:


Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba José Antônio Zago
** Psiquiatra do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira - SP Rua Padre José Maurício, 11
*** Psiquiatra do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira - SP Itapira – SP - 13974-040
E-mail: joseantoniozago@ig.com.br ou bairral@bairral.com.br

12 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):12-15


Seu primeiro contato com cocaína aspirada foi aos 18 anos. foi igualmente um dos fatores da separação. Tem um filho de
A primeira internação em clínica psiquiátrica ocorreu aos 21 cinco meses.
anos. Várias internações em clínicas psiquiátricas. É o filho do meio. Tem duas irmãs solteiras. Pais vivos. Os
O abuso de cocaína ocorre periodicamente, de seis em seis meses. pais têm problemas de relacionamento.
Sem motivo aparente, desaparece de casa por três ou quatro dias Ficou 15 dias internado, saindo a pedido, melhorado.
e é encontrado em cidades vizinhas ou distantes. Nessas ocasiões,
fica exposto porque carrega consigo muito dinheiro e dirige seu Discussão
carro por estradas vicinais. Por duas vezes foi detido e uma vez
ficou na prisão por um mês. Responde novamente a processo por Na prática clínica diária, temos observado que o abuso de
porte de droga. substância é apenas um período intermediário no continuum para
Nos períodos de abstinência, não faz uso de álcool e, geral- a dependência. E, geralmente, os abusos são em freqüência mais
mente, a recorrência à droga começa quando utiliza alcoólicos de ou menos semanal. Ou seja, essa constatação está conforme o
forma não-abusiva. Não sabe explicar os motivos que o levam a DSM-IV4 para o qual o diagnóstico de abuso é mais provável em
buscar a droga. Disse que quando sente vontade de usar cocaína indivíduos que recentemente começaram a usar a substância.
não consegue ter controle. Nessas ocasiões, manipula os familia- Contudo, nos casos apresentados, as ocorrências de abuso de
res para poder sair e usar a droga. substância ocorrem em períodos de tempo maiores: dois meses,
Nos períodos de abstinência, tem uma vida recatada. no caso 1; a cada seis meses, no caso 2; e de 30 a 60 dias, no caso
Trabalha nos negócios da família, com certa dificuldade para 3. Diferente, portanto, dos históricos de dependência, em que os
cumprir todas as suas obrigações. Também, no período de absti- períodos entre os abusos vão diminuindo progressivamente, ao
nência, não apresenta distúrbios de comportamento. É instável ponto de a droga ser transformada em centro da vida do depen-
nos seus relacionamentos amorosos. dente, abandonando, por isso, quase por completo as atividades
Já fez uso de antidepressivos. Mãe, falecida, tinha depressão. diárias como escola, trabalho, lazer, vida familiar, etc.
Tem um irmão mais novo. Bom relacionamento com o pai e o O abuso de substância dos casos apresentados segue certa
irmão. Já fez terapia por dois anos e durante a mesma apresentou regularidade de tempo e não evolui para a dependência. É impor-
as recorrências semestrais. tante destacar que o contato com a substância não é recente na
A cada crise pede para ser internado. Apresenta bulimia história de vida de cada um: o caso 1 conhece alcoólicos há dez
durante os períodos de sobriedade. anos; o caso 2 teve seu primeiro contato com cocaína há dez anos;
Permaneceu 30 dias internado, saindo a pedido, melhorado. e o caso 3, há seis anos.
Outro aspecto a ser sublinhado é que, nos períodos de absti-
Caso 3 nência, esses indivíduos têm uma vida praticamente normal, isto
é, inseridos na família, na sociedade, no trabalho e sem distúrbios
24 anos, brasileiro, sexo masculino, separado, escolaridade de comportamento.
média, trabalha no laticínio da família, evangélico. Essas considerações sugerem discutir algumas dificuldades
O primeiro contato com cocaína foi aos 16 anos. Acha que relativas à compreensão dos casos. A primeira quanto ao
começou a usar a droga por influência de colegas. Aos 19 anos diagnóstico.
experimentou cannabis. O uso de cocaína aspirada ocorre a cada Já que o uso episódico de substância ou a dipsomania está
30 ou 60 dias. Nas ocasiões de uso da droga, fica fora de casa por classificada como síndrome de dependência pela CID-103, cada
um ou dois dias. Anda de carro dia e noite usando a droga e, caso não preenche, a rigor, três ou mais critérios para, de fato,
quando melhora, volta para a casa. Não consegue caracterizar o caracterizar a síndrome de dependência. Os casos preenchem cri-
que o leva a procurar cocaína. Refere que quando vem a vontade térios de abuso de substância, comportamento mal-adaptativo,
de usar a droga não consegue o controle e, nessas ocasiões, torna- conforme o DSM-IV.4 Desse modo, abuso de substância psicoa-
se manipulador. Quando isso ocorre, há um descontrole total na tiva seria um diagnóstico mais preciso, haja vista, principalmente,
sua vida. No final de semana anterior a esta internação, ficou três a ausência da tolerância e da abstinência. Quanto ao desejo
dias fora de casa usando a droga. Ele mesmo pediu para ser inter- incontrolável de usar a substância nas ocasiões de abuso, pode ser
nado, sendo esta a sua segunda internação. Quer ficar bem, pois considerado um padrão compulsivo ou impulsivo.
pretende fazer um curso para piloto de avião. O comportamento compulsivo tem como objetivo prevenir o
Nos períodos de sobriedade é trabalhador e cumpridor de sofrimento ou reduzir a ansiedade, enquanto o comportamento
suas obrigações, embora sem muita iniciativa, ou seja, é preciso impulsivo buscar prazer. Ambos acontecem independentemente
programar e determinar a ele o que tem de ser feito. Não tem dis- da vontade ou do controle do indivíduo, podem coexistir num
túrbios de conduta nos períodos de sobriedade. Não faz uso de mesmo indivíduo e são padrões repetitivos de comportamento
bebida alcoólica. Já fez tratamento ambulatorial com alprazolam (Del Porto, 1996).5
e carbamazepina. Nessa ocasião, ficou seis meses abstêmio. No caso 1, o abuso de alcoólicos, como forma de aliviar a
O casamento durou seis meses, após três anos e meio de angústia conseqüente de problemas financeiros, poderia ser
namoro. Para o paciente, a separação foi decorrente de freqüen- entendido como comportamento compulsivo; e, nos casos 2 e 3,
tes intervenções da família da esposa no relacionamento conjugal. impulsividade. No entanto, a compulsão implica continuidade,
Entretanto, para os pais do paciente, a questão do abuso de droga fato que não ocorre no caso 1, pois, como apontado, há períodos

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):12-15 13


Abuso de Substância Psicoativa: Relato de Três Casos

de sobriedade. A impulsividade seria, então, o fator determinan- pode também ser considerado uma forma de dipsomania ou
te dos três casos? semelhante à dipsomania?
Vallejo Nagera6 descreve dipsomania como ingestões perió- A dipsomania é uma forma rara de alcoolismo (Kerbikov et
dicas de alcoólicos por indivíduos aparentemente normais, inte- al).11 Os dois casos de abuso de cocaína, sem evolução para a
grados na vida familiar, social e do trabalho e que não são alcoo- dependência, à semelhança da dipsomania, também são raros em
listas. Os períodos de abstinência tendem a diminuir. Essas inges- nossa casuística. Na literatura especializada, as referências sobre
tões alcoólicas ocorrem repentinamente, sem relação com estímu- dipsomania são igualmente raras e apenas descrevem esse
los ambientais, como se fosse um “ataque”. Por isso, alguns auto- tipo de transtorno.
res acreditavam que a dipsomania seria um equivalente epilépti- Qual ou quais causas determinariam o comportamento des-
co. Provas eletroencefalográficas e resultados de testes projetivos, ses pacientes para usarem abusivamente, de modo periódico, a
como o Rorschach, de pacientes com dipsomania não comprova- substância, mantendo vida normal na abstinência?
ram a hipótese da equivalência epiléptica. O autor supõe que a Parece que é difícil compreender esses casos de abuso de
etiologia da dipsomania pode ser um transtorno afetivo. substância que não evolui para a dependência apenas pela ótica
Entretanto, sua causa permanece desconhecida, nem existe orien- de adição à substância.
tação terapêutica confirmada. Também, explicações psicodinâmi- Pedinielli et al 12 questionam a CID-103 e o DSM-IV4 por
cas não são convincentes. Bons resultados, dentro do mau prog- separarem os vários transtornos de adição: os relacionados à
nóstico da dipsomania, têm sido obtidos com medicações antide- substância (alcoolismo e outras drogas), dos transtornos da ali-
pressivas, ansiolíticas ou psicoterapia. mentação (anorexia, bulimia) e dos transtornos dos impulsos
Estudo conduzido por Silveira e Jorge7 sobre comorbidade (cleptomania, jogos patológicos, comportamento de risco).
psiquiátrica em dependentes de substâncias psicoativas confir- Embora sejam entidades nosográficas diversas, para esses auto-
mam outras pesquisas de que os transtornos depressivos estão res, a questão da dependência ou da adição permite um agrupa-
mais freqüentemente associados às dependências. mento porque suas características comportamentais e psicopato-
Para Ribeiro8, é impossível afirmar de maneira definitiva lógicas são comuns.
sobre a causalidade e a casualidade de transtornos de personali- Assim, o conceito de adição compreenderia um universo
dade ou condições psiquiátricas no alcoolismo especificamente. mais abrangente do que especificamente relacionado à substância
Simon9 refere que a drogadição aguda, mesmo em indivíduos psicoativa: num primeiro círculo, as relacionadas às substâncias;
não-adictos, é resultante de uma crise adaptativa por aquisição ou num segundo, os transtornos da alimentação; e, num terceiro cír-
perda. Ou seja, diante de uma situação de sucesso ou de fracasso culo, as condutas como cleptomania, condutas de risco, gestos
o indivíduo, adicto ou não, pode partir para a ingestão abusiva de suicidas interativos, gestos repetitivos para as adições sexuais e
uma substância, como se o “remédio-droga” aliviasse a angústia, jogos patológicos.12
sentimento predominante da crise adaptativa, frente ao novo ou Esse enfoque pode abrir novas perspectivas de pesquisas
ao desconhecido. para a questão do abuso de substância que não evolui para a
Nos casos estudados, não foram detectados transtornos de dependência. Quer dizer, não vinculando essa forma de abuso
personalidade ou situação de crise adaptativa. No caso 1, que exclusivamente em relação à substância, mas na expansão do uni-
associa o abuso de alcoólicos com problemas financeiros, talvez verso das adições, ou seja, levando-se em conta, por exemplo, os
possa ser considerada uma crise adaptativa. Entretanto, no con- hábitos alimentares do paciente (o beber e o consumir drogas
tato com o paciente, esse argumento parecia mais um mecanismo aqui não poderiam ser considerados formas alteradas de alimen-
de racionalização. tação?) e os transtornos dos impulsos (comportamentos de risco,
Quanto à comorbidade psiquiátrica, o caso 2 apresenta buli- condutas semelhantes às compras compulsivas ou a esforços físi-
mia nos períodos de abstinência. Para Halmi10, não é incomum cos exagerados).
um transtorno alimentar em dependentes químicos, sendo mais A segunda, quanto à prática terapêutica.
freqüente no alcoolismo. Smukler (1984), citado por Halmi10, No ambiente protegido, esses pacientes não se identificaram
afirma que a bulimia se enquadra bem na adição. Assim, a buli- com os outros pacientes internados por dependência de substân-
mia como comorbidade da dependência de substância psicoativa cia. Por terem vida familiar, social e do trabalho preservadas nos
é também uma forma de conduta adita. Provavelmente, como períodos de abstinência, diferentemente dos casos de dependên-
maneira de substituir o uso da substância, já que a bulimia se cia, nos quais o comportamento visa, basicamente, a obter a subs-
manifestava no período de abstinência. tância com prejuízo da vida familiar, social, escolar e do trabalho,
O comportamento do caso 1 está conforme a definição de esses casos se consideravam comparativamente “não-graves” ou
Vallejo Nagera (1976, p. 327-328)6: “não-problemáticos”.
Pelo que detectamos, o caso 2 compareceu durante dois anos
“La dipsomania es un síndrome complejo en el destacan
à psicoterapia mais para cumprir uma exigência judicial do que
episodios accesionales de ingestión de alcohol en indivi-
por uma proposta de mudança pessoal. Terminado o prazo de
duos que, en realidad, no son alcohólicos o que al menos
tratamento estabelecido pela decisão judicial, automaticamente
lo son de un modo completamente distinto a todos los
deixou a terapia. Além disso, por várias vezes interrompeu por
demás”.
conta própria a medicação prescrita, isto é, não dando continui-
Na definição de dipsomania, “episodios accesionales” seria dade ao acompanhamento psiquiátrico. O caso 3, que ficou seis
sinônimo de impulsividade? O abuso de cocaína, casos 2 e 3, meses em abstinência com alprazolam e carbamazepina, também

14 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):12-15


interrompeu por conta própria o tratamento. O caso 1 também Summary
fez várias tentativas de tratamento psiquiátrico ambulatorial,
porém não seguia à risca as prescrições. A decisão desses pacien- Three cases of psychoactive substance abuse are presented that
tes em buscar ajuda em ambiente protegido pareceu mais uma were assisted in the therapeutic program for dependents of alco-
forma de amenizar as pressões sociofamiliares e de aliviar a culpa. hol and drugs of the Bairral Psychiatric Institute from Itapira, São
Esses pacientes não se mostraram receptivos às orientações Paulo State, Brazil.
para buscar ajuda psicoterápica ou a grupos de auto-ajuda, como The difficulties regarding the theoretical understanding and the
os Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. Parece que, therapeutic approaches are shown and discussed.
assim que a crise causada pelo abuso de substância é superada e
a família volta a demonstrar confiança, o tratamento é abandona- Keywords: Substance Abuse; Alcoholism; Dipsomania; Cocaine
do e, em breve, cessada uma maior vigilância dos familiares, o
abuso tende a reaparecer. Os três casos, conforme informações
obtidas com as famílias, recorreram ao abuso da substância após
Referências bibliográficas
a internação, passado o tempo característico de sobriedade de 1. Zago JA, Santos SAM. Alcoolismo; sobre o programa tera-
cada um. pêutico e as prováveis condições das recorrências.
A postura desses pacientes de se considerarem casos “não- Informação Psiquiátrica 1997; 16:48-52.
graves” é, sem dúvida, um entrave ao processo de tratamento,
2. Ferreira MP, Leite MC, Hochgraf PB, Zilberman ML.
impossibilitando aderência ao programa terapêutico e às propos-
Dependências químicas. In: Cordás TA, Moreno RA. orgs.
tas de continuidade em regime ambulatorial. Essa postura é, pro-
vavelmente, resultante de uma crença errônea em que o núcleo Condutas em psiquiatria. São Paulo: Lemos; 1999:289-318.
cognitivo é de ser capaz de controlar o uso, reforçado pelo aspec- 3. World Health Organization. Classificação de transtornos
to de permanecerem abstêmios por determinados períodos, nos mentais e de comportamento da CID-10. Descrições clínicas
quais têm vida normal. É fato que os transtornos mentais e de e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993.
comportamento requerem cuidados a médio ou a longo prazos, 4. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e esta-
especialmente quando se trata de transtorno relacionado ao uso tístico de transtornos mentais – DSM-IV. 4ª ed. Porto Alegre:
de substância psicoativa, cuja orientação fundamental é a absti- Artes Médicas; 1995.
nência total e o seguimento do tratamento ambulatorial.13 5. Del Porto, J A. Compulsões e impulsos: cleptomania, jogar
Nosso entendimento é que esses casos de abuso de substân- compulsivo, comprar compulsivo, compulsões sexuais, cap. 8.
cia são tão ou mais graves que os de síndrome de dependência, In: Miguel C. ed. Transtornos de espectro obsessivo compul-
porque no abuso está ausente o fenômeno da tolerância, haven- sivo: diagnóstico e tratamento. Rio de Janeiro: Guanabara
do, portanto, maiores riscos de uma overdose, bem como os ris- Koogan; 1996:110.
cos de acidentes e de perdas de realizações concretizadas, como
6. Vallejo Nagera JA. Introducción a la psiquiatria. 8ª ed.
vida familiar, social, ocupacional e lazer.
Barcelona: Científico-Médica, 1976:327-329.
7. Silveira DX, Jorge MR. Co-morbidade psiquiátrica em depen-
Conclusão dentes de substâncias psicoativas: resultados preliminares.
No trabalho terapêutico em ambiente protegido, os casos Revista Brasileira de Psiquiatria 1999; 21:145-151.
apresentados de abuso de substância psicoativa, sem evolução 8. Ribeiro MS. Alcoolismo, personalidade e transtornos de per-
para a dependência, são raros em nossa casuística. sonalidade: possibilidades diagnósticas e tipológicas.
Dada a escassa informação da literatura especializada sobre o Medicina 1999; 32 (supl. 1):17-25.
tema, torna-se difícil encontrar explicações convincentes para o 9. Simon R. Prevenção da drogadição aguda. Jornal Brasileiro
fenômeno. A sugestão é buscar essas explicações não apenas com de Psiquiatria 1987; 36: 105-107.
relação à substância, mas num universo de referência mais 10. Halmi KA. Transtornos da alimentação. In: Talbott J, Halles
abrangente, englobando transtornos da alimentação e transtornos R, Yudofsky S. Tratado de psiquiatria. Porto Alegre: Artes
dos impulsos. Médicas, 1992:559-568.
O fato de esses pacientes terem vida normal nos períodos de
11. Kerbikov O, Korkina M, Nadjarov R, Snejnevski A.
abstinência e o fato de considerarem que o abuso não é tão grave
Psychiatrie. Paris: Éditions Mir, 1976:150.
quanto a dependência de substância, a partir de uma percepção
12. Pedinielli J-L, Rouan G, Bertagne P. Psychopathologie des
defensiva no ambiente protegido da comunidade terapêutica,
prejudicam a aderência e ao tratamento. addictions. Paris: PUF, 1997.
Além dos riscos de acidentes e dos riscos de perdas (pessoais, 13. Zago JÁ. Reintegração social do dependente de drogas pós-
familiares, profissionais) durante o abuso de substância, o risco tratamento em ambiente protegido. In: Guilhardi HJ, Madi
de overdose e suas complicações médicas é, provavelmente, MBBP, Queiroz PP, Scoz MC. orgs. Sobre comportamento e
maior que na síndrome de dependência, pois, no abuso, está cognição; expondo a variabilidade, vol. 7. Santo André:
ausente o fenômeno da tolerância. ESETec Editores Associados; 2001:326-339.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):12-15 15


UM CASO DE DEPENDÊNCIA ALCOÓLICA E SUAS POSSÍVEIS RELAÇÕES
COM O TRABALHO: UM ESTUDO DE PSICOPATOLOGIA DO TRABALHO
A CASE OF ALCOHOL DEPENDENCE AND ITS POSSIBLE RELATIONSHIP WITH WORK: A
STUDY OF PSYCHOPATHOLOGY AT WORK

Lílian Erichsen Nassif* escolhemos o caso de Carlos (nome fictício), vigilante noturno
lotado no Departamento de Serviços Gerais (DSG)/UFMG,
Resumo encaminhado ao SAST pelo seu chefe, em 1996, devido ao uso de
bebidas alcoólicas durante o trabalho.
A história clínica do vigilante noturno portador de um qua-
dro de dependência alcoólica é parte de uma pesquisa de cunho Dados Biográficos e a Dependência do Álcool
exploratório, cujo objetivo foi avaliar os fatores presentes na
situação de trabalho que poderiam estar associados aos quadros Carlos nasceu em 1954, sendo o segundo de quatro filhos.
de dependência de álcool dos servidores técnicos e administrati- Seus pais sempre moraram em zona rural, onde o pai trabalhava
vos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foram como lavrador. Carlos trabalhou com a família até pouco depois
realizadas entrevistas em profundidade e observações das situa- de seus 18 anos de idade, quando saiu da sua terra natal, em
ções de trabalho a partir dos pressupostos da Psicopatologia do busca de melhores condições de trabalho e de estudos. Por ter
Trabalho formulados pelo psiquiatra Louis Le Guillant, da vivido em zona rural, não teve muitas possibilidades de estudar e
Ergonomia e da Psiquiatria. Tendo em vista as condições de tra- somente ao sair da cidade natal é que iniciou o supletivo. Porém,
balho encontradas na UFMG, aliadas às características da ativida- não conseguiu concluir o ensino médio.
de desenvolvidas pelo sujeito da pesquisa e à sua história de vida, Carlos afirma ter sido muito tímido e inibido, relacionando
foi possível levantar algumas hipóteses sobre como a organização essas características à criação muito severa que teve. Segundo ele,
e as condições de trabalho na UFMG contribuem para a incidên- seu temperamento dificultava o relacionamento com as pessoas,
cia e a prevalência dos quadros de dependência química entre os principalmente na adolescência e no início da idade adulta. Por
servidores. outro lado, percebeu-se, na história de Carlos, a influência de
fatores familiares na formação de sua personalidade, particular-
Palavras-chave: História; Psicopatologia; Saúde Ocupacional; mente o alcoolismo do pai. Na localidade onde passou a infância
Dependência Alcoólica; Trabalho. e parte da adolescência, a restrição das opções de lazer, a influên-
cia dos amigos, incluindo comemorações e outras situações
Introdução sociais, tanto no âmbito do trabalho, quanto em outros contextos,
são razões identificadas por ele como propiciadoras de condições
O caso clínico aqui apresentado é parte de uma pesquisa favoráveis à ingestão de substância alcoólica.
qualitativa, de caráter exploratório (não havendo, portanto, ela- Carlos revela nunca ter tido pretensões de contrair matrimô-
boração de hipóteses a serem testadas, na medida em que, nesse nio, pois um casamento poderia “tirar-lhe a liberdade”. Contudo,
tipo de pesquisa, a intenção é buscar maiores informações sobre sua namorada engravidou e ele, aos 31 anos de idade, viu-se obri-
determinado tema), desenvolvida para fins do trabalho de mes- gado a casar, o que não era seu desejo. Continuou tendo os mes-
trado. Foram estudados cinco casos de servidores técnicos e mos costumes de quando era solteiro, o que gerava conflitos
administrativos da Universidade Federal de Minas Gerais conjugais.
(UFMG), portadores do diagnóstico de Dependência Alcoólica Quanto aos sintomas da dependência, a maior tolerância aos
(conforme CID-101 e DSM-IV2), identificados por meio dos efeitos da substância alcoólica era claramente percebida por
arquivos médico-periciais do SAST / UFMG (Serviço de Atenção Carlos pelo aumento da quantidade ingerida. A compulsão era
à Saúde do Servidor).a Concomitantemente às entrevistas clínicas identificada por meio da intenção de parar ou de diminuir o con-
com os sujeitos da amostra, formam realizadas observações in sumo de bebidas sem conseguir levar a cabo esse intento. Carlos
loco das situações concretas de trabalho. E, para se compreender também aprendeu que a ingestão de substância alcoólica aliviava
a relação com o trabalho, foi feita a escolha pela história de vida os sintomas da síndrome de abstinência. Foi possível perceber a
como estratégia de captação de informações, enfoque dado pelo diminuição dos seus interesses vitais e a restrição de suas ativida-
psiquiatra Le Guillant.3 des de lazer, familiares, etc., às situações em que havia a presença
Coerentemente, decidimos apresentar os dados obtidos por de etílicos. Ocorreram conseqüências de ordem financeira, fami-
meio de casos clínicos. Para fins de ilustração do presente artigo, liar, social e de saúde que, embora sendo claramente percebidas

* Psicóloga, Mestra em Psicologia Social pela Faculdade de Endereço para correspondência:


Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, Professora da Faculdade Rua Professor Moraes, 714 / sl. 706
Pitágoras e psicóloga clínica cognitivista. Savassi / BH-MG
E-mail: nassif40@hotmail.com Telefone (31) 3282-3634

a Os sujeitos foram informados sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido exigido pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

16 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):16-21


pelo vigilante, não podiam ser evitadas em função da forte depen- um emprego público que lhe garante a estabilidade. Além disso,
dência alcoólica. segundo ele, a impossibilidade de efetivamente fazer uma escolha
Por ocasião da pesquisa, já com 46 anos de idade, pôde-se pela profissão com a qual se identificava deveu-se à necessidade
identificar, no exame do paciente, sinais e sintomas que permiti- de se casar após a gravidez da parceira. De qualquer forma, essa
ram realizar o diagnóstico de dependência de substância, confor- gravidez inesperada gerou uma mudança que lhe trouxe senti-
me a CID-10 e o DSM-IV. A aplicação do questionário SADDb,4 mento de restrição da liberdade. Liberdade essa que parecia bus-
apresentou escore de 40 pontos, o que revela alto nível de depen- car na imagem que fazia da atividade de caminhoneiro.
dência alcoólica. Foi internado em “clinica de recuperação”, No relato das experiências laborais anteriores ao ingresso na
onde permaneceu durante nove meses. Atualmente está em abs- UFMG, em 1984, já é possível perceber a presença da bebida
tinência alcoólica que já dura aproximadamente três anos. alcoólica. Mas, em Belo Horizonte, seu consumo de álcool
aumentou. Carlos relata que, nessa época, a vida de solteiro e as
novidades encontradas na cidade grande fizeram com que ele
A História ocupacional e o Consumo de Bebidas Alcoólicas
passasse os dias “na gandaia, bebendo” e, depois, à noite, ia tra-
Como ficou dito, Carlos iniciou suas atividades de trabalho balhar. Portanto, dormia muito pouco e, para manter-se acorda-
auxiliando o pai na lavoura, na zona rural, até ir para a cidade de do, fumava muito, tomava café e coca-cola.
Ipatinga. Lá, trabalhou em empresas terceirizadas que prestavam Nos períodos em que trabalhou como vigilante noturno na
serviços para a Usiminas, fazendo fundações para cearia e alto- UFMG, Carlos também exerceu a atividade de taxista no turno
forno. Numa dessas empresas, aprendeu a operar máquina e foi diurno, para complementar sua renda. Apesar de admitir ser can-
classificado como Operador de Máquina. Logo após, foi contra- sativa a dupla jornada de trabalho, especialmente exercendo duas
tado na Acesita, por oito meses, onde trabalhou com descarga de funções que demandam habilidades bastante diferentes, ele conta
matéria química (carvão, minério, etc.). Pediu demissão, depois o quanto gosta da atividade de taxista e sente “faltar alguma
desse período, por ser um trabalho insalubre e por entender que, coisa” quando não a está exercendo. Afirmou ainda que, para
naquela empresa, seria muito difícil mudar de atividade. Ainda manter-se acordado, algumas vezes, tinha que tomar bebida
em Ipatinga, trabalhou em uma Cooperativa de gêneros alimentí- alcoólica em pontos onde podia parar o táxi.
cios, na atividade de venda. Em seguida, passou a trabalhar “em Na UFMG, sua atividade como vigilante consiste em “exer-
trecho”c e, logo, também em serviços temporários em diversas cer vigilância nas entidades, rondando suas dependências e
cidades. Segundo Carlos, durante todo o tempo que passou na observando a entrada e saída de pessoas ou bens, para evitar rou-
região de Ipatinga, seu consumo de bebida restringia-se aos finais bos, atos de violência e outras infrações à ordem e à segurança”
de semana, vindo a se acentuar somente depois que se mudou (cf. o PUCRECEd,5). Para desenvolver a função, é exigida a esco-
para Belo Horizonte. laridade mínima de ensino fundamental completo, conhecimento
específico e/ou experiência de 12 meses. Contudo, no cotidiano
Essa mudança para BH ocorreu quando passou pela cidade,
do trabalho, a realidade das suas tarefas parece exigir amplitude
devido a um trabalho que deveria fazer; ao encontrar-se com
maior de competências. Ao nível físico, por exemplo, sabe-se que
alguns parentes, foi convencido a trabalhar como vigilante em
não deve haver prejuízo acentuado dos órgãos da visão e da audi-
empresas de prestação de serviço. Aceitou a proposta devido ao
ção. Da mesma forma, perturbações do sono podem repercutir
fato de ter gostado de BH e de ter se entusiasmado com a pro-
negativamente, gerando acentuação da fadiga e, conseqüente-
messa dos parentes de que como vigilante teria boas ofertas de
mente, diminuição da resistência física para suportar a jornada de
emprego. Entretanto, a atividade de vigilância não é reconhecida
12 horas de trabalho, além dos impactos do trabalho noturno
por Carlos como uma escolha profissional propriamente dita; tra-
sobre o ciclo sono/vigília (ritmo biológico)e do trabalhador. As
tou-se mais da oportunidade de evitar trabalhos que exigissem
exigências emocionais são sentidas, principalmente, na aborda-
longos períodos de afastamento familiar e social, além de oferecer gem a algum suspeito e na tensão causada pela consciência de
a possibilidade sedutora de trabalho garantido e salário satisfató- que, a qualquer momento, pode ocorrer um problema, requeren-
rio, permanecendo na cidade, onde tinha vínculos afetivos e do controle sobre os impulsos e causando o estresse derivado do
melhor qualidade de vida. medo que a tarefa proporciona. Carlos exemplifica a exigência
Viu-se também que as atividades exercidas por ele não foram emocional para abordar uma pessoa e deixa clara a diferença
condizentes com sua aspiração de ser caminhoneiro (atividade entre suas atitudes frente a tais situações quando ainda bebia:
que exerceu de forma secundária quando trabalhou fazendo
obras em estradas). Sua vida laboral tem sido mais fruto do acaso, “Antes, quando eu bebia, eu já chegava dando cacete. Se o cara
como ele mesmo afirma, e, de 1984 em diante, do comodismo de engrossasse, eu não queria saber de papo, tava metendo algema

b Este questionário é recomendado para avaliar a severidade da Síndrome de Dependência Alcoólica e só deve ser utilizado em casos de alcoolismo já identificados. Foi
desenvolvido na Inglaterra, em 1983, por Raistrick e Davidson e consiste em 15 questões com quatro alternativas de resposta: nunca, poucas vezes, muitas vezes e sem-
pre. Conforme a somatória de pontos alcançada, o sujeito é classificado da seguinte forma: 1 a 9 pontos, baixa dependência; 10 a 19 pontos, média dependência; 20 a 45
pontos, alta dependência.
c “Trabalhar em trecho” é o mesmo que trabalhar em obras nas estradas.
d Plano Único de Classificação e Redistribuição de Cargos e Empregos, Ministério do Trabalho, 1990.5
e Tem sido bastante estudada a influência do turno noturno fixo nos distúrbios psíquicos, na medida em que a maioria das pessoas tem suas funções orientadas para ati-
vidades diurnas, sendo a noite o horário de descanso. Também existem estudos que relacionam períodos prolongados de privação do sono com uma desorganização psíqui-
ca. A relação entre alcoolismo e o trabalho em turno noturno também já foi estabelecida, especialmente porque os trabalhadores recorrem ao álcool para se manter acorda-
dos no trabalho ou para conseguir relaxar e dormir durante o dia.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):16-21 17


Um caso de dependência alcoólica e suas possíveis relações com o trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho

no cara e já partindo para a violência. Hoje não. Hoje, se tiver prova de bala, etc.), as responsabilidades e o risco à própria vida
que resolver qualquer tipo de ocorrência, é na base do diálogo geram situações de estresse, aumentando-lhe a tensão e o medo.
mesmo.” Além das responsabilidades descritas, a abordagem a suspei-
tos é outro risco a que está submetido o vigilante na UFMG.
Além disso, o vigilante utiliza sua capacidade de aten- Devido às suas características (amplitude, pouca iluminação,
ção/concentração, de planejamento (definição das estratégias de existência de matas, trilhas e animais perigosos, tais como cobras
abordagem), de antecipação de problemas, de memória visual e
e escorpiões), o Campus Pampulha passa a ser um local privile-
conhecimentos escolares, muitas vezes recorrendo a várias delas
giado para ser usado como esconderijo de fugitivos da polícia,
ao mesmo tempo. As dificuldades de Carlos na realização dessas
usuários e traficantes de drogas. Sobre isso, segue-se um depoi-
tarefas e o papel facilitador que o álcool exercia nessas situações
mento de Carlos:
ficam patentes no seguinte depoimento:
“As condições de trabalho na UFMG são deficientes. Você acha
“A nossa ocorrência tem que ser bem-feita e o meu português é
que eu vou correr atrás? De jeito nenhum, porque não tem con-
péssimo. Mas quando eu bebia, eu tinha mais facilidade.
Incrível! Não sei por quê, às vezes, um assunto que eu não sabia dição de entrar no meio do mato desarmado. Vai é tomar tiro
expressar, se eu tivesse tonto, ah, rapidinho eu soltava uma ocor- pela cara. E na época que eu bebia eu ia tranqüilo, entrava nessa
rência lá de todo tamanho, explicando tudo o que aconteceu lá.” mata aí de noite. A bebida dava coragem. Hoje, sem bebida não
tenho essa coragem, de jeito nenhum. Tem muitos riscos.”
A execução das tarefas reais do vigilante, algumas vezes, é
dificultada pelas condições de trabalhof,6, na medida em que exis- A autonomia é, às vezes, imprescindível ao vigilante, na
tem somente duas viaturas novas que são utilizadas no trabalho. medida em que sua atividade apresenta variações dos modos ope-
As demais têm vários anos de uso e, mesmo as novas, têm direção ratóriosg,7, comportando um leque de situações que requerem
pesada, que dificulta a tarefa, na medida em que o vigilante é rápida adaptação do trabalhador. Uma dessas variações diz res-
obrigado a realizar várias manobras para fazer a ronda entre os peito à jornada noturna de 12 horas, que pode repercutir na resis-
prédios e nas trilhas das matas, conduzindo os veículos em cami- tência física e emocional, na medida em que esse período de tra-
nhos de terra, por sobre a grama ou subindo no meio-fio para ter balho acarreta variações no ritmo sono/vigília. Mas, de 1991 a
acesso às trilhas. Isso lhe causa dores nos braços e acentua a fadi- 1996, seu turno de trabalho foi alterado, passando a ser diurno.
ga. As condições físicas dos locais em que o vigilante conduz as Ele afirma que, durante o dia, ao contrário do que supunham
viaturas, com freqüência, são ruins e/ou não são compatíveis com seus superiores, passou a beber mais, pois bebia durante o expe-
as características dessas viaturas, implicando maiores exigências diente e também à noite, por não conseguir dormir, tão acostuma-
das capacidades do vigilante. do já estava com o trabalho noturno. É importante observarmos
O cargo de vigilante também comporta relacionamento com que, só na UFMG, ele trabalhou durante sete anos ininterruptos
o público que, no caso da UFMG, é constituído por docentes, no turno da noite, seguidos de cinco anos durante o dia e, nova-
discentes e o pessoal técnico e administrativo, mas que, por ser mente, retornando para a noite, turno em que permanece há
um espaço aberto ao cidadão, recebe pessoas dos mais variados seis anos.
tipos. Essas relações entre o vigilante e os usuários podem com-
prometer a qualidade do trabalho e serem geradoras de estresse. “A gente acostuma com o horário noturno e quando está de
Para compreender isso, é preciso analisarmos tais relações à luz folga não consegue dormir. Ás vezes, quando trabalho aqui à
das responsabilidades do vigilante, da sua autonomia e da sua noite, fico mais de 24 horas sem dormir e também não costumo
capacidade de decisão. dormir mais que seis horas. Parece que quanto mais cansado e
O vigilante tem a responsabilidade “pelo serviço executado, sono a gente tem, mais difícil fica de dormir. Aí, quando eu ia
pelo material de consumo, equipamentos e material permanente beber, só chegava em casa de madrugada. Hoje, quando não fico
a sua disposição” (cf. PUCRECE5). Ou seja, é responsável pela a noite toda na televisão eu arranjo outra coisa até vir o sono.”
realização da ronda no local a ele designado, em seu turno, pela
viatura que conduz e pela maneira como exerce essas tarefas. O ritmo de trabalho também sofre variações impostas pela
Entretanto, verificamos que suas responsabilidades vão além do demanda maior ou menor de solicitações de serviços, evidencian-
que é prescrito, na medida em que lida com a segurança de pes- do o caráter de imprevisibilidade da atividade, a qual implica,
soas, inclusive a dele próprio, e do patrimônio da Instituição. naturalmente, períodos de espera. Isso demonstra que a natureza
Compreende-se que algumas características das condições de da tarefa de vigilante é aguardar o inesperado para poder agir.
trabalho, como segurança e proteção individual (armas, colete a Contudo, essa característica da atividade gera também longos

f Condições de trabalho são “... as pressões físicas, mecânicas, químicas e biológicas do posto de trabalho” (Dejours, Abdoucheli, Jayet).6 Outro importante conceito é o de
organização do trabalho: “... a divisão do trabalho: divisão de tarefas entre os operadores, repartição; cadência e, enfim o modo operatório prescrito; e por outro lado a divi-
são de homens: repartição das responsabilidades, hierarquia, comando, controle, etc.”6 Ela caracteriza-se por ser o meio pelo qual se exerce o controle sobre a atividade de
trabalho, a partir de uma configuração determinada do seu processo, considerando-se os instrumentos de trabalho, o objeto trabalhado e a atividade humana. Contudo, os
dois termos são complementares, estando o primeiro relacionado mais diretamente com o funcionamento psíquico e o segundo, com o corpo.
g Modos operatórios são os comportamentos observáveis do trabalhador em seu posto de trabalho, sua postura, gestos, comunicações gestuais ou verbais, além de ser “o
resultado de um compromisso entre os objetivos produtivos, os meios de trabalho, os resultados produzidos ou as informações disponíveis sobre estes resultados e o estado
interno dos operadores” (Telles7).

18 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):16-21


períodos de ociosidade que são, muitas vezes, preenchidos com a de e desenvolvimento de pessoal, na medida em que nem mesmo
ingestão de bebida alcoólica, sozinho ou em grupo. o servidor tinha acesso à sua avaliação. Os programas de treina-
Quanto à relação com a chefia imediata, podem-se observar mento não atingem a todos os trabalhadores e não contemplam as
conflitos baseados em um tipo de gerenciamento sem planeja- necessidades de cada setor ou atividade. Isso faz com que o tra-
mento e na ausência de critérios objetivos para se definir a divi- balhador tenha que aprender com a sua própria experiência ou
são de tarefas entre os trabalhadores, gerando privilégios para com a observação dos colegas. Além disso, não há uma seleção de
quem aceita os critérios subjetivos e, algumas vezes, ilícitos ado- pessoal, pautada no perfil, habilidades e capacidades do candida-
tados pela hierarquia. Carlos viu, nessas situações, uma ocasião to ao posto de trabalho, que reflita, inclusive, sobre a inter-rela-
para o uso do álcool, permitindo-lhe enfrentar as imposições hie- ção entre os fatores de história de vida, de trabalho, de persona-
rárquicas. O bar podia, também, servir como espaço de fuga e de lidade, de propensão ao uso de substâncias químicas e as caracte-
desabafo das frustrações: “A gente brigava, discutia, com o chefe. rísticas básicas do ambiente de trabalho dentro da instituição.
Aí, invocava e ia para o boteco.” Os mesmos critérios subjetivos
adotados pelos superiores também foram mencionados por ele Discussão
como geradores de frustração e de sentimento de desvalorização,
uma vez que os que tinham algum problema, como, por exemplo, Considerando a complexidade do tema “alcoolismo”, o qual
alcoolismo, eram descartados ou colocados em tarefas de menor apresenta poucos pontos realmente definidos desde o que se refe-
importância. Isso diminuía sua auto-estima e o induzia a buscar re ao diagnóstico até o tratamento, apesar dos vários estudos de
alívio no álcool, gerando um círculo vicioso. diferentes áreas do conhecimento, serão apresentadas aqui algu-
mas hipóteses a partir dos casos estudados na pesquisa, tomando
Ao contrário das relações hierárquicas, as relações entre os
o exemplo do vigilante Carlos.
colegas de trabalho eram mais amistosas, havendo ajuda mútua
Carlos afirma ter iniciado o uso do álcool na adolescência,
na realização das tarefas e companheirismo, inclusive para o uso
como recurso para combater a timidez, a vergonha e facilitar os
do álcool.
contatos sociais. O fato de esse hábito ter sido desencadeado na
A ausência de regras relativas ao uso de bebidas no local de
adolescência parece ser agravante uma vez que, nessa fase, o indi-
trabalho foi interpretada por Carlos como uma permissão à com-
víduo ainda é bastante vulnerável às influências do meio. Além
pra, ao armazenamento e ao uso de alcoólicos durante o expe-
disso, anteriormente a esse período do seu desenvolvimento,
diente. Essa característica da UFMG é identificada por ele como
Carlos convivia com o pai alcoolista, o que sugere um processo de
um fator que influenciou o aumento do consumo de etílicos:
identificação com o mesmo. Por meio das entrevistas clínicas,
“Quando entrei, trabalhava certinho porque não achava que era pôde-se perceber que características de personalidade de Carlos
assim. Então tive uma expectativa boa. Aí fui percebendo que assemelham-se ao que Alonso-Fernández8 descreveu sobre a per-
não tinha controle, ninguém ligava, os próprios chefes, a gente sonalidade do alcoolista (“alcoholómano”) que se caracteriza por
chegava na sala deles e eles tavam bebendo golo. Eles chegavam uma dependência psíquica que “toma a forma vivencial de um
tontos. Todo mundo tomava na hora de serviço. Ninguém impulso da personalidade à embriaguez”.8 Para ele, o agente fun-
damental desse quadro é a constelação básica de personalidade
cobrava e, se cobrava: ‘você tem lá no seu escritório, como é que
pré-mórbida descrita como:
você vai cobrar de mim?’ Depois, eu andava só com uma bolsa
com um litro de pinga dentro. Ninguém falava nada. Nos armá- “(...) uma construção própria dos sujeitos que têm uma capaci-
rios tinha de tudo. Os próprios chefes vendiam bebida dade para o contato interpessoal insuficientemente desenvolvi-
pra gente”. do e uma intolerância grande frente às frustrações, reagindo a
elas, sobretudo ficando presos ao obstáculo ou produzindo um
Fatores referentes à política de Recursos Humanos da
sentimento de culpa”.h,8
UFMG, aliados com as especificidades da atividade funcional de
vigilante, criam um ambiente favorecedor para a manutenção do Assim, o início do alcoolismo (“alcoholomania”) pode se dar
uso abusivo de etílicos. Os programas de progressão ou planos de antes mesmo de o indivíduo se afastar da família de origem, a par-
carreira, por exemplo, são inexistentes. O baixo salário fez com tir de frustrações profissionais ou conflitos interpessoais. Para o
que Carlos procurasse por atividades extras para complementar a autor, esses são acontecimentos que, com freqüência, geram des-
renda mensal e, conseqüentemente, aumentar sua jornada de tra- compensações psicológicas nas pessoas que apresentam persona-
balho, submetendo-se a riscos por um período mais longo e com- lidades imaturas, pouco preparadas para a comunicação interpes-
prometendo sua qualidade de sono e alimentação. A função de soal e para a luta contra as dificuldades da vida que exigem tena-
supervisão, que poderia ser um recurso para a complementação cidade ou renúncia.8
salarial, não é remunerada oficialmente, havendo recompensas de O autor explica, ainda, que a capacidade para as relações
outra ordem, como “folgas”. Os mecanismos de Gestão de interpessoais e o modo de reagir às frustrações são características
Desempenho eram mal-conduzidos na época em que existiram, humanas estabelecidas, principalmente, no âmbito familiar. As
não refletindo a realidade em termos de qualidade, produtivida- influências afetivas de caráter nocivo, exercidas pelos pais ou os

h Tradução do texto original: “La constelación definidora de la personalidad preslcoholómana es una construcción propia de los sujetos que tienen una capacidad para el
contacto interhumano insuficientemente desarollada y una intolerancia grande hacia las frustraciones, reaccionando ante ellas, sobre todo en las formas de quedar adheri-
dos al obstáculo o producir un sentimiento de culpa”.8

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):16-21 19


Um caso de dependência alcoólica e suas possíveis relações com o trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho

substitutos deles, participam ativamente na construção da perso- dormir nos dias em que não estava trabalhando, sendo mais um
nalidade básica dos alcoolistas. As famílias nas quais um dos pais motivo para recorrer à bebida. Durante os cinco anos em que
é dependente de álcool podem influenciar o desenvolvimento do esteve trabalhando no turno diurno, a ingestão da substância foi
alcoolismo nos filhos de duas formas: a) impedindo o desenvolvi- intensificada, devido à dificuldade de enfrentar as alterações do
mento de hábitos comunicativos e a tolerância às frustrações; b) ritmo biológico impostas pela mudança brusca de horário de tra-
pela vinculação dos filhos com o adulto alcoolista por laços de balho. Acrescenta-se a isso a dupla jornada de trabalho enfrenta-
identificação estruturante. Isso parece corroborar os dados da por Carlos na atividade de taxista, para complementar o baixo
encontrados. salário recebido na UFMG.
Apesar de Carlos ter iniciado o consumo de álcool na adoles- Os períodos de ociosidade durante a jornada de trabalho e os
cência, esse hábito foi intensificado mais tarde na sua vida, ou períodos de greve são relevantes para se entender o uso de álcool,
seja, após sua mudança de Ipatinga para Belo Horizonte. Viu-se na medida em que os vigilantes, nessas ocasiões, passavam o
que, nessa época, ele começou a exercer a atividade de vigilante, tempo bebendo, enquanto jogavam e cozinhavam. Além da
abdicando do seu ideal de ser caminhoneiro. Mais tarde, foi cons- ausência do trabalho, é possível observar, nessas circunstâncias, a
tatada a frustração gerada por essa escolha, quando a gravidez forte influência dos colegas de trabalho. Isso é importante de ser
precoce da parceira o fez acreditar que seu retorno a essa ativida- considerado, na medida em que Ames e Rebhun (1996)12 já se
de ficaria ainda mais difícil porque afastava-o da família que referiram à cultura organizacional como fator importante nos
começava a se formar. Ele mesmo afirmou o quanto essas eram estudos sobre alcoolismo, devendo-se levar em conta o tempo
situações que o induziam a procurar a bebida. vivido com os companheiros de trabalho, durante o expediente
Além das suas características de personalidade e das frustra- ou fora dele, quando eles bebem juntos no almoço, depois do tra-
ções sofridas ao longo da vida, também as atividades realizadas balho ou em situações sociais.
antes do ingresso na UFMG apresentaram fatores que serviram Algumas características da atividade desenvolvida por Carlos
de ressonância e anteparo aos hábitos que já trazia consigo. são geradoras de emoções como raiva, frustração, medo, tristeza,
Citam-se aqui as influências dos colegas de trabalho, a maior ou ansiedade, vergonha, etc., que, em maior ou menor grau, podem
menor permissividade ao uso de álcool (controle externo) e algu- funcionar como sinalizadores para a ingestão de bebidas, uma vez
mas características da organização do trabalho. Isso nos remete aprendido que o álcool alivia a sensação de desprazer gerada por
ao estudo realizado com coletores de lixo, no qual Santos9 consi- elas (Marlatt & Gordon13). Na impossibilidade de criar outras
derou a influência da “pressão social para beber” existente entre estratégias de enfrentamento das situações difíceis do trabalho, às
os trabalhadores, afirmando que a bebida pode facilitar os conta- vezes, em função mesmo das suas características de personalida-
tos interpessoais ou mesmo atuar como forma de reconhecimen- de, o trabalhador se apropria da bebida como instrumento de
to e de introdução desses indivíduos no círculo social. Também combate e diminuição do estresse e da ansiedade vividos no coti-
Sonenreich,10 citando Sielicka, apontou para a importante diano dessa atividade.
influência dos “camaradas de trabalho” no uso excessivo de Carlos nunca gostou da atividade de vigilante, a qual esco-
álcool na Polônia. E Edwards11 demonstra que o aumento da dis- lheu para evitar algumas outras condições de trabalho. Ser vigi-
ponibilidade de substâncias alcoólicas parece encorajar o seu lante não lhe traz satisfações ou representa um dos fatores que lhe
consumo. dariam sentido à vida (Frankl14). Na verdade, essa atividade e o
Quanto às especificidades do trabalho na UFMG, pode-se seu significado social, trazem-lhe sentimentos de vergonha e de
identificar a procura pelo álcool em decorrência dos riscos ofere- desqualificação, diminuindo sua auto-estima. No entanto, estes
cidos pelas atividades; da inadequada divisão de tarefas entre os sentimentos vêm de sua história pessoal e de vivências que ante-
trabalhadores; do relacionamento com superiores hierárquicos; cederam até mesmo suas experiências profissionais (relaciona-
do caráter punitivo de algumas normas a que estão submetidos os mento familiar, rigidez na educação, dificuldades materiais, etc.).
trabalhadores; das condições de trabalho muitas vezes precárias Assim, os aspectos que giram em torno de sua atividade profissio-
ou inadequadas às exigências do cargo, no que tange a equipa- nal (o desprezo dos usuários, as arbitrariedades da chefia, a dis-
mentos e características físicas do posto de trabalho; da ausência criminação que ele sofre pelos usuários do Campus, etc.) servem
de regras que definam critérios objetivos para a embriaguez; etc. para reativar esse sentimento, para o qual ele aprendeu a dar alí-
As políticas de Recursos Humanos da instituição, na medida em vio, principalmente, por meio do álcool.
que não oferecem um plano de carreira, salário atraente, progra- Constata-se, ainda, que as normas de controle sobre a produ-
mas de desenvolvimento, incentivos à produtividade, etc., tam- tividade e a qualidade do trabalho, sobre a assiduidade e condu-
bém parecem reforçar a continuidade do hábito de ingestão de tas dos servidores são relativamente complacentes na UFMG. Ao
bebidas alcoólicas, ao manterem a falta de perspectiva de melho- contrário do que poderia parecer, para Carlos, essas característi-
ria da qualidade de vida, a auto-estima baixa e as frustrações já cas parecem representar mais um risco para o uso da substância,
adquiridas ao longo da vida. Ou seja, em vez de propiciarem con- uma vez que mantêm frustrações já existentes, não promovem
dições mais positivas, as estratégias de Recursos Humanos repre- estímulos para o desenvolvimento profissional e, ao mesmo
sentaram uma continuidade às experiências de vida de Carlos. tempo, possibilitam acomodação reforçada pela estabilidade do
Um ponto bastante importante, neste caso, é a influência do emprego público. Esses fatos corroboram os resultados da pes-
horário noturno de trabalho no consumo de bebidas alcoólicas. quisa que resultou na tese de doutorado de Sonenreich9, em que
Viu-se como a alteração do ciclo sono/vigília, provocado por os servidores públicos foram apontados com um contingente
vários anos de trabalho noturno, acarretava-lhe dificuldades para acima de normal de alcoolistas.

20 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):16-21


Frente ao exposto, sugere-se que o conjunto das característi- Referências Bibliográficas
cas da UFMG pode ter, no caso de Carlos, reforçado o uso do
álcool e, conseqüentemente, mantido o quadro de dependência 1. Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos
de substância, na medida em que significou uma continuidade da mentais e de comportamento da CID-10: Descrições clínicas
e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas,
sua história de vida e de trabalho, refletindo suas frustrações
1993:351.
advindas de toda uma trajetória de vida. Ou seja, vemos aqui o
2. Associação americana de Psiquiatria. DSM (Manual
estabelecimento de uma relação de complementaridade, e não de
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). 4.ed.
causalidade. Assim, levantamos a hipótese de que se ele pudesse
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995:830.
ter tido oportunidades diferentes de trabalho, que lhe trouxessem
3. LeGuillant L. Quelle psyquiatrie pour notre sociéte? Paris:
experiências mais positivas, maior satisfação na realização de uma
Érès, 1984:257.
atividade, maior reconhecimento, sob condições de trabalho ade-
4. Formigoni MLOS, Castel S. Escalas utilizadas na avaliação de
quadas e numa organização que oferecesse o necessário para a
dependências – aspectos gerais. In: Gorestein C, Andrade
execução das tarefas, talvez tivesse desenvolvimento diferente em LHSG, Zuardi AW. eds. Escalas de Avaliação Clínica em
relação ao quadro de dependência alcoólica. Psiquiatria e Psicofarmacologia. São Paulo: Lemos; 2000:
Contudo, a autora deste trabalho alerta para a necessidade de 267-286.
se realizarem outras pesquisas sobre o tema, com número maior 5. Ministério do Trabalho. RJU / Lei número 8112 de 11 de
de sujeitos, comparando instituições que possuam características dezembro de 1990. Diário Oficial da União,
organizacionais diversas e grupos de controle com trabalhadores Brasília, dezembro de 1990. Disponível em
que não apresentem os quadros de Dependência ou Abuso http://www.seap.gov.br/Legis/RJU/index.
do álcool. 6. Dejours C, Abdouchelli E, Hayet C. Psicodinâmica do traba-
lho. São Paulo: Atlas, 1994:125.
Summary 7. Telles A. Ergonomia: conceitos e metodologias. In: Telles. A
ergonomia na concepção e implantação de sistemas digitais de
The clinical history of a night shift vigilant who presents alcohol controle distribuído. Rio de Janeiro: COPPE, 1995:25.
dependence is part of an exploratory study whose objective was 8. Alonso-Fernández F. Fundamentos de la psiquiatria actual.
to research for existing factors in the working situations that 4.ed. Madrid: Editorial Paz Montalvo, 1979:465-466.
could be related to the alcoholic dependence in administrative 9. Santos TLF. Coletores de lixo: a ambigüidade do trabalho na
technicians at the Universidade Federal de Minas Gerais rua. Fundacentro, 1999:222.
(UFMG). Extensive interviews and observations of the working 10. Sonenreich C. Contribuição para o estudo da etiologia do
situations were carried out based on the Le Guillant’s alcoolismo (Tese de Doutorado). São Paulo: Universidade de
Psychopathology of Work, Ergonomic and Psychiatry. São Paulo, 1971:167.
Considering the original working conditions found at UFMG 11. Edwards G. A política do álcool e o bem comum. Porto
associated with the characteristics of activities performed by the Alegre: Artes Médicas, 1998:241.
subjects of this research and with their life history it was possible 12. Ames MG, Lebhun LA. Women, alcohol and work: interac-
to raise some hypotheses about the contribution of the conditions tions of gender, ethnicity and occupational culture. Soc. Sci.
and work organization at UFMG to the alcohol dependence Med. 1996; 43 (11):1649-1663.
and/or abuse of the workers. There is no intention to present 13. Marlat GA, Gordon J R. Prevenção de recaída: estratégias de
conclusive data that allow generalizations. manutenção no tratamento de comportamentos adictivos.
Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1993:501.
Key-words: History; Psychopathology; Occupational Health; 14. Frankl VE. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de
Alcohol Dependence; Work. concentração. 10.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999:135.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):16-21 21


UM CASO CLÍNICO DE ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES COM O TRABALHO
A CASE OF PARANOID SCHIZOPHRENIA WITH POSSIBLE RELATIONS TO WORK

Mauro Nogueira Cardoso* Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Desde o iní-
Rafael Alvarenga Cosenza* cio do contato com o caso, chamou atenção a presença no discur-
Ricardo Argemiro Franco* so da paciente de vivências no trabalho, como pode ser observa-
Ada Ávila Assunção** do nos relatos colhidos.
Adotou-se a abordagem do psiquiatra francês Le Guillant,2,3
Resumo que contribuiu para o entendimento do surgimento e do desapa-
recimento dos distúrbios mentais em várias categorias profissio-
Trata-se de um caso de esquizofrenia paranóide, no qual se nais. Os métodos de investigação do autor foram acatados e
suspeitou de possíveis relações com o trabalho, pois, durante a desenvolvidos no Brasil por Lima.3,4 As proposições de ambos os
investigação e tratamento do caso, a paciente expressava de manei- autores buscam estabelecer possíveis associações e esclarecer
ra não negligenciável os componentes do trabalho. A paciente foi sobre o peso das organizações patogênicas do trabalho no desen-
encaminhada para esclarecimento diagnóstico ao Ambulatório de cadeamento de quadros psiquiátricos. Eles atentam para a neces-
Doenças Profissionais, onde se levantou a história da paciente e se sidade de mais estudos aprofundados sobre a problemática do
procurou identificar elementos que pudessem esclarecer o peso de adoecimento mental relacionado ao trabalho.
suas atividades laborais na evolução dos sintomas. Os trabalhos do O quadro clínico e os relatos durante as consultas levaram os
psiquiatra francês Le Guillant permitiram a elaboração de uma
autores a investigar o desenrolar da doença e sua relação com o
metodologia para estabelecer possíveis associações e esclarecer
trabalho, bem como a levantar dados que pudessem fornecer
sobre o peso das organizações patogênicas do trabalho no desenca-
informações sobre uma possível personalidade pré-mórbida e de
deamento de quadros psiquiátricos. Os autores atentam para a
como esta, associada às circunstâncias patogênicas da organiza-
necessidade de mais estudos aprofundados sobre a problemática
ção do trabalho, puderam desencadear a psicose.
do adoecimento mental relacionado ao trabalho.
Pelas entrevistas, foi levantada a história de vida da paciente.
Palavras-Chave: Esquizofrenia Paranóide; Saúde Ocupacional;
Foram obtidos dados do prontuário para estudo do quadro clíni-
Trabalho. co e de sua evolução. Discussões e esclarecimentos adicionais
sobre o tema e a respeito da paciente foram colhidos com os pro-
fissionais responsáveis pelo caso, no âmbito da Psiquiatria e da
Introdução Medicina do Trabalho. Elementos da organização do trabalho em
A Esquizofrenia é definida, de acordo com o DSM-IV1, que se inseria a paciente foram extraídos de seus relatos.
como um quadro que dura por pelo menos seis meses e que
inclui, ao menos durante um mês, dois ou mais dos seguintes sin- Descrição do caso
tomas: (1) delírios, (2) alucinações, (3) discurso desorganizado,
(4) comportamento grosseiramente desorganizado ou catatônico, Paciente atendida no Serviço de Psiquiatria do Hospital das
(5) sintomas negativos, que incluem embotamento afetivo, alogia Clínicas da UFMG em meados de 1999. Apresentava sinais psi-
ou avolição. O subtipo paranóide é aquele no qual os seguintes quiátricos compatíveis com quadro psicótico paranóide e foi ini-
critérios são encontrados: (a) preocupação com um ou mais de ciado tratamento medicamentoso para Esquizofrenia Paranóide
um delírio ou alucinações auditivas freqüentes, e (b) nenhum dos (CID–10, F20.0).
seguintes sintomas são proeminentes: discurso desorganizado,
comportamento desorganizado ou catatônico, ou afeto embotado Identificação
ou inapropriado.
O objetivo deste trabalho consiste em definir e caracterizar Lúcia (nome fictício), 29 anos, natural de Contagem (Região
fatores estressores ocupacionais e discutir o papel deles como Metropolitana de Belo Horizonte), residente em Belo Horizonte
possíveis desencadeadores ou precipitadores de um quadro psi- com os pais desde os cinco anos de idade. Solteira, sem filhos.
quiátrico típico diagnosticado como esquizofrenia paranóide, Segundo grau completo, caixa de supermercado até recentemen-
acompanhado pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital das te, atualmente desempregada.

*Acadêmicos do décimo primeiro período da Faculdade de Medicina Endereço para correspondência:


da Universidade Federal de Minas Gerais Depto. de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina,
** Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UFMG.
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas - Ambulatório de Doenças Profissionais -
Gerais.Especialista em medicina do trabalho. Doutora em Ergonomia Av. Prof. Alfredo Balena, 190, Santa Efigênia, Belo Horizonte, MG.
pelo Laboratório de Ergonomia Fisiológica e Cognitiva de Paris. E-mail: Adavila@medicina.ufmg.br

22 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):22-27


Queixas principais Lúcia diz ter sempre se considerado uma pessoa muito sincera, e
diz ter passado por problemas devido a desprezo, fofocas e dis-
Lúcia relatava irritabilidade, diminuição dos relacionamen- cussões: ”Nunca gostei de mentiras, por isso que sofro muito”.
tos sociais, medo de sair de casa sem acompanhante, medo de “Sou noventa e nove por cento sinceridade”. Após as desavenças
lugares fechados, como ônibus e elevadores, insatisfação com ati- havia perdão, mas sempre mantinha certo grau de desconfiança
vidades que lhe eram, anteriormente, prazerosas, ataques de pâni- em relação às pessoas envolvidas. Repetiu também o primeiro ano
co em ambientes aglomerados, insônia, estranhamento de algu- do segundo grau, o que ela atribui ao seu primeiro trabalho.
mas situações cotidianas (sentia que os momentos eram apenas Por volta dos 18 anos de idade, teve a primeira experiência
“armações”), insônia e sonhos vívidos de desastre, alucinações afetiva com um rapaz de sua escola. Ela diz que o relacionamen-
auditivas freqüentes e sentimentos ambíguos em relação às pes- to não deu certo, pois ele era muito ciumento e possessivo. Ele
soas objeto de suas alucinações. tinha ciúme de suas amigas, que exigiriam total atenção dela, que
fariam cobranças demais. Assim, Lúcia acabou por perder o inte-
Exame do estado mental resse e o namoro terminou três meses depois.
Concluiu o segundo grau com muito esforço, freqüentou um
Lúcia apresentou-se à primeira consulta bem-vestida. Estava curso técnico na área de segurança do trabalho, que não chegou
cooperativa, aparentava tristeza e desconfiança. Consciente, a concluir, faltando cumprir a carga horária prática necessária.
orientada no tempo, no espaço e autopsiquicamente. Hipervigil e Ela atribui isso ao fato de não conhecer bem a cidade e o funcio-
normotenaz. Sem alteração da consciência do eu. Memória pre- namento de grandes empresas na época. Ficou com duas discipli-
servada. Pensamento de curso normal, organizado. Presença de nas em dependência. Havia dificuldade em aprender tais maté-
delírios não-bizarros de conteúdo relacionado diretamente ao tra- rias, e já havia repetido uma delas. Relata más experiências com
balho. Presença de alucinações auditivas. Humor deprimido. os estágios porque achava que os homens não a encaravam como
Inteligência normal. profissional, mas a olhavam com segundas intenções.

Antecedentes pessoais e vida familiar História ocupacional pregressa


Durante a infância, brincava bastante com as demais crianças Seu primeiro emprego foi em uma padaria, quando tinha 17
da rua e tinha bom relacionamento com os colegas, tanto no bair- anos. Antes de ser admitida, passou por um teste simples de arit-
ro quanto na escola. Segundo suas próprias palavras: “Eu cresci mética. A padaria era muito movimentada e havia três outras fun-
junto com o bairro”. A turma da rua era bastante heterogênea e cionárias trabalhando no balcão. Conta que sofria muito no tra-
compreendia membros mais pacatos bem como outros mais balho por causa dessas outras funcionárias, que invejavam sua
“levados”, que gostavam de sair à noite e ficar na rua até mais função de caixa: “Na época, eu não entendia, mas elas queriam
tarde. Lúcia não acompanhava esta última turma nas ser caixa. Não tinha diferença de salário para a balconista, mas o
incursões noturnas, pois seguia os conselhos da mãe para que trabalho de caixa era considerado melhor”. Tinha muito receio
ficasse em casa. de trabalhar com dinheiro alheio e de errar nas contas. Foi sub-
Sobre seu pai, pedreiro, diz que era ambicioso e batalhador; metida a um período de treinamento, aprendeu com facilidade,
mais nervoso que a mãe, o que não chegava a provocar conflitos, mas continuou com medo de lidar com dinheiro: “Tinha dificul-
fato confirmado pela irmã. Nunca esteve próximo da filha, pois dade com troco de notas grandes”.
saía cedo para trabalhar e só retornava no fim do dia, cansado e Descreve seu patrão como uma pessoa rude, egoísta, exigen-
muitas vezes sem paciência para brincar com seus filhos peque- te, que a fez sofrer muito: “Toda vez que eu ia receber, ele fazia
nos: “Só via meu pai em casa à noite”. hora para me pagar”. O patrão gostava que as funcionárias pegas-
Lúcia convivia diariamente com sua mãe, pessoa muito reli- sem “vale”, ou seja, pegassem parte do salário em mercadorias.
giosa (católica), que a instruía e lhe servia de referência. Era mais Como Lúcia não fazia assim, sentia-se discriminada na hora do
calma que seu pai, além de compreensiva e tímida. Lúcia diz que pagamento. Lúcia se considerava muito diferente das outras
era sua mãe quem intervinha nos conflitos familiares e que se ape- empregadas: “A padaria era muito suja e eu queria que ela fosse
gou muito a ela: “Mãe é mãe vinte e cinco horas por dia”. A mãe limpa, acabava tendo que limpá-la eu mesma”. Além de sua fun-
sempre manteve participação ativa nas atividades paroquiais e da ção principal, exercia diversas outras atividades: “Eu era a dona
associação do bairro. quando o patrão não estava. Pessoa de confiança como eu ele não
Possui uma irmã mais velha e um irmão mais novo. achava”. Fazia compras diretamente com os fornecedores e seu
Foi para a escola aos seis anos e entrou no pré-primário. Era patrão exigia diversas outras atividades administrativas: “Ele que-
boa aluna, com boas notas e sua família também assim considera- ria que eu soubesse de tudo, queria que eu fosse a mulher dele”.
va, mas na quinta série perdeu o ano. Este período coincide com Emocionada, diz que o patrão tinha casos com funcionárias e que
uma época em que Lúcia passou a se relacionar com a turma de chegou a assediá-la, gerando conflitos: “Agradeço a Deus, que me
seu bairro que gostava de ficar na rua, apesar de não acompanhá- deu muita força, porque fui bastante humilhada, pelo patrão, pela
los nas noitadas. Segundo a irmã, essa foi a única ocasião na qual esposa e pelo filho dele”.
Lúcia se desentendeu com os amigos. Teria havido, segundo os Permaneceu no emprego por mais de quatro anos e encon-
relatos colhidos, atritos motivados por intrigas e mal-entendidos, trava-se cansada, mal teria tempo para suas necessidades fisioló-
o que a afastou das pessoas de seu convívio por mais de um ano. gicas, pois era advertida se saísse do caixa. Não tinha ânimo para

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):22-27 23


Um caso clínico de esquizofrenia paranóide e possíveis implicações com o trabalho

a escola devido à pressão no serviço. Lúcia tinha forte suspeita de muito estressada com a avaliação, segundo relato da irmã. Esse
que as funcionárias roubavam mercadorias. Segundo a irmã, trabalho era realizado por outro funcionário anteriormente e afir-
Lúcia comentou em casa algumas vezes sobre tais suspeitas. A ma que, na época, não sabia o porquê da promoção. Acredita que
filha do dono da padaria teria descoberto tais desfalques, que, no foi escolhida para “vigiar” os outros caixas por ser uma pessoa de
entanto, não teriam resultado em retaliações para as funcionárias. confiança. Após a confirmação das suspeitas de roubo, o sistema
Não importava se estivesse gripada ou febril, ia trabalhar foi trocado. Instalou-se uma central de processamento de dados
assim mesmo: “O patrão dizia que atestado não existe”. Pediu que recebia simultaneamente as informações de todos os caixas e
demissão, mas o patrão não queria que ela se demitisse. Conta as registrava. Máquinas sofisticadas foram adquiridas para agili-
que a ameaçou com uma briga judicial, pois ela deveria pagar zar o serviço e evitar fraudes. Havia muitos comentários por parte
uma certa quantia em dinheiro caso quisesse se demitir: “Não sou dos funcionários sobre os roubos na empresa, porém ninguém
agressiva, mas por defesa me torno forte para lutar contra os sabia o que de fato estava ocorrendo.
outros”. Lúcia contou para sua irmã que esse tipo de comporta- Lúcia relata que seu caixa era o que menos dava problemas,
mento do patrão era uma forma de retaliação, visto que ela nunca em apenas duas ocasiões isso ocorreu. Uma vez teve descontados
“quisera sair” com ele e negava seus presentes, coisa que as outras de seu salário cerca de 36 reais e, em outra, cerca de 50 reais.
funcionárias não faziam. Começou a desconfiar de que quando tinha que se ausentar por
Trabalhou na padaria dos 17 aos 21 anos. Deixou o emprego pouco tempo, como para ir ao banheiro, os funcionários que a
quando o patrão decidiu vender a padaria, aproveitando o acerto substituíam sabotavam o seu numerário. Passou a contar o
que ele teria que fazer com todas as funcionárias. dinheiro disponível em caixa antes de sair e, assim, confirmou a
Conseguiu seu segundo e atual emprego por meio de uma suspeita. O substituto tinha uma relação estreita com o seu encar-
agência, como caixa de uma grande rede de supermercados: “No regado; ela suspeitou que eles dividiam os lucros. Em uma oca-
começo, tudo era novidade”. Trabalhava de segunda a sábado, no sião, questionou o substituto quanto à diferença de valores, tendo
turno da tarde. A porta do supermercado era fechada às 18h, mas sido por ele advertida de que, caso ela o denunciasse, nada muda-
só podia ir embora após o último cliente. Por isso, o término de ria e que os roubos iriam continuar, pois havia outros funcioná-
sua jornada de trabalho era em torno de 19h20 e, quando passa- rios superiores envolvidos.
va desse horário, às vezes recebia hora-extra. Pelo relato da irmã, Foi forçada a tirar férias após uma discussão com seus supe-
Lúcia saía de casa às 6h e retornava às 22h, quando não fazia um riores a respeito de uma nota de caixa que havia desaparecido.
horário no qual saía as 22h e chegava em casa por volta da meia- Segundo Lúcia, ela tinha certeza de que o valor por ela computa-
noite, dependendo da determinação da empresa. O volume de do no caixa estava correto, pois era um valor alto e ela se recor-
dinheiro que circulava em suas mãos era bem maior e enfrentou dava bem. Como seus superiores não estavam conseguindo
dificuldades para lidar com os códigos de barra. Ficou bastante encontrar a nota do caixa, acusavam-na de ter desaparecido com
temerosa, achando que não daria conta das novas exigências. o dinheiro. Quando Lúcia disse que iria ligar para o cliente para
Tinha que ter mais atenção, pois se houvesse diferença entre a que ele trouxesse a segunda via, a nota do caixa reapareceu
soma vendida e o dinheiro em caixa no final do expediente o pre- repentinamente. Quando voltou após as férias forçadas, nem seu
juízo era descontado do salário dos funcionários. Lúcia apreciou encarregado nem seus substitutos estavam mais lá. Lúcia pensa
contar com um salário fixo no final de cada mês, o que era uma que foi forçada a tirar férias para não atrapalhar uma provável
experiência nova para ela. No início, gostava do emprego, ganha- investigação. A irmã de Lúcia confirma ter ouvido história seme-
va bem, ficou satisfeita por dois anos, diz a irmã. lhante, pelo relato da própria irmã na época do ocorrido.
No emprego, ela era subordinada ao seu encarregado de Passou a sentir olhares “tortos” para ela, havia comentários
caixa, que, por sua vez, era subordinado ao diretor. Quando tinha sobre encarregado sendo pego roubando. “Era muita fofoca, era
queixas sobre a organização do trabalho, Lúcia costumava passar a 'rádio peão'.” O clima no ambiente de trabalho parecia muito
por cima da hierarquia. Reclamava que as condições de trabalho pesado. Conta que não havia acusação direta pela empresa, mas
da empresa não estavam de acordo com as normas de ergonomia que havia observação constante, vigilância severa, os funcionários
e segurança que ela havia aprendido em seu curso técnico. Relata tinham que mostrar seus pertences e roupas na entrada e na saída.
ter sido assediada pelo encarregado: “Não queria sair com “Eu prestava muita atenção e tentava não perder a concentração
homem nenhum”. Se determinado homem demonstrava interes- no caixa”. Conta que colegas de caixa e pessoas mais próximas a
se, Lúcia explicava de forma natural que não pretendia relaciona- ela passaram a ser investigadas: “Havia uma salinha de tortura, eu
mento com ele. não sabia o que se passava lá, mas era um tipo de investigação”.
Para relaxar, a paciente saía à noite com a irmã para ir a fes- Também contava que a polícia aparecia lá para levar alguns fun-
tas e boates, muitas vezes acompanhadas por outros colegas do cionários presos em camburão, e que eles nunca mais voltavam:
supermercado. Lúcia considerava o lazer um direito seu. “Não sabia se estava vivo ou se morreu”. Afirma que as pessoas
Em seu trabalho, novamente foi solicitada a exercer outras presas pela polícia provavelmente eram culpadas dos roubos, mas
atividades além de caixa. Havia suspeitas de que poderiam estar que havia a participação de diretores: “Tinha uma máfia, um
ocorrendo discrepâncias propositais nos valores contabilizados esquema de roubo com gente engravatada”. As fraudes, segundo
em cada caixa. Durante o período correspondente às suas férias, a paciente, teriam o envolvimento de dinheiro, mercadorias e
Lúcia chegou a ficar um mês responsável por contabilizar caixa notas fiscais.
por caixa e por registrar os valores anotados durante o dia. Para Sua relação com os chefes não estava boa. Passou a não con-
exercer tal função, Lúcia foi submetida a um teste, tendo ficado fiar neles. “Até então era calma, tranqüila. Aceitava tudo. Passei

24 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):22-27


a não aceitar, a colocar pontos de interrogação”. Tinha vontade o espiritismo diz que isso é uma espécie de sensibilidade.” Na
de ir embora. “Aconteceram problemas no caixa, de assédio. Já ia empresa tinha que prestar atenção nas máquinas, no cliente e em
desanimada”. Foi transferida para caixas piores, principalmente todos os “seguranças”. “Chegava lá e estava no pior caixa, na pior
caixa de varejo, que recebiam muitas mercadorias de menor cadeira e havia vários seguranças.” Os sintomas foram se agravan-
valor; o risco de quedas no saldo do caixa era maior e havia do, as vozes se tornaram mais freqüentes e passou a ouvi-las tam-
menor “comissão”, uma espécie de incentivo para que os caixas bém durante o dia.
acelerassem o registro das mercadorias. Essa quantia era propor- Certo dia, chegou ao supermercado e reclamou com a hierar-
cional aos valores das mercadorias vendidas. Passou a reclamar quia: “Vocês colocaram pessoas para me seguir. Eu não roubei o
de tudo, dos assentos, dos caixas, queixava-se de dores nos bra- caixa”. Não aceitou a ordem de voltar ao trabalho. Procurou um
ços, pernas, questionava as ordens. Durante um período, fez fisio- telefone para ligar para uma prima, mas temeu que os telefones
terapia para combater uma possível LER. da empresa estivessem grampeados. Saiu correndo para procurar
Nessa época, Lúcia começou a se apaixonar por um rapaz de um telefone público na rua, mas não conseguiu completar a liga-
sua convivência e de suas amigas, com as quais freqüentava boa- ção. “Nisso um segurança já estava atrás de mim.” Voltou e foi
tes e bares, de que, porém, não gostava muito. Queixa-se que nes- levada para uma sala. Não consegue descrever muito bem o que
ses lugares o ambiente é muito escuro e abafado, não suporta ocorreu lá. Conversou com várias pessoas, inclusive o chefe do
cheiro de cigarro e, sendo assim, consumia bebidas alcoólicas departamento pessoal (DP), e sentia que tudo que falavam ou que
para ficar mais à vontade. Após algum tempo, decepcionou-se acontecia tinha sido previsto e que tudo era uma grande encena-
enormemente com uma de suas amigas, pois esta estava tendo um ção. Conta que lhe pediram para assinar um papel onde estava
caso com o rapaz pelo qual Lúcia havia se afeiçoado. Diz ter fica- escrito algo do tipo “você foi testemunha que fulano roubou”.
do muito triste com a amiga na época, passando a confiar menos Negou-se a assinar, apesar da insistência, e foi liberada para almo-
nas pessoas de seu relacionamento, principalmente após desco- çar, mas não comeu nada. Sua comida, oferecida pelos colegas, já
brir que uma prima sua também estava tendo um relacionamen- teria sido servida a outros. O chefe do DP ofereceu-lhe uma
to com o mesmo rapaz, algum tempo depois. maçã, uma vez que ela ficou sem almoçar. Comeu mesmo sem ter
A desmotivação no emprego e a frustração afetiva estão asso-
fome. Ficou sonolenta e suspeitou que a maçã estava impregnada
ciadas ao isolamento de Lúcia, que deixou de sair, de se alimen-
por algum tipo de remédio. A psicóloga da empresa veio conver-
tar adequadamente, não ia mais ao refeitório da empresa almoçar,
sar e, juntamente com o chefe do DP, resolveram liberá-la do ser-
preferia ficar vendo revistas na banca mais próxima. Diz ter ten-
viço para procurar um médico. Lembra-se de que foi conduzida
tado sair do emprego, pois ao voltar do trabalho ficava “remoen-
pela psicóloga e por um “segurança” para um hospital. O médi-
do” as coisas que aconteceram durante o dia. Por causa desse
co que a atendeu conversou mais tempo com a psicóloga. Saiu de
comportamento, associado à crescente desconfiança que ela
lá com uma receita e a certeza de que envenenaram sua maçã.
nutria por todos os colegas, as pessoas afirmavam que ela
Chegou em casa antes do horário final de serviço e, para surpre-
estava perturbada.
sa de sua mãe, foi orientada a procurar o INSS. Não tomou
Nessa época, um colega de trabalho de religião espírita apro-
nenhuma das medicações prescritas.
ximou-se dela com conversas religiosas e emprestando-lhe livros
de doutrina espírita. Sua mãe não gostava que ela lesse esse tipo Segundo a irmã, um dia a empresa telefonou para comunicar
de literatura porque o conteúdo dos livros não condizia com suas que Lúcia teria apresentado comportamento indevido durante o
crenças religiosas. Lúcia lia os livros assim mesmo, às escondidas. expediente e que, por conta disso, teria sido encaminhada a um
Esse período coincide com investigações policiais no super- hospital, uma vez que estava muito agressiva e alterada. A própria
mercado. “Havia vários seguranças vigiando. Aí que veio a para- Lúcia, mais tarde, teria confirmado que, nesse dia, teria dito, em
nóia”. Via seguranças por toda a loja. Achava que era policial à alto e bom tom, coisas relacionadas às falcatruas que estariam
paisana quem ficasse muito tempo parado sem fazer compras ou acontecendo. A empresa teria então reagido dizendo que ela esta-
não empurrasse carrinhos. Parou de comprar mercadorias no va louca. Até esse dia do telefonema, ninguém em casa havia
supermercado por medo de sofrer investigações. Começou a notado alterações no comportamento de Lúcia.
observar que se encontrava com os mesmos “seguranças” da loja O médico do INSS considerou-a saudável e isso reforçou
quando voltava para casa, no ponto de ônibus e nos finais de suas suspeitas de que outros estavam tramando contra ela. Lúcia
semana. Concluiu que isso ocorria porque estava sendo seguida. voltou a trabalhar. Sentia que todas as situações em sua vida eram
As suspeitas foram aumentando de intensidade. “No ponto de montadas, planejadas, percebia sinais e gestos nas pessoas como
ônibus havia um segurança e dentro do ônibus havia outro”. Via se dissessem: “Arruma tudo aí que a Lúcia está chegando”. As
o pessoal da loja em outros locais e quando saía à noite. vozes comentavam sobre a vida das pessoas e diziam que sua
“É idêntico, mas não é igual. Meu problema é que não consigo família “estava em risco”. Começou a desobedecer ordens ou ins-
guardar nomes.” truções e a usar palavras agressivas para as pessoas do tipo: “O
Durante as noites, começou a ter pesadelos com os seguran- que é que você está me olhando?”. Em um episódio que ela
ças. Quando ia se deitar, tinha insônia e ficava acordada durante chama de a “segunda paranóia”, discutiu com um dos seus che-
horas olhando para o teto. Em pouco tempo, começou a ouvir fes porque tinha certeza de que outros funcionários estavam
vozes à noite. Vozes conhecidas que conversavam entre si ou con- estragando seu equipamento. Chamaram sua mãe para que a
versavam diretamente com Lúcia. Às vezes as conversas tinham acompanhasse a uma consulta com o médico da empresa, que
tom acusatório, ora de premonição. “Eu chego a arrepiar porque recomendou um psiquiatra.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):22-27 25


Um caso clínico de esquizofrenia paranóide e possíveis implicações com o trabalho

Iniciou tratamento psiquiátrico a contragosto, com médicos 3. Lúcia chegou a apresentar comportamento estereotipado
indicados pela empresa. Não gostou do primeiro médico porque dentro da empresa, antes da instalação do quadro psiquiátrico
ele tinha comportamentos estranhos e sua sala era decorada com típico. Vale mencionar que na psicopatologia do trabalho é con-
objetos bizarros. Foi tratada com fluoxetina. Tinha certeza de que siderado que, usualmente, os quadros psiquiátricos típicos se ins-
o remédio lhe fazia mal. Sentia completa falta de vontade de rea- talam gradativamente, podendo eclodir de forma aguda por cer-
lizar suas tarefas diárias, mesmo as que anteriormente lhe davam tos desencadeantes diretamente relacionados ao trabalho.2
prazer. Continuava com delírios, desrealizações, do tipo sentir 4. A organização do trabalho instituída na empresa de Lúcia
que saía de seu corpo. Suspeitava que os remédios eram nocivos,
apresentava características que propiciavam o desencadeamento
porque eram manipulados em farmácias indicadas pelos psiquia-
de conflitos e ansiedade (vigilância, controle de produtividade,
tras que eram indicados pelo médico da sua empresa. Passou a
penalização por erros, etc.). Além da própria organização ineren-
desconfiar também de sua família. Pensava que sua mãe começou
a colocar remédios, primeiramente em maçãs e, depois, em todo te à função, a empresa passava por um período crítico de descon-
tipo de comida. Desejou morrer, o que abalou toda a sua família. fianças, investigações, possivelmente prisões, etc.
Lembra-se que chegou a ir a um neurologista e fazer “um exame 5. Pouca ciência e carência de informações de familiares e
cheio de fios na cabeça” (EEG), antes de trocar de psiquiatra. colegas de profissão sobre o caso.
Lúcia diz que experimentou de cinco a sete tipos de medicações, Ainda restam várias lacunas no campo de investigação das
das quais não se lembra o nome. Conta que teve momentos de possíveis relações saúde mental e trabalho. Não foi possível obter
“altos e baixos”. Ainda apresentava alucinações auditivas, delí- respaldo da literatura para se fazer uma correlação envolvendo o
rios e desrealizações: “Fui no túnel da morte”. Tinha medo de caso relatado e o trabalho da paciente. No entanto, ele reafirma
sair de casa. as questões postas por Dejours:6 “Existem transtornos mentais
Durante esse período, que durou cerca de dois anos, mante- em cuja origem está o trabalho, que apareçam unicamente em
ve-se afastada do trabalho a custa de atestados. O psiquiatra che- determinadas situações, ou seja, em relação a um trabalho concre-
gou a liberá-la por um tempo. Voltou a trabalhar por uma sema- to?” Ou então: “O trabalho contribui na aparição de transtornos
na no guarda-volumes do estabelecimento e foi demitida. Uma mentais que não são especificamente profissionais, como a esqui-
vez demitida, encerrou-se o seu convênio médico. Como a situa-
zofrenia, a histeria ou a depressão ou, pelo menos, produz crises
ção financeira de sua família não permitia pagar as consultas, seu
e episódios agudos desses transtornos cuja sintomatologia, uma
atendimento passou a ser prejudicado e ela procurou o serviço
público do Hospital das Clínicas da UFMG em meados de 1999. vez que chega a ser manifesta, é independente do trabalho?”

Discussão Summary
Médicos e demais profissionais da área de saúde freqüente- The authors report a case of paranoid schizophrenia in which
mente se deparam com queixas relacionadas ao estado psíquico possible relations to the work were raised because during the exa-
de seus pacientes. Também não é raro deparar com situações nas mination and treatment, the patient described important work
quais o trabalho é apontado como responsável por sintomas components. The patient was directed to the clinic of occupatio-
somáticos ou psicogênicos. A prática da assistência, nos seus mais nal diseases for diagnostic clarification, where her life history was
amplos aspectos, não pode se basear no princípio de que o raised and efforts were made to evaluate the role of labor activi-
paciente é um compartimento hermético, livre da influência de ties on the evolution of her symptoms. Several works by the
seus familiares, de suas experiências infantis e, principalmente, French psychiatrist Le Guillant permitted the elaboration of a
do seu trabalho, que se tornou o cerne da vida social moderna. A methodology to establish possible associations and to elucidate
questão se torna muito mais complexa quando o doente inclui the influence of pathogenic organizations in psychiatric condi-
seu trabalho na temática ou no conteúdo de seus sintomas psíqui- tions. The authors comment the need for new knowledge in
cos ou os atribui a seu trabalho. the area.
Apesar das dificuldades em se estabelecer objetivamente
uma relação de causalidade entre doença mental e trabalho, Key-Words: Paranoid Schizophrenia; Occupational Health;
alguns aspectos relevantes referentes a este caso precisam ser Work.
ressaltados.
1. Lúcia refere a ocorrência de sintomas dentro e fora da
Agradecimento
esfera profissional, mas o que realmente chama a atenção é que
seus surtos agudos ocorrem, pelo menos por duas vezes, durante Os autores agradecem a orientação de Antônio Márcio
a jornada e são precipitados pelos eventos do trabalho. Além Teixeira, Professor do Departamento de Psiquiatria e Neurologia
disso, mesmo quando seus sintomas apareciam fora do ambiente da FMUFMG.
de trabalho, o conteúdo estava a ele relacionado.
2. O levantamento da história de vida de Lúcia não indicou Referências bibliográficas
fatores da vida familiar ou afetiva suficientes que, por si, pudes-
sem ter papel preponderante no desencadeamento da doença. 1. American Psychiatric Association. Diagnostic Criteria from
Em outras palavras, o trabalho era o desencadeante de sua aflição DSM-IV. 4th ed. Washington: American Psychiatric
e de seu descontrole. Association, 1994:638.

26 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):22-27


2. Le Guillant L. Quelle psychiatrie pour notre temps? Paris: 5. Lima MEA. A psicologia do trabalho. Origens e desenvolvi-
Eres; 1985. mentos recentes na França. Revista psicologia ciência e profis-
3. Le Guillant L. A neurose das telefonistas. Tradução de Denise são 1998; 18(2):10-15.
Monetti e Leda Ferreira. Revista Brasileira de Saúde 6. Dejours C. Transtornos mentales relacionados com el trabajo.
Ocupacional 1984; 47(12):7-11. In: Kalimo R; El Batawi M A; Cooper LC eds. Los factores
4. Lima MEA. Esboço de uma crítica à especulação no campo psicossociales en el trabajo y su relacion con la salud.
da saúde mental e trabalho. In: Jacques MG, Codo W. eds. Ginebra: OMS; 1988:63-75.
Saúde mental e trabalho. Petrópolis: Vozes; 2002:50-81.

PARAFRENIA FANTÁSTICA É ESQUIZOFRENIA?


IS FANTASTIC PARAPHRENIA A SCHIZOPHRENIA?

João Vinícius Salgado * va. Segundo Iracy Doyle2, o problema do portador de delírio aluci-
Antônio Lúcio Teixeira-Jr.** natório é de ordem perceptiva, o do delírio interpretativo é de
Ronan Rodrigues Rêgo *** ordem lógica (sobre o significado de fatos reais), enquanto o deli-
rante imaginativo transporta para o mundo exterior suas criações
Resumo subjetivas, conferindo-lhes caracteres de objetividade e realidade.
Kraepelin também propôs a existência de um grupo de psico-
Os autores relatam o caso de uma paciente de 56 anos com ses caracterizadas por um trabalho delirante em que se imbricam
quadro psicótico crônico caracterizado por delírios fantásticos sin- atividades alucinatórias e fabulatórias para formar ficções bastante
gulares, sem deterioração do funcionamento geral. Houve remissão ricas e caóticas, sem debilitação terminal. Propôs chamar esse grupo
parcial dos sintomas com olanzapina 5 mg/dia. O caso assemelha-se de psicoses delirantes crônicas de parafrenias, que se dividiriam nas
sobremaneira às descrições clássicas do Delírio de Imaginação de formas sistemática, expansiva, confabulatória e fantástica2. A para-
Dupré e Logre, assim como da Parafrenia de Kraepelin. No DSM- frenia seria, portanto, uma entidade intermediária entre a paranóia
IV e no CID-10, a paciente receberia o diagnóstico de esquizofrenia e a esquizofrenia paranóide. Diferiria da primeira pela extravagân-
paranóide. Entretanto, esta entidade nosológica inclui quadros clí- cia dos delírios e presença de alucinações, da segunda, pela evolu-
nicos bastante heterogêneos. Acreditamos que o abandono dos ter- ção não-deficitária. As parafrenias fantásticas e confabulatórias cor-
mos clássicos mencionados resulta em significativo empobrecimen- responderiam ao delírio de imaginação proposto por Dupré
to dos sistemas de classificação psiquiátrica. e Logre1.
A seguir relatamos o caso de uma paciente com quadro psicó-
Palavras-chave: Parafrenia; Delírio de Imaginação; Esquizofrenia; tico crônico com as características clínicas correspondentes aos delí-
Sistemas de Classificação Psiquiátrica. rios de imaginação e parafrenia. Discutimos o lugar dessas descri-
ções clássicas nos sistemas atuais de classificação psiquiátrica.
Introdução
Caso Clínico
Alguns delírios crônicos são marcados pela riqueza imaginativa
dos temas delirantes, ocorrendo justaposição de um mundo fantás- Uma senhora de 56 anos, solteira e sem filhos, compareceu
tico ao mundo real, ao qual o doente permanece bem-adaptado, desacompanhada ao ambulatório de psiquiatria do Hospital das
sem apresentar evolução deficitária. Dupré e Logre, entre 1910 e Clínicas (HC-UFMG) em agosto de 2001. A paciente não apresen-
1914, propuseram agrupar esses quadros sob o nome de delírios de tava qualquer queixa. Dizia apenas ter sido encaminhada por "-
imaginação1. Tais delírios, que se assentam em um fundo constitu- outros médicos". De fato, fora encaminhada para avaliação psiquiá-
cional mitomaníaco e de fabulação, seriam distintos de outros delí- trica por psicólogo do serviço de mastologia, com relato de "hipo-
rios crônicos como os de base alucinatória ou de base interpretati- mania e idéias delirantes"

* - Professor de Neuroanatomia e Neurofisiologia da Faculdade ** - Doutorando em Biologia Celular pela UFMG. Ex-residente da
Metropolitana de Belo Horizonte. Doutor em Neurociências pela Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG.
Universidade Louis Pasteur de Estrasburgo e pela USP-Ribeirão Membro da AAP-MG
Preto. Ex-residente da Residência de Psiquiatria do Hospital das *** - Preceptor da Residência de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da UFMG. Membro da Associação Acadêmica Clínicas da UFMG. Membro da AAP-MG.
Psiquiátrica de Minas Gerais - AAP-MG.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):27-30 27


Parafrenia fantástica é esquizofrenia?

Apresentava-se vestida com esmero, lúcida, orientada auto- e vas e genéricas. Admitia também que os “fenômenos” às vezes inter-
alopsiquicamente, sem déficits de memória. O discurso da paciente feriam no sono.
era prolixo e a linguagem empolada, com excessivo uso de termos Iniciou-se, então, olanzapina 2,5 mg/dia, suspendendo-se a
técnicos e generalizações. O sotaque também não era característico amitriptilina. Houve melhora parcial do sono, mas os pensamentos
da região onde sempre viveu. Notava-se aparente falta de familiari- permaneceram inalterados: "Eles estão sempre lá. Tem dias que
dade da paciente com o conteúdo do próprio discurso. O afeto era sinto uma depressão. Não, é uma pressão, uma pressão diabólica.
constrito, o humor, eutímico. Neste contato, não foi possível identi- Mas é só reagir que desaparece. Eu me cuido, vou à igreja de dia e
ficar sintomas psicóticos. de noite. Se não reagir fica esquisito, como se houvesse algo presen-
A paciente nasceu e passou a maior parte da vida em um sítio te, espiritual. Parece radiação, um foco que incomoda". Quando
na zona rural do interior de Minas Gerais, onde residia com a mãe. questionada sobre se os "fenômenos" ocorriam continuamente, res-
Estudou até completar o ensino médio. Trabalhava com confecção pondeu: "Não. Em geral, é na quinta-feira e no sábado, que são dias
de roupas. Vidas social e afetiva pregressa pobres, relatando estar em que há mais ligação com principados, potentados, coisas que
"noiva há 20 anos" de um homem residente em Belo Horizonte atuam no ar. Faz o clima ficar ruim. Vejo seres bons e maus, seme-
(contato posterior, por telefone, com o noivo da paciente, confir- lhantes a pessoas. Não tenho medo. Eles também me xingam. Nem
mou o relato dela). sempre vejo o que escuto. Eles se escondem".
Negava uso de álcool ou drogas. Negava história familiar de A dose da olanzapina foi elevada para 5 mg/dia e, após dois
transtornos neurológicos ou psiquiátricos. meses de uso, a paciente relatou redução significativa dos “fenôme-
Quatro anos antes, a paciente descobriu ser portadora de cân- nos” e melhora adicional do sono. Pouco tempo depois, entretanto,
cer de mama, mas escondeu o fato dos familiares durante dois anos, após o falecimento súbito do noivo por problemas cardiovasculares,
pois “não queria incomodar”. Quando a família ficou ciente, a a paciente desenvolveu quadro depressivo, com tristeza, anedonia,
paciente concordou em iniciar o tratamento, que incluía ressecção abulia, preocupações somáticas e idéias de ruína. Associou-se fluo-
da mama e quimioterapia. Desde o início da quimioterapia, usava xetina 20 mg/dia, ocorrendo remissão desses sintomas depressivos.
regularmente antidepressivo, amitriptilina 50 mg/dia. Fazia também Mantém, atualmente, uso regular de olanzapina 5 mg/dia, com qua-
uso de tamoxifeno 20 mg/dia. dro clínico estável, referindo remissão quase total dos “fenômenos”
Nas primeiras consultas subseqüentes, a paciente mantinha o previamente descritos.
discurso circunstancial, sem apresentar queixas. Após seis meses de
acompanhamento, passamos a perceber idéias delirantes de caráter Discussão do Caso
fantástico no discurso da paciente.
Salienta-se a complexidade do quadro psicótico da paciente,
Em uma das consultas, logo no início da entrevista, a paciente
sobretudo dos delírios, associada à preservação do funcionamento
colocou sobre a mesa peças de roupa íntima feminina, livros em
geral e o curso clínico sem deterioração. A paciente exibe também
árabe, pedaços de jornal velho e fotos antigas. Nos jornais, que data- várias características clínicas que definem o delírio de imaginação
vam da década de 1980, constavam textos de sua autoria e fotos em sua formulação original1,2: 1) Pensamento paralógico: o delírio
com "o noivo", que a paciente dizia ser árabe e proprietário do jor- imaginativo ou fantástico é formado a partir do pensamento mági-
nal em questão. Seus textos utilizavam linguagem rebuscada, meta- co desenfreado, sem preocupação com verossimilhança lógica. 2)
fórica e desprovida de sentido lógico. A paciente, no entanto, defi- Megalomania: Temas de influência (domínio maléfico, espiritismo)
nia-os como "crítica política e social". Afirmava ainda que: "Na e de perseguição (inclusive por forças espirituais ou sobrenaturais)
época, o pessoal não ficou muito contente com os textos, não. Acho fazem desses doentes vítimas atormentadas por perseguidores como
que cutuquei muita gente". o demônio e forças do mal. A megalomania manifesta-se pela parti-
Ao ser questionada sobre vivências peculiares ou sobrenaturais, cipação do delirante na trama, em geral joguete ou prêmio de com-
a paciente respondeu enfaticamente que ocorriam o tempo todo, bates gigantescos, com identificação especial com profetas ou com
desde a infância. Citou "visões, ruídos, vultos" e percepção de Deus. 3) Primazia da fabulação sobre as alucinações: é raro que este
influências benignas e malignas, denominando-os de "fenômenos". tipo de delírio não esteja acompanhado de alucinações. Em geral, é
"Muita gente pensa que são ETs, mas são espíritos que caíram do por meio de vozes ou visões que o delirante entra em contato com
céu... Mas não sou só eu. Vários profetas também viam... Já dese- seu mundo fantástico. Porém, a alucinação cede à fabulação, e é sob
nhei vários e um pastor da Universal (Igreja Evangélica) confirmou a forma de uma produção imaginativa exuberante que este delírio é
que são demônios... Antes eles me incomodavam, pois não sabia o expresso nos relatos prolixos dos doentes. 4) Integridade paradoxal
que eram, mas agora encontrei a resposta na Bíblia e tudo está da unidade da síntese psíquica: Os delírios fabulosos não impedem
bem". Relatava ainda o dom da premonição, sendo capaz de prever o doente de estar bem-inserido na realidade da existência cotidiana.
guerras, catástrofes naturais. Apesar da loquacidade, não se obser- A capacidade intelectual, a atividade laborativa e o comportamento
vavam taquipsiquismo ou elevação do humor. Falava sempre de social permanecem notavelmente intactos.
modo indiferente sobre suas vivências. Parece-nos razoável, portanto, classificar o quadro da paciente
Ao contrário do ocorrido nas consultas iniciais, passou a apre- como delírio crônico de imaginação de Dupré e Logre ou na para-
sentar queixas, especialmente insônia. Justificava a própria dificul- frenia fantástica de Kraepelin, com algumas ressalvas. As parafre-
dade para dormir: "estava trabalhando muito para voltar ao merca- nias iriam manifestar-se, geralmente, após a terceira década de vida,
do de trabalho como empresária de moda". Indagada sobre fatos mas a paciente relata vivências anormais desde a infância. É impos-
objetivos relacionados ao trabalho, sempre conferia respostas evasi- sível definir, devido à ausência de relato de acompanhante, se isso é

28 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):27-30


fato ou parte da própria mitomania da paciente. A remissão das período superior a um mês5,6. A paciente, por outro lado, preenche
parafrenias também seria incomum. No caso, a análise da remissão os seguintes critérios para esquizofrenia: delírios bizarros, alucina-
praticamente total dos delírios após o uso da olanzapina (5mg/dia) ções e embotamento afetivo com duração superior a seis meses, na
é complicada pela ocorrência de fato marcante na vida pessoal da ausência de fatores orgânicos, sintomas afetivos ou esquizoafetivos.
paciente e pela instalação de episódio depressivo. Por outro lado, a O diagnóstico é dificultado pela ausência de informações de
persistência da remissão a longo prazo corrobora a impressão de acompanhantes, o que impede a avaliação pré-mórbida e o real
que os “fenômenos” seriam realmente delírios, não apenas idéias
funcionamento interpessoal e/ou ocupacional da paciente. É pro-
sobrevaloradas ou experiências perceptivas singulares associadas a
vável que a paciente tenha funcionamento aquém do que relata,
pensamento mágico.
O conceito de delírios de imaginação de Dupré e Logre e o das o que indicaria, em conjunto com os outros sintomas, o diagnós-
parafrenias de Kraepelin foram propostos nas duas primeiras déca- tico de esquizofrenia. Pela presença dos delírios fixos (centrados
das do século passado1,2. Entretanto, nos anos subseqüentes, prin- nos “fenômenos”) da paciente associados à ausência de deterio-
cipalmente após os trabalhos de Eugen Bleuler, a maioria dos delí- ração e de sintomas deficitários proeminentes, a paciente seria
rios crônicos passou a integrar as formas paranóides da esquizofre- classificada no subtipo paranóide das esquizofrenias5,6.
nia, com exceção de um pequeno grupo de delírios sistematizados Hipótese diagnóstica multiaxial pelo DSM-IV:
denominados paranóia. Ressalta-se que, para Bleuler, a evolução Eixo 1: Esquizofrenia Paranóide [295.30]
deficitária não seria um aspecto fundamental da esquizofrenia. Eixo 2: Transtorno da Personalidade Esquizotípica (Pré-
Na Classificação Internacional de Doenças (CID), o diagnósti- Mórbido) [301.22] (?)
co de parafrenia aparece até a CID-9, mas com significado distinto Eixo 3: Câncer de mama
daquele proposto originalmente por Kraepelin. Sob influência de
Eixo 4: Tentativa de reinserção no mercado de confecções
autores ingleses, a parafrenia passou a designar pacientes com qua-
Eixo 5: AGF = 41-50
dro psicótico de início tardio, geralmente após a sexta década de
vida, com idéias delirantes bem-estruturadas, alucinações Hipótese diagnóstica pelo CID-10:
proeminentes e preservação da personalidade e do humor3,4. Na Esquizofrenia Paranóide [F20.0]
CID-105, o transtorno chamado de parafrenia (tardia) é apenas cita- Ressalta-se que esse subtipo de esquizofrenia inclui a "esqui-
do como integrante dos transtornos delirantes (F22.0). O equivalen- zofrenia parafrênica".
te à parafrenia (tardia) no DSM seria a esquizofrenia de início Em ambos os sistemas de classificação, CID-10 e DSM-IV, a
tardio que aparece até o DSM-IIIR. No DSM-IV6, não há menção paciente receberia o diagnóstico de esquizofrenia paranóide. O
à parafrenia. termo esquizofrenia, entretanto, denota um grupo de sub-síndro-
Conforme os critérios atuais de classificação CID-10 e DSM- mes clínicas bastante heterogêneas. Mesmo no subtipo paranói-
IV, diagnóstico diferencial deve ser realizado entre transtorno de de, é possível incluir quadros clínicos bem distintos do presente
personalidade esquizotípica (transtorno esquizotípico pela CID- caso, inclusive sob as perspectivas de terapêutica e de prognósti-
10), transtornos delirantes e esquizofrenia. A paciente preenche os
co. As descrições do delírio de imaginação de Dupré e Logre ou
critérios para transtorno de personalidade esquizotípica por apre-
da parafrenia fantástica de Kraepelin, por outro lado, correspon-
sentar crenças estranhas e pensamento mágico que influencia o
comportamento, experiências perceptivas não-usuais, episódios dem mais precisamente ao quadro clínico da paciente aqui descri-
com utilização de linguagem estranha (metafórica, circunstancial), ta. Acreditamos que o abandono de determinados termos clássi-
afeto constrito e história de ausência de amigos íntimos. O diagnós- cos pode resultar em empobrecimento dos sistemas de classifica-
tico de transtorno de personalidade esquizotípica, entretanto, não ção, com possíveis repercussões no entendimento da fisiopatolo-
deve ser feito se ocorre exclusivamente no curso de um transtorno gia dos transtornos mentais, assim como no tratamento e no prog-
psicótico, ou seja, na presença de delírios e alucinações5,6,7. nóstico dos mesmos.
Portanto, um aspecto fundamental na análise do caso seria defi-
nir se o relato da paciente indica realmente a presença de delírios e Summary
alucinações ou se são apenas experiências perceptivas não-usuais
associadas a pensamento mágico desenfreado. No relato da pacien- The authors describe a case of a 56 year-old woman who presented
te, identificamos as três características essenciais do delírio8: a con- a chronic psychotic disorder marked by fantastic and odd delusions
vicção extraordinária (certeza subjetiva absoluta), a crença é irremo- without functioning deterioration. The symptoms were partially
vível (insensível a argumentos lógicos ou experiência objetiva) e o relieved with olanzapine 5mg/day. This case resembles classical des-
conteúdo é impossível. Além disso, suas crenças são idiossincrásicas criptions by Dupré and Logre as well as Kraepelin’s Paraphrenia. In
em relação ao meio cultural em que vive. Como há evidências ine- the DSM-IV and in the ICD-10, this patient would be diagnosed
quívocas de que se trata de sintomas psicóticos, então, o with paranoid schizophrenia. However schizophrenia includes
diagnóstico diferencial estaria restrito a transtorno delirante ou heterogeneous clinical pictures. We believe that by neglecting cer-
esquizofrenia. tain classical terms results in the impoverishment of psychiatric clas-
Os delírios fantásticos da paciente, claramente implausíveis, sification systems.
incompreensíveis e não-extraídos de experiências comuns do coti-
diano, não são compatíveis com a hipótese de transtorno delirante Key-words: Paraphrenia; Schizophrenia; Psychiatric Classification
cuja característica essencial é a presença de delírios não-bizarros por Systems.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):27-30 29


Parafrenia fantástica é esquizofrenia?

Referências bibliográficas: Comportamento da CID-10: Descrições clínicas e diretrizes


diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992:83-107.
1. Ey H, Bernard P, Brisset C. Manual de psiquiatria. 5a ed. Rio de
6. American Psychiatric Association. Schizophrenia and other
Janeiro: Masson do Brasil; 1981:522-526.
psychotic disorders. Diagnostic and Statistical Manual of
2. Doyle I. Nosologia Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Casa do
Mental Disorders 4th ed. (DSM-IV). Washington: American
Estudante, 1956:308.
3. Almeida O, Dractu L, Laranjeira R. Manual de psiquiatria. Rio Psychiatric Association; 1994:263-302.
de Janeiro: Guanabara; 1996:154-155. 7. American Psychiatric Association. Schizotypal personality
4. Teixeira-Jr AL, Alvarenga-Silva H, Huguet AC, Lamounier disorder. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
MG. Um caso de psicose de início tardio: considerações diag- 4th ed. (DSM-IV). Washington: American Psychiatric
nósticas. Casos Clin Psiquiat 1999; 1:21-23. Association; 1994:604-608.
5. World Health Organization. Esquizofrenia, transtorno esquizo- 8. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos
típico e delirantes. In: Classificação de Transtornos Mentais e de mentais. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000:134.

REAÇÃO ESQUIZOFRÊNCIA EM PACIENTE INDÍGENA


SCHIZOPHRENIC REACTION IN AN INDIAN PATIENT

Maximiliano Loiola Ponte de Souza * área encontram-se concentradas principalmente em grandes áreas
temáticas, tais como alcoolismo1 e suicídio.2,3 Desconhecemos
Resumo trabalhos que tenham como foco principal a discussão diagnósti-
ca, ou descrição fenomenológica da sintomatologia apresentada
O autor descreve o caso de paciente indígena que desenvol-
por PI.
veu episódios psicóticos recorrentes, com sintomas positivos que
Em trabalho anterior4, demonstramos que o atendimento
surgiam quando a paciente saía de sua comunidade, remitindo
com seu retorno. O autor discute a dificuldade de utilização dos psiquiátrico aos PI no Amazonas é bastante deficiente. Baseamo-
critérios do DSM-IV e propõe como alternativa o diagnóstico de nos no fato de que o atendimento aos PI foi realizado principal-
reação esquizofrênica. mente em nível emergencial, caracterizado por avaliação por psi-
quiatras em sistema de rodízio, levando a: multiplicidade diag-
Palavras-chave: Psiquiatria Transcultural; Índios Sul-americanos; nóstica, baixo vínculo com um profissional de referência e baixa
Reação Esquizofrênica; Psicose. aderência ao tratamento. Dessa forma, a partir de 2001, passamos
a centralizar o atendimento psiquiátrico dos PI no Estado, visan-
Introdução do a minimizar os aspectos negativos descritos acima.
Assim, deparamo-nos com inúmeras situações em que a sin-
Estima-se a existência de cerca de 206 sociedades indígenas
tomatologia apresentada pelos PI consistia em desafio diagnósti-
no Brasil, distribuídas em 562 terras indígenas, correspondendo
co, principalmente quando se objetivava realizar diagnóstico
a uma população de cerca de 315 mil índios. Estes estão concen-
trados, em sua maioria – 70% do total –, numa parcela da baseado nos critérios padronizados (DSM IV ou CID-10). A rele-
Amazônia Legal que engloba seis estados brasileiros: Amazonas, vância em descrever um caso como o que será aqui apresentado,
Acre, Roraima, Rondônia, Mato Grosso e Pará. ao nosso ver, deve-se a: i) carência de relatos semelhantes na lite-
Uma primeira dificuldade ao se lidar com a temática de ratura nacional; ii) demonstrar a dificuldade da utilização de
transtornos mentais em População Indígena (PI) é ao fato de a códigos de classificação de transtornos mentais em contextos cul-
literatura nacional sobre o tema ser escassa. As pesquisas nessa turais distintos.

* Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Endereço para correspondência:


Psiquiatria, Mestrando do Programa Sociedade e Cultura na
Amazônia, Universidade Federal do Amazonas. Trabalho realizado Rua B, Quadra B, Casa 249
no Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro da Secretaria de Saúde do Conjunto Parque das Palmeiras I
Estado do Amazonas Bairro de Flores, Manaus - AM.

30 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):30-32


Descrição do Caso medicações, com orientação para diminuição progressiva do
ansiolítico. Ficamos em um impasse com relação ao seguimento
psiquiátrico após a ida da paciente para aldeia. Optamos por
Identificação manter a paciente na aldeia. À revelia das orientações, ambas as
medicações foram suspensas. A paciente encontra-se há aproxi-
Paciente do sexo feminino, 45 anos, casada, indígena, etnia madamente seis meses na aldeia, dos quais cinco sem medicação
Palmari, mãe de oito filhos, analfabeta, fala e entende o português e, pelos contatos que fizemos com a equipe de saúde da área, está
e sua língua nativa, agricultora, procedente de área indígena nas bem, sem queixas, fato confirmado pelo esposo.
proximidades de Lábrea – AM.

Discussão
Histórico da moléstia atual
Neste momento, tentaremos evidenciar as dificuldades em
A paciente estava assintomática até aproximadamente 12
construir uma hipótese diagnóstica utilizando como referência os
dias antecedendo a entrevista, quando teve que vir para Manaus
critérios do DSM-IV5.
para realizar tratamento ortopédico devido a fratura no membro
Considerando que a paciente passou a apresentar o quadro
inferior direito. A paciente veio para Manaus de barco. Segundo
após a saída de seu ambiente social, ou seja, na presença de um
o esposo, a partir do segundo dia de viagem a paciente começou
estressor identificável, poderíamos, inicialmente, pensar na hipó-
a apresentar alteração do comportamento, dizia haver pessoas
tese de um Transtorno de Adaptação. Entretanto, tal proposta não
querendo matá-la, bem como seu esposo e filhos, que ouvia vozes
se aplica, uma vez que, nessa categoria diagnóstica, não se incluem
que a ameaçavam, falava sozinha, mostrava-se assustada, isolada
sintomas psicóticos, apenas emocionais e comportamentais.
e não dormia, por medo de “que algo de mal acontecesse” com
Como o primeiro episódio descrito ocorreu após a vivência
ela ou com seus parentes. Chegando em Manaus, foi para a Casa
de um evento envolvendo a morte de uma pessoa, e que as alte-
de Saúde Indígena de Manaus (CASAI), mantendo o mesmo
rações psicopatológicas são semelhantes àquelas que apresentou
comportamento, além de passar a dizer que os outros índios que
após a exposição ao evento traumático, isso nos remeteria à hipó-
estavam na CASAI tramavam contra ela, bem como se mostrava
tese de um Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Entretanto,
reticente em alimentar-se.
não se trata de recordações aflitivas ou intrusivas, sonhos aflitivos
e recorrentes ou agir como se estivesse vivenciando o evento trau-
História Familiar mático, o que também afasta essa hipótese.
Desconhece casos psiquiátricos na família. Direcionando o olhar para a presença de sintomas psicóticos,
os seguintes diagnósticos poderiam ser aventados: Transtorno
Psicótico Devido a uma Condição Médica Geral, Transtorno
Exame mental Psicótico Induzido por Substância, Transtorno do Humor com
Paciente adequadamente vestida, boa higiene, algo envelhe- sintomas psicóticos, Esquizofrenia, Transtorno
cida, tala gessada em membro inferior direito, orientada halo e Esquizofreniforme e Transtorno Psicótico Breve. Não existem
autopsiquicamente, memória globalmente preservada, delírios evidências, quer na história ou nos exames, que corroborem as
persecutórios, alucinações auditivas, referia estar se sentindo duas primeiras hipóteses. Em relação à terceira possibilidade,
bem, embora sua apresentação fosse perplexa e assustada, cola- teríamos a seu favor apenas o desenvolvimento de sintomas psi-
borativa com a entrevista, juízo crítico prejudicado. cóticos em padrão episódico; por outro lado, a ausência de alte-
rações do humor afasta essa proposição. Em relação às demais
hipóteses, o fator tempo é crucial. Entretanto, aqui encontramos
Exames laboratoriais
um obstáculo diagnóstico. Segundo o esposo, a duração da alte-
Hemograma, bioquímica, sorologia para Toxoplasmose, sífi- ração comportamental é semelhante ao tempo que permanece
lis e HIV e Tomografia de Crânio, sem anormalidades. fora da aldeia. Supondo que a paciente ficasse seis meses, um mês
ou uma semana longe da aldeia, procederíamos, respectivamente,
Evolução aos diagnósticos de Esquizofrenia, Transtorno Esquizofreniforme
ou Transtorno Psicótico Breve? Essa opção não nos parece razoá-
Como a paciente teria que permanecer em Manaus por um vel, uma vez que, no caso, não traria nenhum esclarecimento adi-
período de, no mínimo, um mês para tratamento ortopédico, cional. Por outro lado, manter a paciente longe de seu ambiente
optou-se pela seguinte conduta: Haloperidol dez gotas de 12/12h apenas por uma vaidade diagnóstica seria no mínimo antiético.
e Clonazepam 0,25 mg de 12/12h e reavaliações semanais. No Considerando a situação real, em que os sintomas duraram entre
primeiro retorno, o quadro estava inalterado, apenas com discre- um e seis meses, a hipótese de Transtorno Esquizofreniforme
ta melhora no padrão de sono, dessa forma mantive as medica- poderia ser considerada para o último episódio, entretanto não
ções, dobrando a dose. No segundo, terceiro e quarto retornos explicaria a recorrência dos sintomas.
apresentava melhora importante e progressiva das alucinações, A particularidade deste caso demonstra certa fragilidade dos
com melhora discreta da sintomatologia persecutória. Com um critérios diagnósticos do DSM IV. Assim, tivemos que buscar
mês em Manaus, recebeu alta da ortopedia, com liberação para subsídios em autores clássicos da psicopatologia,6,7,8 principal-
retornar para a aldeia A conduta psiquiátrica foi de manter as mente no que se refere ao conceito de Reação Esquizofrênica,

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):30-32 31


Reação esquizofrência em paciente indígena

que nos parece ser uma opção diagnóstica razoável. Maris9 traba- Referências Bibliográficas
lha esse conceito, a partir da obra de Nobre Melo, que caracteri-
zaria a Reação Esquizofrênica como: a) quadro de início súbito, 1. Aguiar JIA, Souza JA. Alcoolismo em população Terena no
de evolução aguda, com características paranóide ou catatônica; Estado do Mato Grosso do Sul - Impacto da sociedade envol-
b) inexistência de diferença na apresentação clínica quando com- vente. Anais do Seminário de Alcoolismo e DST/AIDS entre
parado a esquizofrenia; c) difere desta por estar ligada a “fatores os povos indígenas, 2001.
psicogenéticos” e por remitir tão longo seja removida a situação 2. Erthal R.M. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expres-
que a desencadeou. são de conflitos. Cad Saúde Pública 2001; 17(2):299-311.
Os códigos de classificação de doenças trouxeram importan- 3. Levcotivz S. Kandiré: O paraíso Terral – O suicídio entre os
tes contribuições para a prática da psiquiatria, entretanto, não se índios guaranis do Brasil. Belo Horizonte (MG): Te Cora
pode deixar de admitir que trouxeram consigo um engessamento Editora, 1998.
do pensamento clínico e uma tendência à simplificação da psico- 4. Souza MLP. Atendimento psiquiátrico à pacientes indígenas
patologia. Ou seja, como nos diz Nunes10: “O uso indiscrimina- no Estado do Amazonas. Rev Psiquiatr Clin 30 (1):
do de DSMs e CIDs vem transformando a psiquiatria numa espe- 39-40, 2003.
cialidade extremamente fácil. Os sintomas são descritos de modo
5. APA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
simplista e as pessoas acreditam conhecer a especialidade pelo
Mentais -DSM-IV. Porto Alegre (RS): Artes Médicas, 1995.
manejo facilitário dessas bulas. Muitos jovens sabem apenas da
6. Schneider K. Patopsicologia clínica. Madrid: Paz Montalvo,
existência de um certo Karl Jasper que costumava complicar cou-
sas simples tal como os DSMs e CIDs vieram a comprovar”. 1951.
Por outro lado, a singularidade deste caso aponta para con- 7. Jaspers K. Psicopatologia geral. Rio de Janeiro: Atheneu,
clusões semelhantes de pesquisadores nacionais, que evidenciam 1973.
a necessidade de que os estudos em psiquiatria levem em consi- 8. Nobre de Melo AL. Psicopatologia da reação esquizofrênica.
deração a diversidade cultural e étnica de nosso povo,11 visto que Rio de Janeiro, 1954.
o contato com realidades culturais diferentes atua como agente 9. Marins ND. Revisitando a psicopatologia: uma leitura da tese
estressor para o surgimento de transtornos mentais,12 bem como Psicopatologia da Reação Esquizofrência, de A.L. Nobre
a apresentação clínica destes podem apresentar variações cultu- deMelo, (2a parte). J Bras de Psiquiatr 2003; vol 52(1):35-41.
rais relevantes,13 trazendo desafios para utilização dos modelos 10. Nunes PN. Prefácio. In: Bastos LB. Manual do Exame
classificatórios atuais14. Psíquico: Uma Introdução Prática à Psicopatologia. 2a
Edição. Rio de Janeiro: Revinter; 2000.
Summary 11. Barreto AP, Cavalcante AM. Loucura e cultura. J Bras
Psiquiatr 1987; 36(5):299-300.
The author describes a case of a female Brazilian Indian who
developed recurrent psychotic episodes with positive symptoms 12. Shirakawa I, Nakagawa D, Miyasaka LS. Emigração e trans-
when she lefts her community, remitting in the return. The author tornos mentais de brasileiros no Japão. J Bras Psiquiatr 2003;
discusses the difficulty to use the DSM-IV criteria and proposes vol 52(1):75-80.
as alternative the diagnostic of schizophrenic reaction. 13. Sougey EB. Aspectos transculturais das depressões J Bras
Psiquiatr 1992; 41(4):177-183.
Keywords: Cross-cultural Psychiatry; South American Indians; 14. Valença AM, Queiroz V. A psiquiatria, os transtornos mentais
Schizophrenic Reaction; Psicosis. e as variáveis culturais J. bras. Psiquiatr 1997; 46(11):583-587.

32 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):30-32


TRANSTORNOS ALIMENTARES EM DISCUSSÃO MULTIDISCIPLINARa
EATING DISORDERS IN A MULTIDISCIPLINARY DISCUSSION

José Carlos Souza1 pode exigir busto grande e cintura fina, e, no ano seguinte, a figu-
Paulo André Machado Borges2 ra de uma “tábua” é a ordem do dia. Ninguém jamais duvida que,
Rosângela dos Santos Ferreira3 de alguma forma, como num passe de mágica, será difícil as
Carlos Eduardo Gaudioso4 mulheres conseguirem sempre encaixar-se aos padrões exigidos.
Alvina Ishikawa5 De acordo com Laurrence,1,2 a anorexia nervosa afeta uma
Thaís Helena de Paula6 área fundamental de toda experiência e preocupações humanas:
Alberto Alvarez7 o relacionamento entre nós e nosso corpo, entre nós e o que
Marta Vilela8 comemos. As reações de outras pessoas à anorexia parecem con-
Cristiane Aparecida Cruz de Souza9 firmar a idéia de que ela toca em pontos comuns a todos, princi-
Paulo Márcio Bacha10 palmente às mulheres. Geralmente, elas estão conscientes e não
Sandra Gaban11 inteiramente felizes quanto à parte de suas vidas referente à ali-
Francisco Gomes12 mentação e ao físico. Dizer que a anorexia desafia a compreensão
Nilton Genobie13 lógica é quase certamente uma verdade; porém, muitos sentimen-
tos “normais” de outras pessoas em relação à comida e ao ato de
comer, ao nosso corpo e nosso peso, também não são aspectos
Resumo
particularmente lógicos de nossa própria experiência. Sendo
Os autores apresentam caso clínico de anorexia e bulimia assim, a anorexia pode passar a ser vista por alguns, subjetiva-
com depressão maior. Segue discussão por equipe multidiscipli- mente, não como problema, mas como solução.
nar. A apresentação e a discussão ocorreram durante curso sobre Segundo o DSM-IV,3 “as características essenciais da anore-
transtornos alimentares, sendo focados aspectos culturais, diag- xia nervosa são a recusa do indivíduo a manter um peso corporal
nósticos, psicológicos (psicologia profunda e cognitivo-compor- na faixa normal mínima, um temor intenso de ganhar peso e uma
tamental) e nutricionais. perturbação significativa na percepção da forma ou tamanho do
corpo”. Alguns indivíduos acham que têm um excesso de peso
Palavras-chaves: Transtornos Alimentares; Anorexia Nervosa; global, outros percebem que estão magros, mas ainda assim se
Bulimia; Obesidade; Equipe Multidisciplinar. preocupam com o fato de certas partes do corpo, particularmen-
te abdômen, nádegas e coxas, estarem muito gordas. Crisp4 suge-
Introdução re que a anorexia nervosa estaria associada às tensões sexuais e
sociais vividas pelas mudanças físicas da puberdade, constituindo
Desde o mais antigo registro que se tem da moda, espera-se assim uma resposta de evitação fóbica à comida. De acordo com
e exige-se que as mulheres se adaptem aos estereótipos físicos o DSM-IV,2 os indivíduos com anorexia nervosa, quando muito
prevalecentes. Isso não é novidade. Da prática chinesa de amar- abaixo de seus pesos, apresentam sintomas depressivos como:
rar os pés das meninas para conservá-los pequenos, às cinturas de humor deprimido, retraimento social, irritabilidade, insônia e
vespas de nossas ancestrais elizabetanas, a moda raramente signi- desinteresse por sexo, podendo também apresentar sintomas que
ficou algo tão simples como apenas vestir a roupa certa. Ela cos- satisfazem os critérios para transtorno depressivo maior.
tuma também impor mudanças no corpo das mulheres para que Em se tratando da bulimia nervosa, o DSM-IV3 aponta que
as roupas caiam bem. A moda não pára: numa estação, o estilo suas características essenciais consistem de compulsões periódi-

1 - Psiquiatra; Mestre em Psicologia; Doutor em Saúde Mental (UNI- Grupo de Estudos Psicanalíticos de Mato Grosso do Sul (GESP-MS).
CAMP); Professor da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), 10 - Psiquiatra, Psicanalista e Presidente do GESP-MS.

Campo Grande, MS. 11 - Endocrinologista.


2 - Psiquiatra e Psicanalista. 12 - Vídeo-Laparocopista e Cirurgia da Obesidade.
3 - Nutricionista. 13 - Terapeuta Ocupacional e mestrando na UNICAMP.
4 - Psicólogo.
5 - Psiquiatra, Mestra e Professora da Universidade Federal de Mato Endereço para correspondência:
Grosso do Sul (UFMS). José Carlos Souza
6 - Acadêmica do último ano de Psicologia da UCDB. Rua Theotônio Rosa Pires, 88
7 - Psiquiatra e Psicanalista. Vila Rosa PiresCEP 79004-340
8 - Psicóloga, Doutora e Professora da UCDB. Campo Grande, MS
9 - Psicóloga candidata do I.E.P. Instituto de Ensino Psicanalítico - E-mail: josecarlossouza@uol.com.br

a Discussão de caso clínico por equipe multidisciplinar no curso “Transtornos Alimentares”, realizado em Campo Grande, MS, ao longo do dia 15 de setembro de 2001.
Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):33-38 33


Transtornos alimentares em discussão multidisciplinar

cas (em um período limitado de tempo, de uma quantidade de ali- A irmã e M. sempre brigavam, a irmã a chamava de “gorda, feia e
mento maior do que o normal) e métodos compensatórios inade- encalhada”.
quados para evitar ganho de peso (laxantes, purgativos, indução de Entrou em escola particular com cinco/seis anos, lembra-se que
vômitos). Com o ganho de peso pode haver a obesidade como con- ia de fraldas e com a babá. Tinha muito medo e vergonha de pedir
seqüência. Segundo Kaplan,4 “não existem evidências substanciais à professora para ir ao banheiro. Na escola, sempre foi “ótima
que apoiem qualquer hipótese causal para essa perturbação”. A aluna”. Segundo a mãe, sua entrada na escola foi muito difícil: ao
compulsão periódica freqüentemente começa durante ou após um mesmo tempo que queria ir, já que amigos vizinhos iam, tinha que
episódio de dieta. Conforme o DSM-IV, os indivíduos com bulimia ser acompanhada por familiar.
nervosa apresentam sintomas depressivos ou transtornos do humor, Aos sete anos mudou-se do interior para Campo Grande. Veio
podendo haver também a presença de sintomas de ansiedade. com a idéia de que morar em cidade grande era “legal”, mas com o
Os presentes autores, profissionais de diversas áreas da saúde, tempo sentiu-se sozinha.
preocupados com o aumento da prevalência da anorexia, da buli- Sua “tão esperada” menarca aconteceu aos 11 anos, sua mens-
mia e da obesidade, ministraram curso técnico e informativo para truação é irregular, às vezes passa meses sem menstruar e quando
profissionais e estudantes da área de saúde com os seguintes temas: ocorre é intensa. Apaixonou-se a primeira vez aos 11 anos e não foi
Causas e Diagnóstico dos Transtornos Alimentares; Aspectos correspondida. Aos 14 anos teve o segundo namoro, também logo
Culturais; O corpo e a sua imagem; Obesidade; Tratamento interrompido por ele ser “muito problemático”. Aos 16 anos conhe-
Cirúrgico da Obesidade; Aspectos nutricionais; Aspectos endocri- ceu seu último namorado, sendo que terminaram porque ela não
nológicos na Anorexia e Bulimia Nervosa; Enfoque psicanalítico queria ter relacionamento sexual. Seus primeiros relacionamentos
para o tratamento de Transtornos Alimentares; A Psicoterapia não duraram mais que um mês e o último, três meses. Ela teme o
Cognitivo-Comportamental e os Transtornos Alimentares e a atua- sexo, não se sente preparada, por achar que não pode satisfazer as
ção da Terapia Ocupacional. Ao fim das aulas, foi discutido um caso expectativas de seus parceiros e por seu corpo ser “observado”.
clínico verídico, que fora distribuído previamente aos ministrantes Tem a pele seca e apresenta alopécia.
e alunos do curso, o qual será relatado a seguir. Hoje sua única responsabilidade é estudar e o que mais gosta
de fazer é ficar sozinha.
Relato do casob
História familiar
Sua mãe é de família rica e estudou em colégio interno. O pai é
Identificação
de família humilde e se formou em administração de empresas. Os
M., sexo feminino, 18 anos, solteira, estudante universitária, pais sempre trabalharam fora, mas à noite davam bastante atenção
1,62 m de altura, 42 kg, cabelos loiros e curtos. aos filhos. O relacionamento com as filhas sempre foi muito aberto,
de diálogo. Não são moralmente rígidos, existindo apenas um
História da Moléstia Atual ciúme natural. A paciente não se relaciona muito bem hoje com sua
irmã, porque esta teria muito ciúmes dela com a mãe. A paciente e
Aos 15 anos sentiu uma calça jeans apertar. Na época, pesava sua mãe são muito amigas. O relacionamento de seus pais sempre
50 kg; todos diziam que não estava gorda, mas estava insatisfeita foi muito “bonito”, saem para namorar, são carinhosos (sic). A
com seu corpo. Emagreceu 5 kg em um mês. Após longo período união dos pais e da família se abalou muito com a descoberta do
alimentando-se mal, começou a comer muito e a achar que o inge- único segredo que já existiu entre eles, a “anorexia e bulimia nervo-
rido a fazia engordar, por isso provocava vômitos. Fazia muita bici- sa”. O pai passou a fazer uso acentuado de etílicos, julgava-se cul-
cleta ergométrica, a ponto de deitar-se na cama tremendo. Isso pas- pado e que não teria sido um bom pai. Os pais quase se separaram,
sou a ser freqüente e escondido. Ainda hoje, sempre que percebe mas agora estão “bem” (sic).
que engordou “graminhas”, tranca-se no quarto e “malha” muito Embora a mãe relate sobre prima com anorexia, segundo a
(sic). paciente não haveria em sua família casos de anorexia e bulimia ner-
Segundo a mãe, tudo iniciou após M. ter ficado ouvindo seu vosa. Há, sim, de depressão, tanto por parte de pai quanto de mãe
cunhado comentar sobre uma prima que tinha anorexia. Contava (as avós). Por parte de pai há casos de bronquite alérgica e de mãe,
tudo com detalhes, que a prima teria se tornado o centro das aten- câncer. O biotipo da família de sua mãe é de obesos ou com tendên-
ções. Esses comentários foram freqüentes, mas M. afirma que já cia a engordar e, na de seu pai, só alguns são obesos.
apresentava seu transtorno um ano antes disso.
Relatório da escola
Antecedentes pessoais
“Respondendo a sua solicitação sobre a aluna M., matriculada
Nasceu pesando 3.200 g. Apresentou enurese noturna até os no corrente ano (2000) neste Estabelecimento de Ensino na 3ª Série
sete anos, idade em que começou a controlar o esfíncter vesical. do Ensino Médio, nada constatamos em sua conduta que nos des-
Filha caçula, três anos mais nova que sua irmã. M. sempre foi pertasse atenção especial. M. sempre se apresentou de forma corda-
“muito calma”, ao passo que sua irmã era irritada e chorava muito. ta e gentil, com excelente relacionamento com professores e funcio-

b Os dados aqui apresentados são de caso verídico, porém mudaram-se as informações que poderiam permitir a identificação da paciente. Houve autorização prévia dela de
sua família.

34 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):33-38


nários, além de apresentar bom desempenho escolar. Este ano namento. Isso parece iniciar-se com uma simbiose com uma mãe
(2000), foi convidada para monitorar alguns alunos do Curso de pouco empática, que não sabe acolher as dificuldades da filha
Inglês, ao que reagiu de forma positiva.” quando delas oficialmente toma conhecimento, e podemos supor
que negava saber o que já sabia. Neste quadro, temos um pai frá-
Exame psíquico gil, que não suporta o distúrbio da filha, o que procura compen-
sar com tendências orais (beber). Deve ser um pai depressivo e
Comunica-se de maneira lenta (bradipsiquismo e bradilalia), dependente, com baixa auto-estima e incapacidade de lidar com
tom de voz baixo, demonstrando um humor depressivo. Relata já as dificuldades de uma maneira assertiva. Esses pais também ilus-
ter apresentado pensamentos suicidas. Ansiosa quanto a sua apa- tram a importância do tratamento da família como um suporte
rência física. Relata angústia ante a solidão. Relata hipoprosexia para o tratamento da paciente. Com tais pais a paciente não teria
durante os estudos, o que também a deixa ansiosa. Apresenta insô- aprendido a lidar com as ansiedades inevitáveis dos relaciona-
nia inicial. Presença de hiporexia acentuada, por vezes episódios mentos humanos. Denuncia isso e põe em cena seus conflitos em
bulímicos e indução de vômitos. Crítica preservada quanto à molés- seu próprio corpo. O perigo sempre presente é uma desintegra-
tia atual (já leu muito sobre anorexia e bulimia). ção do sentimento de si mesma. A maneira como aprendeu a lidar
é controlando o peso. Poucos gramas fazem grande diferença,
Psicodiagnóstico pois se trata da necessidade de adquirir ou não um sentimento de
si mesma, e de sentir-se íntegra como pessoa.
A paciente apresenta passividade, atitude de expectativa dian-
te da vida, inibição, reserva, nostalgia, desejo de permanecer absor- O caso clínico trata de uma adolescente de 18 anos, bonita e
ta em fantasia. Inferioridade, inibição, constrição e depressão, com- triste. Na primeira parte (historia da doença), chama a atenção
portamento emocionalmente dependente e ansioso. Insegurança, como a paciente repete o verbo ver: viu, via, que aparece várias
timidez, sentimento de incapacidade, falta de energia e confiança vezes. Destaca-se que ela não acreditava quando diziam que ela
em si, personalidade hipersensível. não estava gorda. O tempo reflexivo ver-se está impossibilitado.
Ela viu (quando refere-se à modelo da tevê) esse corpo bonito,
mas ela não se via assim.
Modo de percepção (mundo externo/realidade)
Recusava sair com colegas depois da reeducação alimentar,
Possui capacidade de planejamento de ações a partir da obser- para que não a vissem quando comia. Pouco depois aparece a fase
vação em um contexto mais geral. No entanto, prende-se a uma aná- da anorexia, relacionada com uma desilusão amorosa; e, alternan-
lise minuciosa dos aspectos das situações do seu dia-a-dia. Seu con- do com a anorexia, surgem as fases da bulimia. É interessante
tato com a realidade se dá às custas de instabilidade de atenção e como ela decide abandonar quem considera o grande amor da
inadequação dos afetos. Liga-se à realidade objetiva por meio da sua vida, e isso coincide com a morte de uma prima. Sexo e morte
afetividade, suas reações emocionais são primárias. coincidem, mas ela prefere ignorar, pois ainda não consegue arti-
cular e re-significar esses significantes edípicos.5 É nesse sentido
Feitio de personalidade que ela fica “fora da sexualidade”, procurando um namoro ideal,
em que os corpos não existam. Ela repudia, rechaça todo conta-
Seu modo de revelar o afeto é por meio da habilidade, da sen- to íntimo que lhe confirme a existência do seu corpo de mulher.
sibilidade e da sugestionabilidade. O contato com o meio e a adap- O seu corpo está destinado à paradoxia da autodestruição do
tação a ele são pelas reações imaturas mais ligadas à fantasia, menos objeto para poder conservá-lo. Assim, tragar o objeto amado e
ligadas à realidade. O estabelecimento da situação de si própria destruí-lo equivale a que ela mesma se transforme cada vez nesse
frente ao ambiente e aos outros acontece a partir da ansiedade; a objeto tragado e aniquilado. Entendem-se as referências à elimi-
dinâmica entre os aspectos intelectuais e afetivos provoca reações nação nesse sentido. Quando ela come, devora ou incorpora, tem
emocionais muito imaturas e primárias (relação simbiótica com que eliminar ou destruir o que incorpora, por meio de vômitos,
a mãe). do uso de laxantes, de intensos exercícios de bicicleta. Ela se
auto-elimina da visão dos outros para não desaparecer.
Exames laboratoriais Ela não consegue perder o objeto para reencontrá-lo, e que
assim fosse outro diferente, separado, substituível. Se assim fosse,
Ferro sérico = 38 mg/dL (baixo). Hemácias, hemoglobina e
a lógica seria outra, a do objeto perdido, ausente e reencontrado,
leucócitos normais, assim como colesterol, triglicérides e glicemia.
a lógica do “fort da”. O único meio autônomo de ela conservar o
objeto é ela mesma se transformar em objeto no momento em que
Discussão o aniquila.
Quanto ao conflito amoroso e sexual (não a relação sexual),
há um parágrafo em que ela descreve o que lhe passa, que escla-
Psicologia profunda
rece: “quando vê que alguém está gostando dela ou vice-versa,
M. mostra problemas de sexualidade e afetividade, com os foge da pessoa”. Isso também é típico da bulimia, e se entende
componentes pulsionais e narcísicos atuando paralelamente; a pela referência ao outro. Desde essa identificação, as manifesta-
comorbidade inclui um transtorno de imagem corporal que ções da demanda ao outro se invertem.6 Assim, a única maneira
acompanha sua depressão, fobia social e dificuldades de relacio- de tentar aproximar-se do outro é tomando distância. O outro

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):33-38 35


Transtornos alimentares em discussão multidisciplinar

somente pode ser demandado apresentando-se previamente das à bulimia e à anorexia, apresentou abstração seletiva como:
como excluído. “eu só me sinto bem quando estou magra”; raciocínio dicotômi-
Pensando nos contos de fada, poderíamos imaginar esse co ou do tipo tudo ou nada: “eu não sei ter relacionamento com
outro como uma mescla entre o Ogro Devorador e a madrasta da qualquer pessoa, ou eu namoro ou não fico com ninguém”; per-
Branca de Neve. Lembremos que, no conto, a madrasta pergun- sonalização e auto-referência: “eu fico sem graça e não consigo
ta ao espelho quem é a mulher mais bela do mundo e o espelho comer quando tem alguém me vendo”.
sempre responde que é ela, que não há lugar para nenhuma outra No inventário de depressão de Beck,9 a cliente apresentou 29
mulher. Quando aparece Branca de Neve como rival, desata-se pontos, o que pode ser classificado como uma depressão de
um ódio assassino na madrasta e Branca de Neve tem que fugir. moderada a grave. Para o plano terapêutico, o diagnóstico deve
Ela encontra um lugar entre os anões, onde pode manter o corpo ser complementado com o Inventário dos Transtornos
de menina. Seu corpo de mulher não está nesse espaço regressi- Alimentares10 e a Escala para Auto-estima11.
vo. A maçã envenenada nos dá um simbolismo rico com referên-
cia à oralidade, ao alimento-veneno e o pecado. Qual é o pecado b) Plano de Tratamento
de uma mulher em relação à sua mãe? Aparece como querer ser
reconhecida por ela como outra mulher. Não no lugar da mãe, 1) Fazer a devolutiva e discutir o plano de tratamento.
senão como outra, e por isso mesmo requerendo, nesse momen- 2) Ajudar a paciente a manter controle sobre sua perda de
to, algo do pai. peso e vômitos (isso se dará por meio do diário e de discussão
A alternância anorexia/bulimia pode ser entendida como em com a cliente a cada sessão).
G. Pommier,7 que define assim bulimia em seu artigo: “Bruscos 3) Discutir com a paciente a influência do fator cognitivo
impulsos devoradores, por regressão à pulsão oral, quando o que (pensamentos) em seu comportamento.
acaba de produzir-se no fantasma é a morte do pai”. O autor 4) Explicação do modelo de tratamento cognitivo comporta-
esclarece que, muitas vezes, um sonho pode desatar o inicio de mental para anorexia e bulimia.
um período de bulimia. Existe uma tensão entre regressão à pul- 5) Trabalhar as crenças irracionais gerais e específicas por
são oral e progressão no fantasma de matar o pai. Nessa tensão meio de:
entre ambos extremos é que podemos entender os ciclos de ano- 5.1. Identificação de cognições disfuncionais associadas
rexia-bulimia. Aparecem poucas referências ao pai no relato e as a comer, peso e forma corporal.
mesmas não o mostram como alguém potente e que possa sobre- 5.2. Uso de técnica de desafio dos pensamentos, junta-
por-se a esses embates assassinos. mente com discussão junto ao terapeuta, em abordagem
cooperativa e didática.
6) Abordar outras áreas da vida da paciente tais como: auto-
Abordagem cognitivo-comportamental
estima, depressão, profissão, família e relacionamentos sociais.
Raciocinando de outro modo, em terapia comportamental 7) Aplicar técnicas de imaginação, visualização e relaxamen-
cognitiva, após receber a avaliação médica da paciente, procede-se to específicas e adaptadas para bulimia e anorexia.
à avaliação psicológica, que se compõe dos dois passos seguintes. O tratamento será planejado para duas sessões semanais e
deverá durar em média seis meses. Após esse período, se estiver
a) O Diagnóstico bem, a paciente entrará em processo de alta.

A primeira e a segunda sessões incluem a história de vida da Nutrição


cliente, bem como uma discussão sobre suas dietas e orgias ali-
mentares e, também, o quanto ela provoca vômitos. É solicitado Os transtornos alimentares têm como causa alterações bio-
à cliente manter um diário no qual inclua o tipo e a quantidade químicas e hematológicas que, a médio prazo, irão requerer inter-
de alimentos ingeridos, bem como os eventos cognitivos, emocio- venções para a efetiva terapêutica nutricional. Os objetivos e
nais e situacionais antecedentes. Deverá, além disso, classificar o estratégicas terão como pressuposto fundamental não apenas os
tipo de ansiedade experienciada e distinguir fome de compulsão conhecimentos científicos da ciência da nutrição e dos alimentos,
por comer. Relatará situações de vômitos provocados após a mas, sim, a habilidade do profissional nutricionista em estabele-
ingestão de alimentos. Os registros devem ser mantidos, inicial- cer uma relação de cooperação e afinidade com seu cliente, no
mente, por três semanas para que se forme a linha de base. Tal sentido de criar um padrão de comportamento que propiciará
instrumento – “linha de base” – serve para que terapeuta e melhor adesão ao tratamento. Inicia-se, portanto, com os parâme-
paciente tomem conhecimento de como está o caso em termos tros tradicionais para avaliação nutricional e, concomitantemen-
gerais e específicos. te, as orientações sobre as conseqüências da patologia em si.
Até o presente momento, a paciente preencheu um questio- Na bulimia nervosa e no comer compulsivo, é importante
nário sobre crenças irracionais gerais e específicas,8 sendo que, incluir as medidas de dobras cutâneas e o percentual de gordura
nas gerais, apresentou baixa tolerância à frustração manifestada como forma de maximizar os resultados nas avaliações mensais.
pela frase “tudo que eu faço é muito planejado e não suporto Sabe-se que tanto na anorexia, bulimia nervosa quanto no
quando algo dá errado”. Também, em relação ao desejo de ser transtorno do comer compulsivo o metabolismo energético se
uma pessoa perfeita, relata: “Eu não admito errar, sempre quero encontra alterado e, para tanto, é imprescindível restabelecê-lo
ser perfeita em tudo que faço”. Nas crenças específicas, mais liga- gradativamente para que ocorra a eficiência da termogênese. A

36 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):33-38


modificação do comportamento alimentar nesses indivíduos é o vada e o esquema alimentar deverá conter cardápios com prepa-
que se pretende e, para isso, há de se ter especificidade nas ações rações diet e light.
do cuidado nutricional. A modalidade de atuação do nutricionista como personal
Na Anorexia, é necessário restabelecer o balanço nitrogena- diet, tanto na anorexia e bulimia nervosa, como no comer com-
do positivo pelo fornecimento energético com elaboração de uma pulsivo, possibilitará averiguar, orientar e manter o aconselha-
dieta de baixo valor calórico, na fase inicial de 30 Kcal/kg/dia e mento dietético mais prático e eficaz, comprovando as bases do
ir aumentando de 5 a 10 Kcal/Kg/semana, tornando-se uma guia alimentar demonstrado na pirâmide dos alimentos. Fica,
estratégia básica até atingir 70 a 100 Kcal/kg/dia, para se obter portanto, caracterizado que os conhecimentos técnicos do profis-
sional nutricionista, calcados na psicologia da saúde, na nutrição
uma recuperação de 1,0 a 1,5 kg/ semana do peso corporal, redu-
clínica com a dietoterapia de base, nas atividades funcionais dos
zindo gradativamente até 50 Kcal/kg/dia para sua manutenção. O
alimentos, nas interações entre drogas/nutrientes, na biodisponi-
teor protéico, após início de recuperação do peso corporal, deve-
bilidade dos alimentos e na nutrição esportiva formam o tripé
rá ser aumentado. para a eficácia do tratamento nos transtornos alimentares.
Krause et al.12 referem que após um ano de recuperação de O caso clínico é caracterizado por uma anorética restrita per-
peso, os anoréticos não- bulímicos necessitam de 30 Kcal/kg/dia feccionista, consciente de sua patologia, apresentando episódios
para manter seu peso. A dietoterapia de base deverá considerar bulímicos e compulsão ao exercício físico, com um Índice de
pequenos volumes de alimentos com fracionamento de 2/2 horas; Massa Corporal (IMC= Peso (Kg)/Altura (m_)) de 16, mantendo
alimentos fontes dietéticas pobres em cafeína, pelo seu alto poder um peso de aproximadamente 8 kg abaixo do seu teórico
estimulante, pobre em tiramina (aminopressora), para prevenir mínimo.
crise hipertensiva, quando em terapia medicamentosa de inibido- De acordo com os inquéritos alimentares empregados para
res da monoamino oxidase, pobre em ácido oxálico e ácido fítico, avaliação do consumo alimentar, o recordatório de 24 horas de
a fim de evitar interações nutricionais e potencializar a utilização rotina e de final de semana, observou-se que: os valores calóricos
dos minerais cálcio e ferro. Os cardápios deverão ser criativos, totais de 649,90 Kcal / 781,90 Kcal / 858,63 Kcal, com distribui-
nos quais a técnica da cozinha experimental fará um verdadeiro ção calórica de 16,61% / 72,44% / 10,95%; 16,88% / 69,44% /
diferencial na conduta terapêutica, refletido na prática do novo 13,68% e 23,20% / 51,39% / 25,41%, respectivamente, não
consumo alimentar. A dieta deverá ser hipolipídica, hiperglicídi- refletem a média calórica para manutenção do peso corporal em
42 kg, mesmo diante do retardo metabólico energético, caracte-
ca, normoprotéica, hiper-hídrica, rica em vitaminas, minerais e
rístico da anorexia nervosa.
fibras solúveis e insolúveis e probióticos, restabelecendo a função
Pelo fato de não estar, no momento, sob terapia medicamen-
intestinal, em especial a sua seletividade e, conseqüentemente, o
tosa, por opção própria, não há interação droga/nutriente que
sistema imune. pudesse depletar seu estado nutricional. O grau de anemia ferro-
Na bulimia, é necessário restabelecer o equilíbrio hidroele- priva apresentada pode ser também interpretada pela inadequa-
trolítico, traçar um plano dietoterápico individualizado para con- da utilização de ferro heme e não-heme devido à presença de fita-
trolar o peso corporal, com valor calórico total de 25/Kcal/kg, tos na principal refeição do dia. Portanto, pode-se concluir que
estabelecer uma meta de peso atingindo um índice de massa cor- há incorreta informação do consumo alimentar, distorção esta
pórea de aproximadamente 20 e contrapor os baixos índices característica da paciente com anorexia nervosa em fase não-
metabólicos com terapia combinada: dieta e exercício. A terapêutica.
Associação Dietética Americana (ADA) recomenda duas fases Há de se estabelecer adequada terapêutica multidisciplinar
para o tratamento. A primeira fase é a educacional, em que o para a paciente em questão, contando-se com a adesão dela e de
nutricionista deverá aplicar técnicas oriundas da Nutrição sua família. Caso contrário, prevê-se mau prognóstico, haja vista
Clínica, a segunda fase é a experimental, em que o profissional o exposto.
atuará como terapeuta.
No comer compulsivo, as alterações do comportamento ali- Summary
mentar e da personalidade caracterizam uma transição entre a The authors present a case report of anorexia and bulimia with
bulimia nervosa e a obesidade. O cuidado nutricional deverá tam- major depression followed by its discussion by a multidisciplinary
bém ser apoiado nos trabalhos desenvolvidos pela equipe de tra- team. The presentation and discussion took place during one-day
tamento multidisciplinar e a correção das alterações bioquímicas course on eating disorders.
pelos altos teores de ácido úrico, colesterol total, triglicerídeos,
Key-words: Eating Disorders; Anorexia; Bulimia; Obesity;
glicose sangüínea, que serão alvo preponderante na conduta die-
Multidisciplinary Team.
toterápica. O programa alimentar deverá ter valor calórico total
de 50 a 25Kcal/kg/dia, a ser fracionadas em oito refeições. O
Agradecimentos
monitoramento da aderência ao programa será por meio de diá-
rio alimentar, a prática do exercício aeróbico deverá ser incenti- À Zenilde Bambil do Amaral, pela digitação.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):33-38 37


Transtornos alimentares em discussão multidisciplinar

Referências bibliográficas 7. Pommier G. Anorexia-Bulimia, artículo del libro “La clínica


lacaniana”. Argentina: Ediciones Kliné, 1998: 95.
1. Laurrence M. A experiência Anoréxica. São Paulo: Summus,
8. Ellis A. Reason and emotion in psychotherapy. New York:
1991.
Lyle Stuart, 1962:17-28.
2. Souza JC & Daige IF. Entendendo as Obsessões e
9. Beck A. Terapia Cognitiva da Depressão. Porto Alegre: Artes
Compulsões. Campo Grande: UCDB, 2003: 15.
3. DSM-IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos Médicas, 1995:23-26.
mentais. Trad. Dayse Batista; 4ª ed. Porto Alegre: Artes 10. Garner DM, Olmsted MP, Polivy J. Development and valida-
Médicas, 1995: 511-516. tion of a multidimensional eating disorder inventory for ano-
4. Kaplan H, Sadock BJ. Compendio de psiquiatria dinâmica. 4ª rexia nervosa and bulimias. Internacional Journal of Eating
ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988: 648-656. Disorders 1983; 2:15-34.
5. Pommier G. Transferencia y Estructuras Clínicas. Argentina: 11. Rosenberg L. Society and adolescent self image. Princeton,
Ediciones Kliné, 1996: 169. NJ: Princeton University Press, 1965.
6. Le Poulichet S. La obra del tiempo en psicoanálisis. Buenos 12. Krause, Mahan. Alimentos, Nutrição e Dietoterapia. 9.ª ed.
Aires: Amorrortu Editores, 1996: 163-169. São Paulo: Ed. Rocca, 1988: 495-499.

TRANSTORNO DE CONDUTA HIPERCINÉTICA: DIAGNÓSTICO, ABORDA-


GEM LUDOTERÁPICA E CONDUTA TERAPÊUTICA ABRANGENTE
HYPERKINETIC CONDUCT DISORDER: DIAGNOSIS, LUDOTHERAPY AND COMPREHEN-
SIVE THERAPY

Marcelo Calcagno Reinhardt* Personalidade Emocionalmente Instável; Ludoterapia;


Ceres Leonor Tavares Guedes** Metilfenidato.

Resumo Paciente encaminhado ao Ambulatório Infantil do


Departamento de Saúde Mental (DSM) – Universidade Federal
Apresentado caso de paciente de 10 anos, sexo masculino, de Pelotas (UFPEL) por sua psiquiatra (professora do DSM) em
portador de transtorno de conduta hipercinética: preenche crité- 13/3/02 após acompanhamento psicoterápico por dois anos,
rios para transtorno hipercinético de perturbação da atividade e sendo que, naquele momento, a família passava por dificuldades
atenção (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade - financeiras, não podendo dar seguimento ao tratamento. Agendo
TDAH) e para transtorno de conduta desafiador de oposição. entrevista com a mãe para conversarmos sobre o paciente.
Está associado transtorno específico do desenvolvimento da fun-
ção motora. É realizado diagnóstico diferencial com transtorno
Identificação
de personalidade emocionalmente instável. Várias sessões de
intervenção psico- e ludoterápica são descritas e possibilitam R., 10 anos, masculino, branco, estudante da 4ª série do 1º
interpretação aprofundada do caso. É utilizado o metilfenidato. grau, natural e procedente de Pelotas, RS.
Objetivos abrangentes do tratamento são delineados.
Motivo do atendimento
Palavras-chave: Transtorno de Conduta Hipercinético;
Transtorno de Déficit da Atenção e Hiperatividade; Transtorno R. é trazido para atendimento devido ao seu comportamento
de Conduta Desafiador de Oposição; Transtorno Específico do agressivo e impulsivo, assim como pela “hiperatividade” deste,
Desenvolvimento da Função Motora; Transtorno de segundo a mãe desde os dois anos e meio de idade. Relata que

* Residente do segundo ano de Psiquiatria pela Universidade Federal


de Pelotas
** Profa. Dra. de Psiquiatria da Universidade Federal de Pelotas

38 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):38-44


isso ocorre tanto em casa, com os familiares, quanto na escola, da alteração de comportamento do paciente. Em relação ao
recebendo constantes notificações dos professores. Mostra-se desenvolvimento psicomotor, a mãe diz não se lembrar, apenas
irritado quando contrariado e responde com agressões. Além que foi “normal” e que caminhou com 11 meses. Na linguagem,
disso, R. apresenta incoordenação motora, comprometendo entretanto, apresentou dificuldades, como trocar letras.
a escrita. A mãe relata que R. possui um “temperamento difícil”, pois
não gosta de ser contrariado, reagindo de forma agressiva, “quer
Impressão sobre o paciente tudo na hora, quer que a gente largue tudo para atendê-lo...”, e
ela se desculpa por não ter tempo. Isso acaba por levar o pacien-
Trata-se de um menino de altura e peso aparentemente nor- te a relatar que os pais não o amam, constantemente, repete diver-
mais para a idade, dentes superiores um tanto proeminentes. sas vezes a pergunta: “Tu me ama, mãe?”. Esta justifica a pergun-
Cabelos pretos curtos e bem-penteados. É muito ativo e esperto, ta: “também pudera, aos cinco anos eu o expulsei de casa, colo-
em ótimas condições de higiene, vestido com roupas de boa quei ele na rua mesmo...”. Parece dizer isso de maneira indiferen-
qualidade. te. Ela se queixa da ausência do pai, de ele não colocar limites,
Usa termos muito requintados para sua idade, parece repetir sobrecarregando-a. Ele “fica por bom, é o inteligente, e eu sou a
alguns que escuta em casa, o que é evidenciado nas entrevistas ruim, a burra”. Por outro lado, o pai também usa termos tais
com a mãe. Na primeira entrevista, parece desconfiado no início, como “estúpido”, “burro” e “abobado” para se referir ao filho, o
mas, ao ser conduzido à sala, apesar de ficar observando tudo à que frustra ainda mais o paciente.
volta, demonstra tranqüilidade. Aos poucos se solta nas entrevis- O contato com outras crianças é precário. R. não sai do por-
tas e deixa que sua criatividade dite as brincadeiras das consultas, tão de casa, dizendo que não quer brincar com essas crianças, é
entremeadas de tons de agressividade. então motivo de chacota por parte dos vizinhos de sua idade.
Segundo a mãe, houve uma ocasião em que crianças “de rua”
Situação atual teriam mexido com ele e R. ficou muito assustado, “desprotegido
mesmo e atrás de grades”. Isso o faz passar horas brincando sozi-
A família de R. encontra-se envolvida em problemas financei- nho, com Lego ou videogame. Pouco desenha, por considerar
ros, o que só agrava os problemas conjugais dos pais. O pai fora seus desenhos feios. Quando o faz, usa apenas caneta esferográfi-
transferido para trabalhar em outra cidade e essa situação fez com ca comum, não usa canetinhas ou lápis de cor.
que R. piorasse ainda mais. Isso é evidenciado em nosso primei- Ingressou aos dois anos e nove meses no maternal, tendo tro-
ro contato, quando o menino diz que o que o incomoda é o pai cado de escola por seu comportamento. Atualmente, estuda em
só vir aos finais de semana, que se sente sozinho. Passa a impres- escola particular, no turno da tarde.
são que deve ser um adulto em casa, usa termos do tipo: “Com o
perdão da palavra...”, “Bem, como poderia dizer...”, ou “Ora, é Entrevista com os pais
simples...”, assim como é muitas vezes arrogante, como quando
dá ênfase à casa “enorme” em que moram. A mãe é que comparece às entrevistas iniciais. Possui limita-
A mãe parece muito “perdida” no manejo das situações con- ções no entendimento do filho e sempre há a necessidade de aler-
jugais e nos momentos em que R. se torna agitado, agressivo, tá-la quanto a sua conduta em relação às situações que ocorrem
impaciente. Permite que o menino durma com ela durante a com o paciente. Deixa transparecer que não se importa com ele
semana, não aceita suas dificuldades escolares, o que a deixa em diversas oportunidades, quando se atrasa para buscá-lo na
ansiosa e parece aumentar ainda mais a ansiedade dele. R. tem aula, nas consultas (também para trazê-lo), na maneira rude com
dificuldade em copiar as matérias, sua letra não é bem-feita, que responde às suas reivindicações ou quando não aceita suas
chega a confundir algumas, o que o deixa frustrado em relação dificuldades de coordenação motora. Parece, realmente, possuir
aos colegas e o leva a deixar de fazer temas de casa, atrasar-se nas capacidade diminuída para se inteirar da inadequação
matérias, brigar com os professores, responder com arrogância. desses atos.
Descreve o pai (41 anos) como uma pessoa distante, que só
Situação passada brinca com R. de videogame, ainda assim “parece outra criança”,
no sentido de que compete nos jogos e arrasa o filho quando
R. reside com os pais, a irmã (8ª série) e o avô (87 anos, apo- ganha. São casados há 16 anos, sendo que o marido apresenta
sentado). Sua gestação fora desejada apenas pela mãe e, segundo problemas de uso de álcool, já se submeteu a tratamento, mas há
ela, planejada por ambos. A gravidez foi regida pela insegurança, um ano voltou a beber. A mãe reclama do desinteresse sexual
medo de que ele morresse assim como os filhos homens da avó deste, relata que ela faz tratamento com psicóloga (apresentaria
materna. Aos cinco meses, houve “ameaça de aborto”. Nasceu de pânico há 20 anos, há seis anos sem crises) e que ele deveria igual-
parto normal e já com seis dias sofreu cirurgia de correção do mente tentar.
freio da língua. Amamentou-se por cinco meses, sendo introduzi- Procuro fazer entrevistas semanais com a mãe a fim de orien-
dos sucos a partir dos três meses. Seguiu com uso de mamadeira tá-la em relação às dificuldades de R. Conversamos sobre como
até os três anos e bico até os cinco anos. No primeiro ano de vida, ela precisa aceitar essas dificuldades, para que, ao invés de
era uma criança calma, seu sono era tranqüilo. Porém, devido a cobrança, pudesse mostrar que quer ajudá-lo. Sugiro que compre
um problema financeiro, o pai começou a beber muito, o que um caderno adequado e que proponha uma atividade para refor-
provocou “brigas feias”. A mãe relaciona a isso o aparecimento çar o trabalho desenvolvido ano passado com uma psicopedago-

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):38-44 39


Transtorno de conduta hipercinética: diagnóstico, abordagem ludoterápica e conduta terapêutica abrangente

ga, interrompido também por razões financeiras. Enfatizo, igual- O= orientado auto e alopsiquicamente
mente, o peso que recai sobre R. ao tomar o lugar de “homem da M= sem alterações
casa”, pois tem dormido com a mãe “no lugar do pai” (há dois I= acima da média clínica (avaliação de inteligência realizado
meses). A mãe parece assimilar bem essas informações, mesmo com teste de Matrizes Coloridas de J C Raven, obtendo nível I
que em alguns momentos franza a testa em sinal de pouco que corresponde a Inteligência Superior, para a idade de 11 anos)
entendimento. A= arrogante, hostil segundo relatos da mãe
O pai de R. comparece a duas sessões, quando já havia volta- P= predominantemente lógico, fio associativo mantido,
do a morar em Pelotas, cerca de dois meses após o início do tra- idéias supervalorizadas de desvalia, onipotência e persecutórias
tamento, transferido para uma função menos remunerada. C= prejuízo nas atividades estudantis e no relacionamento
Aparenta ser um adolescente, com aparelho fixo nos dentes. interpessoal, isolacionismo, agressividade verbal e física, hiperati-
Afirma executar todas as abordagens que sugiro, mostrando-se vidade, dificuldade na concentração e na coordenação
perfeito demais, o que não condiz com o relato da esposa. Na motora fina
segunda entrevista, conseguimos colocar situações reais e exami- L= normolalia
ná-las, como uma em que o pai bateu o recorde em um jogo de
videogame e R. ficou muito frustrado. O pai se comporta como Evolução
uma criança, “de igual para igual”. Sugiro maneiras em que possa
se colocar na postura de pai, como propondo que o paciente Sessão de 26-4-02
jogue em seu colo, dando-lhe dicas de como vencer, elogiando-o
Brincadeira com bonecos de borracha da Turma do
na vitória e dividindo a derrota. Procuro igualmente reforçar que
Pernalonga. Estes portam instrumentos musicais, sendo que o
dissesse a R. de seu interesse em entendê-lo, em relação ao medo
paciente distribui os personagens entre nós dois. Deveríamos
de dormir sozinho à noite, o que o leva a solicitar que a mãe fique
fazê-los brigar utilizando seus “poderes”, seja pelo som, seja pelo
em seu quarto, porque “o pai não me entende”.
uso do instrumento como arma. Ele então fica com um persona-
Na entrevista subseqüente da mãe (3/7), esta aponta o alcoo-
gem diferente, era o Mickey “aprendiz de feiticeiro”, teria pode-
lismo do pai como fator rechaçante por parte do paciente, e de
res especiais, jogava “feitiços” sobre seus oponentes. R. “transfor-
como se acalma quando a mãe o coloca para dormir.
ma-se” neste personagem, pega meu guarda-chuva como “vari-
Combinamos procurar atividades que o estimulem pelo gosto e
nha” e coloca um “chapéu” de saco de plástico sobre a cabeça.
pelo contato interpessoal, como leitura e escoteiros, sendo a pri-
Joga feitiços sobre mim, um deles de “dor de barriga”, e contro-
meira aceita por ele e a segunda, não.
lava com outro feitiço, de “aliviar”, que eu pudesse “evacuar”.
Em maio/2002 houve uma entrevista com a psicóloga e a
Obs.: Desejo de extravasar sua raiva, ao mesmo tempo
coordenadora disciplinar da escola onde o paciente estuda.
podendo controlá-la. Isso reflete também o medo de ser agredi-
Foram abordadas as situações em que ele perturba as atividades
do, precisando controlar o objeto.
em aula ou no recreio. Procurei mostrar suas dificuldades e
entender as dos professores, chegando ao acordo de que deveria
Sessão de 3-5-02
ser mostrada ao paciente sua conduta desadaptada (ex.: não espe-
rar sua vez), sendo que, ao não aceitar a colocação, seria explica- Brincadeira de que eu sou o “monstro de olhos verdes” e ele
do o porquê de ser chamado o coordenador pedagógico. Este é o feiticeiro. Ele estava caindo da mesa em minha sala e pedia
daria importância ao motivo pelo qual fora desencadeada a raiva que eu o salvasse, eu o levantava do chão. R. dizia que eu era forte
do paciente e posterior atitude hostil. Em relação ao recreio e à por conseguir erguê-lo. Propõe que brinquemos então de estar
saída, foi constatado alto grau de ansiedade desencadeado por “caindo em um abismo e quem cair por baixo morrerá esmaga-
brincadeiras de grande desempenho físico, como corridas, do”. Ficamos no chão e R. pede que eu não o deixe ficar por cima
“pegar”, assim como não ser buscado pelos pais no horário. Em de mim, segurando-o no chão “pra valer”, o que faço. Por mais
relação à primeira, discutimos a possibilidade de visitas à biblio- que ele tente, contenho-o. Em um dado momento pede que eu
teca acompanhado por coordenador, desde que explicado o con- permita que ele saia, ele então fica sobre mim e pede que eu tente
vite, ou brincadeiras menos vigorosas. Em relação à saída da esco- fazê-lo novamente ficar por baixo. Depois brincamos de cavali-
la, fiz reforço pessoal nesse sentido com os pais, o que seria asses- nho e ele consegue colocar que seu pai está voltando para morar
sorado pelos profissionais da escola. com a família em Pelotas, “uma notícia boa”, mas que irá perder
A psicóloga relata situação ocorrida há um mês, em que a seu cargo de gerente e “passarão dificuldades financeiras, uma
mãe de R. “fizera um escândalo” por este ter caído sobre sua notícia péssima...”. Pergunta se deverá se preocupar com isso.
cadela poodle, dizendo que ele era “um diabo” e que “consegui- Procuro mostrar como seria bom o pai por perto e que não deve-
ra matar o animal de estimação”, coincidindo com um período de ria se preocupar com o dinheiro, seus pais, adultos, “dariam um
piora no relacionamento escolar. jeito”. Voltamos à brincadeira da queda no abismo, ele diz que o
“monstro idiota, bicha, nojento e feio iria perder para o mocinho
Exame das funções mentais bonito, forte e inteligente”, que seria ele, e me vence “quebrando
meu pescoço”. Porém me devolve a vida com um feitiço e nós
C= lúcido “acabamos amigos”.
A= normovigil e hipertenaz Obs.: Pede a alguém que o segure. Em outro momento, con-
S= nada relatado segue compartilhar problemas de família. Ao final, consegue

40 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):38-44


mostrar raiva, mas não destrói desta vez, há um momento digo que não terei forças se for assim. Ele acaba aceitando, ape-
reparador. sar de tentar forçar que eu apresse, o que faço do oito ao dez.
Repetimos o giro e caímos ao chão. Digo que agora terá de ser
Sessão de 10-5-02 até 20, o que faço de forma semelhante. Outro giro e ele volta a
solicitar que repita. Digo que deverei descansar mais, e deverá
Teatro proposto por R. com fantoches, que inicialmente
ser até 30. R. se propõe contar, o que faz muito rápido. Digo que
havia classificado como “idiotas”. À medida em que eu mostra-
assim não ficarei descansado. Ele expressa que não teremos
va a ele como seria interessante brincarmos criando uma histó-
tempo. Prometo que teremos e ele aceita contar em voz alta
ria, parece gostar de inventar uma e eu seria a platéia. Eu deve-
junto comigo, enquanto caminhamos pela sala de mãos dadas.
ria bater palmas a cada ato. Inicialmente, havia um menino que
Cada vez que eu baixasse as mãos, deveríamos dizer o próximo
brigava com seu pai porque este o acusava de roubar sorvetes da
número. Ao final, descansamos montando um quebra-cabeças
geladeira. Não responde quando indago sobre os personagens.
que ele dizia ser “idiota”, mas do qual acaba gostando quando o
Depois havia um outro menino, o “pobre herói”, que teria que
ajudo a montar e digo que fica mais fácil quando fazemos juntos.
enfrentar perigos para salvar seu rinoceronte transformado em
Chega a dizer que apenas eu montara, mas mostro o quanto fize-
foca pela “bruxa malvada”. Passou pelos sapos ferozes, pelos
mos “em equipe”. Ele parece aceitar. Pela segunda sessão conse-
índios canibais, pelos cangaceiros (achou interessante a história
cutiva R. consegue aceitar o horário de acabar a consulta e sua
de Lampião e Maria Bonita, reproduzindo o final dela neste ato)
mãe comparece no horário de trazê-lo e de buscá-lo.
e, finalmente, chegou à “casa mal-assombrada”, onde morava
Obs. 1: Sentindo-se menos perseguido, não precisa de tan-
um fantasma aparentemente malvado, que depois se mostra
tas regras para defender-se, proteger-se.
“legal” com o herói, alertando-o da bruxa. O herói vence a
Obs. 2: Colocando limites, ensinando a aceitar frustrações,
bruxa e consegue salvar seu animal de estimação. Quando colo-
para poder esperar – conter-se.
co do horário que estava se esgotando, ele vira ao chão uma mesa
Obs. 3: Descobrindo o prazer de relacionar-se.
com diversos animais e diz “não consegui me controlar”, pare-
cendo se aliviar com aquele gesto. Coloco que parece não gostar
Sessão de 24-5-02
quando acaba a sessão, ele não responde.
Obs.: Bruxa malvada: mãe castradora. Fantasma: terapeuta, R. chega, neste dia, muito tranqüilo, vamos até a sala de
que o defende da bruxa mãe. brinquedos e, apesar de todos os brinquedos de que gosta não
estarem disponíveis, nem mesmo a caixa com canetinhas e lápis
Sessão de 17-5-02 de cor, ele expressa que poderíamos fazer um desenho “apenas
com caneta, que é como eu gosto...”. Inicio em uma folha dese-
Brincadeira de bola, porém com regras confusas, aos poucos
nhando um “mascote de um time”, idéia proposta por ele, faço
vai deixando algumas de lado e o jogo passa a ficar mais diverti-
um cachorro com um uniforme de futebol. R. inicia desenhando
do. Inicialmente, eu sou “burro” por não entender as regras,
um monstro, logo troca e desenha um jacaré e pela primeira vez
“retardado” quando erro, parece que aos poucos vai aceitando
aceita colorir assim como eu fazia. Elogio seu desenho e ele colo-
seus próprios erros. Coloca que sua mãe o chama de irresponsá-
ca detalhes, pinta de diversas cores e elogia o meu, assim como
vel em relação aos temas e às provas, pergunto se está com difi-
também o dele. Pergunta pelo tempo de consulta, se daria tempo
culdades. Diz que sim. Proponho que seria legal ela ajudá-lo.
de jogarmos, digo que sim, ele parece se conformar. Ao final, diz
Aceita que isso seria bom, mas o restringe pelo horário propos-
que faremos uma copa e nosso jogo não tem regras, apenas
to pela mãe: ele quer de manhã ou tarde da noite, ela quer à noi-
“temos de ficar com a bola (de couro) para ganhar”. Usa pode-
tinha. Proponho que poderia haver um horário em que ambos
res para me vencer, como um “rabo” de crocodilo, meu poder é
pudessem e ele acaba aceitando, pede que eu fale com ela.
latir forte. Quando anuncio o final da entrevista, fica irritado,
Depois propõe um jogo no qual eu deveria tirar a bola dele, mas
leva-me até outra sala e me fecha lá dentro, indo embora ao
eu deveria ficar de pernas bem abertas para “ficar menor”.
encontro de sua mãe na recepção. Vou até lá e ele está com “ar”
Precisa de regras para poder “igualar-nos”, dizendo ser peque-
de indiferença, mas na verdade penso estar com raiva de ter aca-
no. Ele poderia passar por entre as minhas pernas e eu deveria
bado a consulta.
esperar que ele dissesse “deu”. R. então ficava entre minhas per-
Obs.: Por meio da capacidade de simbolizar, consegue
nas para que eu lhe fizesse cócegas. Depois brincamos de “pran-
vivenciar situações de competição sem medo dos seus aspectos
cha de surfe”, eu era a prancha, ele o surfista que deveria ser der-
agressivos (internamente) e sente-se menos perseguido.
rubado por mim. Pede para que ele também seja a prancha, digo
que sou grande demais e que iria machucá-lo, ele insiste que eu
Sessões de junho-02
tente, apenas mostro meu peso apertando meu pé contra seu
peito, ele então aceita que seja apenas eu a prancha. Ele era der- Na primeira consulta deste mês, inicialmente coloco que ele
rubado por mim, caía e “se afogava”, perdendo a bola à qual se me pareceu não gostar quando a consulta acaba, não me dá aten-
agarrava. Eu tenho de salvá-lo, o que faço segurando-o no colo, ção. Logo pede para ver os brinquedos, encontrando uma lagar-
levando-o pela sala, até que entramos em um “redemoinho” e tixa, a qual pede que eu mate. Explico que é inofensiva, mas que
giramos. Caímos ao chão e R. pede que eu repita esta parte. Digo entendo que não goste dela, proponho que a joguemos pela jane-
que preciso recobrar minhas forças e que teria de contar até dez. la, o que faço pegando-a em uma tampa, que deixo cair pela
Inicio a contagem vagarosamente, ele insiste que seja rápida, janela também. R. comenta: “Vão te matar...”, digo que era

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):38-44 41


Transtorno de conduta hipercinética: diagnóstico, abordagem ludoterápica e conduta terapêutica abrangente

somente uma tampa, e que eu poderia buscá-la depois. Em Sessões de retorno das férias (6 e 13-9-02)
seguida R. inventa uma brincadeira em que ele é um vampiro,
Na primeira consulta, R. fala de como está com dificuldade
“Lestat”, e eu sou o “monstro dos olhos verdes”, que não posso
para dormir à noite. Pede ajuda. Ao mesmo tempo, não parece
me deixar morder por ele. Ambos temos poderes e à medida que
satisfeito com nenhuma de minhas “iniciativas” de sugestões para
brincamos inventamos novos poderes, ele consegue elogiar os
que resolvamos o problema, já que se recusa a me ouvir. Digo que
que invento e achar “legal”, o que igualmente faço. Ele então
ele parece ter se sentido “não-ouvido” pelas férias, ele não res-
tem uma “garra”, transforma-se em lobo, solta bolas de fogo pela
ponde. Na consulta seguinte, eu já havia entrevistado os pais e R.
boca. Eu tenho um golpe seqüencial de socos, tenho meu filho,
fala que o fato de o pai o levar para dormir “não era tão ruim
um rinoceronte de pelúcia, que o ataca, e sou grande e forte.
assim...”, e que estava triste pela viagem de sua mãe a trabalho.
Esta brincadeira se repete em duas sessões (sete e 14) e no dia 21
Brincamos de “Lestat” (paciente) e o homem mais forte do
não tivemos sessão devido à Copa do Mundo de Futebol. No dia mundo” (eu), este com as mesmas características do “monstro de
28, comento sobre ele ter vindo e não haver consulta (problema olhos verdes”. O tom se dá quando ele me acerta na região geni-
na secretaria ao não comunicar à mãe dele), consegue dizer que tal e se assusta, brinco de olhar sob as calças e “me alivio” quan-
não gostou. do encontro “tudo em ordem”. Ele pede que eu o acerte “ali”
Proponho jogarmos xadrez, ele dizia gostar. R., então, passa também e repete de forma parecida.
45 minutos em uma única partida comigo. Inicialmente, ridicu- Obs.: Alívio do temor da castração.
lariza minhas jogadas. À medida que não ajo da mesma forma –
ao contrário, elogio as suas –, explico o motivo de ter jogado de Sessão de 27-9-02
uma dada forma, ele torna-se neutro nos comentários, até que
pergunta se sei jogar “mesmo”. Digo que sim, que aprendi há R., pela primeira vez, aceita uma sugestão minha de brinca-
muito tempo. Indaga se já ganhei “alguma coisa” e falo de dois deira sem criticá-la negativamente e aceita também que eu lidere
campeonatos em meu 2º grau, quando fui vice-campeão em parte do jogo: cada um com uma folha de papel, um diria em voz
ambos. Ele então me elogia ao mesmo tempo que comenta: alta características que seu “monstro” teria e ambos o desenha-
“Então se tu és bom assim, estás me deixando ganhar...”. Digo vam, depois comparando-os. Elogia a idéia e depois pede para
que ele joga muito bem e que gostava de jogar com ele, sendo levar para casa os desenhos. Alternávamos no “líder”.
que poderia dar-lhe dicas de como ganhar. Ele não aceita,
porém, quando lhe mostro algumas formas de jogar e deixo que Sessões de outubro de 2002
se decida, acaba por fazer o que eu sugerira, o que elogio como Compareço a apenas três sessões das cinco possíveis neste
jogada dele, deixando-o contente. Ao final, diz ter me ganhado, mês por compromissos extracurriculares, estas sendo intercala-
o que digo que sim. R. fica entusiasmado, me ajuda a guardar as das. R. parece mais agressivo no início e “se solta” aos poucos. Na
peças. Ao sair, comenta que sua mãe ficaria muito brava se sou- segunda sessão, R. propõe jogarmos futebol, o que ele nunca fize-
besse que passamos todo o tempo jogando e que ele não me con- ra por considerar-se ruim. Está tão “solto” que consegue sair-se
tara que está dormindo melhor, sendo uma noite ela, outra o pai muito bem, o que aponto. Isso aparece na entrevista com o pai,
a cuidá-lo. Digo que será nosso segredo. visto que R. está jogando igualmente com os colegas, conseguin-
do ser aceito nos jogos em grupo. Na terceira sessão, após chegar
Sessão de 5-7-02 muito irritado por sua mãe insistir que o paciente estaria com
R. chega e vamos à sala de brinquedos, lá estavam outra pânico, novamente jogamos futebol, sendo que em um chute seu
colega e sua paciente de cinco anos. Ele vai até a menina e para o alto atinge a lâmpada do teto, que cai e se quebra no chão.
comenta de um brinquedo dela que estava ao chão, elogia-o e R. fica muito assustado, começa a culpar-se, enquanto procuro
então vamos escolher outros para brincar. Escolhe “Comandos explicar sobre o acidente, mantendo-me tranqüilo. Em seguida,
em ação”, que levamos até nossa sala. R. inventa uma história notando que ele também pode ficar calmo, sugiro que varrêsse-
com assassinatos, fala muitos palavrões, surgem conteúdos mos o chão. R. a princípio se nega: “então, se não tenho culpa não
homossexuais em sua história e frases. Comento que não deveria preciso varrer...”, com arrogância. Porém, à medida que mostro
gostar que falassem certas coisas dele. Fala que, quando os cole- que entendia o fato de ele estar chateado com o ocorrido e que
gas dizem isso, fica chateado. Diz então que seria minha vez de gostaria de ajudá-lo a varrer, R. acaba por ceder e limpamos a
inventar uma história, mas não deixa, quer fazer de novo sozi- sala cantando.
nho. Digo que ele parece não aceitar sugestões, então “permite”
Sessão de 1º-11-02
que eu participe, ainda com dificuldades em aceitar que eu o
faça ativamente. Sua mãe havia me contado que, na semana ante- Nesse dia, R. escolhe os bonecos Playmobil de piratas.
rior, por ocasião da final do mundial de futebol, pela primeira Passamos a maior parte da sessão dividindo-os entre nós e arru-
vez R. aceitara sair do portão de casa e brincar com outros meni- mando-os com seus pertences nos barcos. Ao final, frustra-se com
nos da vizinhança. Apesar de brigar, a mãe tentou não se envol- o pouco tempo para brincar, combino que poderíamos continuar
ver. Ele contou da briga para ela posteriormente. Combino com na sessão seguinte. R. reluta, diz que “não vai ter graça”, mas se
a mãe que o levasse à Biblioteca Pública, o que ela faria no horá- tranqüiliza quando digo que ele parece ficar muito triste pensan-
rio em que conversaríamos na semana seguinte, o que não ocor- do que eu não cumprirei o que estava prometendo, que brincaría-
reu por “falta de tempo” pelas atividades da mãe. mos sim, o que ele aceita e me ajuda a guardar os brinquedos.

42 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):38-44


Sessão de 22-11-02 (em 8-11 falto por compromisso do servi- F 82 – Transtorno Específico do Desenvolvimento da
ço militar e em 15-11 ocorre feriado) Função Motora
Hipótese pensada por apresentar déficit da coordenação
R. chega à consulta bastante tranqüilo, já busca a bola de
futebol para me driblar, estando bastante afetivo. Debocha que motora, estando presente esta dificuldade desde a primeira infân-
está com facilidade para me tirar a bola, mas não o faz com arro- cia, não se devendo a outro transtorno ou defeito.
gância, e quando o driblo me elogia, assim como também faço. É Desajeitamento, propensão a deixar cair objetos, caligrafia insa-
uma brincadeira gratificante, prazerosa. Comento das olimpíadas tisfatória, com prejuízo escolar. É freqüente esse tipo de transtor-
na sua escola, de cuja participação do paciente fiquei sabendo por no ocorrer associado ao quadro F90.
meio de seu pai. Ele conta sobre alguns jogos, parece contente.
Passamos, após alguns minutos, a jogar boliche, que adaptamos Diagnóstico diferencial
com algumas peças de montar como pinos. Depois ainda brinca-
mos de Lestat e Zé Vampir, eu sendo o primeiro. Sem regras e F 60.3 – Transtorno de Personalidade Emocionalmente
sem poderes, escolha de R., apenas uma “luta-livre”. Sinto-o mais Instável.
“solto”, permite que eu dê palpites, não interfere em minhas Diagnóstico pensado devido ao paciente apresentar tendên-
escolhas, aceita-as, como igualmente não impõe as dele. Ao final, cia a agir impulsivamente, juntamente com instabilidade afetiva.
ainda inventa um novo jogo, “R.-bol”, que ficamos de “testar” na Pouca capacidade para planejar e acessos de raiva que levam à
próxima semana. violência, particularmente em resposta à crítica de outros (tipo
impulsivo). Início precoce e história familiar (mãe com diagnósti-
Sessão de 29-11-02 co de Borderline) o reforçam, porém a dificuldade para definir
um diagnóstico nessa faixa etária e a evolução do quadro não
Nesta sessão, pudemos abordar melhor minha saída (final do
falam a seu favor.
segundo ano da residência médica). R. diz que gostaria que eu
continuasse a atendê-lo, porém anima-se com a idéia de que outro
médico, assim como ocorre com a troca de professor na escola, Discussão
possa lhe ensinar novos jogos e brincadeiras. A consulta transcor- R. é um menino que cresce em ambiente hostil e ameaçador.
re muito bem, brincamos de Playmobil.
Seu pai não consegue passar-lhe firmeza, ao contrário, estimula
uma competição infantil com o filho. Por ser caracterizado pela
Sessões de dezembro
mãe como “alcoolista”, incapaz em sua função de pai e marido,
Neste mês, tivemos duas sessões, sendo que em ambas a tran- R. também não o valoriza. Sua mãe procura ser a mulher e o
qüilidade foi o marcante. R. esteve participativo, disposto a brin- “homem” da casa e, nessas funções, ora atende às exigências do
car de diversos jogos, por um ou outro momento apenas demons- filho de forma inadequada, ora não consegue contê-lo, tornando-
trava certa arrogância, e pôde, em ambas as vezes, me abraçar e se castradora e hostil. Dessa forma, o menino não recebe os limi-
dizer que sentiria saudade, desejando-me boas férias. tes de que necessita para conter seus impulsos, aumentando sua
raiva e seu ressentimento. Seu sentimento de não ser amado vem
HD (CID-10) da falta do amor materno, assim ele se sente sem valor, sozinho,
assustado. Isso é reforçado pelas dificuldades motoras na entrada
F 90.1 – Transtorno de Conduta Hipercinética (ambos os cri-
na escola, aumentando sua desconfiança e sua desvalorização. R.
térios globais para Transtorno Hipercinético, F90, e para
passa a atacar os colegas, tornando-se hostil, arrogante e onipo-
Transtorno de Conduta, F91, são satisfeitos)
tente, única forma de “superar” suas limitações físicas e afetivas.
Hipótese diagnóstica devida ao paciente apresentar início
Defesas maníacas: controle-desprezo-triunfo.
precoce da sintomatologia (antes dos seis anos), sendo a atenção
Com o tratamento, à medida que se sente aceito e consegue
comprometida por situações em que interrompe tarefas ou as
se sentir contido, aceita também seus limites internos e externos.
deixa inacabadas, muda de atividade freqüentemente, parecendo
perder o interesse por distração. A hiperatividade ocorre em As distorções que tem de si e do mundo vão podendo ser, aos
situações que requerem quietude ou seguimento de regras, como poucos, desfeitas, passando a poder se relacionar com os colegas
em sala de aula, o paciente então se agita, fala em demasia, per- e vizinhos e a aceitar a autoridade dos adultos. Na medida em que
turba as atividades. A resposta à psicofarmacologia empregada os pais conseguem entender com mais clareza as dificuldades do
(metilfenidato, 15 mg/dia) reforça o diagnóstico para Transtorno filho, vão encontrando formas mais adequadas de manejar seus
Hipercinético (Perturbação da Atividade e Atenção – F90.0). problemas e, dessa forma, começam a se estabelecer vínculos afe-
Além disso, há associada sintomatologia compatível com tivos mais sadios.
Transtorno de Conduta, especificamente T. Desafiador de Os objetivos do tratamento têm sido:
Oposição (F91.3), por ter comportamento desafiador e provoca- – Psicoterapia individual – focos:
tivo diante do cumprimento de regras e normas, respondendo de • diminuição da impulsividade
forma negativista, hostil, com falta de cooperação. Tendência a • continência dos aspectos agressivos
ser colérico e ressentido, culpando outras pessoas por seus pró- • diminuição da ansiedade persecutória na relação tera-
prios erros e dificuldades. peuta/paciente

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):38-44 43


Transtorno de conduta hipercinética: diagnóstico, abordagem ludoterápica e conduta terapêutica abrangente

– Orientação e acompanhamento familiar – compreensão do Emotionally Unstable Personality Disorder. Several psycho- and
paciente e de suas necessidades, reforçando a importância dos ludotherapic sessions are described which have allowed a more
papéis de pai e mãe mais definidos profound interpretation of the case. Methilphenidate was the
– Farmacoterapia – melhorar atenção e diminuir compound used. Broad objectives of the treatments are
hiperatividade delineated.
– Tratamento psicopedagógico – recuperar déficit motor
O prognóstico nos parece reservado devido aos conflitos dos Key-words: Hyperkinetic Conduct Disorder; Attention-
pais, ficando impedidos de fornecerem ao paciente o suporte afe- Deficit/Hyperactivity Disorder; Oppositional Defiant Conduct
tivo necessário para lidar com o transtorno de conduta associado.
Disorder; Specific Developmental Disorder of Motor Function;
Por outro lado, o paciente pode ser beneficiado pela boa dispo-
Emotionally Unstable Personality Disorder; Ludoteraphy;
nibilidade para estabelecer vínculos positivos e pelos pais terem
Methilphenidate.
buscado ajuda profissional, o que indica pontos sadios e tratáveis
nesta família.
Referências bibliográficas
Summary 1. Assumpção FB. Psiquiatria da Infância e da Adolescência.
We report a case of a 10-year-old boy with Hyperkinetic Conduct São Paulo: Editora Santos, 1995.
Disorder (ICD-10): who meets the criteria for Disturbance of 2. Ferro A. A técnica na psicanálise infantil: a criança e o analis-
Activity and Attention (Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder ta da relação ao campo emocional. Rio de Janeiro: Imago,
– ADHD) and for Oppositional Defiant Conduct Disorder. 1995.
There is an association with Specific Developmental Disorder of 3. Wender PH. The Hyperactive Child, Adolescent and Adult.
Motor Function. A differential diagnosis is proposed with New York: Oxford University Press, 1987.

44 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):38-44


XX CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA - Florianópolis - SC

SESSÃO ESPECIAL DE CASOS CLÍNICOS


Coordenação: Hélio Elkis e Maurício Viotti Daker
Comissão Avaliadora: Luiz Alberto B. Hetem, Othon Bastos e Zacaria Ramadam
17, 18 e 19 de outubro de 2002

APRESENTADORES SUPERVISORES DEBATEDORES TEMAS

Pg. 46
Tatiane Gil. R2 do Hospital Conceição. Faculdade Mario Francisco Juruena Olavo Pinto Espectro Bipolar
Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre Helena Maria Calil Depressão atípica associada a
temperamento hipertímico

Sandra Petresco. R3 do Serviço de Psiquiatria da Luis Augusto Rohde Ana Cristina Mageste T. Bipolar na Infância Pg. 54
Infância de Adolescência do Hospital das Clínicas Pimentel
da UFRGS Marcos T. Mercadante

Pg. 61
Leandro Augusto Paula da Silva. R3 da Residência José Carlos Cavalheiro da Luis Guilherme Streb Esquizofrenia
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG Silveira Itiro Shirakawa T. Esquizoafetivo
T. do Humor

Pg. 68
Keila Albuquerque. R3 da Residência Médica em Osmar Gouveia Mario R. Louzã Neto T. Esquizotípico
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFPE Miguel Chalub T. Borderline

Pg. 75
Flávio José Gosling. R2 da Residência de Luisa de Marillac Terroni Albina Rodrigues Torres TOC
Psiquiatria do Hospital do servidor Público Carlos Eduardo da Rocha T. Delirante
Estadual de São Paulo e Silva Depressão

Ana Paula Gonzaga da Costa. R3 da Residência de Sérgio Paulo Rigonatti Giordano Estevão Catatonia Pg. 82
Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria da USP Salomão Rodrigues Filho ECT

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 45


UM CASO DE DEPRESSÃO ATÍPICA ASSOCIADA A TEMPERAMENTO
HIPERTÍMICO
A CASE OF ATYPICAL DEPRESSION ASSOCIATED TO HYPERTHYMIC TEMPERAMENT

Tatiane Gil * afetivos têm estados bipolares mistos3,9. Durante os episódios do


Mario Francisco Juruena** Transtorno Bipolar, as síndromes de ansiedade estão geralmente
presentes,10 com estimativas de comorbidade entre transtorno do
Resumo pânico e doença bipolar variando de 25% a 33%11. Há evidên-
cias de que o tempo entre os episódios diminui gradativamente
Descreve-se o caso de uma paciente de 44 anos, que vinha em nesta situação.12 Aproximadamente 25% das pessoas com TABI
tratamento para “depressão” há quatro anos, sem obter melhora e até 60% dos bipolares tipo II tentam suicídio durante a evolu-
de seus sintomas. O objetivo deste estudo foi demonstrar como ção da doença13,14.
uma investigação completa sobre o temperamento, história famil-
iar e curso da doença são importantes no entendimento diagnós- Quadro1 - A evolução do Espectro dos Transtornos Bipolares
tico e melhor abordagem terapêutica. Desta forma, enfatizaram-
se os conceitos atuais de bipolaridade e estados mistos e a comor- Bipolar - Transtorno Esquizobipolar
bidade com os transtornos de ansiedade, reconhecendo o quadro Bipolar I Doença Maníaco-depressiva
de depressão atípica apresentado pela paciente como um estado Bipolar I - Depressão com hipomania prolongada
depressivo misto, o que, segundo alguns autores, pode ser decor- Bipolar II Depressão com episódios hipomaníacos espontâneos
rência de um quadro de depressão sobreposto a um tempera- Bipolar II - Depressão superposta a temperamento ciclotímico
mento hipertímico. Bipolar III Depressão recorrente, mais hipomania ocorrendo
somente em associação com o uso de antidepressivos ou outros
Palavras-chave: Temperamento Hipertímico; Depressão Atípica; medicamentos
Estado Misto. Bipolar III - Mudanças de humor que persistem além do abuso de
álcool e/ou estimulantes
Introdução Bipolar IV Depressão superposta a um temperamento hipertímico
Este relato ilustra como casos de doença afetiva podem ser Adaptado de Akiskal e Pinto.1

tratados equivocadamente quando não se leva em consideração o


curso da doença, quando não se investiga de forma profunda o
temperamento dos pacientes e quando uma história familiar cui- Utiliza-se, na literatura, o termo “depressão atípica” de três
dadosa não é realizada1,2. formas distintas. O primeiro inclui pacientes com sintomas de
O grupo dos transtornos afetivos bipolares é extremamente ansiedade fóbica com ou sem depressão comórbida. O segundo
heterogêneo e sua extensão ainda não está definida.3 Tem-se inclui pacientes com sintomas vegetativos – sono, apetite e varia-
expandido a bipolaridade a um amplo espectro (Quadro 1): em ção diurna – inversos aos da depressão melancólica. O terceiro
um extremo, estados maníacos psicóticos e, em outro, depressões diz respeito a pacientes depressivos sem sintomas endógenos.15 A
cíclicas com desregulação de temperamentos1,4. Devido à ausên- reatividade a eventos é descrita, por quase todos autores, como
cia de agitação psicomotora e de uma síndrome maníaca clara, depressão com características atípicas em resposta a situações de
muitos pacientes que pertencem a esse espectro, que vai além da estresse ou hiperatividade emocional (Quadro 2).
mania clássica, são entendidos e tratados como se apresentassem
um quadro de depressão maior.5 De acordo com Akiskal e Relato do caso
Mallya,6 uma abordagem desse tipo poderá induzir mudanças na
natureza cíclica da doença, levando à ciclagem rápida e à
cronicidade. Identificação
Dados atuais sustentam fortemente a posição de Kraepelin,
que enfatiza os estados mistos,7 e indicam que o DSM-IV e a T.P.D., 44 anos, feminina, preta, solteira, procedente de
CID-10 deixam de reconhecer muitos desses casos.8 Dependendo Porto Alegre, filho de 11 anos, técnica em enfermagem, afastada
da definição utilizada, 20% a 70% dos pacientes com transtornos do trabalho há um ano.

* Residente de Psiquiatria do segundo ano, Hospital Nossa Senhora Endereço para correspondência:
da Conceição, Porto Alegre. Apresentadora. M.Juruena@iop.kcl.ac.uk
** Professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da
Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCM-
PA). Section of Neurobiology of Mood Disorders, Institute of
Psychiatry, University of London. Supervisor.

46 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Quadro 2 - Quadro clínico da Depressão com características História pessoal e social
atípicas
Segundo relatos da paciente e familiares, foi uma criança agi-
As características atípicas da Depressão predominam durante as tada e extrovertida; conquistava os amigos pelo seu jeito alegre e
duas semanas mais recentes em Episódio de Depressão Maior, reconhece que era mais ativa que as outras crianças da sua idade.
Transtorno Bipolar I ou II, ou predominam durante os dois anos Constantemente, levava bilhetes da escola para casa pelo seu
mais recentes de transtorno Distímico. comportamento inquieto. Aos 15 anos de idade, seu pai faleceu
de meningite. A paciente refere ter se sentido abandonada e não
A - Reatividade do Humor conseguiu sair de casa por um mês, devido à tristeza. Relata que,
B - Duas (ou mais) das seguintes características: ao contrário da mãe, que tinha um comportamento rígido e cons-
Hipersonia trito de afeto, seu pai era próximo e continente.
Hiperfagia A paciente recuperou-se da tristeza, mas preferiu refazer sua
Fadiga paralisante (intensa letargia) vida em outra cidade. Assim, aos 19 anos, mudou-se para Porto
Sensibilidade patológica à rejeição interpessoal (sensibilidade Alegre sozinha. Teve uma vida bastante agitada; trabalhava
muito, mas sempre tinha tempo de se divertir. Gostava de dançar,
à rejeição), com prejuízo pessoal e ocupacional significativo
sair com amigas, namorar (tinha três namorados ao mesmo
C - Não são satisfeitos os critérios para com características
tempo). Costumava chegar em casa na madrugada, foi rainha do
Melancólicas ou Catatônicas
carnaval da cidade, mas nunca perdera um dia sequer de traba-
lho. Nunca foi de dormir muito.
Adaptado do DSM-IV-TR16
Aos trinta anos comprou seu apartamento e começou a pen-
HMA sar em ter filhos. Refere que a gravidez foi tranqüila e que se sen-
tia numa de suas fases mais felizes. T. foi uma mulher muito vai-
Paciente encaminhada ao hospital-dia do Grupo Hospitalar dosa. Gostava de usar roupas da moda, sempre combinando a
Conceição por apresentar tristeza, choro freqüente, irritabilida- bolsa com o sapato. Seu apartamento é muito organizado e tem
de, desânimo, ansiedade, crises de pânico, sensação de peso nos uma belíssima decoração, segundo entrevista objetiva, que enfati-
braços e pernas, alucinações auditivas e visuais e ideação suicida za que T. alegrava e agitava qualquer ambiente, “era cheia de
refratários a tratamento medicamentoso. vida”. Atualmente, a paciente mora com seu filho em apartamen-
Vinha fazendo tratamento com fluoxetina e amitriptilina há to próprio. Isolou-se dos amigos e familiares. Raramente vai visi-
quatro anos, desde que adoeceu. O início da doença foi gradual tar sua família em Caxias do Sul.
(poucos meses após a paciente ter começado a trabalhar à noite),
com irritabilidade, medo de sentir-se rejeitada e perdendo o pra- Exame do estado mental (no início da internação no
zer pelo trabalho. A ansiedade sempre foi um componente hospital-dia)
presente.
A paciente refere que, quando iniciou o tratamento medica- Aparência: vestida de forma casual e simples, higienizada.
mentoso, obteve melhora leve dos sintomas somente nos dois pri- Não demonstra vaidade. Humor: disfórico, às vezes mais deprimi-
meiros meses. Após, apresentou piora clínica, com sensação de do, choroso, oscilando com animação e irritabilidade.
angústia e agitação interna, inquietação e sintomas tipo pânico. A Pensamento: Com idéia supervalorizada de desvalia e de vítima. A
paciente precisou ser afastada do trabalho pela insegurança e paciente faz uso abundante de mecanismos de defesa maníacos
medo de agredir pacientes e colegas, além da ideação suicida que (negação, onipotência e idealização), como se nunca tivesse apre-
sentado algum tipo de sofrimento prévio ao início dos sintomas
começara a invadir seus pensamentos.
depressivos. Demonstra isolamento afetivo e racionalização. Não
Durante os quatro anos em que a paciente fez tratamento
apresenta delírios, mas refere intensa raiva e medo de descontro-
com as drogas citadas (doses elevadas e em combinação: 60 mg
lar-se e agredir alguém. Sensopercepção: refere alucinações auditi-
de fluoxetina associadas a até 150 mg de amitriptilina), apresen-
vas (vozes que chamam seu nome) e visuais (zoopsias).
tou evolução flutuante, com períodos de leve melhora dos sinto-
Linguagem: bastante emotiva, com velocidade acelerada; possui
mas disfóricos e períodos de recaída. No momento da internação
bom vocabulário e facilidade de expressar-se. Conduta: reluta em
no hospital-dia, referia alucinações auditivas esporádicas. Seu dis-
participar das atividades do grupo, isolamento social.
curso é rápido e emotivo, demonstrando intenso sofrimento.

[Vídeo]
História familiar
É a quarta de uma prole de seis irmãos. Um irmão é alcoolis-
HD
ta e mora com a mãe. Sua mãe tem 76 anos, faz tratamento para
depressão há três anos e parece ter tido personalidade depressiva Eixo I: CID 10: TAB, episódio misto (F 31.6).
durante a maior parte de sua vida. Tem um tio alcoolista e um DSM-IV-TR: Transtorno Depressivo Maior, episódio atual mode-
primo que se suicidou aos oito anos de idade (jogou-se de uma rado, com características atípicas e períodos de sintomatologia
ponte), ambos por parte de mãe. psicótica. Obs.: não fecha critérios para Bipolar II ou Ciclotimia.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 47


Um caso de depressão atípica associada a temperamento hipertímico

Eixo II: DSM-IV-TR: traços de Personalidade Histriônica; O conceito de bipolaridade ainda se encontra em desenvol-
temperamento pré-mórbido hipertímico, segundo Akiskal 1. vimento, o que pode ser visto no renascimento dos estados mis-
Eixo IV: Mãe severa e rígida; perda do pai aos 15 anos de tos, já descritos por Kraepelin7. Sabe-se que pacientes com mania
idade; história familiar de alcoolismo e depressão; discórdia com aguda ou hipomania podem experienciar sintomas depressivos
chefia; discórdia no relacionamento com o filho; falta de amigos proeminentes, condição esta ainda cercada de considerável ambi-
e apoio familiar por isolamento da paciente; má adesão ao trata- güidade e mais comumente conhecida por mania disfórica ou
mento medicamentoso; trabalho noturno no início da doença. mista7,13. Dados recentes sugerem que irritabilidade, distraibili-
Eixo V: autocuidados: 3; família: 4; social: 4; trabalho: 5. dade e aceleração de pensamentos são as características hipoma-
níacas mais comuns presentes durante a depressão bipolar II15.
Evolução Klein e Davis17 propuseram o termo “disforia histeróide”
para descrever um subgrupo de pacientes, geralmente mulheres,
No início da internação no hospital-dia, relutava em partici- que apresentavam depressão com características atípicas e tinham
par das atividades propostas, preferia ficar sozinha. Em determi- comportamento histriônico e extrema intolerância a rejeição. O
nados momentos, demonstrava mais ânimo, contava piadas e sor- estilo de vida agitado dessas pacientes sugere uma conexão ao
ria; em outros, baixava sua cabeça e chorava, demonstrando Transtorno Bipolar II e a outros transtornos do espectro bipo-
intenso sofrimento. Optou-se por suspender os antidepressivos e lar.18 A paciente descrita neste relato apresentou quadro de
iniciar com carbonato de lítio. depressão atípica se classificada pelo DSM IV, com todas as
Depois de um mês sem os antidepressivos e com litemia 0,8 características da disforia histeróide proposta por Klein e Davis.
mEq/l, a paciente mostrou-se mais amigável com os colegas e con- Já pela CID 10 ela se enquadrou no grupo dos Transtornos
seguiu ordenar melhor sua casa, mas permanecia com momentos Bipolares, episódio misto.
de desânimo e desesperança. Também permanecia com a sensação A depressão agitada não é considerada um estado misto nas
de ouvir alguém chamar seu nome, esporadicamente. classificações formais, de modo que a maioria dos psiquiatras
Em nova litemia solicitada, obteve-se resultado 0,2 mEq/l, o hoje a considera uma forma de depressão com ansiedade.2 O uso
que comprovou a dificuldade na adesão ao tratamento. Com nova extensivo de antidepressivos no tratamento de todos os tipos de
litemia de 0.7 mEq/l e com a paciente ainda sentindo ansiedade depressão, sem questionar a natureza real da depressão agitada,
intensa em alguns momentos, além de pensamentos intrusivos de faz com que esses pacientes tenham um desfecho adverso,
morte, optou-se por acrescentar ácido valpróico. Uma semana
incluindo aumento da agitação, da insônia, risco aumentado de
após dosagem de 1.500 mg/dia (dosagem sérica 95 mg/l), a
suicídio e início de sintomas psicóticos19,20,21.
paciente começou a conseguir participar de forma espontânea e
De acordo com Mc Elroy,13 a depressão agitada representa-
amigável das tarefas, e seus momentos de isolamento e labilidade
ria uma depressão grave com mania leve, e a mania disfórica, uma
afetiva diminuíram. Cessaram as alucinações auditivas.
depressão grave com mania severa. A depressão agitada, também
Após alta do hospital-dia, a paciente continuou acompanha-
chamada de estado depressivo misto por alguns autores,6,22 apre-
mento ambulatorial, com sessões de psicoterapia semanais e bom
senta perfil sintomatológico de depressão com aspectos psicóti-
vínculo com o terapeuta. Mantiveram-se 900 mg/dia de lítio e
cos e agitação, humor irritável, pressão da fala e aceleração de
1500 mg/dia de ácido valpróico. Os sintomas disfóricos e psicó-
pensamentos21. De acordo com Akiskal,21 a depressão mista pode
ticos do início da internação já não existiam mais, porém perma-
ser sugerida pela coexistência de sintomas polares (Quadro 3) e a
neceram as queixas de tristeza e desânimo, as quais vêm impedin-
agitação poderá, primeiramente, aparecer após o uso dos antide-
do a paciente de realizar com entusiasmo e dedicação suas obri-
gações de mãe e de dona-de-casa. pressivos tricíclicos.
Após cerca de seis meses de tratamento com o esquema des- A paciente descrita neste relato vivenciou um quadro bipolar
crito e razoável estabilização do humor, iniciou-se olanzapina 10 misto (estado depressivo misto ou depressão agitada), pois apre-
mg/dia, pois a paciente, além dos sintomas depressivos leves sentava sintomas depressivos concomitantes aos maníacos, além
resistentes, de tempos em tempos se queixava de medo de des- de ter apresentado maior gravidade dos sintomas com o uso de
controlar-se e fazer alguma “maldade” contra si e contra seu filho, antidepressivos. Autores referem que a presença de diferentes
com extrema angústia e desesperança. temperamentos afetivos podem influenciar a fenomenologia da
Duas semanas após o início da olanzapina, a paciente não mania19,23,25. De acordo com Akiskal,27 os episódios afetivos mis-
mais referiu ideação suicida e os episódios de ansiedade intensa a tos derivam de temperamentos de polaridade oposta; não são
que esporadicamente referia cessaram. Seu humor e ânimo tam- meramente a superposição de dois estados afetivos opostos, como
bém obtiveram melhora. Passaram-se seis meses desde então. descrito no DSM IV e na CID-10. A paciente em questão apre-
sentou, durante sua vida, temperamento hipertímico (Quadro 4),
o que a ajudou a subir na vida e a conseguir sucesso profissional.
Discussão diagnóstica apresentada pelo supervisor
Quando um hipertímico se torna deprimido, elementos desse
Dados recentes indicam que cerca de um terço dos casos de temperamento aparecem na depressão, mascarando o quadro e
depressão nas unidades psiquiátricas e de atenção primária per- tornando-o disfórico8. Dessa forma, a investigação do tempera-
tencem ao espectro bipolar soft,2 o qual inclui outros transtornos mento terá papel importante na investigação diagnóstica e no
do humor relativamente leves com expressões hipomaníacas estabelecimento das fronteiras entre os transtornos depressivos e
súbitas6. bipolares27.

48 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Vários autores sugerem que os episódios mistos são mais Conclusão
comuns em mulheres, têm um curso mais longo, tendência a cro-
nicidade e menor resposta ao tratamento,13,26 além de maior risco O caso apresentado é um exemplo de como o diagnóstico
de suicídio, pelo alto grau de energia e impulsividade28. No caso pode ser difícil, se tivermos uma idéia pré-formada a respeito da
desta paciente, o curso de sua doença tem duração de cerca de queixa de “tristeza” feita pelo paciente. A “atipicidade” de uma
quatro anos e a resposta terapêutica tem sido parcial. depressão pode ser favorecida pela desregulação de temperamen-
Dados indicam que a resposta terapêutica em pacientes com tos afetivos e pela comorbidade com transtornos de ansiedade,
TAB é de somente 50%, sustentando a associação de intervenção assim se manifestando clinicamente como um subtipo de trans-
psicossocial16. Além disso, uma identificação e diagnóstico preco- torno do humor preponderantemente do espectro bipolar29.
ces podem permitir intervenção no início do transtorno e preve- A experiência clínica indica que a bipolaridade ocorre em
nir um novo episódio afetivo ou contenção rápida da evolução grande parte dos atendimentos primários e psiquiátricos. Esta é
dos sintomas, melhorando o prognóstico e a evolução de casos uma consideração extremamente importante, pois estes serão os
como este12,14. pacientes que, após uma resposta transitória aparente com o uso
de antidepressivos, continuarão a apresentar um padrão depres-
sivo intermitente, crônico, comportamento agitado e excitado e
Quadro 3 - Quadro clínico dos estados depressivos mistos até uma ciclagem freqüente. O reconhecimento desse fenômeno
é importante em saúde pública e em saúde mental, devendo o psi-
Disforia grave e irritabilidade quiatra estar treinado para diagnosticar esses estados e encami-
Agitação psicomotora e inquietação nhar melhor terapêutica. Para tanto, os investigadores e clínicos
Fadiga extrema devem estar atentos à alta freqüência da mania disfórica, e que
Aceleração de pensamento esta pode ser confundida com uma variedade de outros transtor-
Ansiedade flutuante, bem como ataques de pânico nos psiquiátricos.
Excitação sexual exacerbada
Insônia intratável Debate
Aparência “histriônica” com expressões genuínas de sofrimento
Helena Maria Calil*
depressivo
Obsessões e impulsos suicidas Penso que ficaria mais fácil para todos acompanharem a dis-
cussão, se o colega Olavo comentasse o caso primeiramente.
Adaptado de Akiskal, HS.21

Olavo Pinto**

Esse caso, acreditem vocês ou não, é mais importante que


qualquer outra atividade do Congresso. Não estou menosprezan-
do qualquer outra atividade, mesmo porque participo de várias
delas e estaria também me menosprezando. Os elementos conti-
Quadro 4 - Características do Temperamento Hipertímico dos nesse caso são uma enciclopédia do que está acontecendo no
mundo dos transtornos de humor. Começo por dizer, como
Quatro ou mais das seguintes características, que não são liga-
observamos na apresentação, que grande parte do sofrimento
das ao episódio e constituem parte do funcionamento do indi-
dessa paciente foi induzido por nós psiquiatras. Aprofundamos e
víduo a longo prazo: agravamos o sofrimento dessa paciente, que, por sorte, sobrevive.
Exuberância Muitos desses pacientes não vivem para esperar um diagnóstico
Articulação e jovialidade correto. Essa, felizmente, sim, em que pesem o aprofundamento,
Otimismo e independência a gravidade do estado misto que apresentou com o uso de antide-
Autoconfiança pressivo de forma intensa e inadequada. O profissional que a tra-
Nível alto de energia, com muitos planos e atividades tou dessa maneira não carrega em si nenhuma culpa, se vocês
imprevisíveis observaram que pelo DSM-IV o diagnostico é de depressão uni-
Versatilidade com amplos interesses polar, com elementos psicóticos que, na realidade, foram induzi-
Superenvolvimento, intromete-se em assuntos e decisões dos pela medicação. Antes de entrar com aquela medicação, ela
Desinibição e capacidade de correr riscos não apresentava a sintomatologia psicótica.
Geralmente com pouca necessidade de sono (<6 O estado misto pelo DSM-IV cobre apenas 5% dos estados
horas/noite) mistos, 95% deles são deixados de fora. Também os quadros soft
(leves) são deixados de fora. A análise do temperamento no eixo
Adaptado de Akiskal e Mallya6
II, como a Tatiane colocou, é até indevida ou não-recomendada
seguindo-se as classificações oficiais, mas revelou-se de importân-
cia central já que a maioria dos diagnósticos de transtornos de

* Professora Titular de Psicofarmacologia e Livre-Docente em Psiquiatria Clínica, Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina.
** Diretor da Clínica de Neuropsiquiatria, Rio de Janeiro, Brasil. Membro do International Mood Center. Universidade da Califórnia, San Diego, Estados Unidos da
América.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 49


Um caso de depressão atípica associada a temperamento hipertímico

personalidade não dizem nada. Eles migrarão para o eixo I, com doenças afetivas: bipolares, unipolares e até de pacientes normais.
exceção da personalidade anti-social. Não tem sentido evitação Remeto vocês ao trabalho de Sangerschen, publicado no Archives
social, borderline... Organização borderline, sim, se quiserem em 1985, em que ele fala de presença de bipolaridade
colocar organização como o conceito de Kernberg no eixo II, mas nessas famílias.
não como um transtorno de personalidade. Gostaria de falar bre- Esta moça está em uso de drogas que provocam ganho de
vemente sobre essa questão da análise do temperamento. Uma peso em doença afetiva: estabilizadores de humor lítio e dival-
pessoa hipertímica como ela, quando deprime, cai, por definição, proato, e a olanzapina. É uma preocupação que eu trazia, mas
no estado misto. Essa pessoa carrega sintomas do seu tempera- vimos no vídeo que ela está muito bem fisicamente.
mento-base e, se prescrevermos um antidepressivo, sem cobertu- Gostaria, finalmente, de retornar a essa questão do tempera-
ra com estabilizador, sempre resultará no ocorrido. A questão dos mento, que a colega coloca no eixo II. Considero que pensou de
estados mistos do DSM-IV é criticada por vários autores ameri- forma correta, embora isso não seja contemplado nas classifica-
canos, como Susan McElroy e outros, especialmente o estado ções oficiais: no eixo II do DSM-IV, se encontram transtornos de
misto visto do lado depressivo, a depressão agitada como estado personalidade, além de retardo mental. É o que se permite, mas
misto. Remeto vocês a artigo de Koukopoulos escrito na Clínica que, no caso, não nos ajuda. Já a análise do temperamento, de que
Psiquiátrica de setembro de 1999, trabalho magistral sobre a própria paciente tanto falou, permite-nos prever para onde ela
depressão agitada como estado misto. Temos que dissecar o caso migrará quando deprimir. Uma pessoa hipertímica não fará uma
apresentado porque contém exemplarmente essa questão do esta- depressão maior. Será sempre um estado misto (não no conceito
do misto e a questão da comorbidade. A comorbidade com doen- do DSM-IV), porque, quando deprime, carrega elementos do
ça ansiosa: começam a aparecer diagnósticos de pânico, de ansie- temperamento Geralmente os elementos são acelerações do pen-
dade social, elementos de TOC, tudo isso no âmbito do estado samento, uma certa agitação, que às vezes é grave porque a cog-
misto. Estado misto é uma fonte inesgotável de sintomas e síndro- nição depressiva pode trazer idéias como a de morte e de suicí-
mes. É a grande imitadora da psiquiatria atual. O que a tubercu- dio, sendo que essa pessoa está acostumada a agir. É uma pessoa
lose foi para a medicina nos anos 40 e 50, em que para qualquer de ação, é uma pessoa que tem a idéia e age, de modo que a
caso clínico se pesquisava TBC, hoje, para qualquer paciente que depressão num paciente desses é quase uma emergência clínica.
vocês receberem, esteja ele em delirium, em quadro psicótico, em Ela não vai apenas ruminar com a ideação suicida, ela tende a
quadro afetivo, em quadro ansioso, procurem estado misto. O agir. Confesso ter ficado surpreso à leitura de cada parágrafo
estado misto é um camaleão, uma hora ele de apresenta com uma desse caso, quase não acreditei no impacto que muito da pesqui-
face, outra hora com outra. E quando se indroduz antidepressivo sa de nosso grupo teve aqui, em Porto Alegre e em outros luga-
sem proteção, ocorre o que vimos nesse caso. res, onde vemos pessoas falarem com intimidade sobre nosso
Outro aspecto interessante do caso é mostrar a evolução do conceito de estado misto, nosso conceito de temperamento, de
tratamento. Mostrar que o lítio não é tão efetivo nessas formas, e espectro bipolar. Como nos Estados Unidos, onde também está
da grande utilidade de certos anticonvulsivantes e, principalmen- havendo essa repercussão, muito embora paralela ao sistema ofi-
te, dos antipsicóticos atípicos. Lembrar que a fase em que nossa cial. Para vocês terem uma idéia, houve uma reunião de consen-
colega assumiu a paciente já era uma fase extremamente resisten- so sobre doença afetiva no Instituto Nacional de Saúde Mental há
te. Aquilo que se dizia de borderline, que era estável na instabili- dois meses e a palavra bipolar sequer foi mencionada. Falou-se
dade, na realidade serve para definir estado misto: é instável, mas apenas de depressão unipolar. O sistema oficial ainda continua na
é estável. E é agora uma forma já resistente ao tratamento. É pre- dualidade borderline, depressão e esquizofrenia, quer dizer, trans-
ciso muita tenacidade, a paciente já está esgotada, como ela torno de personalidade borderline associado a depressão e a
demonstrou no vídeo, desesperançada, porque, na realidade, esquizofrenia. E assim marchamos. Há uma resistência da oficia-
estes pacientes não são entendidos. lidade muito grande, mas nos consultórios vejo pessoas do Brasil
Outra coisa: depressão atípica. É uma pena que o sistema inteiro falando: “o que é isso? A partir do momento de ler isso ou
DSM só trouxe depressão atípica na edição IV. Até o DSM-III-R, ler aquilo, no meu consultório só encontro bipolar, eu reconheço
atípico era sem outra especificação. Não trazem a realidade cien- é bipolar, eu estou com algum problema?” Não, é a realidade!
tífica, a de que esse quadro é mais ligado ao transtorno bipolar do Virá artigo do Angst, a ser publicado em breve,a com uma preva-
tipo II. Eles poderiam colocar um pequeno asterisco: “em presen- lência de 25% de transtorno bipolar no cohort dele de Zurique e
ça de depressão atípica, pensar bipolar, pesquisar bipolar”. Não de 10% de unipolar. Quer dizer, as evidências estão emergindo, a
precisa dizer que é bipolar, pois existem muitas depressões uni- pressão está vindo de baixo para cima, são as pessoas que estão
polares que preenchem critérios da atipicidade, mas pensar no front, é você que está no front, que vêem essa nova realidade.
em bipolar. Em congressos 15 anos atrás havia grande número de palestras
Também o fato de esquemas diagnósticos não incorporarem sobre depressão resistente. Essas palestras praticamente sumi-
a história familiar. Vocês notaram que a história familiar é carac- ram, qual a explicação? Esses mesmos pacientes estão sendo vis-
terística. Quem teve a oportunidade de estar no Rio ou em São tos de uma forma diferente. Que paciente é esse que não melho-
Paulo na palestra do professor Akiskal mostrando heredogramas ra com vários antidepressivos, mas adiciono o lítio e ele melhora?
em que suicídio, impulsividade, abuso de drogas, depressão, Parabéns, excelente. Recomendaria a cada um refletir sobre
depressão unipolar se encontram na história familiar de todas esse caso, isso mudará a vida de muita gente. No próximo con-

a - Publicado no Journal of Affective Disorders, janeiro 2003.

50 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


gresso, podem me cobrar, se isso não for verdade. Parabéns nova- referiam-se a centenas de patologias). Nessa síntese, separou a psi-
mente, obrigado. cose ou insanidade maníaco-depressiva da demência precoce, hoje
esquizofrenia. Incluíram-se os critérios de evolução periódica ou
Helena Calil episódica da doença maníaco-depressiva, seu prognóstico mais
benigno e a história familiar, que foi bem-abordada, embora com
Dispondo de apenas dez minutos, procurarei trazer, muito algumas falhas, na apresentação deste caso. Kraepelin molda, na
brevemente, um pouco da outra vertente para discutir, de modo sua nosologia/nosografia, portanto, as classificações atuais CID-10
que não fiquem, nesta apresentação, a partir de seu título, com a e o texto revisado da Associação Psiquiátrica Americana, o DSM-
idéia apenas do espectro bipolar e com as propostas do Prof. IV. E essas classificações, na realidade, diferem muito pouco. Tanto
Akiskal. De qualquer forma, reconheço e valorizo muito o esforço a depressão unipolar e o transtorno bipolar estão no capítulo dos
de todos que selecionaram esse caso, mas não posso deixar de Transtornos de Humor. Foi apenas em 1957 que Karl Leonhard,
comentar que a descrição e até o vídeo têm alguns problemas. um alemão, fez essa distinção entre bipolar e unipolar, que, infeliz-
Porque dependem da visão, da subjetividade de quem os preparou. mente, de um lado, mudou muito ou influenciou o conceito atual,
De um lado, tanto a descrição, assim como a discussão e também principalmente americano, dessa dicotomia tão grande entre uni-
as referências bibliográficas, como o Olavo citou (tivemos acesso a polar e a doença bipolar, como vocês viram apresentadas aqui nas
essas informações antes, é bom que saibam disso), enfim, na descri- idéias ou hipóteses do Prof. Akiskal. David Dunner propôs a sub-
ção do caso há um excesso de informações que eu chamaria, do divisão em bipolar I e bipolar II, o tipo II apresentando apenas
ponto de vista psiquiátrico mais estrito, de supérfluas, sobre o com- hipomania. Depois foi caracterizada a depressão sazonal por
portamento da paciente. Por exemplo, número de namorados, rou- Rosenthal, do grupo do Goodwin, incorporada no DSM-III-R.
pas da moda, um filho mesmo sendo solteira, carnaval em Porto Há diferença entre CID-10 e DSM-IV no que diz respeito à
Alegre, quer dizer, são detalhes que não nos ajudam no diagnósti- ausência de distinção clara entre transtornos bipolares I e II na
co de nenhum paciente. Por outro lado, existe muito pouco a res- CID-10. O DSM-IV traz critérios específicos para hipomania e
peito da psicopatologia da paciente. Foi mencionado várias vezes para episódios mistos, o que é muito importante, e para mania. Na
que essa paciente tinha alucinações, mas quais alucinações? Isso CID-10, tanto distimia quanto ciclotimia estão como transtornos
seria muito importante sabermos. Vozes ouvindo chamar o nome persistentes do humor, enquanto que no DSM-IV se encontram,
podem ser pseudo-alucinações e não necessariamente alucinações. respectivamente, entre os transtornos depressivos e os bipolares. O
Muitos deveriam estar esperando que eu viesse pronta para DSM-IV traz uma série de especificadores para os episódios
criticar o tratamento, na condição de especialista em depressivos, que incluem as características atípica (inclusive para a
Psicofarmacologia. Estranha-me muito, sim, o tratamento de qua- distimia), melancólica, catatônica e com início pós-parto, além de
tro anos sem melhora, ou com melhora parcial. Posso mencionar especificadores para a condição clínica (gravidade, sintomas psicó-
que, de fato, não foi bem-conduzido esse tratamento. Por quê? Se ticos, remissão) e para o curso dos episódios recorrentes, como a
a paciente teve uma má resposta a esse tratamento, não havia neces- sazonalidade e a ciclagem rápida.
sidade nenhuma de aumentar a dose, elevar a dose de fluoxetina Julguei importante trazer essa contribuição. Apesar de ouvir-
para 60 mg e ainda acrescentar uma dose terapêutica de amitripti- mos muito falar do Prof. Akiskal e seus colaboradores, e todo esse
lina. E, nesse caso, existe interação medicamentosa por conta das caso está centrado na proposta do Prof. Akiskal inclusive utilizan-
enzimas hepáticas bloqueadas, sendo que a paciente pode ter sido do sua terminologia, acho que uma outra visão é importante e
acometida até por um quadro de intoxicação por razões farmaco- necessária para a discussão. Principalmente quando consideramos
cinéticas. que o Prof. Akiskal é muito polêmico, tanto que no ano 2000
Mas, e a questão das classificações? Mesmo reconhecendo ganhou o prêmio “IgNoble” da Universidade de Harvard. Muito
todo o esforço de vocês, quando se fala de DSM-IV ou de CID-10, obrigada.
não se pode, de maneira alguma, equipará-los às propostas de
Akiskal, porque estas não são critérios de diagnóstico, são propos- Mario Juruena
tas. Na verdade, o conceito de transtornos do humor tem uma evo-
lução histórica que vem desde antes de Cristo, alguns, com O Dr. Olavo Pinto, nesse clima eleitoral, solicitou direito a
Hipócrates, que já falava de melancolia e de mania. Areteus, que é uma tréplica!
citado por Akiskal, já no século I sugeria que mania era o estágio
final da melancolia. Galeno, também, estabeleceu a melancolia Olavo Pinto
como uma condição crônica e recorrente. Após a idade média, há
vários relatos da associação entre depressão e mania, por diversos Apenas para lembrar e ser honesto com quem é o Dr. Hagop
autores em diferentes países, entre eles Esquirol. Mas foi em 1853 Akiskal, há um mês ele ganhou o que é chamado o Nobel da psi-
e 1854 que, independentemente, Falret e Baillarger descreveram quiatria, prêmio único dado pela WPA no congresso mundial de
“La folie circulaire” e “La folie a double forme”, respectivamente, 2002, realizado em Yokohama (Jean Delay Prize). É detentor de
o que é considerado a primeira concepção explícita de melancolia prêmio da Sociedade de Psiquiatria Biológica (Medalha de Ouro).
e mania como uma doença única. Griesinger também descreveu Premiado pela APA, como único médico que conseguiu transfor-
melancolia e mania como uma doença. Kraepelin, já na virada do mar a prática clínica em ciência. Quer dizer, é hoje o psiquiatra
século, em 1899, na sexta edição de seu Tratado de Psiquiatria, fez mais premiado, talvez, no mundo. Não conheço muitos outros com
uma síntese de classificação (as classificações existentes na época semelhante reconhecimento mundial.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 51


Um caso de depressão atípica associada a temperamento hipertímico

Gostaria de dizer que essas classificações possuem bastido- Tatiane Gil


res. Para que façam uma idéia, vocês sabem que no DSM-IV
consta um período de pelo menos quatro dias de duração para a Sempre, desde a infância.
hipomania, ou seja, o cut off da hipomania é de quatro dias.
Conheço a pessoa que participou do grupo-tarefa de transtorno Mario Juruena
de humor e perguntei-lhe como chegaram a quatro dias.
Respondeu-me que votando! Os membros votaram quatro dias. Certo, desde a infância, isso é importante. Desde criança
Não foi baseado em nenhuma pesquisa. As pessoas entenderam apresenta essa história de agitação, de comportamento agitado e
que quatro dias seria melhor e assim ficou definido. extrovertido, que culminou com evento de vida traumático aos
A última coisa que eu gostaria de dizer é o seguinte: quando quinze anos, quando desenvolve quadro depressivo. A partir daí,
vocês estão cuidando de um paciente, se algo der errado não é manifesta um episódio hipomaníaco aos 19 anos de idade.
possível ficar ligando para o pessoal do task force do DSM-IV, ou Portanto, não foi um início aos 40 anos.
dar esse telefone para o familiar do paciente que se suicidou. Será
você, o paciente e a família. Chamo mais uma vez a atenção para Eudes José Garcia Lima
que, ao tratarem pacientes como o aqui apresentado, extrema-
mente resistentes ao tratamento, em que se troca o antidepressi- Ela era uma pessoa saudável, produtiva e alegre até os
vo, associa-se antidepressivo e se tenta todas a técnicas para tra- 40 anos.
tamento de depressão resistente, tentem saber sobre a história
familiar desse paciente, tentem saber como ele é, qual o tempera- Helena Calil
mento dessa pessoa, e se encontrarem o que a Tatiane encontrou
e seguirem o caminho que seguiu, acho que vocês um dia reco- Sim, normal para o jovem, com comportamento característi-
nhecerão a importância de tentar isso. A partir de um paciente
co de jovem. Respondendo à pergunta...
paciente vocês não vão precisar ouvir mais ninguém, porque
saberão qual é o caminho.
Mario Juruena
Maurício Viotti Daker
Por favor, apenas para concluir. Uma pessoa que não dorme,
como ela, que saía de um trabalho de auxiliar de enfermagem,
Casos clínicos são assim: vários aspectos, visões e nuanças
que dava plantões, que ia direto para o ensaio de carnaval, per-
que surgem e o tempo para a discussão acaba exíguo. Com a pala-
manecendo dias seguidos sem dormir – e sabemos que a privação
vra a platéia para duas ou três participações, que são sempre
do sono é um dos indutores dos quadros bipolares –, isso associa-
muito enriquecedoras.
do a uma vulnerabilidade, que ela tinha, pois apresentara aquela
Eudes José Garcia Lima (MG) situação depressiva anterior, desencadeou seu transtorno.
Portanto, existe toda uma tendência, já da própria paciente, a
Quando eu vejo uma depressão que não melhora de modo desenvolver esse quadro hipomaníaco numa situação de estresse.
algum com antidepressivo, que de repente melhora com anticon- Foi assim que nós compreendemos o quadro.
vulsivante, uma depressão que é bem atípica, um quadro chama-
do de bipolar que começa aos 40 anos, quando a idade usual é de Tatiane Gil
vinte e poucos anos, uma depressão que foi melhorar com antie-
piléptico, antipsicótico e o lítio (só faltou prescrever antidepres- Após a perda do pai, ela apresentou sintomas de depressão,
sivo novamente), será, enfim, que o diagnóstico seria mesmo de que ela refere no vídeo e que não tínhamos salientado muito.
algo bipolar? Não deveríamos pensar numa depressão orgânica, Foram realizados muitos exames complementares, como ele-
num transtorno orgânico depressivo? E os exames complementa- troencefalografia e tomografia, todos normais.
res, o eletroencefalograma?
Helena Calil
Martha Noal (RS)
Isso excluiria, portanto, o que foi comentado a respeito de
Ficou bem claro que existe uma polêmica, que me parece até quadro orgânico.
política. Enfim, algo que não entendemos exatamente. Mas não Tentando agora responder à pergunta sobre uma formulação
ficou claro qual é a visão diagnóstica da Dra. Helena Calil. Afora diagnóstica possível, penso, para essa paciente, num quadro de
a questão política da nosologia psiquiátrica, qual é a sua impres- depressão em comorbidade com ansiedade, e um caso grave que
são diagnóstica do caso? interferiu no desempenho de suas funções em todos os sentidos,
inclusive no trabalho. Disse grave, se é que ela apresentou real-
Mário Juruena mente sintomas psicóticos. E, como não melhorou apenas com
antidepressivos, seria o caso de se pensar em associação de anti-
A paciente, na realidade, começou com quadro maníaco ou depressivo com antipsicótico, não em associação com outro anti-
hipomaníaco em torno dos 19 anos de idade, logo após. . depressivo. Quero dizer, o melhor tratamento para esse caso seria

52 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


antidepressivo e antipsicótico ou eletroconvulsoterapia. Espero Bipolar Ilnesses. Bipolar disorders Clinical Course and outco-
ter respondido. me; 1999:237-258.
11 Perugi G Depressive comorbidity of panic, social phobic and
Summary Toc: is there a bipolar connection? J. Psychiatr. Res. Jan-Feb
1999; 33 (1): 53-61.
We describe a case of a 44 year-old patient who had been treated
12 Piccoloto N, Wainer R, Benvegnú L, Juruena, MF. Curso e
for “depression” for 4 years without improvement of symptoms.
Prognóstico da Depressão – Revisão Comparativa entre os
The purpose of this study is to show the importance of a com-
Transtornos do Humor. Revista de Psiquiatria Clínica 2000;
plete investigation about the temperament, the family history and
27 (2): 93-103.
the course of the illness on the understanding and better treat-
13 Mc Elroy SL Clinical and research implications of the diagno-
ment of a case. In this way, we have emphasized the current con-
sis of dysphoric or mixed mania or hypomania. Am. J.
cepts of bipolarity and mixed states and the comorbity of anxiety
Psychiatry 1992; 149:1633-1644.
disorders, recognizing the episode of agitated depression pre-
14 Juruena M – Bipolar II and Bipolar I Disorder: More
sented by the patient, as a mixed state, what, in agreement with
Differences than DSM-IV Diagnostic Criteria. The
some authors, could be the result of an episode of depression
International Journal of Neuropsychopharmachology 2000;
superimposed by a lifetime hyperthymic temperament.
3(1): S337.
Key words: Hyperthymic Temperament; Agitated Depression;
15 Juruena M. Terapia Cognitiva: Abordagem para o Transtorno
Mixed State. Afetivo Bipolar. Revista de Psiquiatria Clínica 2001; 28 (6):
322-330.
Agradecimentos 16 DSM-IV-TR – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais. Trad. Cláudia Dornelles; - 4.ed. rev. – Porto Alegre:
CCP agradece Jovana S. Veiga Lima e Robson Kasunori Artmed, 2002: 412.
Tokuda, residentes de psiquiatria do Hospital das Clínicas da 17 Klein DF, Davis J. Diagnosis and treatment of Psychiatric
UFMG, pela contribuição na transcrição do debate. Disorders. Ed. 1. Baltimore: Williams & Wilkins, 1968
18 Perugi G, Akiskal HS. The High Prevalence of “Soft” Bipolar
Referências bibliográficas (II) Features in Atypical Depression. Com Psychiatry 1998;
1 Akiskal HS, Pinto O. The evolving bipolar spectrum. 39(2):63-71.
Psychiatr Clin North Am 1999; 22:517-534. 19 Koukopoulos, A. Koukopoulos, A. Agitated depression as a
2 Manning JS. The role of bipolarity in depression in the family mixed state and the problem of melancholia. Psychiatr Clin
practice setting. Psychiatr Clin North Am 1999; 22:689-703. North Am 1999; 22:547-562.
3 Akiskal HS. Gender, temperament, and the clinical picture in 20 Akiskal H.S. The prevalent clinical spectrum of Bipolar
dysphoric mixed mania: findings from a French national Disorders: Beyond DSM-IV. J. Clin. Psychopharmacol 1966;
study. J Affect Disord 1998; 50:175-186. 16:4-14.
4 Akiskal HS. Clinical Validation of the Bipolar Spectrum: 21 Akiskal HS. Delineating Depressive Mixed states in the cour-
Focus on Hypomania, Cyclothymia, and Hyperthymia. 154th se of bipolar I disorder. American Psychiatric Association
Annual Meeting of the American Psychiatric Association. Day 153rd Annual Meeting.
1 – May 5, 2001. 22 Koukopoulos A, Faedda G, Proietti R. A mixed depressive
5 Perugi G Anxious-Bipolar comorbidity. Psychiatr Clin North syndrome. Encephale 1992;18:19-21.
Am 1999; 22:565-579. 23 Henry C Temperament in bipolar illness: impact on progno-
6 Akiskal HS, Mallya G. Criteria for the “soft” bipolar spec- sis. J Affect Disord 1999; 56:103-108.
trum: treatment implications. Psychopharm. Bull. 1987; 24 Savino M, Perugi G, Akiskal HS. Affective comorbidity in
23:68-73. Panic Disorder: Is there a Bipolar connection? J. Affect.
7 Kraepelin E. Robertson GM ed., Barclay RM trans. Manic Disord 1993; 28:155-163.
Depressive Insanity and Paranoia. Edinburgh, Scotland: E&S 25 Akiskal HS. The mixed states of bipolar I, II, III. Clin
Livingstone; 1921 Neuropsychopharmacol 1992; 15:632-633.
8 Perugi G The contrasting influence of depressive and 26 Cassano GB, Akiskal HS, Savino M, Musetti L, Perugi G.
hyperthymic temperaments on psychometrically derived Proposed subtypes of bipolar II and related disorders: with
manic subtypes. Psychiatr Res 2001; 101:249-258. hypomanic episodes (or cyclothymia) and with hyperthymic
9 Marneros A. Expanding the group of bipolar disorders. J temperament. J. Affect. Disord 1992; 26:127-140.
Affect Disord 2001; 62:39-44. 27 Perugi G, Akiskal HS Clinical subtypes of Bipolar Mixed
10 Jonathan, M. Himmelhoch, MD. Joseph F. Goldberg, MD, States: validating a broader European definition in 143 cases.
ed; The Paradox of anxiety Syndromes Comorbid with the J. Affect. Disord 1997; 43:169-180.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 53


Um caso de depressão atípica associada a temperamento hipertímico

28 Swann AC, Secunda SK, Katz MM, Croughan, J. Specificity 29 Akiskal HS. The Depressive Phase of Bipolar Disorder: Focus
of mixed affective states: clinical comparison of dysphoric on Bipolar II. 154th Annual Meeting of the American
mania and agitated depression. J. Affect. Disord 1993; 28:81-89 Psychiatric Association. Day 1 – May 5, 2001.

TRANSTORNO BIPOLAR NA INFÂNCIA E DIAGNÓSTICO DIFEREN-


CIAL COM TDAH
PEDIATRIC BIPOLAR DISORDER AND DIFFERENTIAL DIAGNOSIS WITH ADHD

Sandra Petresco* mento de uma criança. Tem despertado inclusive o interesse da


Carolina Rothfuchs Ribeiro** mídia, sendo tema de capa da Time (“Young and Bipolar”). Está
Thiago Gatti Pianca*** associado a taxas alarmantes de suicídio na adolescência, repetên-
David Bergman**** cia escolar, agressão, comportamentos de alto risco, como pro-
Silzá Tramontina**** miscuidade sexual e abuso de substâncias, altas taxas de recorrên-
Maria Lucrécia Zavaschi***** cia e baixas taxas de recuperação. O TBP é, freqüentemente,
Luis Augusto Rohde***** diagnosticado incorretamente, resultando em manejo inadequado
e piora do transtorno. Muitas vezes, o TBP não é reconhecido até
Resumo o final da adolescência, com longa história de diagnósticos psico-
Por meio da apresentação de caso de criança de nove anos patológicos errôneos, como transtorno de déficit de atenção/
portadora de Transtorno do Humor Bipolar, atendida no Serviço hiperatividade (TDAH) ou “desordem de comportamento”
de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas (transtorno de oposição desafiante (TOD) ou transtorno de con-
de Porto Alegre, os autores revisam os principais dilemas diag- duta (TC). Portanto, o primeiro e mais importante passo no tra-
nósticos encontrados nesses casos, com especial ênfase para as tamento dessas crianças é o adequado reconhecimento do
dificuldades de diferenciação com outros quadros psiquiátricos transtorno.1,2
maiores freqüentes nessa faixa etária, como o Transtorno de As características clínicas predominantes no TBP são irrita-
Déficit de Atenção/ Hiperatividade. As abordagens terapêuticas bilidade, ciclagem rápida, baixa recuperação interepisódica, esta-
possíveis são discutidas. dos mistos, longa duração dos episódios e altos índices de comor-
bidade com TDAH e TOD. Um estudo realizado no nosso servi-
Palavras-chave: Transtorno Bipolar do Humor; Infância;
ço aponta para a escassez de pesquisas sobre o TBP fora dos
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade.
Estados Unidos da América e do Canadá. Foram encontrados
apenas nove estudos realizados fora daqueles países em uma revi-
Introdução são da Medline dos últimos dez anos. Devido ao exposto, opta-
O Transtorno do Humor Bipolar Pediátrico (TBP) prejudica mos por apresentar este relato de caso de uma menina de nove
de maneira importante o crescimento emocional e o desenvolvi- anos com TBP.2

* Residente do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Adolescência do HCPA, UFRGS.


Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Universidade ***** Professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência, UFRGS.
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Apresentadora. Supervisor.
** Estagiária do Serviço de Psicologia do HCPA.
*** Aluno de graduação da Faculdade de Medicina da UFRGS Endereço para correspondência:
**** Médico-contratado do Serviço de Psiquiatria da Infância e lrohde@terra.com.br

54 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Relato do caso por episódios de intensa agressividade. Atualmente, freqüenta
uma escola pública.
Segundo a mãe, do ano passado para cá, a paciente piorou
Identificação muito seu comportamento, tornou-se cada vez mais agressiva, fre-
qüentemente desrespeitando e desafiando a todos. Além disso,
G.T.A. é uma menina de nove anos, branca, solteira, natural
ela passou a tocar muito no assunto “sexo”, tendo chegado a
e procedente de Porto Alegre, cursando a 3ª série do ensino
dizer para o namorado da mãe que ele não iria “comer” a sua
fundamental.
mãe. Passou a falar muito, em tom alto e acentuou sua postura
autoritária e prepotente, achando-se sempre a dona da razão.
Queixa principal Achava-se forte, enfrentava qualquer pessoa, não tinha medo de
nada e de fato chegava a provocar medo nos demais.
Extrema agitação e agressividade.
A mãe relata que G.T.A. quer ter sempre a última palavra, é
extremamente autoritária, acha que sabe tudo. Quando contra-
HMA riada, torna-se muito irritada e agressiva, berrando, xingando,
chegando a chutar, bater e cuspir. Apresenta crises de fúria, em
A mãe relata que, desde cedo, a paciente era constantemente
que berra muito e se debate. Há períodos em que perde comple-
agitada, “não parava quieta”. Quando G.T.A. estava com um ano
tamente o sono. A mãe comenta que, apesar da extrema impulsi-
e meio, seus pais foram residir em São Paulo devido ao trabalho
vidade, a paciente sempre foi muito carinhosa.
do pai. A mãe da paciente não se adaptou à nova cidade, tornan-
do-se muito insegura e descontente. No dia em que a paciente
completou quatro anos, seus pais discutiram e a mãe de G.T.A. Descrição de um dia típico da criança (antes de adoecer)
resolveu voltar para Porto Alegre com a mesma. O pai de G.T.A. Usualmente, a paciente acordava às 8h30, ligava a televisão, toma-
ainda permaneceu em São Paulo por algum tempo e o casamen- va café da manhã, assistia à TV ao mesmo tempo em que brinca-
to teve fim. va de boneca e ouvia música. Almoçava às 12h, ia para escola e
Segundo a mãe da paciente, G.T.A. sempre respeitou e obede- retornava às 17h30, voltando a assistir à televisão e a brincar.
ceu ao pai, mas não a ela. Era muito apegada ao pai e sofreu muito Jantava às 20h30, desenhava, brincava mais um pouco e ia dormir
com a separação e o extremo distanciamento físico da figura pater- às 22h30.
na. Após a separação, G.T.A. se tornou ainda mais agitada.
Aos sete anos, a paciente começou a ficar mais triste e cala-
da, mais desobediente, irritada e agressiva. Berrava e xingava os HF
familiares, principalmente quando era contrariada. Nessa época, A mãe da paciente tem comportamento irritadiço e triste, é
a mãe refere que observou alguns comportamentos estranhos, fla- impaciente e pouco afetiva com G.T.A. Quando criança, teve
grou a paciente brincando de sentar no colo com um primo de 12 enurese noturna até os dez anos e, freqüentemente, falava em
anos e encontrou-a com um menino deitado sobre ela na praia. morte. Após a separação, teve três namorados, sendo que o
Aos oito anos, G.T.A. trancou-se no banheiro da escola, não quis namorado atual possui uma relação conflituosa com a paciente,
abrir a porta e disse que iria se matar. Na mesma época, por duas sendo provocativo, pouco tolerante e agressivo com ela. As dis-
vezes, ameaçou jogar-se da janela da casa da avó. cussões verbais entre G.T.A. e a mãe são freqüentes e, ocasional-
Nesse período, iniciou terapia com uma psicóloga e pouco mente, ocorre agressão física. O pai é muito afetivo com a pacien-
depois passou a ser medicada pelo marido da mesma. Segundo a te e parecem ter um bom vínculo, apesar de ele estar morando em
mãe, esse psiquiatra nunca conversou com a paciente, ele a medi- Florianópolis. A mãe de G.T.A. se refere a ele como irresponsá-
cava pelos relatos da sua esposa (psicóloga) e dela própria (mãe vel e egoísta, inclusive na presença da paciente.
da paciente). A avó materna possui estreito contato com a paciente, cui-
A medicação inicial usada foi imipramina (25 mg/d), com a dando dela quando necessário. Ela costuma fazer todas as vonta-
qual a paciente acalmou-se. Após certo tempo, elevaram a dose des da menina, inclusive com ordens conflitantes com as da mãe
para 75 mg/d e a paciente agitou-se novamente. Associaram car- da paciente. O avô materno, já falecido, era “emocionalmente
bamazepina, mas a paciente apresentou rash e a medicação teve instável”, “mulherengo”, teve diversos episódios depressivos,
que ser suspensa. Interrompeu-se então a imipramina e iniciou-se uma internação psiquiátrica e freqüentes ameaças de suicídio.
tioridazina. G. não apresentou nenhuma melhora e optaram por Os pais da paciente fizeram uso de cannabis e cocaína na
interromper o tratamento medicamentoso. Segundo a mãe, as adolescência e início da vida adulta.
hipóteses diagnósticas eram depressão e transtorno de conduta.
No ano passado, após mudar de escola, a paciente começou
História Médica Pregressa
a manifestar agressividade, muita ansiedade e passou a comer
muito. Nessa época, voltou a fazer psicoterapia com a mesma psi- A paciente nasceu de parto normal, a termo, com 2600 gra-
cóloga. A partir de então, a mãe de G.T.A. passou a ser chamada mas, 48 cm de altura, apgar 8, apresentou icterícia neonatal e teve
freqüentemente à escola, devido ao mau comportamento da que ficar em “banho de luz”. Teve catapora aos sete meses, nunca
paciente, que gritava muito e batia nos colegas e na professora. foi internada nem submeteu-se a cirurgias. Marcos do desenvol-
G.T.A. foi expulsa dessa escola e da seguinte, ambas particulares, vimento neuropsicomotor normais. Nada mais digno de nota.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 55


Transtorno bipolar na infância e diagnóstico diferencial com TDAH

Exame Psíquico (na admissão) teúdos de abandono, ansiedade de separação, rompantes de


agressividade com conseqüentes sentimentos de culpa, figura
Paciente lúcida, orientada no tempo e no espaço, com aten- paterna frágil e materna ausente. No Rorschach, manifestou con-
ção voluntária diminuída e espontânea aumentada. Humor pola- teúdos de morte e suicídio, negando-os posteriormente; por fim,
rizado para elação, com extrema irritabilidade e impaciência, observou-se um descontrole emocional e impulsividade caracte-
afeto lábil, oscilando entre momentos em que falava alto, ria rísticos de mania e de estruturação de um falso self.
muito e abraçava a todos, com momentos em que se apresentava
insegura e carente e afirmava ser infeliz. Crises de fúria, nas quais
dizia ter uma raiva muito grande dentro dela, que não conseguia Exames Complementares
controlar e que a levava a odiar as pessoas e desejar matar e se Eletroencefalograma (em sono e vigília) e eletrólitos sem alte-
matar. Atitude prepotente e autoritária. Logorréia, sem pressão rações. Avaliação neurológica, realizada em abril deste ano, den-
de discurso ou fuga de idéias. Pensamentos de conteúdo depres- tro dos padrões da normalidade. Ausência de história familiar de
sivo e de grandeza, com momentos em que revelava baixa auto- epilepsia.
estima, e outros em que se apresentava com atitude arrogante e
postura altiva. Sem evidências de alterações da sensopercepção.
Juízo e crítica prejudicados. Memória e inteligência preservadas. Evolução
Em abril de 2002, a paciente iniciou tratamento no Centro de
(Apresentação de vídeo) Assistência Psicossocial (CAPS) do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre. O CAPS funciona no modelo de hospital-dia, sendo que
a paciente comparecia todos os dias da semana no turno da
Resultado da aplicação de escalas e entrevista semi-estruturada manhã. Recebe, além do tratamento medicamentoso, intervenção
Escala SNAP-IV (escala padronizada de avaliação de sinto- psicoterápica individual, participa de grupos operativos e praxi-
mas de desatenção, hiperatividade, impulsividade e oposi- terápicos, permitindo avaliação e intervenção no modelo de inte-
ção/desafio)3 preenchida pela mãe:3 rações disfuncionais da paciente. Ela se apresentava extremamen-
Desatenção = 1,2 (sintomas de pouca intensidade) te irritada, agressiva, prepotente, intolerante e autoritária.
Hiperatividade/Impulsividade = 2,3 (sintomas de alta intensi- Quando contrariada, agredia fisicamente os colegas e a equipe
dade) técnica, xingando, chutando, mordendo e cuspindo.
Oposição/desafio = 3,0 (sintomas de alta intensidade) Freqüentemente, no meio das atividades, queria ir embora ou
Escala SNAP-IV preenchida pela escola atual (estava apenas ligar para o pai e a avó. Possuía atitude desafiante e intensa labi-
há dois meses nesta): lidade afetiva, com acessos de fúria.
Desatenção = 0,3 Ela questionava tudo, inclusive a autoridade da equipe técni-
Hiperatividade = 1,0 ca. Mesmo contida fisicamente e/ou com medicação, não apre-
Oposição/desafio = 0,2 sentava o menor medo e se mantinha em atitude de superiorida-
O Inventário de Comportamentos da Infância (CBCL)4 de, xingando os membros da equipe e exaltando os defeitos de
preenchido pelos pais indicava: cada um. Nas atividades de grupo, sempre queria liderar, irritava-
Escore extremamente alto para comportamento agressivo se com a lentidão e as limitações intelectuais dos colegas, exaltan-
(escore T = 93); do-as e humilhando as outras crianças, ao mesmo tempo em que
Escores altos para ansiedade/depressão (escore T=82), quei- exibia a sua perspicácia e sua inteligência. Oscilava entre momen-
xas somáticas (escore T=78), problemas sociais (escore tos de extrema carência e baixa auto-estima, afirmando ser infe-
T=79), problemas de pensamento (escoreT=76), problemas liz e conter em si uma raiva enorme que não podia controlar e que
de atenção (escore T=77) e comportamento delinqüente a levava a odiar a si própria e aos outros, com momentos de eufo-
(escore T =76). ria em que falava muito, em alta voz, dava risadas, abraçava todo
A aplicação do KSADS-E (entrevista semi-estruturada para mundo e contava histórias de grandes feitos seus e aquisições.
diagnóstico em psiquiatria da infância)5 por entrevistador treina- Após análise dos questionários (SNAP-IV, CBCL e K-SADS)
do resultou positivo para os seguintes diagnósticos: e certo tempo de observação clínica, levantou-se a hipótese diag-
- Transtorno do Humor Bipolar, com episódio atual maníaco nóstica de Transtorno do Humor Bipolar e iniciou-se tratamento
- Distimia passada e atual medicamentoso com divalproato de sódio e posterior associação
- Ansiedade de separação passada e atual com risperidona, com o intuito de acelerar a melhora da agressi-
- TDAH passado e atual, com predomínio de hiperatividade vidade e da impulsividade. A paciente faz uso de 500 mg/d de
- TOD passado e atual divalproato de sódio, com dosagem sérica de 49 mcg/dl, e de 0.5
- TC passado e atual mg/dia de risperidona (essa dosagem era de julho, hoje já em uso
No psicodiagnóstico, a aplicação do WISC-III (Wechsler)6 de 1.125 mg/dia de divalproato, com dosagem sérica de 79
resultou em QI verbal médio (108), QI de execução médio (106), mcg/dl, e 1 mg/dia de risperidona).
QI total médio (108) e em potencial cognitivo em nível médio Cerca de duas semanas após o início da medicação, a paciente
superior. As provas projetivas (CAT-A e Rorschach) revelaram passou a portar-se de maneira mais controlada, não provocava mais
impulsividade e expansividade, além de dificuldade nas relações os colegas, não era agressiva. Com o tempo, mostrou-se cada vez
afetivas interpessoais por desconfiança. O CAT-A apontou con- mais cooperativa e afetiva com a equipe, não aceitava as provoca-

56 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


ções dos colegas e participava ativamente das atividades. Debate
Entretanto, apresentava-se ainda autoritária e um tanto prepotente.
Ana Cristina Mageste Pimentel*

HD Gostaria de agradecer aos coordenadores pelo convite a mim


Segundo a CID-10: e, principalmente, pela participação do Departamento de
Transtorno afetivo bipolar, episódio atual misto- F31.6 Psiquiatria da Infância da ABP. É mais um espaço que estamos
Transtorno de ansiedade de separação na infância- F93.0 conquistando. Parabenizo a Sandra pelo trabalho que apresentou.
Transtorno desafiador e de oposição- F91.3 Assisti à apresentação do caso anterior, às polêmicas que sur-
Segundo o DSM-IV: giram, e gostaria de contar com mais um psiquiatra da infância ao
EixoI: Transtorno bipolar I, episódio mais recente misto, meu lado para o debate. Ninguém da platéia se habilitaria a vir
com ciclagem rápida “brigar” um pouquinho? (O Prof. Francisco Assumpção não
Transtorno de ansiedade de separação pôde comparecer ao debate, tendo participado o Dr. Marcos
Transtorno desafiador opositivo Tomanik Mercadante. Nota do editor).
Eixo II: Nenhum diagnóstico Pretendo falar, inicialmente, do diagnóstico diferencial com
Eixo III: Nenhum diagnóstico hiperatividade, transtorno de oposição e transtorno de conduta.
Eixo IV: Problemas com o grupo de apoio primário É um diagnóstico diferencial que a Sandra fez bem. Mas, na prá-
Dificuldade de relacionamento com as outras crianças tica, principalmente com os sintomas de hiperatividade, questio-
Expulsão da escola por duas vezes
namos se estamos deixando de fazer o diagnóstico de TDAH ou
Eixo V: AGF = 40 (na admissão)
deixando de fazer o diagnóstico de Transtorno Bipolar. Isso tem
AGF = 70 (atual)
ocorrido muito na clínica. Agora já fazemos o diagnóstico de
adulto hiperativo, o que antes se fazia só em criança - o Rohde diz
Síntese que fica muito feliz, porque é uma doença só da criança, quer
O Transtorno Bipolar na infância é de difícil identificação e dizer, que começa na criança. Como dito, esse diagnóstico dife-
manejo, principalmente devido às grandes diferenças de apresen- rencial foi bem-abordado. Concordo com o diagnóstico de trans-
tação clínica com o Transtorno Bipolar em adultos e às possíveis torno bipolar.
comorbidades e os necessários diagnósticos diferenciais1,7 Além Outro ponto interessante, que gostaria de questionar, é a res-
disso, os psiquiatras (inclusive os da infância e adolescência) fre- peito dos antecedentes familiares. Penso que a história explorou
qüentemente não estão treinados para identificar tais quadros na pouco isso, principalmente porque sabemos da questão genética
infância2. do Transtorno Bipolar. Na clínica, a história familiar, principal-
O TBP caracteriza-se por irritabilidade, ciclagem rápida, mente na psiquiatria infantil, ajuda-nos a formular muitas hipóte-
baixa recuperação interepisódica, longa duração dos sintomas e ses diagnósticas. Isso em termos do que a família já apresentou e
grande prevalência de episódios mistos; grande parte desses sin- a que tratamento já respondeu. Senti falta de um melhor detalha-
tomas é considerada atípica quando manifestos em adulto. mento disso no trabalho.
Diferentemente, um quadro bipolar típico em adultos apresenta Ainda sobre a família, acredito que vocês estejam trabalhan-
curso episódico, períodos de mania e de depressão bem diferen- do com ela, o que é muito importante, explicando o quadro da
ciados, euforia, logorréia com pressão de discurso e fuga de paciente e a medicação para facilitar a adesão ao tratamento. Em
idéias, erotização e, freqüentemente, gastos excessivos1. crianças, isso é complicado, principalmente criança portadora de
As altas taxas de comorbidade e a similaridade de sintomas Transtorno Bipolar. É muito difícil a adesão ao tratamento e,
com TDAH e TOD dificultam o diagnóstico e, conseqüentemen- como em adultos, quando começa a melhorar, a criança não quer
te, o manejo da doença na criança. A literatura diverge quanto aos
tomar mais o remédio e a família também não quer dar. Na clíni-
sintomas que seriam considerados essenciais ao diagnóstico de
ca da criança e do adolescente vemos muito isso.
TBP. Alguns autores consideram a elação e a grandiosidade como
Não vi no relato a questão da personalidade pré-mórbida.
fundamentais e outros aceitam a extrema irritabilidade como alte-
ração primária de humor8,9. Sabemos que o tipo de personalidade poderá ajudar muito na
A escolha do melhor estabilizador de humor também é polê- adesão ou não ao tratamento. E vamos supor que seja uma perso-
mica, entretanto estudo controlado recente comparando lítio, val- nalidade de uma criança que já é mais agitada, mais irritada, e que
proato e carbamazepina em crianças e adolescestes com o trans- apresente um episódio depressivo. Provavelmente, isso é um indi-
torno sugere um tamanho de efeito maior com o valproato.10 cativo do Transtorno Bipolar, como levantado na primeira apre-
Entretanto, no caso descrito, como tem sido sugerido em revisões sentação. Portanto, essa questão da personalidade e do tempera-
recentes sobre o assunto (vide Pavuluri et al.1), a monoterapia foi mento deve ser vista e não ficou muito explícita no caso.
claramente insuficiente para a adequada recuperação da pacien- Quando eu estava lendo o caso, chamou minha atenção a
te. A associação de estabilizador de humor e um dos novos antip- dosagem da medicação, mas você mesma falou que a dosagem já
sicóticos em baixas doses resultou em maior eficácia. foi aumentada. A dosagem estava subclínica.

* Psiquiatra da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais – FHEMIG, Coordenadora do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da
Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 57


Transtorno bipolar na infância e diagnóstico diferencial com TDAH

Gostei muito das escalas, acho que elevam muito o nível do mico. Quem olha essa criança nesse referencial vai se lembrar e
diagnóstico. Acredito que não há mais dúvidas nesse diagnóstico pensar, claramente, que estamos lidando com uma criança border-
da paciente. line. Então, o que estamos tentando lembrar e trazer à discussão
Em resumo, gostaria de colocar que concordo com o diag- é que, como ainda não está claro conceitualmente se temos algo
nóstico. É preciso fazer esse diagnóstico diferencial, principal- nessa esfera, em termos de nível de organização funcional, ou se
mente de hiperatividade, transtorno de oposição desafiante e temos uma doença psiquiátrica maior ativa, pelo menos vamos
transtorno de conduta. Não se falou da questão da personalidade pensar nesta possibilidade de doença psiquiátrica ativa. Vamos
e do temperamento, que influenciam no prognóstico e na condu- lançar mão de uma medicação e ver qual é a resposta, enquanto
ta. E, principalmente, não se abordou a questão da intervenção talvez se possa trabalhar outras questões estruturais, outra abor-
familiar. dagem, outra aproximação do caso.
Apenas para encerrar: penso que nós da infantil não pode-
mos esquecer da questão da psicologia evolutiva. De como está o Sandra Petresco
desenvolvimento da criança, do que é normal em cada época. E
não apenas o desenvolvimento da criança, mas também em rela- Gostaria de falar sobre a questão familiar. Não foi feito um
ção ao desenvolvimento da doença na criança. Primeiramente, diagnóstico desses parentes e tratamento. Só do avô materno, que
quando o psiquiatra infantil atua, deve ser a nível de prevenção. realmente foi internado por tentativa de suicídio, possui história
No primeiro caso apresentado, parece que a discussão foi muito de depressão, mas também de promiscuidade e gastos excessivos.
em cima da apresentação prévia de algum sintoma pela paciente. Quer dizer, são dados sugestivos de Transtorno Bipolar na famí-
Talvez, se ela tivesse sido vista antes com os olhos da psiquiatria lia. Isso foi citado na apresentação. Já seu pai – e isso não men-
infantil, não chegaria a apresentar aquele tipo de problema. cionei – usa drogas e tem gastos excessivos, é uma pessoa bem
Era o que desejava falar. Parabenizo pelo caso. Muito obriga- instável, com uma vida bem desordenada. A mãe me parece uma
da pela oportunidade. pessoa, no mínimo, distímica e com história de sintomas sugesti-
vos de depressão na infância. Não é nada conclusivo, mas são
Luis Augusto Rohde dados sugestivos de história familiar positiva para transtorno
bipolar.
Gostaria de falar sobre alguns pontos do que foi comentado.
Essa preocupação com a história familiar temos tido bastante, já Marcos Tomanik Mercadante*
que a questão do diagnóstico do Transtorno do Humor Bipolar é
ainda muito controverso na infância. Até mesmo na evolução do Primeiro, gostaria de agradecer à oportunidade de participar
pensamento a respeito do diagnóstico dessa criança se pensou e, segundo, de parabenizar a Sandra pelo caso. É uma oportuni-
muito na possibilidade de hiperatividade. Muitas vezes, encontra- dade vermos um caso da psiquiatria infantil, muito bem-apresen-
mos nesses casos a dificuldade de diferenciar, como você colocou, tado e extremamente rico.
os transtornos de conduta ou de oposição e desafio e hiperativi- Pena que não pudemos ver o quadro da paciente com uma
dade. Mas o que temos visto, e que fica muito claro nesta situa- idade menor. Para quem tem experiência com criança, a dificul-
ção da paciente, é que nesses quadros de Transtorno Bipolar há dade maior de fazer o diagnóstico diferencial entre transtorno de
uma intensidade de sintomas, algo de ordem de prioridade maior, hiperatividade, déficit de atenção e um Transtorno Bipolar ocor-
que não é explicável somente pela história clínica e pelo curso re com crianças menores. Mas nessa criança, que é pré-adolescen-
que normalmente vemos em desatenção e hiperatividade. te, é um pouco mais fácil de percebermos o caráter da oscilação
A razão de nossa felicidade, apenas para ficar claro, é que do humor. Em crianças menores a irritabilidade, a hiperatividade
nós, psiquiatras de criança e adolescente, passamos a vida inteira e o padrão disfórico complicam muito e essa provavelmente deve
procurando adaptar sistemas classificatórios e de diagnóstico de ter sido a dificuldade que o psiquiatra anterior teve, quando ima-
adultos para poder aplicar em crianças e adolescentes. A hipera- ginou um quadro do padrão de hiperatividade e medicou a meni-
tividade, eu sempre brinco, é a nossa vingança, porque hoje em na, possivelmente pensando no efeito da desipramina.
dia os psiquiatras de adultos estão tendo que trabalhar para adap- A título de contribuição, outra coisa que tem me chamado
tar um diagnóstico que inicialmente era de crianças para a psi- atenção ao trabalhar com crianças: temos muita dificuldade em
quiatria de adultos. pensar nos quadros de personalidade, até porque a personalida-
Sem dúvida, temos dado muita atenção à história familiar, de ainda não está formada e só conseguiremos fazer esse diagnós-
acho que tens toda a razão. Talvez pelo fato de o pai estar em tico posteriormente, no final da adolescência. Mas é uma possibi-
outra cidade não tenhamos conseguido avaliar isso melhor. Como lidade para pensarmos, além da discussão entre o quadro bipolar
ainda é um quadro controverso, temos dado muito peso à presen- e o transtorno hiperativo – déficit de atenção. Essa outra possibi-
ça de história familiar como indicador positivo a mais em termos lidade seria de um caso de personalidade limítrofe, com uma labi-
do diagnóstico. Completa concordância contigo nesse sentido. lidade do humor, pensando até no padrão de comportamento um
Esse caso ilustra muito um outro aspecto, para nós que tam- pouco aberrante da paciente. Isso levaria a uma discussão interes-
bém temos uma trajetória muito comum entre psiquiatras de sante do ponto de vista das bases neurofisiológicas, porque o tra-
criança e adolescente, a de vir de um referencial mais psicodinâ- tamento, a princípio, também seria com estabilizador do humor.

* Professor Adjunto, Programa de Pós-graduação Distúrbios do Desenvolvimento Universidade Presbiteriana Mackenzie, Affiliate Researcher Yale Child Study
Center.

58 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Tudo isso demanda muita pesquisa em psiquiatria infantil. crianças. Isso ainda está em discussão, não se tem uma posição. O
Em sendo um Transtorno Bipolar e medicando-a existe a possibi- Marcos novamente levantou muito bem, é uma área que precisa ser
lidade de preservarmos a organização dessa estrutura cerebral e a intensamente pesquisada para que tenhamos que falar menos em
exposição dessa criança, em termos de sua possibilidade de termos de opinião, em termos de um ou dois casos, mas, sim, muito
desenvolvimento, o que é fundamental. mais em termos de estudos bem-conduzidos metodologicamente.
O que já se tem é um guideline claro, uma definição. É o que
Kátia Corrêa Silva (RJ) a Sandra colocou: tratando-se de um caso em que temos ambas as
sintomatologias, iniciamos pela sintomatologia da doença de
Também sou psiquiatra da infância e adolescência. Minha ordem de prioridade maior, estabilizando o humor e, se restarem
pergunta é em cima da questão da comorbidade de TDAH com sintomas atencionais ou de hiperatividade, então usamos os
bipolar. Quando se tem um quadro assim mais definido, já facili- estimulantes.
ta. Porém, alguns autores colocam essa possibilidade de estarem
os dois quadros coexistindo na mesma criança e, como o Marcos Kátia Corrêa Silva
falou, o problema é maior quando a criança é menor. Ao ver você
apresentar, de forma muito clara, muito bom, estava me lembran- Se os sintomas de maior prevalência forem da hiperatividade,
do de uma criança que estou acompanhando, de seis anos, e que começaríamos o tratamento pela hiperatividade?
estou sem saber o que faço. Ele chegou com quatro para cinco
anos, com quadro bem mais claro para TDAH, uma história Luis Augusto Rohde
familiar muito sugestiva desse transtorno, com outros parentes de
primeiro grau com quadro muito típico. Só que ele está evoluin- Não, se temos claro que existe um quadro com aspectos bem
do com uma sintomatologia diferente, com umas idéias de gran- sugestivos de Transtorno Bipolar, como a Ana colocou, com his-
deza, autoritarismo exagerado e crises meio incontroláveis, com tória familiar positiva, um quadro bastante sugestivo, iniciamos o
seis para sete anos. Assim, gostaria que falasse algo sobre essa tratamento para Transtorno Bipolar. Aparentemente, isso é
comorbidade. E o diagnóstico precoce também. comum em crianças menores, temos crianças de seis, sete anos,
em que, muitas vezes, o marcador, além do descontrole de impul-
Sandra Petresco so, é a hiperatividade maciça. Mesmo nessa situação, começamos
com o estabilizador do humor e, posteriormente, usamos a medi-
Procurarei responder – o que já aprendi! – e meu supervisor cação estimulante, por causa das discussões e controvérsias em
vai complementar. Neste caso apresentado, não houve dúvida relação ao uso de estimulantes nesse tipo de criança e da possibi-
quanto a uma hiperatividade, ela possui uma história prévia lidade de virada hipomaníaca. A estratégia primeira é a estabiliza-
sugestiva disso e sua própria mãe disse que ela sempre foi muito ção do humor.
agitada, mesmo o KSADS-E fechou o diagnóstico de TDAH. Foi
uma dúvida, tanto que procuraram o Rohde, que é especialista Marcos Mercadante
em TDAH.
A conduta que temos seguido, como ele mencionou, segue Temos que aproveitar que Porto Alegre tem uma das maio-
uma hierarquia de gravidade de sintomatologia. Tratamos primei- res casuísticas em psiquiatria infantil. Outra coisa que tenho
ro o Transtorno Bipolar e aguardamos um pouco, para observar observado na clínica, que tem demandado muita confusão e pode
quanto o quadro remite ou não. Se permanecerem os sintomas de ser mais um alerta clínico, são crianças com diagnóstico de
hiperatividade, aí sim, a criança já estando mais estabilizada, Transtorno Global do Desenvolvimento com quadro atípico. Não
podemos associar um estimulante. Em relação ao diagnóstico, o os casos de autismo (com alguns sintomas apenas), nem os qua-
Rohde pode abordar melhor. dros de Asperger, que seriam mais facilmente reconhecidos, na
verdade a confusão ocorre com os Transtornos Globais do
Luis Augusto Rohde Desenvolvimento SOE. Essas crianças freqüentemente acabam
apresentando uma alteração do humor e uma hiperatividade das
Na verdade, acho que o Marcos já abordou bem a questão. quais os pais insistentemente se queixam. Costumam chegar com
Existe uma dúvida, uma controvérsia na literatura. Por exemplo, diagnóstico anterior de hiperatividade, que agora está um pouco
se partimos de uma amostra clínica de crianças que procuram o na moda, ou de bipolar, o que tenho visto muito. Eu queria saber
serviço ambulatorial com déficit de atenção e hiperatividade, se vocês têm algum dado a respeito disso, da incidência de altera-
encontramos – vai variar de estudo para estudo – algo em torno ção de humor ou de hiperatividade sobre a condição diagnóstica
de 5%, até 11% ou 13% de crianças com TDAH que preenchem de Transtorno Global de Desenvolvimento.
os critérios de Transtorno Bipolar. Entretanto, se partimos de
amostras de adolescentes e crianças com transtorno de humor Luis Augusto Rohde
bipolar – temos menos trabalhos com crianças –, quase 80% a
90% preenchem diagnóstico no momento ou prévio de hiperati- Temos essa mesma preocupação. Normalmente acontece
vidade. A grande discussão nesse momento é se, na realidade, que, quando o paciente chega com o transtorno global, com o
trata-se de uma comorbidade verdadeira ou se isso é um marca- transtorno invasivo, ele já está em idade escolar. A pessoa que o
dor precoce do quadro de Transtorno de Humor Bipolar nessas vê, normalmente, não o viu durante a idade pré-escolar. Vê, por-

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 59


Transtorno bipolar na infância e diagnóstico diferencial com TDAH

tanto, os sintomas residuais. Hoje de manhã eu estava observan- Summary


do isso no consultório, exatamente numa situação como você des-
creveu, com sintomas residuais que podem ser, às vezes, atencio- To disentangle the main dilemmas for diagnosing Pediatric Bipolar
Disorder, the authors present a case of a nine-year-old child that was
nais ou de hiperatividade, mas como parte do quadro de transtor-
treated in the Child Psychiatric Division of a University Hospital. It
no global ou transtorno invasivo. E, muitas vezes, vemos muitas
has been emphasized the difficulties in achieving an adequate dif-
crianças serem diagnosticadas com hiperatividade, mesmo que
ferentiation with other prevalent major mental disorders commonly
tenham uma história prévia claramente de Transtorno Global do
seen in childhood such as Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder.
Desenvolvimento. E aí, de novo, temos toda essa discussão se vale
The possible therapeutic interventions are discussed.
a pena utilizar a medicação no mesmo sentido ou não.
Key-words: Pediatric Bipolar Disorder, Childhood, Attention-
Lucas (GO)
Deficit/Hyperactivity Disorder.

Tenho visto sempre na literatura que pacientes alcoólatras


têm antecedentes de TDAH e, por outro lado, sabemos, pelo
Agradecimentos
menos na minha experiência, que pacientes com Transtorno CCP agradece Jussara Camargo Alvarenga, residente de psi-
Bipolar freqüentemente desenvolvem dependência ao álcool. quiatria do Hospital das Clínicas da UFMG, pela colaboração na
Gostaria que a mesa falasse um pouco sobre isso, se concordam transcrição do debate.
com essa visão e quais os mecanismos que atuariam para levar
ao alcoolismo. Referências Bibliográficas
Luis Augusto Rohde 1 Pavuluri MN, Naylor MW, Janicak PG. Recognition and treat-
ment of pediatric bipolar disorder. Comtemporary Psychiatry
Podemos fazer um comentário rápido. Temos uma pessoa 2002; 1:1-10.
trabalhando especificamente nessa questão, que é a do fator de 2 Tramontina S, Schmitz M, Polanczyk G, Rohde LA. Juvenile
risco não só para o uso de álcool, mas também de outras drogas, Bipolar Disorder in Brazil: Clinical and Treatment Findings.
em final de adolescência e idade adulta. Existe toda uma contro- Biol Psychiatry 2003 (in press).
vérsia se é o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade por 3 Swanson, J.M., Kraemer, H.C., Hinshaw, S.P. et al. Clinical
si só o real fator de risco para uso abusivo e dependência a dro- Relevance of the Primary Findings of the MTA: Success Rates
gas, ou se é em comorbidade com transtorno de conduta. É Based on Severity of ADHD and ODD Symptoms at the End of
necessário termos isso com um pouco mais de clareza. Como tu Treatment. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2001; 40:168-
colocaste, sabe-se que o quadro de Transtorno do Humor Bipolar 79.
é um dos fatores, na adolescência, de risco para uso abusivo e 4 Achenbach. Manual for the Child Behavior Checklist.
Burlington: University of Vermont/ Department of Psychiatry,
dependência a álcool. Isso reforça, portanto, o que a Ana colocou
1991.
no início, ou seja, a grande vantagem de podermos trabalhar em
5 Mercadante MT, Asbahr F, Rosário MC, Ayres AM, Ferrari MC,
termos de prevenção secundária, porque, na medida em que se
Assumpção FB, Miguel EC. K-SADS, Entrevista Semi-
atende o caso na infância e na adolescência, quem sabe tu possas
Estruturada para Diagnóstico em Psiquiatria da Infância, versão
estar fazendo algum tipo de prevenção para outros diagnósticos
epidemiológica, 1a edição. São Paulo: Protoc – Hospital das
que poderiam se sobrepor em termos de comorbidade?
Clínicas da FMUSP, 1995.
6 Wechsler D. WISC-III / Manual. New York: The Psychological
Sandra Petresco
Corporation, 1991.
7 Wozniak J, Biederman J, Kiely K et al. Mania-like symptoms
Fiz uma revisão na Medline (últimos dez anos) pouco antes suggestive of childhood onset bipolar disorder in clinically refer-
de vir para este congresso. Não me lembro de detalhes, mas fize- red children. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 1995;
ram um estudo grande nos Estados Unidos que não mostrou que 34:867-876.
o TDAH aumenta o risco para desenvolver dependência de dro- 8 Biederman J, Klein RG, Pine DS, Klein DF. Resolved: mania is
gas ou álcool, porém o Transtorno Bipolar na infância e adoles- mistaken for ADHD in prepubertal children. J Am Acad Child
cência, sim, sendo a correlação, neste caso, muito grande. Esses Adolesc Psychiatry 1998; 37:1091-1099.
estudos, no entanto, foram retrospectivos, agora têm sido feitos 9 Geller B, Williams M, Zimerman B, Frazier J, Beringer L,
estudos prospectivos para se obter maior confiabilidade. Warner K. Prepubertal and early adolescent bipolarity differen-
tiate from ADHD by manic symptoms, grandiose delusions,
Hélio Elkis ultra-rapid or ultradian cycling. J Affect Disord 1998; 51:81-91.
10 Kowatch RA, Suppes T, Carmody TJ et al. Effect size of lithium,
Agradecemos a presença dos apresentadores e participantes divalproex sodium, and carbamazepine in children and adoles-
da mesa e da platéia. Convidamos a todos para a sessão cents with bipolar disorder. J Am Acad Child Adolesc
de amanhã. Psychiatry 2000; 39:713-720.

60 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL EM UM CASO COM SINTOMATOLOGIA
AFETIVA E PSICÓTICA
DIFFERENTIAL DIAGNOSIS IN A CASE WITH AFFECTIVE AND PSYCHOTIC SYMPTO-
MATOLOGY

Leandro Augusto Paula da Silva* QP


Bruno Cópio Fábregas**
José Carlos Cavalheiro da Silveira*** “Medo”, “abafamento”. Angústia intensa, sensação de
opressão torácica e choro fácil.
Resumo
É apresentado caso clínico de paciente do sexo feminino com HMA
manifestação sintomatológica ora predominantemente afetiva,
Há cerca de cinco anos iniciaram, sem motivo, sintomas de
ora predominantemente psicótica. Ao longo do tratamento,
houve resposta parcial tanto a antidepressivo quanto a antipsicó- angústia, depressão e choro. Temia que algo de ruim lhe pudesse
ticos. Em que pese o uso de antipsicótico atípico, a olanzapina, ocorrer. Relata, a princípio de forma não muito consistente, que via
não foi possível retirar o haloperidol. Houve melhora mais visível “vultos” e ouvia “vozes” que a chamavam, especialmente quando
do quadro com o aumento da dose deste e com sua administra- sozinha e à noite. Após cerca de um ano nesse estado, procurou alí-
ção também na forma de depósito, mantidos os demais medica- vio para seus sintomas no consumo de cerveja, com sucesso. Relata
mentos (imipramina, olanzapina e diazepam). Em dado momen-
que a bebida a deixava “alegre e tranqüila”. Chegou a fazer uso diá-
to, foi também utilizada a carbamazepina, com resultado incon-
clusivo. Quanto ao diagnóstico, este variou de um episódio rio de cerca de um engradado de cerveja, por mais de ano.
depressivo grave com sintomas psicóticos ao de uma esquizofre- Familiares confirmam que esteve mais ativa e dava mais atenção aos
nia paranóide, restando como mais provável, segundo os autores, filhos nessa época. Paciente relata que seu café da manhã era a bebi-
o de transtorno esquizoafetivo tipo depressivo. da e que com ela também dormia bem à noite, sem perceber as sen-
Segue à apresentação do caso a participação de debatedores sações estranhas e sem medo.
e da platéia. Discute-se sobre a psicose histérica e sobre aborda-
Em 1999, procurou tratamento psiquiátrico devido ao consu-
gens terapêuticas além da farmacológica. É especulada a possibi-
lidade de epilepsia. mo de bebida e a seu estado emocional. Como passou a fazer uso de
medicamentos psiquiátricos, praticamente interrompeu o uso de
Palavras-chave: Transtorno Esquizoafetivo; Episódio Depressivo etílicos (uso esporádico de um a dois copos de cerveja num dia).
Grave com Sintomas Psicóticos; Esquizofrenia Paranóide; Após quase um ano de tratamento pouco eficaz, e em seguida ao
Psicose Histérica; Epilepsia; Antipsicóticos; Antidepressivos. uso de levomepromazina, que a deixou muito prostrada, resolveu
interromper o tratamento psiquiátrico e recorrer à religião. Passou
Justificativa da apresentação do caso a ser “crente” (era católica). Desde então nunca mais bebeu. Seus
Acompanhamento de quadro clínico com sintomas ora sintomas depressivos e ansiosos mantiveram-se com pouco alívio.
sugestivos de quadro de transtorno de humor, ora de quadro psi- Até então ainda trabalhava como faxineira. Em setembro de
cótico ou ambos. 2001, porém, apresentou sintomas alucinatórios mais acentuados,
repentinamente, no seu local de trabalho. Relata ter visto cobras na
Anamnese sala, entrando em pânico. Por pouco não teria saltado da janela do
Paciente atendida no ambulatório psiquiátrico da UFMG prédio, sendo segura pelo porteiro. À época, teria pensado várias
pela primeira vez em 14 de março de 2002, encaminhada do ser- vezes em suicídio. Foi encaminhada novamente a tratamento psi-
viço de psico-oncologia. quiátrico. Desde então não mais trabalhou.
Foi medicada com haloperidol, tioridazina e diazepam, atual-
Identificação mente nas doses, respectivamente, de 5, 75 mg/dia e 10 mg/dia.
Paciente de 37 anos, sexo feminino, casada, escolaridade: Segundo o relato da irmã, sem nenhuma melhora. Nunca teria feito
sexto ano do primeiro grau, faxineira. uso de antidepressivos.

* Residente do terceiro ano de psiquiatria do Hospital das Clínicas Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Minas Gerais. Supervisor.
Gerais. Apresentador.
** Acadêmico do sexto ano da Faculdade de Medicina da UFMG Endereço para correspondência:
*** Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e e-mail: leandroapsilva@ig.com.br

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 61


Diagnóstico diferencial em um caso com sintomatologia afetiva e psicótica

História familiar [Vídeo]

Uma irmã é portadora de quadro depressivo e faz uso de


amitriptilina. Possui também irmão alcoólatra que apresenta Conduta e evolução
zoopsias claramente relacionadas ao alcoolismo (não as possuía
antes de beber), caracterizando o provável quadro de alucinose Baseados na hipótese diagnóstica inicial e em dados epide-
alcoólica e/ou síndrome de abstinência. miológicos, ou seja, em que os transtornos de humor são mais fre-
qüentes que a esquizofrenia, além de responderem melhor ao tra-
tamento, sendo que a paciente nunca se submetera a um trata-
Antecedentes pessoais/ História pregressa mento para transtorno de humor, adotamos a estratégia de intro-
Era uma criança mais reservada, tímida, com menos contato duzir antidepressivo e, na medida do possível, reduzir os antipsi-
social que o usual na infância. cóticos. Especialmente porque estes eram típicos, induziam hipo-
Em sua história pregressa é de se salientar que aos quinze cinesia, talvez contribuíssem para o quadro depressivo e pode-
anos apresentou episódio em que, conforme relato de familiares, riam causar discinesia tardia. Contamos, portanto, com a possibi-
“ficou muito confusa, querendo pular dentro da cisterna, tendo lidade de defrontar-nos com quadro deliróide, ou seja, com sinto-
que ficar amarrada no sofá”. Conforme relato da paciente, teria mas psicóticos secundários à depressão.
apresentado alucinações abundantes. Refere-se a esse episódio Iniciamos imipramina 50 mg e reduzimos a tioridazina.
com pavor. Foi internada por 15 dias em hospital psiquiátrico, Medicação restante inicialmente mantida (haloperidol 5 mg/dia e
com alta em boas condições em uso apenas de benzodiazepínicos. diazepam 10 mg/dia). Note-se que a paciente tem acesso apenas
Foi sua única internação em hospital psiquiátrico (o prontuário às medicações disponibilizadas pelo sistema público de saúde.
não foi encontrado). Indicado acompanhamento semanal.
Submeteu-se, por volta dos 17 anos, a psicoterapia em ambu- Foram solicitados os seguintes exames, que se revelaram nor-
latório de saúde mental. Contudo, após aquela crise dos 15 anos, mais: hemograma, uréia, creatinina, glicemia de jejum, VDRL,
sua vida fluiu de modo normal, segundo depoimento também de FTA-ABS, T4 livre, TSH e tomografia computadorizada do encé-
familiares. Casou-se, teve três filhos. O segundo deles apresentou, falo. A dosagem de TGO e TGP, que foi realizada mais tarde,
nos seus primeiros anos, problemas neuropsiquiátrios, como epi- indicou níveis acima no normal.
lepsia, motivo pelo qual não desejava mais filhos. Tentou inter- Com a introdução da imipramina, houve pronta melhora da
romper uma nova gravidez, mas acabou gerando uma menina aos angústia, da opressão torácica e das crises de choro. Essa melho-
25 anos. Esta veio a falecer de septicemia aos cinco meses, fato ra, porém, não se manteve, o que nos levou a aumentar gradual-
que lhe marcou profundamente e gerou grande culpa, por falta mente a imipramina até a dose máxima de 300 mg/dia, mantido
de condições financeiras, à época, de proporcionar-lhe o haloperidol e o bensodiazepínico. No intuito de potencializar a
funeral digno. imipramina, devido à melhora parcial com esta medicação, intro-
Adicionalmente a esse evento traumático, após o falecimento duzimos a carbamazepina, baseados também na presença na lite-
da filha, submeteu-se a histerectomia e ooforectomia bilateral ratura de indicação dessa linha medicamentosa como o estabiliza-
devido a câncer. Em controles posteriores não foi constatada a dor de escolha em quadros esquizoafetivos (por exemplo,
recidiva do tumor, embora ainda tema por isso e esteja atenta a Dietrich, Kropp e Emrich1). Chegamos à dose de 1000 mg/dia.
sintomas corporais, motivos pelos quais procurou a oncologia. Solicitadas dosagens séricas de imipramina e carbamazepina. Esta
Entrevista com o esposo revelou que, apesar desses traumas, com resultado na faixa desejável. A de imipramina não pôde ser
a paciente não teria manifestado qualquer sintoma de transtorno realizada no laboratório público (posteriormente mostrou-se na
mental entre aquele primeiro episódio e o atual, salvo uma faixa terapêutica). Tudo indica que a paciente faz uso correto das
depressividade naquelas ocasiões em que esta seria de se esperar. medicações.
História de sífilis na juventude (embora o FTA-ABS, realizado Nessa ocasião, dadas a persistência e a característica algo atí-
duas vezes, seja negativo). pica e não muito consistente das queixas psicóticas, chegamos a
considerar a possibilidade de um quadro dissociativo com ganhos
secundários. Estes seriam o afeto dos familiares e a pouca exigên-
Exame psíquico inicial
cia quanto a suas obrigações diárias.
À entrevista inicial, apresentava-se trajada adequadamente, De qualquer forma, como persistia a angústia, acompanhada
colaborando de forma coerente, mímica algo inexpressiva e leve- das alucinações visuais (“cobras”, “vultos”, “sombras”) e auditivas
mente hipocinética, humor muito deprimido, chegando a chorar (curiosamente voz igual à de sua filha, voz que a irritava), além de
durante o exame. Lúcida e orientada. Presença de alucinações pensamentos agressivos, especialmente suicida (pensou em tomar
visuais e auditivas, conforme seu relato (não as manifestava veneno, tendo a filha intercedido), acrescentamos a olanzapina,
espontaneamente). Não foram observadas vivências delirantes. aumentada até a dose de 20 mg/dia. Ao introduzirmos a olanzapi-
na, houve tentativa de redução do haloperidol para 2,5 mg, mas
Hipóteses diagnósticas iniciais seus sintomas nos levaram a retornar com a dose anterior de 5 mg.
Posteriormente, já com a dose estabelecida de 20 mg de olanzapi-
a) Episódio depressivo grave com sintomas psicóticos F32.3 na e melhora parcial adicional do quadro clínico, reduzimos nova-
b) Transtorno esquizoafetivo, tipo depressivo F25.1 mente o haloperidol para 2,5 mg (costumava queixar-se de que o

62 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


haloperidol a sedava muito e que não notava seu efeito benéfico, cama começa a “afundar no chão, que vai se abrindo”. Sentada
além de apresentar a mímica algo inexpressiva e a hipocinesia que não apresenta tais sintomas. Curiosamente, sua irmã, que a acom-
seriam provenientes do uso dessa medicação). panha e é saudável, relata apresentar sintomas semelhantes de
Chegamos a suspender o haloperidol, porém, na semana dismorfismo ao deitar-se.
seguinte à suspensão, e em que pese o uso regular dos demais Apresentou aumento de TGO e TGP, motivo pelo qual deci-
medicamentos, inclusive dos 20 mg/dia de olanzapina, a paciente dimos reduzir a carbamazepina. Segundo nossa observação e a
retornou em franco surto psicótico, como nunca antes observado opinião da paciente, todos os demais medicamentos estariam sur-
em nosso acompanhamento e só comparável, talvez, à sua crise tindo efeito visivelmente benéfico, o mesmo não ocorrendo com
dos 15 anos (o surto, infelizmente, não foi filmado e não consta tanta clareza quanto à carbamazepina. Reduzimos o haloperidol
no vídeo). Na rua, a caminho da consulta, a paciente se escondia para 5 mg orais no intuito de minorar os sintomas extrapirami-
de seus perseguidores atrás da irmã, conforme esta nos relatou. A dais, considerando que fizera uso recente do haloperidol de ação
paciente temia que pudessem fazer mal a sua irmã também (che- prolongada. Na semana seguinte, no entanto, tivemos que
gou a manifestar ainda que sua irmã poderia fazer-lhe mal). O que aumentar novamente o haloperidol para 10 mg orais, acrescidos
antes referia como “vultos” ou “sombras”, desta vez relatou do biperideno, pois houve piora das vozes ameaçadoras e nova-
como imagens vívidas, de pessoas com feridas sangrentas, horrí- mente visões de cobras; persistia sensação de rigidez e enforca-
veis, empunhando facas para agredi-la e também a seus familia- mento, além de presença de sinal de roda dentada antes da intro-
res. Chegou a relatar ter sentido a faca encostar em seus braços e dução do biperideno.
corpo (alucinações táteis). Os “homens” falaram para ela cortar Seu estado mental se estabilizou desde então, já por dois a
seus braços ou pulsos, que não conteriam sangue. Esses “vultos”, três meses, tendo os familiares e a própria paciente considerado
que antes surgiam apenas à noite, agora a perseguiam a todo ins- bastante satisfatória a melhora clínica. À época em que também
tante e em todos os lugares, inclusive na rua. Em dado momento, usava a carbamazepina, chegou a ter vontade de sair de casa e a
ao exame, levantou-se em pânico devido aos “homens” persegui- agendar tratamento em centro de convivência, motivo pelo qual,
dores, quase que a apontá-los. Extremamente angustiada duran- após a redução da TGO e da TGP, reintroduzimos essa medica-
te a consulta, em pânico e na maior parte incapaz sequer de se ção, mas ainda sem o tempo necessário para avaliar sua eficácia.
assentar, mencionou forte propósito de se suicidar. Pensou em Pensamos na introdução da clozapina, com retirada gradual das
tomar todos os medicamentos juntos, bem como, por outro lado, demais medicações, o que ainda não se deu devido a esse estado
de não mais fazer uso da medicação, pois esta não estaria resol- relativamente estável e melhor em que se encontra no momento,
vendo em nada seu problema. A situação quanto a um possível que foi obtido com muita dificuldade. Chegamos a pensar, ante-
suicídio, que já era muito delicada antes e que já nos deixara, por riormente, em eletroconvulsoterapia, especialmente ante o risco
várias vezes, extremamente preocupados, agora nos colocava de suicídio e de acometimento hepático pela medicação. A difi-
diante de enorme responsabilidade médica. Tudo isso sabendo da culdade em aplicá-lo em nosso meio – não há ECT no sistema
impossibilidade de interná-la de imediato por falta de vagas no público – nos impossibilitou de utilizar esse recurso terapêutico.
sistema público. Note-se que nem na UFMG possuímos leitos As consultas e abordagem psicoterápica de apoio são agora a
psiquiátricos. cada duas ou três semanas.
Em abordagem cognitiva e de apoio, conseguimos tranqüili-
zá-la minimamente a ponto de que mantivesse estado mental com- HD atuais
patível com o tratamento ambulatorial. Contando com a evidência
clínica de que o surto proveio da suspensão do haloperidol, pres- a) Transtorno esquizoafetivo tipo depressivo F 25.1
crevemos uma ampola de haloperidol decanoato, além de aumen- b) Esquizofrenia paranóide F 20.0
tar essa medicação oral para 10 mg/dia. Aumentamos o diazepam c) Episódio depressivo grave com sintomas psicóticos F 32. 3
para 20 mg à noite e mantivemos as demais medicações.
Retornou cinco dias depois em muito bom estado, demons- Conclusão
trando alívio de seus sintomas alucinatórios, restando apenas
certa “sensação de enforcamento” relacionada, aparentemente, à O diagnóstico diferencial em quadros psicóticos atípicos
rigidez muscular causada pelo haloperidol. Manteve-se em pode ser de difícil definição, devendo ser sempre prospectivo,
melhor estado na semana seguinte. Cessaram as alucinações estando o clínico sempre repensando o diagnóstico inicial, espe-
visuais, mas persistiam leves alucinações auditivas. Dormia bem. cialmente quando este for de transtorno esquizoafetivo.
Voltou a referir-se à rigidez muscular e ao incômodo da sensação
de enforcamento, o que viria a melhorar com a introdução de Debate
biperideno.
Relatou persistirem sintomas de dismorfismo corporal (aluci- Luís Guilherme Streb*
nações cenestésicas), às quais se referira anteriormente de modo
impreciso. À noite, quando se deita, sente ora a cabeça muito Gostaria de cumprimentar a todos e especialmente ao Leandro,
grande, “inchada”, ora o corpo ou o braço e a mão maiores (che- que traz um caso extremamente complicado. Gostaria de cumpri-
gou a retirar a aliança por esse motivo). Tem a sensação de que a mentar o Maurício Daker e o Hélio Elkis também por essa ativida-

*Coordenador do Departamento de Diagnóstico e Classificação da ABP. Doutor em Medicina, Universidade Livre de Berlim. Membro do Comitê de Psicopatologia
Clínica da Associação Mundial de Psiquiatria

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 63


Diagnóstico diferencial em um caso com sintomatologia afetiva e psicótica

de e me agrada muito ver a sala lotada, porque esse tipo de ativida- concordem, mas, vendo a entrevista, ela não parece uma paciente
de é realmente muito proveitosa. A discussão de casos clínicos, psicótica. A mim “não me tocou psicoticamente”, digamos. E, afe-
ainda mais com entrevista filmada, pode ser muito enriquecedora tivamente, de uma forma muito histeriforme, eu diria.
para todos. Eu me lembro de uma antiga categoria, não sei quem a desen-
Aliás, confesso agora, após ver a entrevista filmada, que tenho volveu, talvez o Maurício possa dizer, não sei se Kraepelin ou
vontade de pegar tudo o que escrevi e preparei e jogar fora. Porque Bleuler. Não havia uma histeria esquizofreniforme, ou uma esquizo-
é diferente quando se vê o paciente. Lemos a história, vemos os frenia histeriforme? Não havia um quadro assim também? É uma
dados de anamnese, pensamos uma série de coisas, mas vendo a pena que os nossos sistemas modernos de classificação, na tentativa
pessoa e vendo a entrevista, mudou completamente! E tenho que de simplificar, eliminem determinados diagnósticos, determinados
confessar para vocês que, realmente, não sei o que dizer agora, não conceitos, que poderiam nos ajudar muito a chegar a um diagnósti-
tenho o que fazer com estas minhas anotações! co em casos difíceis como esse.
De qualquer forma, gostaria de fazer algumas observações teó- Para resumir, pois eu acho que o Itiro também tem algumas...
ricas que penso relacionarem-se às dificuldades que o apresentador Aliás me impressionou muito que ela melhorou com cerveja. Eu
e o supervisor tiveram no atendimento à paciente. queria saber a marca da cerveja! [Risos da platéia]. Para eventual-
Se atentarmos à história, observamos um curso interessante, na mente receitar. E se ela melhorou com cerveja, talvez, de fato, não
medida em que é realmente atípico, difícil. Não conseguimos vê-lo seja algum transtorno basicamente psicótico, porque não melhora-
em nenhuma das grandes categorias. Começa aos 15 anos (primei- ria com cerveja. Mas essa é só uma hipótese farmacodinâmica!
ro detalhe). Vários estudos epidemiológicos já demonstraram que a Viram que o diagnóstico utilizado foi a CID. Está bem assim,
idade de início da psicose esquizoafetiva é 30 anos (mais ou menos correto. Temos que usar e conhecer a CID. Mas se saímos da CID
dois ou três anos). Portanto, esse dado já pode nos ajudar. O que para ver o que existe de critérios diagnósticos, não só para esquizo-
sobraria? Resta algum transtorno do grupo das esquizofrenias. 15 frenia, mas como para psicoses esquizoafetivas, verificaremos que
anos, antes dos 20: será que algum transtorno hebefrênico? Bem, ela existe uma variedade muito grande e muito interessante de sistemas
possui alguns dados na história, como timidez, como retração social diagnósticos, especialmente para psicose esquizoafetiva. Gostaria
na infância, que poderiam nos sustentar nessa hipótese, mas apenas de mencionar especialmente um que pude conhecer melhor, uma
isso também. O quadro em si tem muito pouco da síndrome hebe- proposta diagnóstica de um psiquiatra grego, Marneros, que desen-
frênica clássica. Isso quanto ao primeiro surto. volveu todo um estudo em Colônia, Alemanha, com pacientes que
Sobre a história civil, conforme informação do marido, depois ele pôde examinar durante 30 anos, que já vinham do Schneider
desse surto e até os 32 anos, parece que a história de vida dela foi (parece-me que eram pacientes do Kurt Schneider, em Colônia). Ele
“relativamente” normal. É pouco provável que isso tenha aconteci- propôs um sistema diagnóstico muito interessante para psicose
do, muito pouco provável. Se investigássemos, talvez, um pouco esquizoafetiva. Uma idéia importante: sugere que pacientes esqui-
mais na anamnese, poderíamos obter alguns elementos psicopatoló- zoafetivos possam ter episódios puros, ou seja, só esquizofrênicos
gicos importantes. ou esquizofreniformes hoje, por exemplo. No futuro, ou no passa-
Chama-me a atenção que ela foi atendida em março agora, mas do, só maníacos ou só depressivos. Ou seja, ele sustenta que a exi-
que, na verdade, ela está desde 1998, desde os 32 anos de idade, em gência existente na CID, de simultaneidade (pelo menos em algum
momento num mesmo episódio) de sintomas do grupo esquizofrê-
“surto”, porque se observarem na descrição do caso, ela está com
nico e do grupo afetivo não é importante. Se adotarmos esses crité-
sintomatologia ativa há cinco anos, das mais variadas formas. Então
rios diagnósticos do Marneros, a estabilidade diagnóstica dos
não se trata de um episódio o que temos. Isso é uma evolução, e
pacientes com transtorno esquizoafetivo aumenta tremendamente.
uma evolução que, digamos, mistura, muito claramente, elementos
Se usarmos os critérios da CID, sabe-se que a estabilidade diagnós-
psicóticos importantes. Curiosamente, num primeiro momento só
tica de um paciente que um dia recebeu diagnóstico de esquizoafe-
alucinatórios, e apenas agora, bem no fim, já durante o tratamento,
tivo é de 40%. Usando critérios de Marneros, verifiquei estabilida-
é que aparece sintomatologia delirante persecutória. Este é, portan-
de de 86% no meu estudo de doutorado.
to, um elemento que apareceu recentemente, apesar de tratamento.
Para finalizar, eu diria que não sei qual o diagnóstico. Parece,
É curioso isso.
talvez, um transtorno histeriforme grave com manifestações pseu-
Na verdade, a psiquiatria do século passado descreveu mais de
dopsicóticas, pseudoesquizofrênicas, com uma sintomatologia afeti-
100 cursos possíveis para a esquizofrenia. Atualmente se aceitam 15
va associada, mas que a mim não me “palpitou” (como se diz no Rio
cursos, ou algo aproximado, quer dizer, existem várias formas de
Grande), não me tocou. Mas gostaria de ouvir o Itiro e depois abrir
evolução do transtorno esquizofrênico.
para a platéia, para que possamos discutir mais.
Pesquisei algo sobre a evolução do transtorno esquizoafetivo.
Também é altamente variável. Geralmente começa com sintomato- Itiro Shirakawa *
logia mais para o pólo esquizofrênico e, com o tempo, vai terminan-
do com sintomatologia afetiva. Quer dizer, usando os dados de evo- Primeiramente as minhas queixas ao Dr. Maurício Viotti,
lução que se conhece, isso não nos ajudará muito para chegar a um que, no ano passado, também me convidou para um caso de
diagnóstico desta paciente. esquizofrenia que era um transtorno de personalidade, e me vi em
O que eu queria dizer em relação ao filme, e que talvez seja o dificuldades, procurando recordar conhecimentos antigos. Eu
mais importante em relação a tudo isso... Não sei, espero que vocês não sei se aceitarei no ano que vem! Ele está me ajudando, quem
* Professor Titular de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina

64 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


sabe, a me decidir a sair do serviço especializado de esquizofrenia lidar com sua culpa. Quando liberta, sem o haloperidol, afloram
para trabalhar um pouco na enfermaria, para me reciclar um seus sintomas.
pouco. É algo que estava pensando, em mudar um pouco de área, São vultos, sombras... De modo que não vejo o embotamen-
e acho que agora vou tentar. to, o autismo, o transtorno dos afetos, os sintomas schneiderianos.
É verdade que o Dr. Maurício tinha me tranqüilizado: “não, Sei apenas fazer o diagnóstico antigo de psicose histérica.
o Dr. Streb é especialista em esquizoafetivo”. Então ele fala pri- Não sei se chega a apresentar a “belle indifférence”. Lembra um
meiro e tudo bem, pensei. Mas enquanto nós estávamos sentados pouco esse diagnóstico. E com toda a minha compreensão psico-
ali, o Dr. Streb me disse: “para mim é um caso de esquizofrenia”. dinâmica, eu indicaria ETC. Para esses casos, que se arrastam e se
Mas eu estava achando que era um caso de esquizoafetivo, que mantêm – desculpem-me os psicanalistas, a psicodinâmica da
era da sua área! culpa que eventualmente acontece –, na minha experiência, no
Fui estudar um pouco os esquizoafetivos para me atualizar e tempo em que trabalhava na enfermaria (daí querer voltar para a
achei que a paciente era esquizoafetiva. Mas vendo o vídeo, real- enfermaria), para esses casos a resposta ocorria com o ECT. E os
mente, tive a mesma impressão. Quer dizer, não apresenta, à antipsicóticos e antidepressivos, tudo isso, realmente não mostra-
entrevista, uma aparência esquizofrênica. O paciente esquizofrê- vam grandes resultados.
nico é aquele paciente retraído, isolado, distante; aquilo que o
Minkowski falava, como se ele estivesse com um véu, que dificul- Carlos Eduardo Leal Vidal (Barbacena, MG).
ta o rapport, dificulta o encontro. Mas não, ela está aí toda presen-
te, ela chora. E revendo o histórico, vejo que, do ponto de vista A apresentação foi excelente e, quanto ao diagnóstico, con-
psicopatológico, é inconsistente, não convence como alucinação, cordo com a mesa perfeitamente. Em todo momento do quadro
não há um delírio estruturado, são “os homens que me perse- vemos características histeriformes: alucinação elementar, uma
guem, ninguém vê”. Não se estrutura como um delírio, as aluci- “vozinha” que qualquer paciente pode apresentar, as alucinações
nações também não convencem. E na primeira leitura, quando vi visuais, em que na verdade o termo deveria ser outro, pois, prin-
que ela fazia referência às cobras, pensei em síndrome de absti- cipalmente no histérico, há uma confusão muito grande entre
nência, só que bem antes já não bebia. Aí aparece o histórico do representação e percepção.
irmão que tem zoopsias, da irmã que também relata algo que ela Gostaria de observar que em determinadas ocasiões, como
tem. Então parece que ela “se contamina” fácil, que é uma pessoa neste caso, deparamos com paciente que tem toda uma história,
sugestionável. que já estava sendo medicado. Vocês introduziram alguns medi-
Minha formação, realmente, não é psicanalítica. Mas come- camentos e em nenhum momento questionaram o diagnóstico,
cei a ver até toda a simbologia psicodinâmica de cobras, do chão interromperam e foram ver o que estava acontecendo. Pára,
que abre, depois ela entra dentro. Das tentativas de suicídio reformula e tenta outra estratégia, com uma psicoterapia ou
anunciadas, ou seja, o paciente esquizofrênico, diante do quadro outra. E houve uma mistura muito grande de fármacos: tioridazi-
persecutório, do quadro alucinatório, apresenta tentativas de sui- na, haloperidol, imipramina, diazepam, olanzapina.
cídio sérias, o indivíduo corta o pescoço, etc. Salva-se por acaso.
Isso é o que tenho visto na minha prática com relação ao pacien- Eudes José Garcia de Lima (Belo Horizonte, MG)
te esquizofrênico, quer dizer, tentativas de suicídio sérias e não-
anunciadas. Vejo, neste caso, muita atuação, ela atua, há o concei- Ontem teve um seminário no congresso que chamava algo
to de ganho secundário. assim: “a histeria morreu, o que teria acontecido?” Seria nesse
No quadro dos 15 anos, novamente, ela melhora sem antip- sentido minha intervenção. Acho que a maioria dos casos que
sicótico, com benzodiazepínico, num prazo curto de 15 dias. Ela tenho visto aqui é de histéricos mal-diagnosticados. A histeria
se casa, tem filhos, vive esse conflito da morte da filha, em que possui essa característica de se dissimular em vários quadros. É
não foi ver o enterro, não teve condições. No conceito jasperiano, uma pena que no furor americano de acabar com qualquer coisa
há muita compreensividade no caso dela, ou seja, eu consigo que viesse da psicanálise “picaram” a histeria em transtornos dis-
compreender o que ela fala, que a filha quer matá-la, enfim, ela sociativos, transtornos conversivos e personalidade histriônica.
precisa ser punida. Parece que os conflitos estão presentes aí o Então fica difícil para quem é novo, que está começando, ver
tempo todo. E não apresenta os sintomas mais característicos. O essas coisas juntas. O Dr. Itiro viu a sugestionabilidade. Há várias
Prof. Hélio Elkis tem o artigo “A Esquizofrenia de Kraepelin, características, como essa indiferença, o modo como ela fala. É
Bleuler e Schneider”. Eu não a vejo nos critérios evolutivos krae- uma pessoa que se dirige ao entrevistador, uma pessoa que, ape-
pelineanos. Apresentou um quadro aos 15 anos, casou-se, teve sar de estar rígida e impregnada, apresenta certa teatralização, de
filhos, vinha trabalhando. Mesmo que seja referido que a esqui- certa forma. E na histeria são comuns essas manifestações de
zofrenia em mulheres ocorre mais próxima à terceira década. Não representação, como colocado pelo Dr. Carlos Eduardo, não falo
vejo muito as perdas que vemos na esquizofrenia. Não aparecem hora nenhuma de alucinação. “É como se”. Um tratamento sem
os sintomas bleulerianos nem os schneiderianos. resposta com doses máximas de antidepressivos: temos que des-
É um quadro atípico, que vem se arrastando, que não melho- confiar que não é depressão. Não entendi por que dar carbama-
ra nem piora. A piora aqui referida, quando foi suspenso o halo- zepina nesse caso. Alucinações, sintomas psicóticos também não
peridol, a vejo até, parece – não sou psicanalista –, como se o respondem a neurolépticos: também desconfiar se é outra coisa.
haloperidol, com toda sua contenção, pudesse, de alguma forma, A histeria realmente nos transmite essa multiplicidade de fatos,

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 65


Diagnóstico diferencial em um caso com sintomatologia afetiva e psicótica

essas confusões de diagnóstico, algo que sempre deve ser pensa- tivos (isso ocorreu num draft ou rascunho da CID-10, mas não
do quando temos dúvida quanto ao diagnóstico. teria ocorrido na CID-8, nota do editor) na CID-9 dos esquizo-
Achei brilhante a conclusão da mesa e a exposição do caso frênicos, na CID-10 numa linhagem específica, quer dizer, será
também foi muito boa. que na CID-11 teremos ainda transtornos esquizoafetivos
ou não?
Leandro Augusto Paula da Silva Uma outra questão, Leandro, que considero fundamental.
Mais do que discutirmos o diagnóstico, seria discutir assim:
Eu gostaria de tentar responder a ambos os questionamen- como podemos trabalhar com esse tipo de paciente? E nesses
tos, que são muito parecidos. Uma coisa que a gente fez, se não casos difíceis temos um furor farmacológico, começamos a fazer
semanalmente, mas com muita freqüência, foi exatamente ques- associações que muitas vezes são indevidas teoricamente ou até
tionar o diagnóstico e até por isso estamos trazendo o caso aqui. mascaram quadros. Mas, aqui, penso que existem dois pontos
Inicialmente, pensamos no quadro depressivo, talvez pela apre- fundamentais. Primeiro, é o exercício do trabalho e a reflexão
sentação da paciente na primeira consulta, que não foi a apresen- dos casos em equipe e, se possível, numa equipe multiprofissio-
tada no vídeo. A primeira consulta chamou muito nossa atenção nal, que possa fazer leituras distintas em relação ao caso.
nesse sentido da depressão e, inicialmente, pretendíamos seguir Segundo ponto, a possibilidade de, nesses casos, pensarmos em
a estratégia de iniciar um antidepressivo e diminuir os serviços de atendimento mais intensivo, como, por exemplo,
antipsicóticos. uma hospitalização parcial, tipo hospital-dia, onde possamos
Optamos também por um acompanhamento semanal dessa acompanhar a evolução desse paciente.
paciente, achamos que haveria uma possibilidade adicional de Portanto, penso nessa perspectiva de poder refletir a respei-
melhora da paciente com esse acompanhamento mais próximo. to desses casos numa outra concepção. Eu também não sou psi-
E, gradativamente, fomos aumentando a imipramina e tentando canalista, não tenho formação psicodinâmica. Nem acho que a
reduzir os antipsicóticos. psicanálise se reduza a cinco sessões por semana. Muitas vezes
O que chamou muito nossa atenção – acho interessante a pode haver uma leitura mais intensiva, uma leitura de psicotera-
observação do Prof. Itiro sobre isso – foi o fato de ela ter piora- pia breve e que pode contribuir numa perspectiva de evolução
do tanto com a retirada do haloperidol. Em vários momentos, muito boa para essa paciente, que não se baseia apenas e pura-
tínhamos pensado em ganho secundário, em vários momentos mente na questão medicamentosa. Obrigado.
pensamos em quadro histeriforme. Mas com a manifestação após
a retirada, então, entrou uma outra questão. Como foi colocado Hélio Elkis
pelo Dr. Eudes, como é que está a histeria hoje em dia? Porque
senão, de uma certa maneira, podemos até falar que os nossos Precisamos passar para a outra mesa. Se não houver respos-
sistemas classificatórios, como colocou o Dr. Luís Guilherme, ta, o Prof. Maurício, na ausência do supervisor, quer comentar,
são completamente falhos em alguns casos, como neste. Não há pois conhece o caso.
como classificá-lo pela CID e pela DSM. Essa paciente é inclas-
sificável se considerarmos todos os critérios. Então ficamos per- Maurício Viotti Daker
didos nesse caso. E mais, não tem como classificar e, se formos
recorrer à psiquiatria atual, o tratamento também é muito difícil. Tive a oportunidade de ver umas poucas vezes essa paciente
Tratar como? Por onde? É interessante que temos um psicanalis- e gostaria de lembrar que, de fato, esse vídeo foi feito numa
ta didata da IPA no nosso serviço e ele até sugere umas idéias etapa mais inicial, quando a sintomatologia estava mais nebulo-
interessantes, mas em termos de ambulatório psiquiátrico da sa do ponto de vista dos sintomas psicóticos. Depois a vi no dia
UFMG também fica difícil conduzir da forma como sugere, uma em que chegou naquele estado, totalmente em surto, e não me
análise cinco vezes por semana durante anos seguidos... Quer pareceu nada de “faz-de-conta”, nem de “sombra”, nem de
dizer, é difícil também, como vamos fazer isso? “parece que é” ou de “como se”. Já havia a suspeita desse qua-
Fica aqui, portanto, a questão da classificação, de como dro dissociativo, de algum ganho secundário, mas quando che-
alguns casos seriam pouco privilegiados hoje e como também gou nesse surto, de psicótico tinha sim! Porque ela alucinava, eu
alguns casos são extremamente difíceis de conduzir. a vi vendo coisas. E os vultos eram relatados na ocasião como
Também concordamos que há uma polifarmácia, procura- imagens vívidas, de pessoas sangrentas. As vozes também, ao que
mos manejar isso. Mas, ao mesmo tempo, ficamos receosos, pois tudo indica, ouvidas com nitidez. O comportamento e a fácies de
foi muito difícil e demorado chegar ao equilíbrio a que chegamos pavor, realmente em pânico. Era uma paciente plenamente sur-
hoje. Houve respostas aos medicamentos, nem que parciais. tada, em surto psicótico. Se é esquizoafetivo, se é psicose aguda,
Felizmente, pelo menos razoavelmente controlada ela se encon- esquizofreniforme, psicose histérica ou o que for, não sei, mas
tra no momento. que ela apresentou aí sintomas psicóticos claros e evidentes, pelo
menos naqueles dias, disso não tenho dúvidas. E certamente nin-
Luís Fernando Paulin (Bragança Paulista, SP) guém esperaria que piorasse tanto para estar ali na hora com
uma câmera de vídeo. Não foi filmado, infelizmente, pois gosta-
Eu concordo já com algumas colocações. Principalmente, eu ria de ter a opinião dos colegas a respeito dessa fase também.
até perguntaria para o Prof. Luís Guilherme: na CID-8, os trans- Mais algum comentário? Teremos a outra mesa. Sim, vamos ver
tornos esquizoafetivos estavam na linhagem dos transtornos afe- se o Louzã agora resolve!…

66 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Luís Guilherme Streb normal? Novamente, a descrição que o Dr. Maurício fez foi uma
descrição dramática. Ele me transmitiu esses dados, de estar
Antes, só para polemizar um pouco com o Prof. Itiro, eu ima- vendo toda a atuação dela, o drama. Voltando à minha prática, eu
ginaria uma psicoterapia intensiva com ela durante algum tempo, continuaria indicando algumas sessões de ECT, e depois a psico-
antes de passar pelo ECT. Eu tentaria, pelo menos.
terapia!
Mário Rodrigues Louzã Neto (USP, SP)
Summary
Eu concordo plenamente e estávamos discutindo aqui. A
It is described a clinical case of a female patient presenting dual
patoplastia histérica dela é muito significativa, mas diante daque-
le quadro de alucinação cênica, que ela começou a apresentar, symptomatology at times, predominantly affective at times predo-
esse surto psicótico... Eu não me lembro se vocês chegaram a minantly psychotic. During the course of the treatment there was
fazer eletroencefalograma. Algumas epilepsias podem se manifes- partial response to both antidepressant and anti-psychotic treat-
tar com uns quadros desse tipo, que aparecem e desaparecem ments. Regarding the use of a non-conventional anti-psychotic,
com muita rapidez. Apenas como diagnóstico diferencial, aparen- olanzapine, it was not possible to withdraw haloperidol. The con-
temente pouco provável, mas, enfim, existe essa possibilidade. dition improved when higher dose of haloperidol was administe-
red and also using it as deposit, as long as the other drugs were
Hélio Elkis
maintained (imipramine, olanzapine and diazepam). For one
Eu também ia acrescentar isso. Esse dismorfismo corporal é occasion, carbamazepine was utilized with no conclusive result.
um sintoma que também se vê em algumas epilepsias. Não custa- As far as the diagnosis was concerned, it varied from severe
ria, portanto, fazer um eletroencefalograma, inclusive com os ele- depressive episode with psychotic symptoms to paranoid schi-
trodos pegando mais na região temporal. zophrenia, more likely however, according to the authors, is the
diagnosis of schizoaffective disorder depressive type.
Maurício Viotti Daker The presentation of the case is followed by the participation
of the audience and of the debaters. Hysterical psychosis and the-
Curiosamente, ela parece ter melhorado na época em que fez
rapeutic approaches in addition to pharmacological approach are
uso da carbamazepina, mas de forma não-conclusiva.
discussed. It is also speculated the possibility of epilepsy.
Itiro Schirakawa
Key-words: Schizoaffective Disorder; Major Depressive Episode,
Só para terminar, eu concordo também, pensei que seria Severe with Psychotic Features; Schizophrenia, Paranoid Type;
importante o eletroencefalograma. Mas agora, e se o eletro desse Hysterical Psychosis; Epilepsy; Antipsychotics; Antidepressants.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 67


CO-OCORRÊNCIA ENTRE OS TRANSTORNOS ESQUIZOTÍPICO E
BORDERLINE
COMORBIDITY OF SCHIZOTYPAL AND BORDERLINE DISORDERS

Keila Albuquerque * nia, apesar de não haver manifestação presente ou passada de ano-
Osmar Gouveia ** malias esquizofrênicas definidas e características”.
Maria de Fátima Diniz *** Spitzer et al.4 levantaram a hipótese de que a síndrome bor-
derline incluía dois diagnósticos distintos. O primeiro, contem-
Resumo plado com a denominação borderline, caracterizava-se, principal-
mente, pela instabilidade dos relacionamentos interpessoais e
Os autores relatam o caso de um paciente com transtornos de acentuada impulsividade, tendo certo parentesco com os trans-
personalidade borderline e esquizotípico e a sua evolução após a tornos do humor; o segundo diagnóstico foi denominado de
introdução da clozapina. São discutidos os aspectos psicopatoló- transtorno esquizotípico, cuja característica essencial era um défi-
gicos e históricos dos termos borderline e esquizotípico. Segue cit social e interpessoal, marcado por reduzida capacidade para
discussão com debatedores e platéia. relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou da per-
cepção, sendo então sugerida uma relação entre esse quadro e
Palavras-chave: Transtorno de Personalidade Borderline; a esquizofrenia.
Transtorno de Personalidade Esquizotípico.
Relato do Caso
Introdução
Apoiados em Berrios,1 passamos a uma breve revisão do con- Identificação
ceito de borderline.
Inicialmente, a síndrome borderline surge como categoria BGAT, 39 anos, solteira, doméstica, segundo grau completo,
vaga e imprecisa, que compreende sintomas que se estendem natural e procedente do interior de Pernambuco.
desde o “neurótico”, passando pelos distúrbios de personalidade,
até o “psicótico”. Podemos considerar como precursores do con- Queixa principal
ceito de borderline entidades como a “manie sans délire”, de Pinel
(1809), a “moral insanity”, de Prichard (1835), assim como a “folie Encaminhada à enfermaria de psiquiatria da Unidade de
raisonnante”, de Esquirol (1838), que eram consideradas transtor- Saúde Mental do Hospital das Clínicas da Universidade Federal
nos mentais graves, mas sem sintomas claros de loucura. Em 1890, de Pernambuco devido à tentativa de suicídio por meio de inges-
Kahlbaum descreve uma síndrome denominada heboidofrenia, tão excessiva de psicofármacos.
presente em indivíduos pré-esquizofrênicos, negativistas, mal-
humorados, impulsivos e entregues a uma espécie de “autismo HMA
moroso”. Posteriormente, temos outros autores, como Eugen
Bleuler (1911), que denominou de esquizofrenia latente aquela Paciente com transtorno mental evoluindo de longa data,
que, apesar de um comportamento social mais adequado, trariam tendo o quadro mórbido iniciado na adolescência. Aos 17 anos,
consigo elementos de esquizofrenia, conceito esse semelhante ao teve a sua primeira tentativa de suicídio, por meio de ingestão de
que Zilborg, em 1941, designou esquizofrenia ambulatorial. Stern fármacos de sua genitora. Após esse episódio, mudou-se para São
foi o primeiro autor a utilizar o termo borderline, em 1938. Paulo onde morou durante 20 anos e passou a ser acompanhada,
Deutsch, em 1942, referindo-se a esses estados borderline entre a nesse período, por psiquiatra e psicólogo naquela cidade. Teve
psicose e a neurose, cunha o termo “personalidade como se”. Kurt vários internamentos, todos pontuados por tentativas de suicídio,
Schneider, em 1965, no livro Psicopatologia Clínica,2 denomina de uma tendo ocorrido numa enfermaria psiquiátrica, onde quebrou
psicopatas instáveis de ânimo aquelas pessoas de humor depressi- uma lâmpada e cortou os pulsos. Chegou a utilizar vários psico-
vo que, inopinadamente, se excitam, quadro freqüentemente asso- fármacos: antidepressivos (tricíclicos e inibidores seletivos da
ciado a impulsividade e ao abuso de álcool. A CID-9,3 de 1976, recaptura de serotonina), estabilizadores do humor (carbonato de
denomina de esquizofrenia latente ou borderline “um quadro lítio e carbamazepina), haloperidol, este último por curto perío-
mental que se manifesta através de comportamento excêntrico ou do de tempo, além de realizar várias sessões de ECT, sem obter
inconseqüente e de anomalias que dão a impressão de esquizofre- resposta satisfatória. Há aproximadamente dois anos e oito

* Médica Residente – R3 – do Programa de Residência Médica em Endereço para correspondência:


Psiquiatria/HC-UFPE. Apresentadora. e-mail: osmargouveia@zipmail.com.br
** Prof. Adjunto do Depto. de Neuropsiquiatria/UFPE. Supervisor.
*** Psicóloga Clínica

68 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


meses, após rompimento de relacionamento afetivo, retornou a Exame Neurológico
sua cidade natal, onde reside até o momento atual. Desde então,
a partir de março de 2000, passou a realizar acompanhamento Normal.
ambulatorial em nosso serviço. Em junho de 2000, apresentou
nova tentativa de suicídio por meio da ingestão de vários psico- Exame Psíquico (06/2000)
fármacos (principalmente diazepam) e, logo após, procurou aten-
dimento em nosso serviço, tendo sido feita lavagem gástrica e Apresenta-se no consultório com adequada higiene pessoal,
internada na enfermaria de psiquiatria. aceita prontamente o convite para a entrevista e senta-se no local
indicado. Permanece a maior parte do tempo cabisbaixa, evitan-
Antecedentes familiares do contato visual. Quando questionamos o que lhe aconteceu,
respondeu que tentou suicídio porque é “chata, feia e gorda”.
Genitor faleceu há 15 anos de infarto agudo do miocárdio. Afirmou que poucas vezes na vida sentiu prazer em alguma coisa.
Era alcoolista. Relatou ainda sentimentos hostis para com o seu genitor e sua
Genitora faleceu há 14 anos após acidente vascular cerebral. irmã, além de muita raiva de si mesma. Disse: “eu não presto para
Era hipertensa. nada, sou uma pessoa que só dou trabalho para os outros, não
A paciente é a terceira de uma prole de cinco irmãos. O tenho por que viver”. Falou sobre outras tentativas de suicídio e
irmão mais velho tem 42 anos e é nefropata; o segundo tem 40 negava arrependimento. Memória preservada. Orientada auto e
anos, é portador de esquizofrenia e está internado em um hospi- alopsiquicamente. Atenção sem alterações grosseiras.
tal-colônia; a quarta tem 36 anos e é hipertensa; a quinta tem 33 Hipotímica. Não apresentava alterações da sensopercepção, bem
anos e também é hipertensa. como do juízo da realidade. Consciência clara.

Antecedentes pessoais Exames Complementares


Desenvolvimento neuropsicomotor normal. Nega TCE, bem Hemograma, bioquímica, hormônios tireoideanos, parasito-
como crises convulsivas. Nega tabagismo e etilismo. É hiperten- lógicos de fezes, sumário de urina, VDRL, todos normais (junho
sa, faz uso de captopril e furosemida. de 2000).
Psicodiagnóstico de Rorschach (junho de 2002): O protoco-
Antecedentes sociais, curva de vida e personalidade pré-mór- lo do teste concluiu pela presença de traços esquizomorfos e dis-
bida fórico-ansiosos, sem sinais de psicose propriamente dita.

Sempre foi considerada tímida e calada, não gostava de dizer Diagnóstico provisório
o que sentia para os familiares. Não tinha facilidade de fazer ami-
zades, recorda-se apenas de uma amiga na infância, preferia mais Transtorno de personalidade borderline.
atividades solitárias. Sofreu abuso sexual do genitor na infância e
na adolescência. Tratamento e evolução
Aos 17 anos, mudou-se para São Paulo devido aos constan-
tes abusos sofridos por parte de seu pai. Concluiu o segundo grau Mantivemos, no início do internamento, os psicofármacos
e cursou dois anos de psicologia, porém abandonou os estudos que vinham em uso: sertralina 75 mg/dia, carbamazepina 800
posteriormente e nunca mais retornou a estudar. Teve diversos mg/dia (chegamos a aumentar para 1000 mg/dia) e diazepam 10
empregos: trabalhou como doméstica e balconista em um frigorí- mg/dia.
fico, sendo constantes as mudanças de emprego. O último foi o Durante as entrevistas posteriores na enfermaria, sempre se
de caixa de supermercado. Atualmente, está aposentada devido apresentava reticente, com aparência estranha, evitando o conta-
ao transtorno mental após quatro anos de benefício no INSS. to visual. Chegou a referir que havia sofrido abuso sexual do seu
Teve dois relacionamentos amorosos, o primeiro durou um genitor em sua infância e sentia-se muito culpada, pois achava
mês e o segundo aproximadamente três anos. Era um relaciona- que não merecia ser perdoada por ter traído a sua genitora, e atri-
mento bastante conflituoso. Chegaram a conviver maritalmente, buía esse fato como causa das suas repetidas tentativas de suicí-
sendo freqüentes as brigas e a paciente geralmente quebrava dio. Relatou ainda que tinha muita raiva de seu pai e de uma de
objetos enquanto discutia com o seu companheiro. O rompimen- suas irmãs, além de todos os outros pacientes da enfermaria, dos
to ocorreu em dezembro de 1999, época em que resolveu voltar quais referia não suportar sequer a presença próxima a ela,
para sua cidade natal e morar na casa de uma de suas irmãs. mesmo não tendo motivo aparente para apresentar esse sentimen-
Durante os 20 anos que passou em São Paulo, nunca foi visitar to. Algumas vezes relatou, sem demonstrar qualquer expressão
familiares em Pernambuco e raramente telefonava para saber de raiva ou remorso, que ficava imaginando a sua irmã esquarte-
como eles estavam. jada dentro de uma grande caixa. Não conseguimos evidenciar
nenhum sintoma claramente psicótico. O comportamento na
Exame físico enfermaria tendia ao isolamento, evitando qualquer contato com
os outros pacientes. Ficou vários dias dizendo que estava sentin-
Sem anormalidades. do um desejo muito grande de quebrar uma vidraça da enferma-

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 69


Co-ocorrência entre os transtornos esquizotípico e borderline

ria. Certa ocasião, após consulta com a psicóloga, consumou o Para maior clareza, fornecemos adiante o diagnóstico multi-
seu intento. Evoluiu com grande impulsividade, sendo atendida axial no DSM-IV-TR9 e a respectiva codificação da CID-10.10
de urgência algumas vezes. Durante os finais de semana domici-
liares, necessitava de vigilância contínua dos familiares, pois ten- HD
tava colocar a mão nas tomadas elétricas e queria se auto-agredir.
Com um mês de internamento, permanecia com séria ideação sui- CID-10: - F60.31 Transtorno de personalidade emocional-
cida e intensa impulsividade. mente instável: tipo borderline
Apoiados em alguns trabalhos como o de Beneditti et al.5, - F21 Transtorno esquizotípico
Colombo et al.6 e relato de caso de Chengappa et al.7, que DSM-IV
demonstraram considerável melhora de pacientes portadores de Eixo I: Nenhum diagnóstico.
transtornos de personalidade borderline com o uso da clozapina, Eixo II: 301.83 – Transtorno de personalidade borderline
optamos por iniciar este antipsicótico. Ao atingirmos a dose de 301.22 – Transtorno de personalidade esquizotípica
100 mg/dia, já eram visíveis os primeiros resultados, como melho- Uso freqüente de atuação (acting out)
ra da impulsividade e do humor. Aumentamos a dose para 300 Eixo III: Hipertensão
mg/dia. Recebeu alta com dois meses de internamento e desde Eixo IV: Vítima de abuso sexual na infância
então vem sendo acompanhada semanalmente conosco com a Eixo V: AGF (admissão): 10
mesma dose de clozapina. Nesse período de acompanhamento, AGF (alta): 65
não apresentou nenhuma tentativa de suicídio, o humor apresen-
ta algumas oscilações episódicas e, no relacionamento com os [Vídeo]
familiares, houve melhora importante. O contato durante as
entrevistas está bem melhor, não se apresenta mais reticente, con-
seguindo falar mais sobre si mesma. Disse: “é, eu sei que tenho de Debate
me cuidar, eu quero melhorar e sei que isso depende também de Mário Rodrigues Louzã Neto*
mim”. Antes não havia modulação afetiva nos conteúdos de pen-
samento dela; atualmente, quando fala da família, já se expressa Gostaria de agradecer o convite para participar dessa discus-
modulando o afeto, concordante com o conteúdo. Ainda persiste são e queria parabenizar a equipe que coordenou a seleção dos
com ansiedade social e possui apenas uma amiga. Porém, diante casos, por ter escolhido dois quadros histéricos para
do quadro apresentado pela paciente antes e durante o interna- discutirmos hoje!
mento, consideramos que houve melhora significativa em seu Estou dizendo dois quadros histéricos porque, historicamen-
funcionamento global. te, uma parte da antiga histeria migrou para borderline. Portanto,
não é de todo absurdo usar essa expressão, quer dizer, borderline
Comentários finais brotou ou adveio do conceito antigo de histeria, que provavel-
mente era amplo demais e acabou esquartejado nas
O que nos chama a atenção no presente caso são os aspectos classificações atuais.
que passaremos a resumir. Trata-se de uma paciente de 39 anos Certamente todo mundo conhece o Nelson Rodrigues como
cuja primeira de uma série de tentativas de suicídio foi aos 17 escritor de teatro, mas que também era cronista de futebol.
anos. Durante os 20 anos que separam esta primeira tentativa do Escrevia para os jornais crônicas dos jogos que haviam aconteci-
instante atual, conta com vários internamentos psiquiátricos. do. E muito freqüentemente se queixavam dele, dizendo que a
Usou vários tipos de medicações sem resultado, à exceção do crônica não tinha nada a ver com o jogo. Ele respondia simples-
antipsicótico atípico referido no relato do caso. O acompanha- mente: “pior para os fatos”. Ele não se preocupava muito com o
mento realizado no HC da UFPE desde o internamento mostra jogo, queria era fazer um comentário qualquer.
uma paciente afastada do convívio com as outras pessoas na Estou citando essa idéia, “pior para os fatos”, porque nosso
enfermaria, bastante reticente durante as entrevistas clínicas, caso é o contrário. Se o paciente não encaixa nos livros, pior para
marcando sua relação com o examinador por um contato distan- os livros. Não é “pior para o paciente”. Isso é fundamental por-
te, com conteúdo de pensamento monótono, concentrado em que, se não, perdemos a noção do que estamos vendo diante de
temas autodepreciativos e, embora reticente, auto-acusatórios. O nós. Ficamos muito preocupados em encaixar o doente em uma
afeto que acompanhava esses temas era sem modulação e não fôrma e, bem, ninguém corta o pé para encaixar o sapato, você
revelava um sentimento que promovesse entendimento empático ajusta o sapato para o pé. Temos que tomar esse cuidado, os
por parte do entrevistador. Com base nesses achados, parece-nos pacientes não vão preencher toda a lista de critérios sempre, não
lícito firmar o diagnóstico de transtornos de personalidade bor- vão se encaixar. Eles não leram o DSM nem a CID! E é impor-
derline e esquizotípica. O que nos levou a este duplo diagnóstico tante não nos precipitarmos, pois muitas vezes acabamos tentan-
foi a presença concomitante de comportamento impulsivo, verba- do medicar um sintoma aqui, outro ali e começa a tal polifarmá-
lizações de raivas, sentimentos hostis, repetidas tentativas de sui- cia e as confusões inerentes a ela.
cídio e, paralelamente, a ausência de modulação afetiva, remon- Não vou entrar nos detalhes da história do quadro dessa
tando ao conceito clássico de atimormia de Dide e Guiraud.8 paciente. Há toda uma história de vida, provavelmente muito

* Doutor em Medicina pela Universidade de Würzburg, Médico Assistente e Coordenador do Projeto Esquizofrenia/ PROJESQ – Ipq USP.

70 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


mais sofrida do que inicialmente me dava a impressão. A expres- vez por semana, assim como se está fazendo com a medicação.
são dela nessa entrevista, mesmo mais recente e com ela em Ela pode ser vista também sob essa ótica e as questões que traz
melhor estado, ainda me passa muito a noção do que essa pessoa podem ser abordadas, colocadas, de alguma forma confrontadas
sofreu, de como ela se sente mal, sem espaço para ela no mundo, com ela, para que possa ir elaborando os conflitos que carrega em
sentindo-se uma pessoa “má, chata, perversa”, que durante muito sua vida. Obrigado.
tempo tinha como única saída para encontrar algum tipo de aten-
ção as tentativas de suicídio. Miguel Chalub*
À medida que alguém começa a escutá-la, de alguma forma
ser continente para ela, certamente ela vai começando a mudar Entendo a discussão de casos clínicos, como estes, não ape-
um pouco essa idéia que tem, tanto dela como a de uma pessoa nas como uma discussão diagnóstica, para as pessoas ficarem ter-
ruim como do mundo, que também culpava por ela ser o que é. çando armas para ver quem é o mais valente que vai acertar o
Particularmente, não vi muito bem a questão do quadro diagnóstico. Penso que os aspectos compreensivos do caso devem
esquizotípico. Se eu fosse de fato tentar classificá-lo, ficaria com ser discutidos, os aspectos psicodinâmicos e a própria observação
o conceito atual de borderline, por causa do comportamento dela, clínica também.
da impulsividade, dessas oscilações de humor, etc. A doutora Keila, que é “uma menininha”, vai me permitir, a
Pra mim não ficou claro, exatamente, o transtorno esquizotí- um velho professor, fazer alguns comentários sobre a própria
pico. E é bom lembrar que desde o tempo que o Schneider fala- observação clínica que ela nos apresentou, antes de começarmos
va das personalidades psicopáticas, que hoje são os transtornos a discutir a questão do diagnóstico.
de personalidade, ele se referia a tipos. Não eram categorias diag- Em primeiro lugar, a história da doença atual foi tão fugaz
nósticas, mas tipos, em que havia predominância de uma deter- que quando peguei a caneta para anotar já tinha acabado. Fiquei
minada constelação de sintomas que estavam mais acentuados e sem saber exatamente qual era a história da doença atual dessa
que permitiam dar àquela pessoa um “diagnóstico”, porque para paciente. Concluí que, parece, são tentativas de suicídio, várias
ele diagnóstico era só orgânico, as personalidades psicopáticas
tentativas de suicídio e só. No entanto, no vídeo, ela fala algo que
não receberiam exatamente um diagnóstico no sentido médico da
não foi descrito nem investigado: “eu ouvia vozes, eu via vultos e
palavra, mas encaixariam numa tipologia de um certo predomí-
uma pessoa apertando meu pescoço”, na primeira internação.
nio, uma certa constelação de sintomas. Não podemos nos apegar
Isso ficou solto. Isso faz parte do processo atual? O que é isso?
muito ferozmente ao diagnóstico porque dificilmente esses sinto-
Foi investigado? É uma manifestação do tipo histérico? É um
mas todos vão se encaixar nele, haverá algum sintoma que não
quadro psicótico que teve, naquela ocasião, fugaz e que desapa-
caberá. Vemo-nos, então, na contingência de ter que associar três
receu, tipo transtorno psicótico polimorfo transitório? A história
ou quatro diagnósticos para tentar cobrir a sintomatologia que o
da doença atual não contemplou esse aspecto, logo, ficamos
paciente apresenta, principalmente quando se trata de transtor-
sem saber.
nos de personalidade.
Três ou quatro diagnósticos que, provavelmente, nem se Na apresentação, também, foi relatado “exame físico sem
encaixam muito bem. Porque, no caso, se utilizamos a classifica- anormalidade e neurológico normal”, tirando a possibilidade de
ção do DSM, com os três clusters ou grupos que os nove ou dez discutirmos isso. Eu tenho que achar que você achou que o
subtipos de personalidade compõem, veremos que o cluster do exame neurológico é normal. E se não for normal? Algo deveria
borderline não encaixa com o cluster do esquizotípico, são clusters ser explicitado sobre os pares cranianos, a sensibilidade, o refle-
diferentes. O do esquizotípico é o cluster dos transtornos que xo profundo, reflexos superficiais, sobre como estão, para que eu
parecem excêntricos ou “esquisitos”, o do borderline é o dos dra- possa saber se isso tem ou não interesse no caso. Dito “normal”,
máticos, emotivos ou imprevisíveis. eu tenho que aceitar, não estive lá presente, você é que
Além de tudo, com tantos diagnósticos associados, vamos estava presente.
criando uma colcha de retalhos que nem fica muito bem Da mesma forma o exame físico. Qual é a pressão dessa
esteticamente. paciente? Como foi a ausculta cardíaca? Como foi a ausculta pul-
A clozapina é, certamente, uma das drogas que têm eficácia monar dela? E as extremidades, estão edemaciadas ou não? Ela é
nesses casos, possui essa característica antiagressiva, anti-impulsi- obesa. Quanto a essa obesidade, além dos aspectos físicos, temos
va, não apenas no caso de quadros esquizofrênicos. No geral, ela que pensar também nas reações emocionais aí envolvidas. É uma
possui essa ação e, portanto, está muito bem-indicada. mulher jovem ainda, ou relativamente jovem (39 anos). Isso tudo
Para terminar, apenas um comentário a mais. Em se falando ficou à margem. Então fico sem saber exatamente como é isso.
do outro caso, em que o analista da UFMG mencionou a idéia de O exame psíquico, Dra. Keila, realmente foi pobre demais.
se fazer análise cinco vezes por semana, o que obviamente é Onde estão a forma do pensamento, o curso do pensamento, o
impraticável, mas não é impraticável que as pessoas tenham um conteúdo do pensamento, a consciência do eu, os valores, a inte-
mínimo de formação psicodinâmica, para ter um olhar psicodinâ- ligência, a vontade, o pragmatismo, a linguagem, a psicomotrici-
mico do paciente, que é algo que se aprende também. Não é um dade. Onde isso ficou? Todos esses dados tinham que ser ditos no
olhar leigo, há técnicas, há formas de se estudar e desenvolver exame psíquico, para que pudéssemos entender o caso, já que só
isso. E um olhar psicodinâmico que permita ver a paciente uma você o viu. Nós vimos um flash muito pequeno da situação.

* Professor de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Psicanalista.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 71


Co-ocorrência entre os transtornos esquizotípico e borderline

O exame psíquico tem que ser descrito e, depois, elaborada coisa com essa ideação suicida. Eu diria que essa paciente – tem
uma súmula psicopatológica, em que, então, usaremos os termos uma palavra que se perdeu na psicopatologia – apresenta auto-
adequados sob o ponto de vista psicopatológico. quíria. Significa a mão contra si própria, é uma paciente que se
Notei um termo com o qual não sei bem o que a apresenta- agride muito. Evidentemente, em algum momento, até pode
dora quis dizer: “a paciente tem hipotimia”. Tenho a impressão acontecer o suicídio, mas ela não quer suicídio, ela quer ficar se
que ela quis dizer que a paciente apresenta hipoforia. Temos que agredindo e, certamente, agredindo também aquelas pessoas com
respeitar as raízes gregas. Se você quer dizer que ela estava triste, quem possui relação afetiva.
abatida, acabrunhada, é hipoforia; hipotimia se refere aos nexos Está bem, a clozapina ajudou, melhorou, mas essa paciente,
afetivos, a relações afetivas que ela tem com as pessoas. Se ela tem pra mim, é elegível para psicoterapia. Se não for possível a psico-
hipotimia, significa que tem um embotamento afetivo, e não me terapia bem-estabelecida, não importa, é paciente de psicotera-
parece que seja bem isso. pia, de alguma forma ela tem que ser ajudada a não ficar de mal
Aí eu também sigo o Dr. Louzã. Não sei de onde surgiu essa com a vida, e ajudada a encarar sua obesidade nessa idade, ajuda-
hipótese de transtorno esquizotípico. Não há nada na história da a encarar sua hipertensão. É uma hipertensão familiar e ela é
dessa paciente, nada no exame, para se pensar em transtorno candidata a um AVC futuro. Ajudada pela psicoterapia. A medi-
esquizotípico. E é muito bom tomar cuidado com esses chavões cação, pra mim, neste caso, é sintomática. Pode até ser a clozapi-
psiquiátricos: “ah é calada, meio retraída, fala pouco. . então deve na, mas é basicamente sintomática, tentando corrigir a impulsivi-
ser coisa de esquizofrenia ou por aí”. Devemos tomar cuidado dade ou corrigir alguma outra anomalia que torne difícil a convi-
com isso, porque pode não ser nada absolutamente, apenas um vência com ela em casa ou no hospital.
aspecto de personalidade; não há nada relacionado com transtor- A senhora me desculpe, mas esses meus cabelos brancos e
no do tipo esquizofrênico ou esquizofreniforme. Portanto, trans- minha idade me perdoam por falar essas coisas. Muito obrigado.
torno esquizotípico ficou, pra mim, totalmente fora de propósito
pelos dados apresentados. Pode até ser, mas só posso raciocinar Keila Albuquerque
pelo que foi apresentado, só posso discutir o que foi apresentado.
Quanto ao diagnóstico, aceito o transtorno de personalidade
Gostaria de falar um pouco sobre a entrevista que fizemos
emocionalmente instável, mas eu não diria borderline. Penso que
com a paciente agora, em que falou sobre vozes, sendo que isso
é impulsivo. O transtorno borderline, e por isso chama-se border-
não foi comentado. Na verdade, durante o internamento e até
line, fronteiriço, está na fronteira, significa que há muitos sinto-
agora ela nunca tinha relatado isso, foi a primeira vez que ela che-
mas de natureza esquizofreniforme, maniforme, depressiva, que
gou a trazer isso, e foi na entrevista para a Sessão de Casos
há um pool de sintomas, insuficientes para caracterizarem uma
Clínicos. Infelizmente, tivemos que gravar essa fita por duas
entidade nosológica determinada, como esquizofrenia, mania,
vezes, porque houve problema de áudio. Na primeira fita ela dis-
depressão. Mas o seu conjunto “confunde” nesse sentido. Assim
corria mais sobre essas vozes, que não eram alucinações. Referia
entendo o diagnóstico borderline, quer dizer, está à margem de
que eram pensamentos que vinham até contra a vontade.
um quadro psicótico, sem configurar um quadro psicótico.
Essa paciente é impulsiva, e ela mesma disse isso. Também a Pareciam ser obsessivos e com essas idéias de tentar se matar.
caracteriza, não apenas na entrevista filmada como na história, ser Mas, em nenhum momento, ela trouxe que vinham de fora.
uma pessoa com um rancor quase permanente, é alguém que está Questionamos especificamente isso e ela não trouxe nenhum
de mal com a vida. Isso é a pessoa com transtorno de personali- dado nesse sentido. Realmente, não parecia ser alucinação auditi-
dade instável impulsiva. Há muitas flutuações, ora parece que va. No máximo, poderia ser pseudo-alucinação.
está tudo muito bem, tudo maravilhoso, ora entra nesse quadro, A respeito do exame físico e do exame neurológico, nas nor-
não do tipo depressivo propriamente, mas raivoso, rancoroso. mas da comissão consta que se houver exames normais, eles não
Evidentemente, aí aparece a impulsividade, aparece a agressivida- precisam ser todos descritos. Agora, se não confiam no nosso
de, se chega a tanto. Portanto, para mim, é mais um transtorno de exame, é um pouco complicado, porque temos formação sufi-
personalidade emocionalmente instável de tipo impulsivo. ciente para fazer o exame neurológico.
Outra coisa, a Dra. Keila falou em pensamento bizarro, por- Quanto ao transtorno esquizotípico, que não teria ficado
que a paciente imagina a irmã despedaçada dentro de uma caixa. muito claro, eu gostaria até de lembrar os critérios do DSM-IV-
Isso não é bem um pensamento bizarro, isso pode até ser uma TR, pois ela preenche os cinco necessários. O pensamento, que
idéia fixa, um pensamento obsessivo. O pensamento bizarro, que consideramos bizarro, apesar de o Dr. Chalub não ter considera-
é muito na linha esquizofreniforme, é mais no sentido de que não do assim. A desconfiança, que ela mesma trouxe na fita.
há uma lógica racional, não possui apoio na realidade factual, Indagamos sobre isso porque ela não interagia. Temia as pessoas,
concreta, visível. Isso é um pensamento bizarro, não porque é desconfiava delas. A terceira característica seria a aparência
uma idéia estranha, feia, uma idéia que nos causa uma certa esquisita e excêntrica. Vocês a estão vendo agora, após dois anos
repugnância, um certo horror, como imaginar a própria irmã des- de tratamento, mas na enfermaria era unanimidade, todos a acha-
pedaçada dentro de um caixão, de um ataúde. Então não é, real- vam esquisita. Ela sempre ficava evitando contato visual com
mente, uma idéia bizarra. todos. Não tem amigos íntimos e confidentes, o que seria outro
O que essa paciente tem é uma ideação suicida permanente. critério. Apresenta também ansiedade social excessiva, de longa
Mas isso tem 20 anos de história, não é? 20 anos de ideação sui- data. Portanto, acreditamos que esses cinco critérios seriam
cida, realmente. . Então suicida! Se não suicida, logo tem alguma preenchidos no DSM-IV-TR.

72 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Assim como os critérios para borderline são preenchidos. A Minkowski, que seria a perda do contato com a realidade, como
CID10 não esclarece muito sobre o borderline, um subtipo de um transtorno fundamental da esquizofrenia. Não chegava a
personalidade emocionalmente instável. O DSM-IV-TR já é bem tanto. Mas a paciente não se preocupava em chamar a atenção.
mais específico e discorre mais sobre todas as características diag- Mesmo nessas tentativas fracassadas de suicídio, ela não buscava
nósticas, que a paciente preenche. A perturbação da identidade: atenção para isso, não me parecia isso. Ela apresentava muito
na história dissemos que havia constante mudança de emprego, mais uma indiferença, um desligamento afetivo do ambiente. Isso
geralmente ela nunca fazia alguma coisa permanentemente, sem- foi o que nos fez pensar e remontar ao conceito clássico de ati-
pre parava. Ela mesma trouxe isso várias vezes, que tinha dificul- mormia de Guiraud, e também no conceito do próprio
dade muito importante de colocar todos os seus planos em ação, Kahlbaum da heboidofrenia, que eram quadros caracterizados
fazia e logo depois desistia de tudo e qualquer coisa. E a impulsi- por impulsividade sobre um fundo de indiferença. Portanto, o
vidade, além da recorrência desse comportamento que já disse- quadro da paciente me fez lembrar exatamente desse conceito,
mos, suicida. Instabilidade afetiva importante, em que ora ela porque essa paciente era caracterizada precisamente por isso,
referia estar bem, ora ela apresentava uma disforia importante, todos os seus atos eram como se não fossem com ela. Não era
com raiva de todos os pacientes e de si própria. Além de senti- uma bela indiferença, parecia mais uma pálida indiferença e
mentos crônicos de vazio. Ela dizia que muito dificilmente sentia muito menos a triste indiferença. Então, seria um desligamento
prazer em algum momento da vida, sentia-se muito triste nesse do ambiente. Respondeu à clozapina, na verdade a clozapina é
aspecto. Em quinto, seria a raiva inadequada que apresenta. indicada para borderline, para transtornos bipolares, etc Mas me
Esses seriam os cinco critérios que ela preenche tanto para parecia que a expressão da paciente – que é um outro dado,
esquizotípico quanto para borderline. herança de Schneider – era muito mais essa expressão de indife-
É claro que esses diagnósticos são difíceis de se fazer, inclu- rença, como se nada estivesse acontecendo, mas também sem
sive os questionamos muito, mas acredito que são hipóteses diag- querer estar chamando a atenção para ela.
nósticas plausíveis. Realmente, é um diagnóstico difícil. E toda essa discussão
mostra que o diagnóstico psiquiátrico é frágil, frágil como a pró-
Osmar Gouveia pria vida. Mas é por isso que, nessa fragilidade, encontramos a
fortaleza da psiquiatria. Porque se fosse uma coisa matemática,
O Prof. José Lucena costumava dizer assim, quando estava não estaríamos aqui discutindo: dois mais dois são quatro. Dessa
diante de um paciente com diagnóstico de esquizofrenia: “o maneira, quanto ao diagnóstico dessa paciente, é perfeitamente
paciente parece que leu Schneider”. Hoje, infelizmente, algumas possível que o Dr. Miguel tenha razão, que o Dr. Louzã também
vezes, quando vejo um relato de casos feito por residentes, passa tenha razão, e me parece que essa impulsividade e essa indiferen-
no meu pensamento: “parece que o residente leu o DSM-IV ou a ça eram fatos psicopatológicos, fatos psicopatológicos que, talvez,
CID-10”. Quer dizer, parece que com o Schneider ainda podia não se incluam nos diagnósticos atuais. Mas, certamente, têm
ser feita aquela brincadeira com o próprio paciente, mas hoje essa seus suportes, têm apoio nos conceitos clássicos da psiquiatria.
brincadeira seria mais em relação ao residente.
É a preocupação por conta de pesquisa, de comunicação, Ana Hounie (USP, São Paulo)
que se tem com o diagnóstico. Quando o Prof. Louzã falou do
Kurt Schneider, eu me lembro da maneira como ele descrevia as Também sou de Recife, formei-me na UFPE e atualmente
personalidades. “Íntimas associações com. .” Por exemplo, des- estou na USP, trabalhando com genética. Gostaria de fazer um
crevendo o necessitado de apreço: “íntimas associações com. .” comentário e uma pergunta. Aliás, deixarei a pergunta de lado,
Há diversos traços comuns, é uma presença constante na obra de seria sobre se cogitaram na possibilidade de depressão, já que ela
Schneider essa descrição de entrelaçamento de traços de parecia tão rancorosa, tão rejeitada, tão deixada de lado.
personalidades. O comentário é que andei lendo O Estrangeiro, de Camus, e
Hoje, com essa preocupação de se enquadrar o que nós isso me lembrou a frase da Keila e da paciente na entrevista, do
vemos na clínica em diagnósticos, isso fica uma coisa um tanto “tanto faz como tanto fez”. O Estrangeiro, de Camus, foi preso,
forçada realmente. Concordo, posso fazer uma autocrítica tam- tanto faz e tanto fez, matou, mas poderia não ter matado, perdeu
bém. Porque de tanto a gente ouvir e ver e ser solicitado a fazer a mãe como poderia não tê-la perdido, ele não se incomoda.
diagnósticos bem quantitativos, somos levados a querer enqua- Existe também um outro conceito da psicanálise, da “psicose
drar os pacientes pela CID10 ou pelo DSM-IV. branca”, a psicose que ainda não aconteceu e que nos faz lembrar
A questão da paciente, ela realmente tinha essa impulsivida- também da idéia do transtorno esquizotípico, que surgiu na apre-
de, eu concordo plenamente com o Dr. Miguel Chalub. A tônica, sentação e que não entendemos o porquê. Acho que o Dr. Osmar
o que chamava mais a atenção nessa paciente era a impulsividade, Gouveia deixou isso mais claro.
a maneira como ela se comportava, quebrando vidros, fazendo Em relação a isso, é interessante o histórico familiar, que pre-
tentativas, fracassadas, é verdade, de suicídio. Isso mais uma vida cisamos ter em mente. Observo que o irmão da paciente é esqui-
que, de maneira geral, dava a impressão dessa instabilidade zofrênico. Nos estudos familiares vemos que o transtorno esqui-
emocional. zotípico pode aparecer como uma das manifestações dessa vulne-
Chamava a atenção, porém, que ao lado dessa impulsividade rabilidade genética. Assim como outros problemas, como déficits
ela tinha um desligamento do ambiente. Era como o Prof. Itiro há neuropsicológicos, que são detectados em testes. De modo que
pouco falou, na definição clássica da esquizofrenia, do essa hipótese de transtorno esquizotípico também poderia ser

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 73


Co-ocorrência entre os transtornos esquizotípico e borderline

levantada tendo em vista essa história familiar. E a questão da nos pautar por eles de alguma forma, como os palestrantes bri-
hipertensão familiar foi muito interessante também, porque pra- lhantemente têm procurado fazer.
ticamente todos os membros da família são hipertensos. Essa Temos que encerrar e agradecemos muito a participação de
seria, então, uma família interessante para se estudar do ponto de todos. Estão convidados para amanhã.
vista genético.

Miguel Chalub Summary


The authors present a case of a patient who developed borderli-
Utilizando os dois casos de hoje, como diz o Dr. Louzã, a his-
ne and schizotypal personality disorder. They also describe the
teria raises again. Eu só queria comentar o seguinte, sobre o pri-
meiro caso, de que não pude falar. Acho que o Dr. Streb foi o que follow-up after clozapine treatment. Psychopathological and his-
mais se aproximou do diagnóstico, no meu entender. É uma psi- torical aspects of the terms borderline and schizotypal are
cose circular dissociativa histérica. Esse diagnóstico explicaria discussed.
muito bem o quadro da paciente, sem termos que ficar nisso, de
se é esquizoafetivo ou se não é esquizoafetivo. Esqueçam-se des- Key-words: Borderline Personality Disorder; Schizotypal
sas psicoses. E é bom lembrar também que o mecanismo forma- Personality Disorder.
dor de sintomas histéricos pode ser exteriorizado tanto de forma
neurótica como psicótica. Histeria não exclui psicose. Então a
Referências bibliográficas
exteriorização foi psicótica, mas o mecanismo formador foi histé-
rico. Essas coisas não são excludentes. Então eu ficarei com esse 1 Berrios GE. European views on personality disorders: A con-
diagnóstico, apenas para complementar, usando os dois ceptual history. Compr. Psychiatry 1993; 34:14-30.
casos agora.
2 Schneider K – Psicopatologia Clínica, 3ª ed., Mestre Jou, São
Paulo, 1978:56-57.
Maurício Viotti Daker
3 Organização Mundial de Saúde – Nona revisão da classifica-
Mais um último comentário? Bem, lidei, no meu doutorado, ção internacional de doenças. Genebra, 1976.
com essa questão da psicose única ou unitária. Vislumbro que 4 Spitzer R, Endicott J, Gibbon M – Crossing the border into
essa possibilidade de componentes esquizofrênicos mesclados borderline personality and borderline schizophrenia. Arch
com componentes de transtorno de humor possa ser comum na Gen Psychiatry 1979; 36.
prática e que dê margem a muitas dessas variações de quadros clí- 5 Beneditti SL, Colombo CMC, Smeraldi E. Low dose clozapi-
nicos, que um dia também foram, em parte, chamados de histe- ne in acute and continuation treatment of severe borderline
ria. Mas a histeria também não pode ser tão ampla, porque nos personality disorder. Journal of Clinical Psychiatry 1998;
perdemos nesse “monstro”. Portanto, há uma tentativa atual,
59:103-109.
realmente, de especificar melhor os quadros, mais aqui ou mais
6 Colombo CMC, Beneditti SL, Smeraldi E. Clozapine treat-
ali nesse pool.
O que eu vejo aqui de interessante é que, no primeiro caso ment of borderline personality disorder. Biological Psychiatry
apresentado hoje – está certo, mesmo com esse componente dis- 1977; 42:3.
sociativo ou histérico –, havia maior manifestação de sintomas 7 Chengappa RKN, Backer RW, Sirri C. The successful use of
psicóticos em relação ao segundo, em que predominaram traços clozapine in ameliorating severe self mutilation in a pacient
de personalidade. Ambos com um quê desse misto esquizoafeti- with borderline personality disorder. Journal of Psychiatry
vo, o primeiro, parece-me, tendendo mais à psicose esquizoafeti- Disorders 1995; 9:76-82.
va, e o segundo, a um transtorno de personalidade cujo diagnós- 8 Ey H. Tratado de Psiquiatria, 6ª ed. Barcelona: Toray Masson
tico não existe e que, a princípio, parecia auto-excludente: algo S.A, 1974; 565.
entre o esquizotípico e o borderline. Seria o “superestrato” da psi-
9 Associação Psiquiátrica Americana – Manual diagnóstico e
cose esquizoafetiva, correlato à esquizotipia-esquizofrenia e ao
borderline-bipolar. estatístico de transtornos mentais. 4ª ed. rev. Porto Alegre:
Lembrar que a classificação psiquiátrica é uma tentativa, e Artes médicas, 2002.
que é impossível enquadrar tudo em diagnósticos bem-definidos. 10 Organização Mundial de Saúde - Classificação de transtornos
Apesar de tudo, nossos métodos diagnósticos não são ruins, são mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes
as melhores tentativas de que dispomos atualmente, e devemos Médicas, 1993.

74 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


DEPRESSÃO, TRANSTORNO DELIRANTE E/OU TOC EM PACIENTE
COM TENTATIVA DE SUICÍDIO NO PÓS-PARTO
DEPRESSION, DELUSION DISORDER AND/OR OCD IN PATIENT WITH SUICIDE
ATTEMPT AT POSTPARTUM

Flávio José Gosling*, HMA


Luísa de Marillac Terroni**
Atendida, inicialmente, pelo Serviço de Interconsultas de
Psiquiatria no Setor de Queimados do Hospital do Servidor Público
Resumo
Estadual. Veio encaminhada do Hospital Santa Marcelina após ter
Paciente do sexo feminino, 33 anos, que ateou fogo no próprio sofrido extensa queimadura, em 38% do corpo. A paciente era puér-
corpo durante o pós-parto imediato, sendo tratada no Serviço de pera e, no quarto dia após o parto de sua primeira gravidez, jogou
Queimados do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo álcool pelo seu corpo e ateou fogo. Foi socorrida pela família e leva-
(HSPE). Durante os atendimentos de interconsulta, detectou-se da ao Hospital Santa Marcelina, onde dera à luz, sendo realizados ali
que a paciente apresentava sintomas psiquiátricos havia dez anos, os primeiros atendimentos. Encaminhada à nossa instituição, que é
mas sem tratamento especializado. Referia, desde aquela época, sen- centro de referência de queimados.
tir-se suja e com odores fétidos. Isolava-se por isso. Prejuízos labo- No início, o contato com a paciente era dificultado por suas con-
rais e familiares importantes. Sentiu-se incapaz de cuidar da filha. dições clínicas. Estava edemaciada, falava com dificuldade, utilizava
Apresentava-se chorosa, depressiva, com idéias de culpa e máscara de oxigênio e estava em vigência de infecção. Mesmo assim,
desesperança. Durante evolução descreveu vivências anteriores conseguia dizer que estava arrependida, sentia-se culpada e pergunta-
sugestivas de idéias prevalentes relacionadas a higiene e odor corpo- va pela filha. Permanecia chorosa durante todo o tempo
ral, de alucinações olfativas e atos compulsivos de banhar-se para da entrevista.
alívio dos sintomas. Durante a internação houve piora das condições clínicas e a
As hipóteses diagnósticas foram de episódio depressivo, trans- paciente foi internada na UTI. Após alta da UTI, permaneceu no
torno delirante ou transtorno obsessivo-compulsivo. Nos debates, Serviço de Queimados, submetendo-se a vários enxertos de pele.
foi realçada a hipótese de transtorno delirante do subtipo somático. Paulatinamente, obteve melhora. Há cerca de um mês recebeu alta,
Foram apontados considerações psicopatológicas e aspectos dos após aproximadamente dois meses de internação. Faz acompanha-
diagnósticos diferenciais. A platéia considerou ainda o diagnóstico mento regular no Serviço de Queimados, onde são realizados curati-
diferencial com depressão psicótica e questões ligadas a vos, e no Ambulatório de Psiquiatria.
organicidade. Paciente relata que seus sintomas iniciaram há cerca de dez anos.
Nessa época, começou a se preocupar excessivamente com sudorese
Palavras-chave: Transtorno Delirante Somático; Transtorno e mau cheiro que sentia exalar do seu corpo. Tinha a impressão de
Obsessivo-Compulsivo; Transtorno Depressivo; Transtorno cheirar mal, e isso piorava quando em locais fechados e com mais pes-
Depressivo com Sintomas Psicóticos; Transtorno Mental Orgânico. soas. Acreditava que estavam olhando para ela e comentando sobre
seu odor. Seus sintomas foram se estabelecendo de modo gradual.
Descrição do Caso Recorda-se que há dez anos, quando uma irmã se casou, ela já apre-
sentava esse quadro. Nesse dia, um colega elogiou seu perfume e ela
ficou preocupada se estava mal-cheirosa. Relaciona seu mal-estar com
Identificação o de sua mãe, que tivera um problema circulatório no pé, chegando a
Paciente do sexo feminino, 33 anos, casada, do lar, natural e proce- apresentar gangrena. Antes de sua mãe falecer, a paciente precisou
dente do interior de São Paulo, espírita. levá-la ao hospital. No vagão do trem, a mãe estava preocupada com
o odor da perna, sendo que a paciente a acalmou, dizendo que não
QP estava cheirando mal. Sentiu-se muito incomodada já que, de fato, o
Tentativa de suicídio, internada há um dia no Serviço de cheiro da perna de sua mãe era muito desagradável. Esse odor perma-
Queimados do nosso hospital. neceu muito tempo em sua lembrança.

* Residente do segundo ano da Residência de Psiquiatria do Hospital do Endereço para correspondência:


Servidor Público Estadual de São Paulo, Apresentador. flaviogos@uol.com.br
** Serviço de Psiquiatria e Psicologia do Hospital do Servidor Público luisaterroni@uol.com.br
Estadual de São Paulo, Supervisora.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 75


Depressão, transtorno delirante e/ou toc em paciente com tentativa de suicídio no pós-parto

A paciente começou a sentir-se suja. Chegava a tomar de três a Antecedentes pessoais e dados familiares
quatro banhos por dia para aliviar-se. Começou a ter problemas no
Nascida de parto normal, sem intercorrências. Gestação e
emprego. Seus colegas a incomodavam, irritava-se facilmente.
desenvolvimento neuropsicomotor sem alterações. Aos oito anos
Durante muito tempo não falou com ninguém. Mas, como começou teve meningite e foi internada em estado grave, recuperou-se.
a ficar muito chorosa e reclusa, há cerca de cinco anos comentou o Estudou até a oitava série. Era boa aluna e muito preocupada
fato com alguns parentes. Então, foi levada a centros espíritas e se com seu desempenho nas provas. Aos 18 anos, trabalhou como
submeteu a tratamentos nessa linha. Era dito a ela que estava com doméstica durante um ano e três meses. Em seguida sua mãe
encosto e que era influenciada por falecidos. necessitou de cuidados. Após a morte da mãe, foi trabalhar em
firmas de confecção. Chegou a trabalhar em quatro empresas.
Há cerca de dois anos foi a um psicólogo em um posto de saúde.
Fazia serviço de arrematadeira, botoneira e ajudante geral.
Chegou a freqüentar terapia em grupo durante menos de um mês. Permaneceu três anos na última firma. Em decorrência dos sinto-
Não a agradou o tratamento. Foi indicada consulta com o psiquiatra mas, teve dificuldade de trabalhar. Há cerca de cinco anos está
e a paciente não compareceu. desempregada.
Era reticente ao falar sobre o que sentia. Receava acharem que Foi uma adolescente tímida e sem namorados. Aos 27 anos
estava louca, omitindo-se. Acredita que são idéias de sua cabeça, mas conheceu seu marido. Namoraram alguns anos e romperam, já
que a paciente insistia na questão do mau cheiro. O marido nega-
não consegue controlá-las.
va, mas não adiantava. Reataram namoro e, após algum tempo,
Nega intercorrências durante a gestação, apenas a permanência dos
foram morar juntos. Refere bom contato sexual, primeira relação
sintomas. O parto também foi sem alterações. No primeiro dia após íntima aos 27 anos com o marido, seu único parceiro sexual. O
o parto, sentiu-se mal. Parentes notaram que estava diferente. marido trabalha como auto-elétrico, sendo a situação
Segundo eles, estava mais quieta e desanimada. Mesmo assim recebeu econômica estável.
alta. Ao chegar em casa, relata que ficou muito preocupada, pois não Nega tabagismo, etilismo e uso de drogas.
queria que o bebê sentisse seu mau cheiro. Acreditava que não con- Nega doenças clínicas.
Um episódio de desmaio na firma em que trabalhava. Perdeu
seguiria cuidar de sua filha. Trancou-se no banheiro e ateou fogo em
a consciência, vomitou e caiu. Não caracteriza epilepsia.
si mesma, pois a morte seria sua única saída Não havia premeditado Nega uso de outras medicações.
isso, refere que o ato foi um impulso.
Inicialmente, veio encaminhada do Santa Marcelina com hipótese História familiar
diagnóstica de quadro depressivo puerperal. Já havia sido prescrita
nortriptilina pelos médicos do Serviço de Queimados. Optamos por Mãe falecida em decorrência de infecção no pé. Apresentava
hiperceratose excessiva e não fazia acompanhamento médico
manter a conduta e aumentamos a dose para 100 mg/dia. Ocorreram
adequado. Seu pai é vivo e tem história de etilismo.
algumas descontinuações no tratamento, relacionadas à piora do qua- Durante anos ficou sem falar com o pai. Culpava-o pela
dro clínico geral, mas a paciente evoluiu com melhora do estado men- morte da mãe, que não recebeu tratamento adequado.
tal. Estava mais animada e dizia que aquelas idéias estavam Atualmente tem pouco contato com o pai.
menos intensas. Possui três irmãos e uma irmã. Todos são saudáveis.
Nega intercorrências durante a gestação, apenas a permanência A filha nasceu sem intercorrências, primogenitura.
dos sintomas. O parto também foi sem alterações. No primeiro dia No momento, reside com a sogra.
após o parto, sentiu-se mal. Parentes notaram que estava diferente.
Exame psíquico inicial (na enfermaria de queimados)
Segundo eles, estava mais quieta e desanimada. Mesmo assim recebeu
alta. Ao chegar em casa, relata que ficou muito preocupada, pois não Encontro a paciente no leito, apresenta lesões por todo o
queria que o bebê sentisse seu mau cheiro. Acreditava que não con- corpo devido às queimaduras. Dificuldades na articulação da fala.
seguiria cuidar de sua filha. Trancou-se no banheiro e ateou fogo em Mostra-se consciente, orientada auto e alopsiquicamente.
Memória sem alterações. Capacidade de atenção preservada.
si mesma, pois a morte seria sua única saída Não havia premeditado
Curso de pensamento lentificado. Latência entre perguntas e res-
isso, refere que o ato foi um impulso. postas aumentada. Humor depressivo com incontinência emocio-
Inicialmente, veio encaminhada do Santa Marcelina com hipóte- nal, choro fácil e conteúdo ideativo em torno do arrependimento
se diagnóstica de quadro depressivo puerperal. Já havia sido prescri- e da culpa.
ta nortriptilina pelos médicos do Serviço de Queimados. Optamos
por manter a conduta e aumentamos a dose para 100 mg/dia. Exame psíquico na evolução
Ocorreram algumas descontinuações no tratamento, relacionadas à
Paciente vem à consulta adequadamente trajada, com curati-
piora do quadro clínico geral, mas a paciente evoluiu com melhora do vos das queimaduras. Consciente, orientada globalmente, memó-
estado mental. Estava mais animada e dizia que aquelas idéias esta- ria e atenção preservadas. Curso do pensamento sem alterações.
vam menos intensas. Presença de vivências sugestivas de alucinações olfativas. Idéias

76 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


prevalentes relacionadas a higiene e odor corporal. Relata atos então de pensamentos de caráter intrusivo, repetidos. Isso causa-
compulsivos de tomar banho para alívio dos sintomas. Humor ria a angústia e ela, procurando aliviá-la, apresentaria os atos
não-polarizado. Crítica ao seu estado presente. compulsivos em forma de banhos. Portanto, trouxemos aqui este
caso para discutir os limites entre quadro depressivo, quadro
Exames subsidiários delirante e quadro de TOC.

Tomografia de crânio - normal [Vídeo]


Hormônios tireoideanos - normais
Sorologias (HIV, sífilis) - normais
Eletroencefalograma - normal HD
Hemograma e bioquímica - exames realizados na internação
eram normais.
CID 10
Evolução - Transtorno obsessivo-compulsivo, pensamentos e atos
Durante a internação na enfermaria, de 2 a 17 de fevereiro, obsessivos mistos (F42.2)
usamos a nortriptilina 100 mg/dia, chegando a apresentar uma - Transtorno delirante (F22.0)?
melhora do quadro depressivo. De 17 de fevereiro a 6 de março,
quando foi para a UTI, houve descontinuação dessa medicação. DSM-IV
Reavaliamos a paciente ao sair da UTI e reintroduzimos a nortrip-
tilina 75 mg/dia, de que fez uso até a alta hospitalar, em abril. - Eixo I: Transtorno obsessivo-compulsivo 300.3
Mantivemos essa medicação no ambulatório, houve melhora do Transtorno delirante 297.1?
quadro. Em junho, a paciente descontinuou a medicação. Como - Eixo II – Sem diagnóstico
se apresentava melhor, optamos por deixá-la sem a medicação, - Eixo III – Queimadura
permanecendo assim e estável até setembro. Mas em início de - Eixo IV – Desemprego
outubro a paciente retornou com piora em relação às idéias do - Eixo V – AGF = 45
mau cheiro e o desconforto daí gerado, e da questão da auto-refe-
rência. Introduzimos a paroxetina 20 mg/dia. Debate
Durante o seguimento, pudemos observar e melhor avaliar a
paciente. Nossos diagnósticos foram mudando. No início, acata- Carlos Eduardo da Rocha Silva*
mos o diagnóstico do quadro depressivo puerperal.
Posteriormente, pensamos, talvez, num quadro delirante, até em Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite ao Prof.
alucinose. Elaborando mais, evidenciamos que o mal-estar era Hélio Elkis e ao Prof. Maurício Viotti, pela oportunidade de par-
caracterizado por pensamentos intrusivos de mau cheiro e sujei- ticipar aqui, discutindo este caso, que achei muito interessante.
ra, que geravam angústia e isolamento. Para alívio, a paciente A primeira coisa que já gostaria de colocar é que não teria
recorria a atos compulsivos de limpeza. Isso modificou, de algum nada de TOC aí. Acho que pensar nisso como TOC é queimar
modo, nosso raciocínio. 200 anos de psicopatologia. Estão descrevendo uma paciente
com conteúdo hipocondríaco. Penso que, nesse caso, no sentido
do Simms – é um livro muito bem-traduzido e inclusive supervi-
Justificativa da escolha do caso
sionado pelo Prof. Hélio –, temos a hipocondria muito mais
Chamou-nos atenção, inicialmente, a dramaticidade do ato, como uma descrição, um termo descritivo, do que propriamente
associado à informação da existência de um sofrimento psíquico uma forma clínica. Nesse sentido, o conteúdo do que vocês estão
há pelo menos dez anos, sem tratamento especializado. trazendo por meio dessa paciente é um conteúdo hipocondríaco.
A manifestação psicopatológica da paciente e a evolução do A questão que cabe discutir é se a forma com que isso aparece é
caso ainda nos fizeram pensar nos limites entre alguns quadros uma forma delirante, no âmbito de um transtorno delirante, ou se
clínicos. No início, já haviam feito a hipótese diagnóstica de é um quadro de depressão, uma depressão psicótica no caso.
depressão. Valorizamos essa hipótese do colega, pois havia um Existe um outro fator complicador, que isso se passa logo em
quadro de tristeza, de ideação suicida óbvia, sentimentos de seguida ao parto. É um dado importante e que de certa forma
culpa. Como a avaliação era muito difícil naquele momento, man- desorganizou a evolução dela, porque até então ela vinha como
tivemos esse diagnóstico. Num segundo momento, pensamos uma paciente delirante.
sobre o quadro delirante, no sentido de um delírio jasperiano, de Situando-me na nosologia atual, esses delírios a que estou
uma condição extraordinária, de conteúdo irremovível e não- me referindo se enquadram como transtornos delirantes e sub-
compartilhado, até impossível. Mas discutimos ainda mais e não tipo somático. No subtipo somático, foi englobada uma catego-
sabíamos exatamente se era isso. Passamos a achar que não. ria chamada psicose hipocondríaca monossintomática, resga-
Pensamos que a questão do mau cheiro e da sujeira resultaria tando a idéia da paranóia, que compõe esses quadros de trans-

*Psiquiatra, Mestre em Medicina pela USP.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 77


Depressão, transtorno delirante e/ou toc em paciente com tentativa de suicídio no pós-parto

tornos delirantes, só que ali o monotema é hipocondríaco. Isso É um caso interessantíssimo do ponto de vista clínico, tera-
pode aparecer na forma olfativa, na forma de halitose, na forma pêutico, psicopatológico e psicodinâmico. Essa tentativa dramá-
de dismorfofobia delirante e na forma daqueles delírios de tica de suicídio, algo de autoflagelação, pautada por uma crença
infestação, vermes que penetram na pele ou insetos estranhos patológica crônica de dez anos de história, mas que, no momen-
sobre ela. Esse paciente raramente aparece em hospital psiquiá- to, indicam um sofrimento extremo e um desespero. É algo
trico, vão para ambulatórios de dermatologia ou de neurologia. impulsivo, uma atitude em momento de desespero. Indica um
O último lugar em que eles aparecem é em ambulatórios psi- prejuízo da crítica. Ninguém faz isso se está em dúvida, quer
quiátricos, geralmente são encaminhados. Vê-se que essa dizer, era um momento de mal-estar absoluto e uma tentativa
paciente apareceu no Serviço de Queimados, depois de uma desesperada de se sentir melhor.
tentativa de suicídio. É uma crença patológica compreensível dinamicamente pela
Esses transtornos delirantes monossintomáticos hipocon- história de vida. Isso deve ser salientado, a história da gangrena
dríacos se caracterizam pela dificuldade, muitas vezes, de dis- da mãe é muito marcante. Ela esteve numa situação em que a mãe
tinguir, como no caso, se o que a paciente tem é um delírio ou – era uma preocupação real da mãe – estava com o pé apodrecen-
uma alucinação olfativa. Não conseguimos fazer essa distinção. do, fétido. Esteve ao lado da mãe naquele dia, sentindo aquilo e
Talvez aí teria que se esmiuçar melhor a vivência dela, no sen- tendo que negá-lo à mãe. Portanto, isso é uma marca na vida dela.
tido de que ela pudesse descrever o que realmente estava se Então, quando ela se torna mãe, não quer que a filha passe por
passando com ela, a qualidade disso. Embora ela dê uma dica aquilo que ela sentiu enquanto filha. A vergonha, fala do cheiro,
no final, fala assim “de idéia fixa”. Ela tinha uma idéia fixa, e dessa lembrança. Eu fico me perguntando, pensando, sobre o
que ela olhava para as pessoas e achava que estavam se referin- nojo, a incapacidade, a raiva, possivelmente sobre a culpa que ela
do ao mau cheiro dela. Ou seja, ela tem uma idéia fixa nesse sentia em relação àquela mãe doente. E essa coisa de se sentir
sentido aí delirante, um delírio. O delírio não apresenta, neces- suja, a relação simbólica entre o sentir-se suja, sentir-se cheirando
sariamente, uma convicção plena 24 horas por dia. Podemos
mal e a sujeira moral e a culpa. Isso é básico no quadro dela, acho
ter – até Jaspers pensava assim – um delírio parcial. E ela inter-
que a questão da culpa a acompanha.
preta evidências do meio para corroborar essa crença dela.
Sem dúvida alguma, um quadro relacionado com auto-esti-
Esse transtorno delirante monossintomático, esse subtipo
ma baixa, com auto-referência, o ruim está nela e se espalha para
somático delirante, é raro. O autor que mais estudou isso
o mundo. Isso é algo que lembra depressão e lembra TOC. Isso,
recentemente foi Munroe. Ele tem uma monografia em que
antigamente, era chamado de síndrome de referência olfatória, ou
coletou 50 casos, foi o grupo dele que influenciou a entrada
bromidrosifobia, autodisosmofobia. A terminação “fobia” apro-
desse subtipo no DSM-IIIR e na CID, atualmente. Ele preconi-
xima esses quadros, historicamente, mais das neuroses do que das
za o uso de antipsicótico, é um transtorno delirante, ou seja,
um quadro psicótico. Relata, o que é discutível, que o melhor psicoses. Assim como a dismorfofobia aproxima um pouco mais
antipsicótico, com que obteve mais êxito, é o pimozide (não sei das neuroses. Ao lado, como o Carlos falou, dos delírios de para-
exatamente por que este e não outro). Ele também menciona sitose e de dismorfose. Sempre esses delírios hipocondríacos, a
que alguns pacientes aparentemente melhoram com antide- hipocondria monossitomática delirante, foram relacionados à
pressivo. Eles se tranqüilizam e mantêm uma certa indiferença expressão simbólica da culpa, principalmente em relação
em relação ao monossintoma. Mas seria um efeito instável e à sexualidade.
que, também aqui, o tratamento mais adequado seria com o O conceito de Kraepelin de paranóia englobava a paranóia
antipsicótico. hipocondríaca, que era o corpo como traidor, o corpo como não-
Essa paciente estava deprimida, quando falam do exame confiável, com esses conteúdos de feiura imaginária, defeito físi-
psíquico inicial e da apresentação dela no Serviço de co, infestação parasitária e mau cheiro corporal. Fico pensando
Queimados. É algo para se discutir, se ela não apresentou um nessa moça como uma pessoa com características meio obsessivas
quadro, pelo menos na época, de depressão instalada sobre um de personalidade, boa aluna, preocupada com o desempenho
transtorno delirante, em que podemos pensar para não partir o escolar e tímida. Ela parece ter características meio fóbicas sociais
diagnóstico em depressão psicótica. desde mais cedo. Tem um início de vida sexual-afetiva mais tar-
Outra questão é que o próprio Munroe estabelece que em diamente. E o mau cheiro está muito relacionado com esse peso
alguns casos é muito difícil fazer essa distinção entre a relação social. Fico pensando nesse pai alcoolista, a raiva que ela tinha
que existe entre esses transtornos delirantes hipocondríacos e a dele pela morte da mãe. E vendo esse caso, ocorreu-me, como
depressão, que em alguns casos há um vínculo em que não se hipótese: será que esse pai não era um abusador? Que culpa é
consegue separar uma coisa da outra. Agora, de TOC eu acho essa que a acompanha ao longo da vida e que a faz sentir-se tão
que ela não tem absolutamente nada. podre, tão suja? É apenas uma hipótese.
A meningite dela aos oito anos. É importante dizer que são
Albina Rodrigues Torres* freqüentes os relatos de transtorno delirante somático antecedido
por fatores orgânicos cerebrais. Em homens, principalmente o
Gostaria também de agradecer muito o convite, porque o uso abusivo de álcool e droga e, mais tarde, o desenvolvimento de
caso é lindo, numa área que me entusiasma. transtornos delirantes.

* Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp.

78 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


O transtorno delirante somático é uma preocupação corpo- si, desesperança. Existiria uma relação com o transtorno dismór-
ral única, uma crença patológica de conteúdo possível, ele não é fico corporal, a questão da deformidade física. A Katherin
bizarro. Os conteúdos de deformidade, de doença, de parasito- Phillips fala do sofrimento da feiura imaginária. Acho muito
ses, de mau cheiro são conteúdos possíveis. É uma preocupação, parecido com o sofrimento do mau cheiro imaginário, que nós
por exemplo, com mau cheiro em regiões do corpo, ou que vimos aqui.
podem cheirar mau: axilas, genital, ânus e hálito. Portanto, não Ou seja, os “transtornos delirantes” das classificações moder-
há nada de muito bizarro nisso. Pode haver alucinações olfativas nas podem caracterizar-se não por delírios verdadeiros, no senti-
ou táteis relacionadas ao tema da crença. Existe um prejuízo da do jasperiano, mas por idéias prevalentes, por idéias supervalori-
crítica e uma tentativa insistente de convencer os outros, com zadas compreensíveis pela personalidade do indivíduo, por sua
preservação do restante das funções psíquicas. A pessoa está tão história de vida, em que o indivíduo tenta convencer outros a
preservada globalmente e tem essa alteração de pensamento que, tomar providências em relação à crença patológica. Seria o inter-
freqüentemente, os parentes, as pessoas mais próximas, desenvol- mediário entre um delírio verdadeiro, com a certeza inabalável, a
vem um quadro de folie à deux em função da força de convenci- não-necessidade de comunicação, de convencimento do outro, e
mento. Freqüentemente a pessoa tenta, então, resolver o proble- uma dúvida obsessiva mais típica.
ma. Esse subtipo de mau cheiro corporal acomete mais adultos Portanto, acho que é um quadro de transtorno delirante
jovens, do sexo masculino, diferentemente da infestação parasitá- somático, subtipo mau cheiro corporal, mas que faz fronteira
ria, que ocorre mais em mulheres de idade avançada. diagnóstica, sem dúvida, com o TOC, com a depressão, com a
Creio que falar que não tem nada a ver com TOC, bem, eu hipocondria, com o transtorno dismórfico corporal. Até 1980,
acho que não é TOC, mas que tem muito a ver com TOC. Há uma esses quadros eram considerados transtorno somatoforme atípi-
preocupação exagerada. Para mim, essa sensação de cheiro que co, acho que o termo mais amplo seria, talvez, transtorno da per-
não passa é muito parecida com um paciente de TOC que tem cepção corporal, e aí incluindo mesmo a anorexia nervosa.
uma sujeira na mão que não passa. Por mais que eu lave a minha Do meu ponto de vista, quanto ao tratamento, penso que
mão, sinto que continua suja, é uma bactéria que não sai. Eu lavo, essa paciente necessita menos de uma categoria diagnóstica pre-
lavo e não me descontamino. Eu acho que há semelhança, sim: cisa do que de uma proposta de tratamento abrangente. Seria
rituais de limpeza, de verificação do próprio cheiro, a vergonha, a muito interessante tentar tratar essa paciente com inibidor de
evitação social, a preservação da personalidade, a relação com sin- recaptação de serotonina, em doses altas, esperando um tempo
tomas depressivos, por fim a questão de subdiagnóstico. Parece- grande para o efeito, no mínimo três meses. Vale a pena tentar
me que são doenças não tão raras e subdiagnosticadas. clomipramina, seria uma medicação interessante, em doses altas.
A diferença em relação ao TOC é, primeiro, que a crítica no Nós temos dois casos no serviço, de transtorno delirante somáti-
TOC, tipicamente, é melhor. Os sintomas do TOC tipicamente co, que só melhoraram com a clomipramina em doses elevadas.
mudam com o passar do tempo, o que não acontece neste caso, Um deles era uma senhora que julgava estar infestada por vermes
que é uma preocupação fixa, estanque. A crítica, sem dúvida, é e que achava que a clomipramina matou todos os vermes, que foi
mais prejudicada. Bleuler dizia que, enquanto os obsessivos um remédio fantástico. E outro paciente achava que os músculos
lutam contra a idéia, os delirantes lutam pelas idéias. Na prática, do braço eram como uma geléia verde que escorria por dentro da
a situação é bem mais complicada que isso. Essa paciente não pele e, antes que saísse pelos dedos, tinha que levantar os braços
busca, não aceita ajuda, não adere ao tratamento, mas em deter- para a geléia verde voltar (esse caso foi apresentado nesta sessão
minado momento ela diz que omite a queixa por medo de ser há dois anos). Esse paciente está trabalhando. Acha que os mús-
considerada louca. Então ela tem uma preservação parcial da crí- culos dele agora estão normais por causa da clomipramina. A clo-
tica em alguns momentos. Essa dicotomia “com ou sem crítica” mipramina é muito boa para os músculos, eu recomendo!
seria muito mais complexa do que parece à primeira vista, até Além disso, é fundamental parra essa paciente a questão da
porque, no TOC, as obsessões somáticas são aquelas que cursam psicoterapia. Pela compreensibilidade dos sintomas, acredito que
com pior crítica. O paciente pode ter vários pensamentos obses- essa moça precisa elaborar as vivências que já teve, elaborar essa
sivos, aqueles pensamentos relacionados ao corpo são sempre culpa, tentar reconstruir sua auto-estima, possivelmente piorada
menos claros, na questão da crítica, o que aproxima um pouco o após a queimadura. E me preocupa, inclusive, que ela venha
TOC da hipocondria. apresentar uma preocupação não apenas com o cheiro, mas tam-
Algo interessante que eu estava relendo: um texto do von bém com a forma corporal, a partir dessa queimadura.
Gebsattel, “O Mundo dos Compulsivos”, em que relata um caso É lamentável que um caso como esse não tenha sido atendi-
típico de TOC com uma série de preocupações obsessivas, do antes dessa tentativa dramática. Acho que uma intervenção
rituais, cujo principal sintoma é a idéia de mau cheiro. Trata-se de anterior, possivelmente, teria evitado conseqüências tão tristes
um menino de 17 anos que começa a achar que cheira mal a par- dessa doença.
tir dos 12 anos, quando tem a primeira polução noturna. Começa
então a se lavar, se lavar e a achar que ele está permanentemente Luísa de Marillac Terroni
cheirando mal. É um quadro típico de TOC, que apresenta esse
sintoma, entre o pool de sintomas outros. Gostaria de agradecer pela oportunidade e parabenizar os
É um quadro que tem também alguma relação com a depres- professores pelo sucesso das sessões clínicas. Agradecer também
são, em função da questão da culpa, da auto-estima baixa, dessa a presença do Dr. Carlos e da Dra. Albina na discussão do caso.
sensação de incapacidade de cuidar da filha, algo ruim que sai de Realmente, durante o seguimento, em vários momentos, pensa-

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 79


Depressão, transtorno delirante e/ou toc em paciente com tentativa de suicídio no pós-parto

mos em diagnósticos diferentes. Por fim, ao final do seguimento, Quando falam em diagnóstico, em relação ao eixo 1 e eixo 2,
e pela terapêutica introduzida, pela evolução clínica, pela apre- acho que isso foi suficientemente discutido. Chamou-me a atenção,
sentação, pela descrição clínica da paciente e por suas vivências e talvez tenha sido pouco falada, a questão do eixo 3 dessa pacien-
nesses anos todos, nós concluímos por um único diagnóstico. Por te. Ela tem uma história de meningite e foi internada em estado
um transtorno apenas que, em vários momentos, até pelo puerpé- grave, quer dizer, “deve ter sido algo sério”. Em termos de uma
rio e pela gravidez, assumiu significados diferentes para ela. investigação diagnóstica, essa paciente foi submetida a uma tomo-
Talvez tenha ocorrido uma descompensação, uma astenia dos grafia, que pode não ser suficiente, principalmente quando investi-
processos psíquicos e ela se apresentou de maneiras diversas gamos quadros psiquiátricos. E a um eletroencefalograma. Ou seja,
durante essa evolução. Mas essas colaborações dos debatedores só foram realizados esses exames, essas investigações.
nos fazem remeter a outros diagnósticos que merecem atenção. Não ficou claro se ela “achava” que sentia mau cheiro ou se ela
“efetivamente sentia” mau cheiro. Podemos pensar que uma coisa
Cesar Ricardo Skaf (Curitiba) é alucinação num quadro funcional, outra coisa seria um foco em
uma região como o uncus, que é uma área extremamente vulnerá-
O caso é muito interessante e a discussão também de um vel e que pode, a partir daí, gerar uma vivência anormal. Talvez, em
nível muito bom, parabenizo-os. Comentarei especialmente sobre cima de traços prévios dela. Penso que isso deveria ter sido inves-
a depressão psicótica. tigado ou que mereça ainda vir a ser investigado.
Chama-me a atenção, no caso dessa paciente, a impulsivida- Outra coisa que não ficou clara, com referência a essa história
de com que tentou o suicídio, quero dizer, a semiologia subjacen- de meningite, é que ficou um vácuo na história da infância. Ela foi
te a essa tentativa suicida. Isso tendo em conta a preocupação uma boa aluna, mas essa é a única informação de que disponho do
atual, com o seguimento. A paciente parece ter apresentado um desenvolvimento dela. Alguém que tenha uma meningite grave
momento depressivo importante no puerpério e uma remissão dificilmente terá um desenvolvimento tão normal assim. É impor-
(não entendi muito bem o quão rápida). Ela sai desse pólo tante que na história tentemos levantar determinadas seqüelas, se
depressivo algum tempo depois, tanto assim que, já na seqüência não cognitivas em termos de aprendizado, mas seqüelas comporta-
do exame psíquico inicial, temos outra descrição. mentais, até do tipo da impulsividade. Seria interessante saber se
Sobre a depressão psicótica, há uma revisão muito interes- ela se tornou mais impulsiva, diferente, mais retraída, com algumas
sante pelo grupo dos italianos, que têm sistematizado essa ques- dificuldades que possam justificar ou embasar melhor uma manei-
tão da psicopatologia da depressão psicótica. Lattuada e Serretti ra diferente de ela lidar com os problemas que possa ter na vida.
publicaram, em 1998, no Journal of Affectiv Disorders, uma análi- Portanto, é algo que não senti ter sido muito bem-detalhado.
se fatorial sobre as formulações delirantes na depressão psicótica. Parece que a história dela começou há dez anos, até então tudo
E me chama atenção esse monotema do pensamento da paciente vinha bem, sendo que ela teve uma meningite grave aos oito anos.
e sua persistência, a despeito da mudança na polarização do Há um hiato na história que não foi bem-caracterizado e penso que
humor. Ao meu exame, ela parecia um pouco instável na fita, valeria a pena, como sugestão, caracterizá-lo melhor.
quero dizer, o tom de voz um pouco impulsivo, mexia um pouco
demais com as mãos – alguma coisa hipertímica? –, haveria algo Luísa de Marillac Terroni
nesse humor. Porém, mesmo quando ela melhora do aspecto do
humor, ela segue com a formulação delirante, ou com o que está As observações são muito pertinentes e chegamos a pensar
acontecendo no conteúdo do pensamento, seja obsessivo, seja nisso. Procuramos investigar o que nos foi possível quanto a instru-
delirante, seja deliróide. Isso dificulta a possibilidade de pensar- mentos laboratoriais, à história psiquiátrica e à história médica,
mos em depressão psicótica, que exigiria a remissão do que se com ela própria e com alguns familiares que às vezes compareciam
passa no conteúdo do pensamento no momento em que o humor à consulta. E não foi encontrada nenhuma alteração dessa ordem
se normaliza. que pudesse suportar essa idéia. Mas acho que todo esse quadro
Minha preocupação persiste nesse aspecto da impulsividade. psíquico, a nosso ver, pode ter relação com esse dado antigo. Isso
A psicoterapia é essencial, a Albina marcou isso muito bem. Mas não impede que ela seja tratada como vem sendo, mas não esque-
nessa questão da seleção medicamentosa, preocupa um pouco cendo essas observações que você fez, que, com certeza, são
esse caráter da impulsividade. É preciso monitorar muito de pertinentes.
perto como ela vai respondendo, à medida que algum antidepres-
sivo é introduzido e sua dose elevada, porque esse comportamen- Carlos Eduardo da Rocha Silva
to um pouco hipertímico poderia tornar a impulsividade mais
problemática. Ainda mais quando alcançamos doses altas. É uma Faria um comentário, até porque a Dra. Albina mencionou
comorbidade muito difícil entre TOC e humor nesse sentido, isso. Nesses transtornos delirantes, de um modo geral, existe uma
porque precisamos alcançar doses elevadas. história de organicidade, no sentido de traumatismo, de álcool. O
que a Márcia falou procede, existe esse histórico.
Márcia Rozenthal (Rio de Janeiro)
Hélio Elkis
Parabenizo também pelo caso. Não disponho do caso aqui e
o que falarei talvez esteja pautado em dados que eu tenha Gostaria de complementar que hoje de manhã foi apresenta-
perdido. do um trabalho desenvolvido no IPq-USP pelo André Abrão e

80 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


orientado pelo Prof. Gattaz. Devem se lembrar daquela epidemia Summary
de meningite em São Paulo, em 1970. Detectaram mais ou menos
mil casos, encontrando trezentos e poucos. Compareceram à We present a case of a 33-year-old female patient who set fire in
entrevista cento e setenta poucas pessoas. A prevalência de trans- her own body soon after giving birth. She was treated in the Burn
tornos psicóticos, inclusive de esquizofrenia, embora um pouco Sector of the Public Hospital in São Paulo (Serviço de
discutível, é muito grande, as chances são muito maiores que na Queimados do Hospital do Servidor Público Estadual de São
população geral. Não me lembro se de quadros obsessivos tam- Paulo - HSPE). During programmed consultations it was detec-
bém, parece-me que de quadros de ansiedade de modo geral, não ted that the patient had been presenting psychiatric symptoms for
especificamente de obsessivos. Mas quadros psicóticos sem dúvi- the last ten years and had received no specialized treatment. Since
da. Só que as crianças tinham tido meningite até os quatro anos. that time she complained that she felt dirt and fetid. Because of
Ela teve aos oito, mais tarde, com uma maturação cerebral maior. that she stood alone which resulted in professional and familiar
losses. She felt unable to look after her own child. She presented
Carlos Eduardo da Rocha Silva
herself weepy, depressed with guilty and hopeless ideas. During
the evolution of her condition she described previous experien-
Apenas um outro comentário. Já que a Albina falou da psi-
codinâmica, até em homenagem a Freud, no texto “Luto e ces suggestive of prevalent ideas related to hygiene and body
Melancolia” existe uma frase paradigmática: “a sombra do obje- odor, olfactory delusion and compulsive behavior of bathing in
to perdido recai sobre o ego”. Ou seja, os sintomas que essa moça order to relieve the symptoms.
apresenta são a reprodução da situação que ela vivenciou do mau The diagnostic hypothesis was of a depressive episode or delusio-
cheiro da perna da mãe, e a sintomatologia começa depois que a nal disorder or obsessive-compulsive disorder. During the discus-
mãe morre. sion, the hypothesis of delusional disorder of somatic subtype
was raised. Psychopathological considerations and differential
Albina Rodrigues Torres diagnosis aspects were pointed out. The audience also considered
the diagnosis of psychotic depression and questions associated
E que tem a ver com o dia do casamento da irmã dela. No dia with organicity.
do casamento da irmã, alguém elogia o perfume dela. Como ela
estaria se sentindo no casamento da irmã? Há mais esse detalhe.
Key-words: Delusional Disorder, Somatic Type; Obsessive-
Agora, em relação ao TOC, é muito comum ver um paciente que
tem uma crítica preservada – eu nunca digo absolutamente pre- Compulsive Disorder; Major Depressive Disorder; Major
servada, mas relativamente preservada – que faz um quadro Depressive Disorder with Psychotic Features; Mental Disorder
depressivo, uma polarização do humor, sendo que a crítica piora Due to General Medical Condition.
na vigência dessa piora do humor. Isso é muito comum também.
Agradecimentos
Hélio Elkis
CCP agradece Oscar Grossi Lima, residente de psiquiatria
Muito obrigado pela contribuição, realmente foi muito inte- do Hospital das Clínicas da UFMG, pela contribuição na trans-
ressante. Mais uma vez, eles devem ser aplaudidos. crição do debate.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 81


CATATONIA E ELETROCONVULSOTERAPIA
CATATONIA AND ELECTROCONVULSIVE THERAPY

Ana Paula Gonzaga da Costa* QP (maio de 2002, Pronto Socorro Psiquiátrico do Complexo
Carlos Henrique Rodrigues dos Santos** do Juqueri)
Sérgio Paulo Rigonatti***
Segundo a mãe, “não se alimenta, não fala e fica imóvel na
cama há dez dias”.
Resumo
A catatonia é uma síndrome de desintegração psicomotora, HMA
caracterizada pela inércia e pela perda de iniciativa motora com
fenômenos semi-automáticos e semi-intencionais como catalepsia, Ao completar 14 anos, em agosto de 1999, seu comporta-
flexibilidade cérea, paracinesias, oposição negativista e sugestiona- mento começou a modificar-se. Lia a Bíblia em voz alta, apresen-
bilidade. Destacam-se também impulsos súbitos e agitação catatôni- tava risos imotivados (dizia que seus pensamentos a faziam rir),
ca. Os distúrbios psicomotores manifestam uma experiência fanta- estava insone, irritada, explosiva; por vezes aparentava ansiedade,
siosa ou imaginária caótica. Descreve-se o caso de uma menina de com sudorese intensa. Tornou-se agressiva com os familiares, rea-
16 anos, estudante, com quadro catatônico que provocou debilida- gia de maneira explosiva e coprolálica sempre que julgava que o
des físicas. Foi submetida a tratamento medicamentoso associado a olhar ou o comportamento deles era diferente. Seu rendimento
Eletroconvulsoterapia (ECT), obtendo remissão completa. escolar decaiu significativamente, escrevia nomes estranhos e
fazia desenhos bizarros no chão. Sua escrita se modificou, tornan-
Palavras-chave: Catatonia; Esquizofrenia Catatônica; Bush-Francis do-se quase incompreensível. Em alguns momentos, permanecia
Catatonia Screening Instrument; Eletroconvulsoterapia; olhando para a parede, sempre com fácies muito apreensiva,
Antipsicóticos; Hipotireoidismo. muito inquieta e dizendo: “não, não quero, não quero!” Muito
aflita, xingava e atirava objetos contra a parede, e quando os fami-
liares lhe perguntavam o porquê disso, dizia que via na parede
Introdução
pessoas conhecidas lhe fazendo propostas sexuais. Eram essas
A catatonia é uma síndrome de desintegração psicomotora propostas que ela escrevia e desenhava no chão.
caracterizada pela inércia e pela perda da iniciativa motora com Após três meses do início desses sintomas, no final de 1999,
fenômenos semi-automáticos e semi-intencionais como catalepsia, a família procurou tratamento ambulatorial psiquiátrico. Fez uso
flexibilidade cérea, paracinesias, oposição negativista e sugestiona- de clorpromazina 25 mg/dia, posteriormente substituída por
bilidade. Dentro do quadro de estupor catatônico se destacam tam- haloperidol 5 mg/dia. Apresentou episódios de distonia aguda e
bém impulsos súbitos e grandes crises hipercinéticas de agitação foi acrescido biperideno 2 mg/dia e reduzido haloperidol para 2
catatônica. A catatonia se acompanha quase sempre de um conteú- mg/dia. Apresentou remissão parcial dos sintomas psicóticos em
do onírico ou delirante e os distúrbios psicomotores manifestam aproximadamente dois meses, mantendo tratamento de forma
experiência fantasiosa ou imaginária, geralmente caótica1.Pode ser irregular por oito meses e interrompeu o seguimento. Após um
encontrada como um subtipo de esquizofrenia ou uma forma de mês, reiniciaram os sintomas, com piora progressiva e gradual.
reação do sistema nervoso a agressões variadas (infecções, intoxica- Permanecia grandes períodos olhando para as paredes. Por vezes
ções, lesões vasculares, tumores), também nos transtornos do apresentava inquietação motora, trancava-se horas no banheiro,
humor, especialmente na depressão2. apresentava risos imotivados, conversava sozinha como se estives-
O presente caso foi escolhido por ser a catatonia um quadro se brigando com alguém, batia nas paredes, dizia que tudo era
relativamente raro nos dias atuais, pela gravidade dos sintomas uma ilusão desagradável e pedia que Deus a levasse.
apresentados pela paciente e por haver indicação de ECT em jovem. Em maio de 2001, já não se alimentava adequadamente e,
quando o fazia, era com a boca direto no prato. Permanecia gran-
Relato do caso de parte do tempo deitada, incomunicável. Não tinha cuidados
próprios com a higiene. Começou a apresentar rigidez muscular,
Identificação sendo então levada a um serviço psiquiátrico e logo internada por
Paciente do sexo feminino com 17 anos, solteira, branca, quatro meses. Durante a internação, apresentou melhora parcial
católica, estudante do 1° grau (cursou até a 7a série). nos dois primeiros meses, quando em uso de 600 mg/dia de tio-

* Residente do terceiro ano da Psiquiatria Infantil da Residência de Endereço para correspondência:


Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria da USP. Apresentadora. Setor de ECT, Instituto de Psiquiatria da USP, Rua Dr. Ovídio Pires
** Psiquiatra do Complexo Hospitalar do Juqueri. de Campos s/n. Hospital das Clínicas. CEP 05403-010. São Paulo, SP.
*** Coordenador do Setor de ECT do Instituto de Psiquiatria da USP,
Psiquiatra Forense. Supervisor.

82 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


ridazina. Após a alta, porém, ainda apresentava diminuição da Tia e tio maternos esquizofrênicos paranóides, ambos em tra-
iniciativa, certa apatia, falava pouco, não saía sozinha, não recor- tamento. Tio paterno com tumor cerebral e manifestações psicó-
dava dos fatos ocorridos durante o surto (amnésia lacunar), per- ticas. Tio paterno etilista, que foi assassinado. Uma tia teve
manecia ainda olhando para as paredes e mantinha a hiporexia. meningite e apresenta cefaléias freqüentes. O avô materno tam-
Fez uso da medicação por aproximadamente 20 dias após a alta bém é etilista e a avó diabética e hipertensa. Tio materno com
hospitalar e interrompeu o seguimento. retardo mental e temperamento irritado. O pai já foi etilista e pos-
Em dezembro de 2001, ficava na cama a maior parte do sui deficiência mental leve. A mãe era tabagista, também deficien-
tempo, ajoelhada e rindo, fazia movimentos pendulares com o te mental leve, apresentou episódios depressivos e crises conver-
tronco e membro superior, escrevia coisas no chão, apagando em sivas; é hepatopata grave (decorrente de hepatite) e aguarda
seguida. Apresentava fácies de estranheza e apreensão e permane- transplante hepático. Possui dois irmãos: o de 15 anos, com baixo
cia alheia ao meio. Progrediu com inapetência, mutismo, rigidez limiar para frustração, temperamento muito irritado, e o caçula,
motora constante, travesseiro psíquico positivo, membros supe- de nove anos, com inteligência limítrofe.
riores e inferiores fletidos, mãos cerradas, negativismo ativo.
Alheia ao meio, não mantinha contato verbal nem visual. Sem
cuidados próprios. Apresentava caquexia e escaras de decúbito.
Exame físico na admissão (maio de 2002)
Foi levada ao Pronto Socorro Psiquiátrico, em maio de 2002. Mal estado geral, mucosas descoradas (+++/4+) e desidrata-
das (++/4+), TA de 36,5 oC, PA de 100/60 mmHg, FC de 60
Antecedentes pessoais bpm. Estupor, caquexia, escaras de decúbito nos mmii e na região
lombar, musculatura hipertônica, flexão de mmss e mmii. Mãos
Gestação sem intercorrências, parto normal, baixo peso,
cerradas, sinal de travesseiro psíquico, flexibilidade cérea, negati-
nunca foi amamentada (tomava leite bovino) e apresentava regur-
vismo, abdome escavado, extremidades com perfusão diminuída
gitações freqüentes. Bom DNPM.
e pulsos finos.
Aos dois anos e três meses, os pais se separaram e a paciente
passou a residir com tia paterna, com muita dificuldade para se
adaptar: permanecia isolada, retraída. Percebendo isso, após três [Vídeo]
meses a família a levou para residir com a avó materna no
Nordeste, com quem a paciente tinha melhor relacionamento.
Recebia apenas visitas anuais da mãe e quando esta a visitava a
Exames complementares
paciente permanecia inicialmente muito hesitante ao contato, fugia Foram solicitados os seguintes exames: hemograma, sódio,
da mãe. Contudo, isso tendia a melhorar. Aos cinco anos, recebeu potássio, cálcio, magnésio, glicemia, uréia, creatinina, TGO,
a primeira visita do pai e com este agia como inicialmente com a TGP, GGT, HIV, VDRL, sorologias para toxoplasma e citomega-
mãe, mas sem que isso tendesse a melhorar com o tempo. lovírus, líquor com cultura, VHS, mucoproteínas, proteína C rea-
Com cinco anos aprendeu a escrever seu nome, mas iniciou tiva, urina I, ECG, radiografia de tórax, TC de crânio e fundos-
os estudos propriamente apenas aos oito anos. Era muito dedica- copia: não mostrando alterações significativas. TSH 10,60 µU/ml.
da, dizia que gostava muito de estudar.
Aos seis anos passou a apresentar crises freqüentes de bron-
coespasmo. Evolução
Aos nove anos os pais reataram o casamento e retornaram a Esteve um mês no Complexo Hospitalar do Juqueri (maio de
São Paulo. Relata a paciente que, na época, ficou muito feliz com 2002). Iniciados haloperidol 15 mg e prometazina 75 mg/dia, ini-
a união da família. Logo em seguida, nasceu seu segundo irmão,
ciada alimentação por sonda nasogástrica.
que teve boa aceitação da paciente. Estava estudando nessa
Aplicamos, na admissão, o Bush-Francis Catatonia Screening
época, com bom rendimento escolar. Mas a família a descreve
Instrument (BFCSI), que contém 14 critérios para o diagnóstico
como uma pessoa muito seletiva com suas amizades e excessiva-
de catatonia. Destes, 10 presentes, sendo nove em grau grave.
mente organizada com os pertences pessoais e com a organização
Devido à gravidade do quadro (desidratação, oligúria havia
da casa.
uma semana, caquexia e estupor), foram associadas ao tratamen-
Menarca aos 12 anos. Nessa idade, começou a namorar, rela-
tando, porém, que o namorado tomava a iniciativa de ir à sua casa to medicamentoso sessões de ECT três vezes por semana.
e que ela não tinha afeto ou carinho algum por ele. ECT realizado em jejum de oito horas, com bexiga vazia, sob
Aos 14 anos, quando começaram as alterações de comporta- anestesia com etomidato 0,1% 10 mg e cloreto de succinilcolina
mento já descritas, estava muito inquieta e subiu no telhado para 1% 20 mg e O2 100% (até recuperar a respiração espontânea).
ver se o irmão estava chegando, de onde caiu. Submeteu-se a exa- Estimulação elétrica bilateral, dada a gravidade do caso. Os ele-
mes médicos em hospital e nenhum problema foi detectado. trodos eram posicionados simetricamente na região fronto-tem-
poral, logo acima do ponto médio de uma linha do canto externo
do olho ao meato auditivo externo. A estimulação elétrica com os
Antecedentes familiares
seguintes parâmetros: largura da onda 2 ms, freqüência 80 Hz,
Avô paterno: etilista, epiléptico com estados crepusculares, duração 2 segundos, corrente 800 A, energia 90.1 J, carga 512 mc
apresentou AVC recentemente. e impedância 220 Ω.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 83


Catatonia e eletroconvulsoterapia

Evoluiu com melhora do quadro de mutismo e rigidez mus- Debate*


cular a partir da segunda sessão de ECT, sendo que, na primeira,
foram feitas duas tentativas frustras(?). Também voltou a se ali- Salomão Rodrigues Filho**
mentar após essa sessão. Atingiu remissão completa do quadro
após a quinta sessão de ECT. O haloperidol foi reduzido para 10 Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar a Dra. Ana
mg/dia e a prometazina, para 25 mg/dia. Manutenção do ECT Paula pela condução do caso e dizer que, ao indicar o ECT e con-
após a 12a sessão com esquema semanal. Nessa época, começou seguir transferir essa moça do Junqueri para o HC, a fim de sub-
a apresentar sintomas de distonia, donde acrescentado biperide- metê-la ao o ECT com essa periodicidade, você deve ter se empe-
no 4 mg/dia. Porém, continuava a se queixar de sintomas extra- nhado muito e com isso salvou a vida dessa garota.
piramidais. Apresentava-se um pouco mais lentificada, desanima- Você começa a ressaltar alguns pontos descrevendo um qua-
da, mais distante. Investigamos sintomas depressivos. Nessa dro hebefrênico e não usou a palavra hebefrenia. Penso que a evi-
época, receamos que estivessem recidivando os sintomas psicóti- tou por alguma razão, e sabemos que é muito comum a esquizo-
cos. Suspendemos o haloperidol por ela ser muito sensível a essa frenia hebefrênica evoluir para a catatônica. São dois diagnósticos
medicação e introduzimos a risperidona 4 mg/dia. Apresentou hoje menos freqüentes, não tão raros assim, mas menos freqüen-
melhora dos sintomas extrapiramidais, mas ainda continuava um tes. Nesse último ano, eu recebi do sertão da Bahia quatro casos
pouco distante. Dez dias depois, aumentamos a risperidona para de catatonia em estado semelhante a este, com pacientes caquéti-
6 mg/dia. cas, desnutridas, desidratadas, em estado muito grave. Portanto,
Atualmente, submete-se a ECT quinzenalmente (está na 20a quanto ao diagnóstico, eu apenas sugeriria isso. É retrospectivo,
sessão) e passará a sessões a cada três semanas. Em uso de rispe- você não viu, mas o relato que você fez da história colhida é sufi-
ridona 6 mg/dia, biperideno 4 mg/dia, levotiroxina sódica 100 ciente para dizer que esse quadro catatônico iniciou-se com sin-
mg/dia (dado o TSH elevado). Em acompanhamento ambulato- tomas hebefrênicos, com características hebefrênicas.
rial. Submete-se a fisioterapia diariamente devido à permanência Quanto ao diagnóstico atual, não há nenhuma dúvida, não há
de encurtamento do tendão da mão esquerda. Atualmente não o que discutir, apenas referendar aquilo que você apresentou.
preenche nenhum critério no BFCSI. Eu gostaria de perguntar à Ana Paula por que ela optou pela
associação com haloperidol? Imagino que deva ser por uma limi-
tação do serviço do hospital, porque o haloperidol não é o antip-
Exame psíquico atual
sicótico mais indicado na catatonia, pela hipertonia muscular que
Boa condição de higiene, mas aparência pessoal um pouco provoca, exercendo um reforço nos sintomas catatônicos.
descuidada, cabelos em desalinho. Mantém a mão esquerda semi- Realmente, a indicação é correta de ECT associado a um antipsi-
fletida. Vígil, sonolenta após as sessões de ECT. Calma, cooperati- cótico, e o melhor indicado aqui seria a olanzapina, um antipsicó-
va, bom contato interpessoal. Orientada globalmente. Atenção tico de última geração, que não iria levar a nenhum aumento do
preservada. Sem distúrbios da senso-percepção. Memória imedia- tônus muscular. Essa é a primeira pergunta que eu deixaria
ta, recente e remota preservadas (salvo num período de horas após com você.
as sessões de ECT). Pensamento organizado, de curso discreta- O protocolo de exames que você utilizou me pareceu muito
mente lentificado e conteúdo empobrecido. Possui noção e crítica voltado para a reumatologia e – eu tinha comentado aqui com o
parcial de morbidez. O discurso é em tom de voz mais baixo, um Carlos Henrique – faltou, na minha opinião, o pedido das proteí-
pouco lentificado. A expressão mímica é empobrecida. A expres- nas totais e frações para indicar o grau de desnutrição dessa
são escrita não mostra alterações atualmente. Está eutímica, mas paciente, que nos orientaria, ou a um nutricionista, para fazer a
possui afeto restrito, é um pouco indiferente ante os acontecimen- nutrição dela. A nutrição foi feita, creio eu, de forma adequada,
tos. Apresenta iniciativa moderada, mas quando solicitada até porque você passou sonda nasográstrica, que é essencial nesses
auxilia na organização da casa e de seus pertences; a família conti- casos para uma reidratação rápida. Esta não deve ser por via
nua relatando que a paciente é excessivamente organizada. parenteral, porque isso implica mais riscos. É necessária a sonda
tanto para a hidratação quanto para a nutrição dessa paciente.
Uns pequenos pontos que não são significativos, mas, como é
HD uma sessão clínica, é bom colocar. Deve ter sido erro de digitação.
Nos ajustes no aparelho de ECT você colocou 800 ampères, mas
CID-10: Esquizofrenia catatônica (F20.2) são 800 miliampères, 0,8 A, e isso para quem trabalha com ECT
DSM-IV: é importante. Você mencionou esses parâmetros de uma sessão
Eixo I: Esquizofrenia, tipo catatônico (295.20) inicial, porque os parâmetros finais de resistência e de voltagem
Eixo II: ndn. devem ter variado em cada sessão, pela resistência que se foi
Eixo III: Asma brônquica e hipotireoidismo funcional. modificando. Tipicamente, a primeira sessão não teve resposta,
Eixo IV: Problemas com grupo de apoio primário, proble- porque possivelmente a paciente estava muito desidratada. E é
mas educacionais, problemas econômicos (pais desempregados até surpreendente que na quinta sessão, já na quinta sessão, ela
atualmente). tivesse uma remissão completa, e, após a remissão completa, o
Eixo V: AGF na admissão 10; AGF atual 80. espaçamento de tempo entre as sessões, procedido de uma forma

* Os autores enviaram breve revisão bibliográfica sobre catatonia, que não foi apresentada no congresso e se encontra anexada adiante.
** Médico psiquiatra, Diretor Técnico da Pax Clínica Psiquiátrica de Goiânia

84 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


muito cuidadosa. Você vai passar agora para de três em três sema- uma condição na qual, após ser submetido a uma crescente
nas, e isso vai sendo espaçado. Penso que a manutenção com demanda de energia, há manifestações da ordem do esgotamen-
ECT é essencial para essa pessoa pelo menos por dois anos. Essa to. Isso entendido no âmbito daquilo que é a síndrome geral de
é uma sugestão que deixo nessa avaliação do caso. adaptação de Hans Selye. Portanto, nessa situação, considero a
E te pergunto também, Ana Paula, por que quando da troca indicação do ECT primordial. Acredito, inclusive, baseado no
do haloperidol você optou pela risperidona, que é também um que hoje se sabe e se lê, que não há motivos para deixar o ECT
antipsicótico que vai atuar muito em receptores D2 na via para uma terapia de exceção. O ECT tem indicações primordiais
nigroestriatal e também é causador de hipertonia muscular. O e retardá-lo numa tentativa primeira de fazer uma introdução
ideal não seria a risperidona e, sim, olanzapina, por essas com neurolépticos pode levar a uma cronificação, a uma pior res-
características. posta, inclusive ao tratamento medicamentoso, e a um prejuízo
Resumidamente, seriam os comentários que gostaria de fazer, do paciente com aumento do seu sofrimento.
reforçando que você salvou a vida dessa menina com a indicação Tenho impressão que algo deveria ser feito quanto a uma ava-
do ECT e deixando a pergunta no ar: por que o Juqueri não tem liação do nível mental dessa paciente. Essa questão da deficiência
um equipamento, não tem um centro de ECT, já que é um hospi- mental é poucas vezes tomada em consideração. Não podemos
tal psiquiátrico de referência em São Paulo? esquecer que há um número grande de deficientes na população
e que a prevalência de distúrbios mentais em deficientes é o
Giordano Estevão* dobro do que na população geral, sem exceção de qualquer cate-
goria diagnóstica. Ela possui uma história de vida, digamos de
Gostaria, primeiramente, de manifestar meu apreço pelo fato vivências de separação e tem uma história genética de ambos os
de o tema do ECT, da eletroconvulsoterapia, estar sendo tratado lados bastante pesada. Pergunto-me se não é em função dessa
também nessa reunião, além de em outras neste congresso. condição primária de recursos limitados em interação com uma
Sempre digo que a eletroconvulsoterapia é um dos tratamen- história de vida tão intensa, tão importante, como aconteceu com
tos pior compreendidos. Quando se fala em eletroconvulsotera- ela, que a paciente chega a essa catatonia, a uma desorganização
pia, muitas vezes, a idéia que se contrapõe à de um tratamento é a nível de se esgotar. Acredito que o ECT é uma boa indicação
a de uma má compreensão na forma de punição, na forma de tor- nesses casos, se fizermos uma interpretação – que acho funda-
tura, e não se trata de nada disso. Sempre digo que um trata- mental – no sentido de não deixarmos de nos esforçar para pen-
mento tão efetivo quanto a eletroconvulsoterapia, isento quase de sar os diagnósticos e os tratamentos por meio dos mecanismos
riscos e de custo tão baixo, merece atenção muito maior da parte que neles atuam. Então, se formos ler a história dos “tratamentos
dos psiquiatras. Isso tem uma história e eu estava lembrando com de choque”, eles se iniciam com Jauregg, com a malarioterapia –
o Rigonatti que, anos atrás, nós tivemos uma entrevista na Rádio aliás, foi o único psiquiatra que ganhou o prêmio Nobel. Logo
USP. Naquela ocasião, manifestamos nossas posições contrárias a veio o Sakel, com a insulinoterapia, o Meduna, com o cardiazol,
um projeto de lei que existe na Assembléia Legislativa de São e depois Cerletti e Bini, com o ECT. O que muda nesses trata-
Paulo, visando a proibir a eletroconvulsoterapia, entre outras coi- mentos? Simplesmente o agente estressor, o mecanismo em jogo
sas. Esse projeto é de autoria do deputado Paulo Gouveia, que nesses tratamentos é sempre o mesmo: submeter o organismo a
depois mandou alguém na rádio para saber quem eram aqueles um agente estressor que é suficientemente capaz de desestabilizá-
que tinham dito que a eletroconvulsoterapia era um tratamento, lo além daquilo a que está submetido. Eu diria que a idéia inicial,
que existiam normas para sua realização, que não era uma tortu- por exemplo, do Jauregg (ele tratava de paralíticos sifilíticos)
ra, nem havia necessidade de legislar sobre algo do arsenal médi- seria a seguinte: entre a doença e o doente o jogo estava empata-
co, cujo entendimento cabe na doutrina médica. Dei-lhe meu do. A doença não era suficientemente intensa para consumir o
endereço e disse que estávamos prontos para um debate, mas não paciente, e o paciente não era suficientemente capaz de dar conta
obtive resposta. da doença. Então, estava um a um. O que acontece quando ele
Em relação ao caso em si, eu lembraria que a catatonia é uma produzia a malária com plasmódios atenuados? Ele introduzia
síndrome e que, como tal, ela se compõe de sinais e sintomas, ori- uma outra doença que representava um estímulo para o organis-
ginalmente incluindo uma flexibilidade cérea, por aumento da mo, que era capaz, com aquele estímulo, de fazer mais um gol e
tensão muscular, os episódios de raptus catatônico, a obediência de melhorar em relação àquele empate. A linha dos tratamentos
automática e o negativismo. No caso, foi diagnosticada essa sín- ditos de choque é a mesma. O que nós conseguimos hoje é uma
drome incluída em uma evolução esquizofrênica. melhora das condições de tratamento, uma melhora das máqui-
Gostaria de fazer um exercício diferente com relação aos nas que hoje efetivamente são muito diferentes dos aparelhos de
procedimentos. Penso que deveríamos nos esforçar para deixar antigamente, a introdução da narcose, a introdução do miorela-
de lado esse entendimento das doenças a partir das descrições. xamento, mas em termos do que se produz no tratamento é exa-
Isso foi uma etapa muito importante da psiquiatria, foi por isso tamente o mesmo. Por isso, penso que, neste caso, a indicação é
que os DSMs aconteceram, mas também não podemos fechar os boa, na medida em que, do ponto de vista neurofisiopatológico,
olhos para o fato de que eles não resolveram os nossos problemas, essa paciente estaria numa condição de pleno esgotamento, com
nem com relação ao consenso diagnóstico e tampouco melhora- comprometimento físico muito importante. Você viu uma meni-
ram a efetividade do nosso tratamento. Entendo a catatonia como na caquética com escaras e tudo mais.

*Psiquiatra, Doutor, Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 85


Catatonia e eletroconvulsoterapia

Nessa mesma linha, eu aqui faço uma ressalva. Considero do momento. A prioridade foi o ECT para que ela melhorasse
que, entre esse mecanismo de ação proposto para o ECT e o mais rápido. E no Juqueri, realmente, é mais complicado para
mecanismo de ação dos neurolépticos, há um antagonismo. Os solicitar esse tratamento.
neuroléticos, se vocês se lembram bem da história, começaram Também a paciente e sua família são muito simples para
com a tentativa de bloquear as reações do organismo, quando o entenderem uma medicação e para fazerem uso dela. Há todas
organismo sujeito a uma agressão reagia de maneira extraordiná- essas dificuldades para mudar a medicação. É difícil aceitarem
ria, de tal modo que era a reação do organismo pior do que o pró- tratamento. Sempre demoraram muito para procurar atendimen-
prio ferimento. Cena: guerra da Indochina, franceses no front, to para a paciente.
amputação de perna, torniquete, boas condições circulatórias por Revendo a literatura, de fato, o haloperidol não seria a medi-
causa do torniquete, mas morte antes de chegar no hospital. Por cação mais indicada, mas estamos tentando fazer ainda o melhor
quê? Porque a reação à agressão era mais intensa do que a pró- para essa paciente.
pria organização, e pela dor e tudo levava o paciente à morte. Foi
essa uma observação feita por Baruck, na época, que começou, Sérgio Paulo Rigonatti
entre outros, com tentativas de fazer diminuir a temperatura, de
hibernar os pacientes. Ele começou a usar o RP 4560, que é a Gostaria de acrescentar, em relação ao nível mental que você
atual clorpromazina, quando se deu conta dos efeitos psicológi- comentou, que ela é limítrofe, e é a melhor da família. É uma difi-
cos. Então passaram um “e-mail” para o Prof. Delay e o Prof. culdade trabalhar com essa família.
Deniker: “olha, tem algo aí que vocês devem experimentar, por- E o vídeo dessa maneira, até com minha presença, requer jus-
que tentando isso eu percebi que esses pacientes ficavam mais tificativas a meus amigos. Gravamos os casos mais difíceis, mais
calmos, tinham desinteresse pelo ambiente”. Deu-se início ao tra- raros e, inicialmente, este seria mais um caso para nossos arqui-
tamento neuroléptico, o primeiro utilizado foi a clorpromazina, o vos. Posteriormente, resolvemos apresentá-lo e falamos com o Dr.
RP 4560, sendo o primeiro experimento da clorpromazina de Elkis, que nos apoiou. Muito obrigado.
forma isolada em pacientes psiquiátricos feito por Deniker e
Delay. Com Deniker, tive a oportunidade de trabalhar há Giordano Estevão*
muitos anos.
Nessa situação, tenho a impressão de que a indicação de
Queria apenas de lembrar a todos que em julho deste ano
ECT concomitante ao neuroléptico é problemática. Mesmo por-
saiu uma normatização do Conselho Federal de Medicina a res-
que, em tempos anteriores, quando se usava a reserpina como
peito da aplicação do ECT. Está aqui o Salomão, que foi um dos
neuroléptico, essa associação era fatal. Porque a reserpina, como
colegas que ajudou na elaboração dessa normatização.
neuroléptico, possui uma ação nos centros vasomotores muito
Gostaria de, em público, cumprimentá-lo e também pedir
mais pronunciada que a clorpromazina, e ainda mais em relação
aos colegas que tomem conhecimento dessa normatização, por-
ao haloperidol.
que foi algo de muito positivo a respeito da eletroconvulsotera-
A proposta do ECT como manutenção é muito procedente e
acredito que isso deva ser mais lembrado. O que observamos com pia. É um ato médico, dispensa legislação. Não há necessidade,
a utilização do ECT de vez em quando nos impressiona. Se nunca para aplicar o ECT, de fazer uma votação, como se pretendia
vimos um caso tão grave como esse, que ao fim do quinto ECT anteriormente. A responsabilidade é do médico. O consentimen-
mostra tal grau de recuperação, não faremos idéia do benefício to é obrigatório. Quando não há familiar, a responsabilidade do
para o paciente que esse tratamento pode proporcionar. Por médico que aplica é implicada. Portanto, vale a pena que todos
outro lado, neste caso seria de se pensar num tratamento neuro- tomem conhecimento dessa resolução.
léptico ou em qualquer outro, uma vez que, se formos fazer o
ECT, o faremos por quanto tempo? Ela tem 17 anos agora, é uma Sérgio Paulo Rigonatti
paciente com expectativa de vida longa.
Achei o caso muito bem-elaborado, muito bem-descrito. Vejam bem, esse caso é muito interessante porque é um caso
Sempre que tenho meus reveses com os ECT, com os pacientes e de psiquiatria infantil, como vocês estão vendo. E a resolução é
com tudo mais, eu me apoio no meu amigo Rigonatti, que tam- muito inteligente quando não proíbe, mas pede melhores investi-
bém é um paladino desse tratamento. Assim, deixo meus gações a respeito. Em alguns países que conhecemos está simples-
comentários. mente proibido fazer ECT em menores. A legislação brasileira é
realmente sábia. Eu faço minhas as palavras do Giordano em
Ana Paula Gonzaga da Costa relação à comissão. E ao Salomão, meus parabéns.

Realmente, o haloperidol foi a nossa primeira medicação. Salomão Rodrigues Filho


Primeiro porque eu não tinha experiência nenhuma com pacien-
te catatônica, nunca tinha visto uma paciente em estado tão grave. Queria agradecer, e o Rigonatti participou disso, porque eu
Quando eu tive contato com ela, já estava em uso dessa medica- enviei e-mail para ele, para o Del Porto, solicitando ajuda. E
ção. O quadro clínico me impressionou muito e o que fiz foi man- como conselheiro regional (não sou do Conselho Federal), fiquei
ter aquela medicação e procurar logo o ECT, que poderia benefi- com o encargo de assessorar o federal por ter um pouco mais de
ciá-la. Portanto, a medicação ficou para ser pensada num segun- conhecimento nessa área.

86 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Essa questão da criança, como nos EUA, no Canadá, na Summary
Europa, há sempre a proibição, e isso é muito ruim, precisam de
uma autorização muito especial. Nós conseguimos colocar uma Catatonia is a psychomotor desintegrative syndrome characteri-
restrição, mas não uma proibição, em que nos casos especiais, que zed by inertia and loss of motor initiative with semi-automatic
o médico queira fazer, ele justifica. E está faltando no mundo uma and semi-intentional phenomena such as catalepsy, cereous flexi-
pesquisa de ECT no autismo, que provavelmente tem resultados, bility, parakinesis, negativist opposition and suggestionability.
e isso ainda não foi feito. Com essas novas máquinas, a possibili- Abrupt impulses and catatonic agitation stand out. Psychomotor
dade disso está em aberto. Nós temos uma razoável experiência disorders demonstrate fantastic or imaginary chaotic experience.
com ECT em adolescentes e com resultados extremamente bons. We describe a case of a 16-year-old female, student that presen-
ted catatonic disorder resulting physical debility. She was submit-
Platéia (nome inaudível - Belo Horizonte) ted to pharmacological treatment associated with electroconvul-
sive therapy that resulted in complete remission.
Achei interessante esse conceito de exaustão. Sempre imagi-
nei a catatonia, talvez como síndrome ou como quadro nosológi- Key-words: Catatonia; Schizophrenia, Catatonic Type; Bush-
co mesmo, mas como uma invasão: um paciente com alucinação Francis Catatonia Screening Instrument; Electroconvulsive
cenestésica, sinestésica, inclusive com atitudes, quer dizer, com Therapy; Antipsychotics; Hypothyroidism.
energia suficiente para se contrapor – senta, levanta. Nunca a
imaginei como exaustão. Eu gostaria que o senhor falasse um Agradecimentos
pouco mais sobre isso.
CCP agradece Rosana Fortes Zschaber Marinho, residente
Giordano Estevão de psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG, pela contribui-
ção na transcrição do debate.
Eu tenho a impressão que nós vemos o fenômeno em etapas
distintas. O que você falou realmente pode representar etapas ini- ANEXO: Breve Revisão sobre Catatonia
ciais, desde um conflito psíquico puramente, ou mesmo de confli-
tos assentados em uma disfunção biológica, mas que, com a dura- A catatonia é um estado de estupor que pode ir do simples
ção, levam à exaustão. Temos que entender o processo numa entorpecimento a um grau de bloqueio que permita apenas
dimensão temporal, e a maneira pela qual nos contrapomos a um alguns movimentos ou certas explosões verbais. Apresenta um
sintoma, a uma doença, é diferente no começo, no meio e no fim. negativismo que se exprime por condutas de rejeição como
É essa, digamos assim, a possibilidade que temos de compreender mutismo, oposição, bloqueio e recusa de alimentos. A sugestiona-
em relação àquilo que é a síndrome geral de adaptação. bilidade, ao contrário, comporta condutas de passividade e obe-
A primeira fase é de reação, a segunda é de retorno e a tercei- diência automática como ecomimia, ecopraxia e ecolalia. O
ra é de esgotamento. Esgotamento é realmente isso: é uma condi- maneirismo assume o máximo de intensidade na forma de care-
ção na qual o organismo no máximo empata. E a possibilidade de tas, embeiçamento, explosões de risos, tiques, gestos cerimonio-
desempatar vem com o tratamento. Por que, possivelmente, o sos ou patéticos. As estereotipias consistem em condutas iterati-
ECT melhora esses casos? Porque quando fazemos o ECT esta- vas de movimentos ritmados, repetição de gestos ou palavras ou
mos submetendo o organismo a um desabamento de todas as em fixação de atitudes. Os impulsos são descargas motoras súbi-
constantes. Você começa com uma crise de consciência, você tem tas, geralmente agressivas.
uma crise convulsiva, bailam todas as constantes do organismo. O sinal fundamental da catatonia é a catalepsia caracterizada
Isso foi muito estudado, na época em que não se sabia como agia pela plasticidade, rigidez e fixação de atitudes – a postura impri-
o ECT. Antes do ECT, faziam todos os exames. Depois do ECT, mida tende a se manter, a cabeça permanece imóvel sem descan-
colhiam todos os exames. E perceberam que havia uma síndrome sar sobre o travesseiro (sinal do travesseiro psíquico) e existe um
humoral do ECT, que é nesse sentido de provocar um desabamen- grau de rigidez das massas musculares.
to. Agora, se desabou tem que reconstruir. Quando reconstruir, O ritmo e a profundidade do sono estão alterados de tal
temos que imaginar que, em termos de uma programação original, maneira que se diria que o paciente está a meio caminho da vigí-
a doença é mais nova do que a saúde. A pessoa geralmente adqui- lia e do sono, o que caracteriza uma alteração dos centros vegeta-
re a doença ao longo da vida. Portanto, esse desabamento pode tivos, que também pode ser evidenciada pela observação de
levar o organismo a uma retomada do ritmo que é pregresso e que hipersalivação, hipersudorese, edemas e distúrbios vasomotores.
é sadio. A comparação, por exemplo, com a cardioversão se colo- Por trás desses traços psicomotores e vegetativos e dos movi-
ca muito bem. Não podemos dizer que o sistema nervoso está mentos bizarros que parecem vazios de sentido há a tradução de
parado, mas podemos dizer que ele funciona mal, e que submetê- uma discordância e de um delírio autista que se manifesta por
lo a esse reset pode levá-lo a funcionar melhor. intensa atividade alucinatória, por experiências terrificantes de
fragmentação do pensamento ou por idéias fantásticas1.
Hélio Elkis Existem diferentes formas clínicas de catatonia. Sintomas
catatônicos são observados não somente em psicoses esquizofrê-
Agradeço a todos pela contribuição e, mais uma vez, uma nicas como também em afetivas, somáticas ou ainda em estados
salva de palmas. neurotóxicos, por isso deveríamos, talvez, considerar a catatonia

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88 87


Catatonia e eletroconvulsoterapia

como uma síndrome nosologicamente inespecífica.2,3 Na esquizo- Os pacientes esquizofrênicos catatônicos podem ser candida-
frenia, ela ocorre como catatonia inibida ou estuporosa e como tos a ECT na fase aguda9. O ECT é um tratamento efetivo para
catatonia excitada. Na catatonia estuporosa, o paciente pode psicose em pacientes no primeiro surto, especialmente com agita-
estar num estado de completo estupor ou mostrar uma diminui- ção, hiperatividade, alucinações ou delírios, em pacientes jovens
ção nos movimentos e atividades expontâneos, ele pode estar com efeitos debilitantes de doença crônica e em indivíduos com
quase ou totalmente mudo e pode demonstrar negativismo, este- síndromes características de catatonia, sintomas positivos de psi-
reotipias, ecopraxia ou obediência automática. Fica de pé ou sen- cose ou esquizoafetivos10. As evidências disponíveis sugerem que
tado imóvel por longos períodos de tempo e pode, subitamente e o uso de ECT associado a antipsicóticos mostra-se superior ao
sem provocação, ter um surto de violência e agitação. uso dos mesmos isolados no tratamento destes quadros. O ECT
Geralmente, exibe catalepsia ou flexibilidade cérea. de manutenção deve ser considerado para pacientes que respon-
Já os pacientes com catatonia excitada encontram-se em esta- dem ao ECT, para os quais apenas a profilaxia farmacológica tem
do de extrema agitação psicomotora, falam e gritam continua- sido ineficaz ou não pode ser tolerada9.
mente. As produções verbais são incoerentes e o comportamento Um estudo em Nova York demonstrou que, nos casos de
parece influenciado por estímulos internos. Freqüentemente catatonia, há uma perfusão diminuída no córtex motor e parietal
estão destrutivos e violentos para com outros e a excitação pode e foi sugerido o uso de SPECT como método de monitorização
fazer com que se firam ou entrem em colapso por exaustão. da resposta ao tratamento da catatonia11.
Necessitam por isso de controle físico e médico urgente.
Anteriormente os indivíduos com estados catatônicos excitados Referências bibliográficas
que não podiam ser controlados com sedação eram chamados de
1. EY H, Bernard P, Brisset C. Manual de psiquiatria. 2a ed.
catatonia perniciosa ou fatal.
Barcelona: Toray Masson S.A, 1974:112-113, 588-589.
Há também um subtipo chamado de catatonia periódica que
2. Pfuhlmann B, Stober G. The different conceptions of catato-
é uma forma rara e intrigante. Neste caso, os indivíduos têm epi-
nia: historical overview and critical discussion Eur Arch
sódios periódicos de catatonia estuporosa ou excitada separados
Psychiatry Clin Neurosci 2001; 251 Suppl 1:I 4-7.
por remissões e há correlação com mudanças nos níveis de hor-
3. Pataki J, Zervas IM, Jandorf L. Catatonia in a University
mônio tireoideano e balanço nitrogenado. Estes respondem a
Inpatient Service (1985-1990) Convuls Ther 1992; 8(3):
administração de tiroxina combinada com antipsicóticos.4 Num 163-173.
estudo na Universidade de Würzburg, Alemanha, a transmissão 4. Kaplan HI, Sadock BJ. Tratado de Psiquiatria. 6a Vol 1: 1053.
familiar da doença era evidente em 44% dos casos de catatonia 5. Stober G, Franzek E, Beckmann H, Schmidtke A. Exposure
periódica, e de apenas 3% em casos de catatonia sistemática. Por to prenatal infections, genetics and risk of systematic and
outro lado, ficou evidente que os indivíduos com catatonia siste- periodic catatonia J. Neural Transm 2002 May; 109(5-6):
mática tinham maior prevalência de exposição a infecções pré- 921-9.
natais (34% dos casos contra 8% de catatônicos periódicos).5 6. Peralta V, Cuesta MJ, Serrano JF, Martinz-Larrea JÁ
Anteriormente eram usados critérios mais restritivos para Classification issues in catatonia Eur Arch Psychiatry Clin
definir a catatonia, como o sistema de Leonhard, em que era vista Neurosci 2001; 251 Suppl 1:I 14-6.
como uma psicose ciclóide.6 Num estudo feito em Viena, os casos 7. Stompe T, Ortwein-Swoboda G, Ritter K, Schanda H,
foram revisados e redefinidos segundo os critérios atuais do Friedmann Are we witnessing the disappearance of catatonic
DSM-IV. Notou-se decréscimo na freqüência dos casos de 35% schizophrenia? Compr Psychiatry 2002 May-Jun; 43(3):167-
para 25%. Isso pode ser explicado pelo desenvolvimento socio- 74.
cultural e pelo amplo uso de medicação neuroléptica, que faz 8. Ebert MH, Loosen PT, Nurcombe BC. Psiquiatria diagnósti-
com que haja diminuição nos casos de hipercinesias, agitações ou co e tratamento. 1a Ed.: 165.
impulsividades, enquanto produz anormalidades motoras de rigi- 9. American Psychiatric Association Diretrizes no tratamento da
dez que podem ser pouco valorizadas e atribuídas somente Esquizofrenia - 2000:77, 80.
à medicação7. 10. Fink M, Sackeim HÁ. Convulsive therapy in schizophrenia?
A catatonia é uma situação de emergência que requer trata- Schizophr Bull 1996; 22(1):27-39.
mento hospitalar imediato. A desidratação e o estupor são com- 11. Galynker II, Weiss J, Ongseng F,Finestone H. ECT treatment
plicações importantes que podem ser fatais. É indicada uma ava- and cerebral perfusion in Catatonia. J Nucl Med 1997 Feb;
liação médica minuciosa8. 38(2):251-4.

88 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):45-88


Casos Literários
NATAL, MAIS UMA VEZ
CHRISTMAS ONCE AGAIN

N. C. T. Esta mistura de loucura, normalidade e depressão deixou este


homem tão confuso e tão frustrado com as palavras e promessas de
Era uma vez um homem que era considerado louco. Às vezes renomados profissionais do campo da saúde, na tentativa de curá-lo
era considerado normal e às vezes era considerado uma pessoa de algo que não tem cura, enquanto o mundo for este mundo imun-
depressiva. Foi um vencedor na vida, e não um perdedor. do, que, aliado à discriminação e ao preconceito de parentes con-
Quando acontecia alguma perda ou dor muito forte, sentia sangüíneos, demais parentes, amigos e sociedade em geral, o levou
aquela tristeza, conhecida como doença da alma, e este homem fica- a querer morrer.
va deprimido, por algum tempo. Mas por amar a vida e em consideração a DEUS, este homem,
Este homem não sabia mentir, roubar ou corromper. Quando pela primeira vez, enganou a todos e colocou um anúncio fúnebre
ocorriam fatos como uma doença grave da filha, tentativa de envol- comunicando a sua própria morte, no jornal de maior circulação do
vê-lo com tráfico (sem saber) de veículo roubado e outras ações estado onde residia. Passado o reboliço causado, numa hora em que
estava normal e diante da loucura provocada aos parentes, amigos
sacanas do cotidiano de quase todos ditos como normais, este
e, principalmente, ao médico psiquiatra que o acompanhava, mui-
homem reagia com ações e atitudes agressivas, perdia o senso e as
tas medidas cautelares (e na opinião dele “protetoras”) foram toma-
regras, leis e normas aceitas e impostas pela sociedade e se tornava
das, envolvendo inclusive a justiça e, finalmente, este homem louco,
louco, naqueles momentos. normal e depressivo passou a se portar como os seus semelhantes,
Entre as crises de depressão ou loucura, este homem, por incrí- sem querer mais mudar a sociedade ou os seus integrantes, até que
vel que pareça, era normal. Comia, bebia, urinava, defecava, falava, encontrou uma nova companheira nova, que o compreendeu e o
sorria, chorava, trabalhava, estudava, tinha sentimentos, pensava e aceitou, e viveram felizes até hoje.
podia levar dias, meses e anos sem as oscilações bruscas de humor, Neste momento de confraternização, este homem saiu de uma
desde que medicado (pois já tinha o diagnóstico de ser portador de profunda depressão, e num estado de plena loucura, decidiu redi-
Transtorno Bipolar) e teria que estar em harmonia com seu lado gir esta mensagem de Feliz Natal para você e sua família, desejando
emocional, espiritual e material (como qualquer outra pessoa). em seguida, já normal novamente, que se mantenham os mesmos
Acertou em muitas coisas, assim como errou e magoou pessoas tam- laços que nos cercaram nestes últimos tempos. A felicidade plena
bém, pois fez, caiu e se levantou incansavelmente na sua jornada de que ele adquiriu poderia ser afetada e entraria novamente em
meio século. depressão, até o próximo Natal.

CENTENÁRIO DE PEDRO NAVA E A PSIQUIATRIA*


CENTENARY OF PEDRO NAVA AND THE PSYCHIATRY

Em 2003, comemoramos o centenário do nascimento, em Juiz Psiquiatria ministrado em 1927, que intitulamos “A Faculdade de
de Fora, de Pedro Nava (1903-1984), graduado em 1927 pela Medicina”. Acrescentamos, em seguida, outros trechos de suas
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. obras que intitulamos “Vivência Médica e Sensibilidade” e
Sua turma foi a primeira após a reunião das faculdades na recém- “Reflexões Pré-melancólicas? Um Instante Entre Dois Abismos as
criada Universidade de Minas Gerais, daí se autodenominarem pri- Decisões”.
mogênitos. Juscelino Kubitschek, depois Presidente da República, e
Pedro Sales, o notável historiador da medicina, foram seus colegas A Faculdade de Medicina
de formatura. Por três anos foi contemporâneo de Guimarães Rosa,
“Nossos professores no sexto ano foram Leontino Cunha,
o mais original ficcionista da língua, formado em 1930. Também foi Medicina Legal; Washington Ferreira Pires, Neurologia; Galba
conviva de vida universitária do aluno de Farmácia Carlos Moss Veloso, Livre Docente regendo Psiquiatria; Eduardo Borges
Drummond de Andrade, o poeta maior, diplomado em 1925. Nava Ribeiro da Costa, Primeira Clínica Cirúrgica; Otto Pires Cirne,
veio a ser o fundador da Reumatologia como especialidade formal Obstetrícia; Hugo Furquim Werneck, Ginecologia; Alfredo Balena,
no país. Após aposentar-se da Clínica e da Reumatologia, ele, que Primeira Clínica Médica; Abílio José de Castro, Substituto Interino,
antes fora qualificado de poeta bissexto, passou a escrever suas Higiene. O Docente Galba Moss Veloso era apenas um pouco mais
memórias e veio a ser considerado o maior memorialista da língua. velho que seus alunos e vários dentre nós tínhamos a prerrogativa
Por outro lado, era aplaudido desenhista e caricaturista. de sermos seus amigos de fora da Faculdade. Isto aconteceu na
Como homenagem a esse notável médico e artista, reproduzi- turma de 1926 com Francisco de Sá Pires e Joaquim Nunes
remos o que consta de seu livro Beira-Mar sobre o curso de Coutinho Cavalcanti. Ele freqüentava muito o nosso Grupo do

* CCP agradece a imprescindível contribuição do Centro de Memória da FMUFMG nesta matéria.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):89-91 89


Centenário de Pedro Nava e a psiquiatria

Estrela, sempre com seu inseparável Iago Pimentel. Eram ambos experiência humana nascida de cinqüenta e sete anos de convivên-
particularmente amigos de Alberto e Mário Campos e por intermé- cia com tudo que o nosso semelhante pode dar de mais alto e de
dio desses dois é que vim conhecer aqueles jovens médicos. Eles se mais sórdido. Guardei dessa lição só o seu lado positivo e apesar das
distinguiam pelo fino humanismo e pela cultura geral que eram sua decepções, das amarguras, das ingratidões que sofri – insisto, me
marca. Para mim foi um prazer encontrar entre meus mestres do obstino, persevero, me afinco no entusiasmo intacto e no amor à
sexto ano o Galba, como eu o chamava, já que nossa convivência e nossa profissão. E tenho a mais profunda fé no bem, na purificação
simpatia tinham permitido que eu lhe tirasse o doutor e não preci- e no pentecostes que ela representa para quem a exerce com since-
sasse lhe dar agora o Professor. A ele devo essa admirável experiên- ridade e na compreensão inteira do que significa o alto papel de ser
cia do mestre próximo e acessível e as vantagens que disso advém Médico. E como! Amigos, pus toda alma na configuração desse per-
para o aproveitamento de seus alunos. Muito atualizado, o Galba sonagem. Nele fui sincero. O que fiz – não fingi que fiz. Porque os
procurou nos dar um conhecimento aproximado da importância da que fingem que estão sendo e que se fazem pagar por isto, na reali-
Psiquiatria, da classificação das doenças mentais, detendo-se sem- dade não são – vivem na permanência duma espécie de carona.
pre, na prática, quando os pacientes do Raul Soares lhe permitiam Cumpri dentro das minhas forças o juramento que pronunciei
mostrar quadros ao vivo. Mais do que isso, foi do Galba que ouvi- naquela manhã na Secretaria da Faculdade, lendo suas letras e sen-
mos os primeiros ensinamentos sobre o valor da Psicanálise como tindo que elas se gravavam em mim como marca de fogo e não
recurso de indagação psicológica e a profunda revolução que Freud como palavras soltas ao vento, pronunciadas por pronunciar, no
e seus seguidores representavam para a Psiquiatria.”1 decurso duma cerimônia.”3
A Faculdade, fundada em 1911, designou, em 1914, Álvaro de
Barros para reger a cátedra de Neurologia e Psiquiatria, que foi des- Reflexões Pré-melancólicas? Um Instante Entre Dois Abismos
dobrada em 1918, ficando Barros regendo apenas a de Psiquiatria. as Decisões
Em 1926, Hermelino Lopes Rodrigues, aprovado em concurso, é o
primeiro e único catedrático. Em 1927, licencia-se, passando a “A gente pensa que a vida sem variações é chavão que não
regente Galba Moss Veloso, e, em 1929, Rodrigues reassume. A par- muda e que uma rotina adquirida de existência é espécie de enche-
tir de nova licença deste, foram regentes, sucessivamente, até a fede- lingüiça. Engano. Não só os dias que se sucedem não repetem
ralização da Universidade: Paulo Elejalde (1936), Austregésilo nuvem que seja, nem vento, nem mesmo cada anoitecer, tampouco
Mendonça (1939) e Sílvio Cunha (1948)2. nossos amigos e, em casa, nossa gente. É imperceptível mas é assim
e nós também variamos em obediência ao destino, ao fadário, à dei-
dade, a de cada um, – a naturam sui corporis e ao inflexível “recado
Vivência Médica e Sensibilidade
genético” – onde se inscrevem, em caracteres que ainda não tiveram
“Meio século em que tenho vivido mergulhado numa grossa seu Champollion, o nosso dia de adolescer, madurar, pensar que
onda de humanidade. Em que tomei parte não digo em vários dra- estabilizou, ir caindo tão de leve! De repente as brancas, as calvas,
mas mas num só que é a vida terrível do médico dotado de um dedo as bocas banguelando, a broxura sorrateira – tão paciente quanto
de compreensão.” ...“Não há nada que não tenha visto em nossa moléstia velhice morte todas pacientes, todas seguras da sua hora. E
profissão. Fui interno de clínica médica, tisiologia, cirurgia, obstetrí- lá vamos, instáveis no instável, móveis dentro do movente. Mas
cia, ginecologia e psiquiatria. Fui monitor, estagiário, assistente, dando-nos ao luxo do tédio pela vida, que parece igual, no seu dia-
chefe de serviço, professor livre, interino, catedrático, emérito e a-dia sempre diferente, sempre diferente, no sobe desce engrossafi-
honoris causa. Ensinei – eterno estudante – continuo aprendendo. na estridente ou surdina Bolero de Ravel. Mas dentro da eternidade
Para servir, aceitei, três vezes, encargos de administração médica – dos seus anos vinte o Egon achava seus dias invariáveis. E como
o que é ato heróico e significa, para quem tem sensibilidade moral, não? Manhã, Santa Casa Ari Ferreira pneumotorax diz trintaitrês
acometimento e arrojo semelhantes ao daquele que se dispusesse a minha filha Padre Rolim almoço da prima Diva...”4
caminhar descalço num serpentário. Clínico de roça, fui médico, “Estação da Central, Jardim da Praça da Estação. . Imagens
operador e parteiro. Fui delegado de polícia sanitária e chefe de indissoluvelmente ligadas à do Ribeirão de Arrudas. Lembro dele,
posto epidemiológico. Conheço todas as clínicas – a de “lombo de de minhas andanças nas suas ribas. Quando suas águas passavam
burro” que experimentei no interior de Minas, a de caminhão e dos sobre o dorso Bahia-Januária, parecia um riacho de roça. Para os
fordes que pratiquei nos cafezais do Oeste Paulista, a clínica dura lados da estação ele aparecia canalizado, suas margens ligadas por
do subúrbio carioca e a clínica elegante dos arranha-céus do centro. pontes de cimento. Nelas me debrucei muitas vezes em noites de
Entrei em todas as casas, desde a choça do sertão e do barraco dos solidão total, deixando pender a cabeça, ficando em pontas de pé,
morros, aos solares dos ricos e aos palácios presidenciais. Vi todas empurrando todo o peso do corpo para a frente, peitoril agora na
as agonias da carne e da alma. Todas as misérias do pobre corpo virilha (só largar, esticar os braços e o equilíbrio será rompido) –
humano. Todas as suas dores, todas as suas desagregações, todas as vamos, Pedro! Coragem! Mais um impulso e tudo ficará resolvido
suas mortes. Além de todas as doenças, vi, também, toda qualidade lá embaixo apenas um corpo meio mergulhado na água um fio de
de doente. O rico e o pobre, o veraz e o fabulador, o amigável e o sangue da cabeça quebrada nos calhaus teus miolos rolando
hostil, o cooperante e o negativista, o reconhecido e o ingrato, o Arrudas Velhas São Franciscoceano... Ficava um instante entre dois
deprimido e o otimista, o realmente doente e o doente imaginário. abismos as decisões, optava por assentar os calcanhares e seguir
E vi também os colegas. O santo, o sábio, o heróico, o desprendido, olhando as estrelas correndo na onda de nanquim como as flores
o dedicado, o sincero, o altruísta – vivendo para os doentes e tratan- astros de diamante descendo nas madeixas do óleo de Winterhalter
do dos doentes – o homem de branco. E o pérfido, o imprestável, o que representa Elizabeth de Wittelsbach antes da fatalidade.
ignorante, o comodista, o rapace, o egoísta, o fariseu vivendo para Lembro da madrugada em que – morre não morre pula não pula –
si e tratando só do próprio ventre – o médico marrom. Sou dono da estava errando desse jeito e que, debruçado no extremo oposto da

90 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):89-91


ponte, divisei outro solitário sorvendo o veneno da noite e hesitan- Études sur la nature humaine (Essai de Philosophie Optimiste),
do – ele também – entre sofrer or to take arms against a sea of trou- publicado em 1903. Por ocasião da citada entrevista, dissera Nava,
bles./ And by opposing end them (...). Eu teria apenas passado os entre outras coisas: “Há uma porção de velhos que se matam à-toa.
olhos e depois refixado o fundo movediço das águas não fosse a Se encheram. Como quem quer ir dormir(...) Um velho pode estar
impressão de – olhando o vulto, sentir como que estar fitando um aqui conversando, como nós dois, e duas horas depois estar morto.
espelho. Aquilo era eu e parece que a coisa também teve a idéia de Meteu uma bala na cabeça porque achou um revólver na gaveta.
que EU era seu álter, porque veio se aproximando enquanto eu fazia Não segurou a peteca. Se chateou, se encheu”. Em várias outras
o mesmo que sua sombra – cada uma refletindo os movimentos da entrevistas e trechos de sua obra, o escritor aborda a questão do sui-
outra. Rentes, nos reconhecemos e gritamos nossos nomes. Zegão! cídio. Por sua vez, o citado Mechnikov afirma em seu livro algo
Nava! Precisava dizer mais alguma coisa? Ai! não, porque um expli- muito semelhante ao acima: “Dans son article sur la peur de la mort
cava o outro. Em silêncio estendeu-me a coisa infame em que vinha que nous avons mentionné dans le sixième chapitre, Tokarski cite
mordendo. Mordi como ele. Era fedido, punitivo, ardido, picava a l’exemple d’une centenaire qui a tenu le langage suivant: ‘Si tu vivais
boca, a mucosa do nariz e aumentava as lágrimas. Enorme cebola autant que moi, tu pourrais comprendre qu’il est non seulement
empoeirada de pimenta-do-reino. Cebola de mujique. Os dentes possible de ne pas craindre la mort, mais même la souhaiter et sen-
entravam rangendo como em vidro mole ou gelatina congelada. tir le besoin de la mort au même titre que l’on sent le besoin de
Toma, filho da puta. Toma. Me dá mais. As bocas pediam agora o dormir’. C’est un nouveau sentiment qui est apparu à un agê très
complemento e do bolso inesgotável do capote do possesso surgiu avancé, semblable au besoin de sommeil e incompréhensible aux
a garrafa de fogo. Cada tomava sua talagada e passava. Récipe. Um personnes moins âgées. Il s’agit ici evidemment de l’instinct de la
golão de quinze em quinze minutos – como diziam as receitas do tio mort naturelle, développé chez une centenaire ayant conservé ses
Aurélio. A chuva de estrelas não parava; elas faziam enxurrada lumi- facultés psychiques à un degré suffisant”. Por tudo isso, conclui
nosa acompanhada por nós no dorso serpentino do Arrudas que Rocha, não parece despropositado o suicídio de Nava, após receber
madrugada alta foi engrossado por dois esguichos parabólicos. Os em sua casa, num domingo à noite, o que classificou de “um telefo-
dois russos (dois? um?) aprumaram-se como balões desalestados e nema de mau gosto”. Deve ser lembrado também que em outra
tomaram pé na vasta perspectiva do ribeirão caminho dos lados do entrevista afirmara um dia Nava: “Tenho um temperamento depres-
Quartel. O dia subia com eles. O café quente no Pedro Sousa espan- sivo. Sou um suicida em potencial e, na verdade, me considero um
tou os fantasmas noturnos exorcizou os dois de Satã, desturvou suas sobrevivente”6.
almas, purificou seus hálitos e ambos entraram na Santa Casa para
suas obrigações. Bom dia! Irmã Madalena. Bom Dia! Louvado seja Referências bibliográficas
nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja louvado tão bom
Senhor.”5 1. Nava P. Beira-Mar – Memórias/4. 2 ed. Rio de Janeiro: J.
Em 13/5/1984, o escritor, então com 80 anos, suicidou-se com Olympio, 1978.
um tiro na cabeça, junto a um otizeiro (Moquilea tormentosa), na 2. Corrêa EJ, Gusmão SNS. 85 Anos da Faculdade de Medicina
Rua da Glória, no Rio de Janeiro, causando grande perplexidade da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte:
nos meios culturais do país. Escreveu Afonso Romano de Coopmed, 1997.
Sant’Anna: “Um tiro na memória/ A mão que escreveu outras/ 3. Nava P. Galo-das-Trevas (As Doze Velas Imperfeitas). 3 ed. Rio
Apagou sua própria história”. Luiz Otávio Savassi Rocha, Professor de Janeiro: J. Olympio, 1981:81-82.
de Clínica Médica da UFMG e historiador, lembra que, em abril de 4. Ib. 3: 432-433.
1983, referira-se o escritor, em entrevista concedida a Tessy Callado 5. Nava P. Beira-Mar – Memórias 4. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova
na TV Manchete, à questão do suicídio do idoso, citando o biólogo Fronteira, 1985: 259-260.
russo Ilia Ilitch Metchnikov (1845-1916), Prêmio Nobel de 6. Rocha LOS. Vida e Obra de Luigi Bogliolo. Belo Horizonte:
Fisiologia e Medicina em 1908, que cuidou do assunto em seu livro Fundação Cultural de Belo Horizonte, 1992:215.

DONCOVIM, PRONCOVÔ, ONCOTÔ*


WHERE I CAME FROM, WHERE I AM GOING TO, WHERE I AM

Mineiro Anônimo Brasil trem doidimais sô! Quaiscaí dendapia! Fiquei sensabê doncovim,
proncovô, oncotô. Oi procevê quilocura! GraçaDeus ninguém
Sapassado, era sessetembro, taveu na cuzinha tomano ua pin- simaxucô!
cumel e cuzinhánumkidicarne com mastumate pra fazê ua macarro-
nácum galinha assada. Quaiscaí de susto, quando ouvi um barui Palavras-chave: Psiquiatria Fenomenal Transcultural; Esquizofasia;
vino de didendoforno, pareceno um tidiguerra. A receita mandopô Verbigeração; Neologismo; Desorientação Alopsíquica ou Total;
midipipoca denda galinha prassá. O fornisquentô, o miistorô e u..da Afasia Sensorial; Outros Transtornos Específicos de Personalidade
galin ispludiu! Nossinhora! Fiquei branquinem um lidileite. Foi um (Mineira).

* Filosofia à beira do fogão a lenha (se ôcê num intendê num é diminas).

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):91-91 91


Caso Histórico
UM CASO DE HEBEFRENIA DESCRITO POR HECKER*
A CASE OF HEBEPHRENIA DESCRIBED BY HECKER

I. Observação. que apenas raramente alternava com disforia melancólica.


Alucinações não são observadas.
Anamnese (segundo as anotações médicas do Sr. Clínico
Em 29 de abril de 1862 o paciente (20 anos de idade) é tra-
Municipal de Königsberg Dr. Janert).
zido à instituição. – Stat. praesens. Pc. 5 pés e 1 polegada de altu-
ra, conformação corporal delgada, consideravelmente malnutri-
Theodor K., atualmente (março de 1862) com 20 anos de
do. Cabeça sem anormalidades, face pálida, inexpressiva, parva.
idade, é filho do produtor de açúcar K., que é descrito como uma
Olhos grandes, azuis claros, fixos (com mesma dilatação em
pessoa às vezes “excêntrica” e que há 18 anos é separado de sua
ambas pupilas) com expressão enigmática sem sentido ou pairan-
segunda mulher, a mãe de nosso paciente. Doenças mentais real-
do freqüentemente de um lado a outro no teto. – Pc. fornece
mente manifestas não se encontram na família. O paciente, nasci-
informações corretas sobre sua personalidade e seus anteceden-
do e criado em Königsberg, cursou a escola municipal até o
tes, porém inclui em sua fala observações completamente tolas,
secundário e, após sua primeira comunhão, começou como
repentinamente grita sem motivo, bate com os pés no chão e rea-
aprendiz numa grande casa vinícola. Sua educação pode bem ter
liza movimentos peculiares desajeitados e maneados dos braços e
sido um pouco relaxada devido a falta de autoridade paterna. Ele das mãos, como são considerados característicos para pessoas
é descrito como um rapaz teimoso e emotivo, suas capacidades jovens que se encontram na dita idade marota ou malcriada. Ele
intelectuais eram medianas. Seu desenvolvimento corporal, fre- fala muito consigo mesmo e não toma parte de ocupações nem de
qüentemente interrompido por doenças (varíola, escarlatina, tifo, diversões. Em contrapartida faz toda sorte de tolices: olha longo
inflamações abdominais), permaneceu um tanto atrasado, ele é tempo no sol claro, pula numa perna só, corre sem motivo de um
frágil e nervoso irritável. Durante seu tempo de aprendizado no lado a outro, gira-se com olhos fechados e cabeça dobrada para
negócio de vinho ele teria bebido pesadamente. – No verão ante- trás em rápido rodopio, esfrega os olhos com plantas e responde
rior, após ser demitido como ajudante, ele viajou até Paris a fim por longo tempo a todas as perguntas a ele direcionadas apenas
de procurar trabalho e retornou em novembro, sem encontrá-lo. com as palavras: “mas os olhos.”
Permaneceu então em Königsberg e teria se preocupado muito Esses apontamentos são todos retirados do prontuário no
sombriamente sobre seu desemprego. No início de janeiro surgi- mês de maio. Nos meses seguintes encontram-se apontamentos
ram os primeiros indícios de um transtorno mental, que trazia em semelhantes sobre o comportamento e o modo de ser do pacien-
si o caráter da melancolia. Ele estava calmo, ensimesmado, fitava te: ele sofre sempre, ainda, de sono ruim, acorda freqüentemente
fixamente diante de si, falava consigo mesmo e ria sem motivo. de madrugada por volta das 3 horas e então faz barulho, bate a
Em fevereiro surgiram ímpetos de ânimo colérico. Ele se armou cabeça na cabeceira da cama, também ao sentar-se no banco ele
contra inimigos imaginários, de modo que afiou faca e machado bate a parte occipital da cabeça contra o encosto ou se joga esti-
e os escondeu sob o sofá. Permanecia desperto à noite, arrombou cado no chão com a cabeça no assoalho. Como motivo para isso,
a janela do vizinho e se comportava às vezes de forma tão indo- alega que o teriam congelado. Às vezes ele grita de forma inarti-
mável que só podia ser detido com violência. Se não chegou tam- culada yi yi yi! Enche o nariz de rapé “porque ele tem fome” e
bém a verdadeiros acessos de fúria, isso se deu, talvez, apenas realiza todo tipo desses comportamentos tolos infantis impensa-
porque não lhe era contraposta nenhuma resistência por sua dos. Certa vez veio a nós numa visita com as palavras: “Sr.
enfraquecida mãe. (No hospital municipal, em que se encontra Diretor, chorei ontem o dia todo, eu gostaria muito de ter rapé, a
desde fins de janeiro, ele teve que ser colocado várias vezes na comida é tão fraca.” Outra vez sentou-se marotamente no banco
camisa de força). Mesmo antes de sua internação no hospital, e nos chamou na entrada sem se levantar e rindo: “Então, Sr.
todo seu comportamento já trazia a marca da tolice. Ele se apai- Diretor, o Senhor está bem?” Ante à pergunta de como ele esta-
xonou por uma moça que ainda estava em seus anos de infância, va: “Ora, tem-se mesmo que ter liberdade.” A repreensão do
permanecia muitas vezes à noite na soleira da porta de sua casa Diretor: “O Senhor está tão confuso, ouvi falar do Sr. Doutor...”
vestido apenas com a camisa e ficava horas ali sentado. Também interrompeu ele com as palavras: “Sim, eu quero lhe dizer,
no hospital ocupava-se com atitudes tolas, que ele, uma vez que Senhor Diretor, isso não ocorre comigo, senão com o Mertens”
lhe faltava o sono, exercitava principalmente à noite. Assim, ele (nome de outro paciente). Às vezes ele levanta as mãos para o alto
enfiava freqüentemente a cabeça sob a armação do pé das camas ao entrarem os médicos para a visita, como uma criança estudan-
e com as costas as levantava com os pacientes nelas. Ele é, no mais te quando quer manifestar qualquer desejo. Muito freqüentemen-
alto grau, desobediente, rebelde, teimoso, ao mesmo tempo facil- te ele incomoda, irrita e faz troças de outros pacientes, com os
mente irritável e sempre propenso a protestar. Fala, comporta- quais freqüentemente chega a ter violentas discussões e não rara-
mento, gestos traziam no mais das vezes a marca da exaltação, mente brigas. – Durante muito tempo ele afirmou que teria se

* Primeiro caso de hebefrenia entre os sete apresentados por Ewald Hecker, discípulo de Kahlbaum, em Die Hebephrenie. Archiv für pathologische Anatomie und
Physiologie und für klinische Medicin. Editado por Rudolf Virchow. Berlin: Georg Reimer, 1871. Volume 52:394-429. Tradução de Maurício Viotti Daker.

92 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):92-93


casado uma vez, há muito tempo, há 50 anos; informou, porém, não-essencial, o geral nosológico do individual caracterológico,
sua idade corretamente e esclareceu mais uma vez que ele teria se veremos a partir da seguinte descrição geral da hebefrenia, assim
casado quando ainda na estava na enfermaria D. – como de outros exemplos relatados.
O estado descrito do paciente essencialmente não se modifi- ...
cou nos 4 anos em que o observei. No geral, ele somente ficou um
As principais características da hebefrenia são: sua eclosão
tanto melhor educado e dócil e pôde ser ocupado com redações.
em relação com a puberdade, a sucessiva ou alternante apresen-
...
tação de diversas formas de estados (melancolia, mania e confu-
O caso descrito acima é, como já disse, verdadeiramente
exemplar para a forma da hebefrenia, no qual, tanto com relação são/incoerência), seu desfecho muito rápido em um estado de
ao curso quanto à peculiaridade de alguns sintomas, mostram-se enfraquecimento psíquico e a forma peculiar dessa idiotice termi-
as linhas básicas em que os casos pertencentes a essa forma têm nal, cujos sintomas já se deixam reconhecer nos estágios iniciais
que se mover. Até onde aqui tem-se que separar o essencial do da doença.

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):92-93 93


Homenagem
OBITUÁRIO DO DR. HÉLIO*
DR. HÉLIO`S OBITUARY

Sebastião Abrão Salim** Hélio gerou o embrião da Psiquiatria atual da FMUFMG. Essa
é uma história longa e ele foi seu iniciante. Quando se afastou da
O falecimento do Hélio Alkmin deixou-me triste pela amiza- Faculdade, já havia um corpo docente em formação. Essa era
de, pela gratidão e pela admiração que eu sempre mantive por uma de suas preocupações. A outra era a de resgatar a Psiquiatria
ele. Acredito que falo por todos nós que compartilhamos de sua como especialidade médica, tirando-a do descrédito para onde
companhia. fora lançada.
Nosso Hélio marcou, para sempre, sua presença entre nós, A Psiquiatria mineira tem o dever de velar sua memória.
por sua postura ímpar de atenção e companheirismo. Sua postu- Foram inestimáveis os serviços prestados por ele ao longo da sua
ra de príncipe tocou a nós todos de forma indelével, macia e res- incansável busca de nos propiciar, por sua competência e seu
peitosa. Foi inigualável na prática da relação afetuosa conosco, exemplo, o exercício digno da especialidade médica que escolhe-
seus residentes, seus alunos, seus pacientes e seus amigos. mos e pela melhoria de nossas instituições de ensino e assistência.
Tinha um espírito religioso que se manifestou muito cedo, Oxalá tenhamos espaço dentro de nós para guardá-lo com o cari-
quando há 40 anos, aproximadamente, auxiliava a Dra. Helena nho que sempre nos dispensou.
Antipoff em sua obra social, atendendo gratuitamente seus
pacientes deficientes. Esse espírito acompanhou-o até as vésperas Nota do editor:
de sua morte. Até recentemente, de forma discreta, ele ajudava os
pobres com doações materiais e espirituais por meio de seu vín- No American Journal of Psychiatry de abril de 1964, foi
culo com a Igreja. publicado o artigo “Psychiatry in Portuguese America (Brazil)”,
Hélio Alkmin foi, verdadeiramente, meu primeiro professor páginas 959-961, autor Eugene B. Brody. Quatro psiquiatras bra-
de Psiquiatria. Nosso Hélio havia chegado dos Estados Unidos sileiros foram citados: Prof. José Leme Lopes (Rio), Prof. Luis
da América, por volta do início dos anos ‘60, depois de fazer lá Viana Paulo Guedes (Porto Alegre), Prof. A. C. Pacheco e Silva
brilhante formação psiquiátrica. Ele foi convidado pelo Dr. José (São Paulo) e Dr. Hélio D. Alkmim. Após menção dos serviços
Geraldo Albernas, então catedrático da Neurologia, para assumir dos três primeiros, segue o parágrafo: “The schools in Ribero
a direção da disciplina de Psiquiatria da Faculdade. Tinha todos Preto, in the state of Sao Paulo, in Recife, and in Belo Horizonte
os méritos para tanto. Era o ano de 1963. Ele era o único e tam- are others with actual departments of psychiatry but they are not
bém o primeiro psiquiatra mineiro com formação acadêmica reco- yet organizationally mature. Belo Horizonte which has become
nhecida. Mostrou isso logo de início. Reuniu alguns interessados one of the leading schools with several American-trained,
e eu me incluí entre eles. Precisou vencer o conceito pejorativo Rockefeller-supported professors, has recently appointed Dr.
que se formara na Faculdade a respeito da Psiquiatria. Organizou Helio D. Alkmim, one of its own graduates trained in psychiatry
um programa teórico-prático sério para o curso de graduação. at Northwestern, to act as head of its developing unit”.

OUTRA HOMENAGEM COM PESAR Departamento de Psiquiatria e Neurologia da FMUFMG. Apoiou-


nos e prontificou-se a contribuir e a participar da Comissão
Perdemos recentemente mais um editor, o eminente pesquisa- Editorial. Christian Gillin publicou mais de 500 trabalhos científi-
dor em sono e psiquiatria Christian Gillin, professor da cos, editou e participou de relevantes publicações e era convidado
Universidade de San Diego. Ele visitou-nos à época em que pensá- para conferências em todo o mundo. Mais que tudo, sua simpatia e
vamos lançar Casos Clínicos em Psiquiatria, em evento pelo então sua simplicidade nunca serão esquecidas entre nós.

VINTE ANOS DE PSIQUIATRIA BIOLÓGICA! mado editor e membro da AAP-MG Delcir da Costa. São muitos os
seus méritos nessa jornada e longa a história que nos tem a contar.
Tantos foram os eventos e congressos com as maiores autoridades
Dignos de nota os vinte anos da Associação Brasileira de Psiquiatria mundiais da psiquiatria, aqui em Minas e aqui no Brasil. Nossos
Biológica - ABPB, fundada e atualmente presidida pelo nosso esti- parabéns ao Delcir e à ABPB!

*Hélio Alkmin era sócio honorário da Associação Acadêmica Psiquiátrica de Minas Gerais - AAP-MG e editor de Casos Clínicos em Psiquiatria
** Psiquiatra e Psicanalista, Professor Sênior do Departamento de Psiquiatria e Neurologia (atual Saúde Mental) da FMUFMG. Membro da Associação
Acadêmica Psiquiátrica de Minas Gerais – AAP-MG

94 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):94-94


Index CCP
Títulos Palavras-chave Personalidade........2(2):86
Pseudodemência........2(2):88
Auto-relatos
Acordares relacionados a esforços respiratórios................1(1):45 Psicanálise............2(1):42
Dunas de girassóis e outros delírios....2(2):58-61
Quinze delírios....................................2(1):2-9 Afasia..........2(2):89 Psicocirirgia........2(2):76
Minha amiga a morte....................................3(1,2):3-6 Agentes antipsicóticos...............2(1):13 Psicose...........1(1):16
Revelações...........................................1(1):3-11; 2(1):53 Alopurinol.............1(1):33 Psicósis...........2(1):32
Síndrome de Stevens-Johnson com carbamazepina....3(1,2):7-9 Ansiedade............1(1):45 Psicose tardia............1(1):21
Ansiolíticos.......2(2):66 Psicopatologia.........1(1):12
Originais Antidepressivos................1(1):12,45 Psicopatología..............2(1):32
Acompanhamento de 12 anos de transtorno psicótico e interpretação
Antipsicóticos...........1(1):12,33; 2(2):66 Psiquiatria geriátrica...............1(1):24
do ponto de vista de uma teoria dos sistemas....3(1,2):31-82
Ataxia prolongada associada à intoxicação por lítio............2(1):18-20 Apnéia............1(1):45 Sensibilização comportamental (kindling)...2(2):86
Arthur Bispo do Rosário - biografia clínica............3(1,2):16-25 Ataxia............2(1):18 Sexualidad..............2(2):10
Automutilação: diagnóstico diferencial e conduta....3(1,2):31-82 Atrofia cerebelar...........2(1):27 Síndrome de apnéia hipopnéia obstrutiva do sono....1(1):45
Considering the sleep apnea hipopinea RERA syndrome in the Atrofia cortical..........2910:27 Síndrome de Capgras.........2(2):62
differential diagnose of psychiatric disorders.....................1(1):43-45 Benzodiazepínicos.......1(1):45 Síndrome de duplo subjetivo............2(2):62
Cortical atrophy during treatment with lithium in therapeutic levels, Caso Schreber...........2(2):71 Síndrome de Ekbom.............1(1):24; 2(2):88
perphenazine and paroxetine: case report and Catatonia.............1(1):12; 2(2):89,98 Síndrome de Frégoli...........2(2):62
literature review................2(1):21-28
Catatonia rating scale........2(2):66 Síndrome de Kleine-Levin.......2(1):10
Dependência de álcool por automedicação de substância
fitoterápica.......................3(1,2):10-12 Clozapina...............1(1):27 Síndrome de Munchausen...........1(1):42
Esquizofrenia catatônica............2(2):66-70 Cocaína..............2(1):42 Síndrome maligna do neuroléptico......2(2):89
Esquizofrenia paranóide y transtorno delirante con trastornos senso- Comorbidade..........2(2):86 Toxicidade de drogas........2(1):27
riales: dos entidades con límites imprecisos.................3(1,2):13-15 Compulsividade........2(20:86 Transtorno afetivo recorrente....2(2):86
Munchausen’s syndrome: a case beginning in early childhood and that Conduta hipernómica................1(1):27 Transtorno alimentar.......2(2):86
changed from acute abdominal to neurological type.............1(1):40-42 Córtex cerebelar.........2(1):27 Transtorno bipolar...........1(1):33,47
Musicoterapia e psiquiatria: um estudo de caso.............1(1):16-20 Córtex cerebral............2(1):27 Transtorno delirante...........1(1):3; 2(2):89
“Noglima”: TOC resistente com resposta a adição de
Delírio......2(2):87 Transtorno delirante somático........2(2):89
risperidona...............1(1):36-39
Os impasses da sexuação na psicose: estudo comparativo de um caso Delírio de infestação..........1(1):24; 2(2):88 Transtorno delirante somático atípico........2(2):89
de psicose com o caso Schreber, à luz das teorias de Freud Delírio místico.........2(2):87 Transtorno depressivo...........2(1):48
e Lacan..........2(2):71-75 Delírio parasitário.........2(2):88 Transtorno factício...........1(1):42
Psicanálise, neurociências e posição autuista-contígua: contribuição Delirium.............2(1):27 Transtorno de humor bipolar..........1(1):27; 2(1):18
para um desenvolvimento na teoria e na técnica Demência.................1(1):12,45; 2(1):27; 2(2):88 Transtorno de personalidade dependente.....2(2):81
psicanalítica..........3(1,2):26-30 Dementia praecox..........1(1):59 Transtorno de personalidade evitativa.......2(2):81
Psicocirurgia como tratamento de paciente com depressão refratária: Depressão............1(1):12; 2(2):88 Transtorno obsessivo-compulsivo.........1(1):36; 2(2):81
avaliação neuropsicológica e psiquiátrica pré e pós-
Depressão dupla.......2(2):86 Transtorno obsessivo-compulsivo psicótico......1(1):36
cirúrgica...........2(2):76-80
Psicopatologia nos quadros demenciais................1(1):12-15 Depressão psicótica.............1(1):47 Transtorno obsessivo-compulsivo resistente........1(1):36
Resumo dos casos clínicos apresentados no XVIII Congresso Depressão refratária..........2(2):76 Transtornos de humor..........2(2):87
Brasileiro de Psiquiatria.....2(2):86-89 Desordem afetiva...........2(1):32 Transtornos mentais orgânicos.........2(2):88
Síndrome de capgras....3(1,2):31-82 Discinesia tardia...........2(1):13 Transtorno psicótico......1(1):3
Síndrome de Capgras: relato de caso e revisão da Distonia tardia............2(1):13 Tricotilomania.........2(2):81
literatura...........2(2):62-65 Distúrbio bipolar.........2(1):18 Verbigeração.........2(2):66,98
Síndrome de dependência do álcool................3(1,2):31-82 Distúrbio esquizoafetivo.....2(2):87
Síndrome de Ekbom em idosa...................1(1):24-26
Doença auto-induzida..........1(1):2 Key-words
Síndrome de Kleine-Levin: consideraciones diagnósticas y
terapéuticas............2(1):10-12 Eletroconvulsoterapia.........2(2):66 (On line)
Síndrome de tourette....3(1,2):31-82 Encefalite viral.........2(2):89
Sintomatologia de um caso de catatonia e conduta psicofarmacológi- Epilepsia.............2(1):32 Autores clássicos ou epônimos
ca baseada em evidências....3(1,2):31-82 Esquizofrenia...........1(1):16; 2(2):81,87
Terapia cognitiva do transtorno conversivo............3(1,2):31-82 Esquizofrenia catatônica..........2(2):66 (On line)
Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com Esquizofrenia de início tardio........1(1):21
clozapina..........1(1):27-32; 2(1):53
Esquizofrenia paranóide.............1(1):3; 2(2):62,71,87
Tratamento com alopurinol em paciente hiperuricêmico com
Estabilizadores de humor.............1(1):33
mania refratária: relato de caso e hipótese purinérgica..........1(1):33-35
Transtorno esquizotípico: transtorno de personalidade ou subtipo Estereotipia motora..........2(2):66
de esquizofrenia?....3(1,2):31-82 Filicídio.......2(2):87
Um caso de psicose de início tardio: considerações Foco temporal.........2(2):86
diagnósticas..........1(1):21-23 Hiperfagia.........2(1):10
Um caso de Tricotilomania: considerações diagnósticas e Hipersomnolencia.........2(1):10
terapêuticas..........2(2):81-85 Hipertireoidismo...........1(1):24
Hiperuricemia............1(1):33
Casos literários
Historia...............2(1):32
Dezessete sinhos e uma graça...........2(2):90-93
Entrevista com o Dr. Simão Bacamarte........2(2):94-95 História de medicina............1(1):54; 2(1):42,48
Literatura e loucura – um conto de Guimarães Rosa..........1(1):46 História da psiquiatria............1(1):59
O último monólogo de Nietzsche...............3(1,2):86-90 Impulsividade...........2(2):86
Sales (Machado de Assis)...........2(1):29-31 Insônia..............1(1):45
Trovas psíquicas...............3(1,2):83-85 Interações de drogas.............2(1):27
Intermetamorfose..........2(2):62
Patografias
Intoxicação por lítio...........2(1):18
Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva..........1(1):47-53
Lítio........2(1):27
Felipe II, un hombre irresoluto, mágico, coleccionista y
depresivo...............3(1,2):91-95 Maneirismo.............2(2):66
Patografia de Vincent van Gogh.................2(1):32-41 Mania..........1(1):33
Vincent van Gogh: sua história.............2(2):96-97 Melancolia.............2(1):48
Musicoterapia.........1(1):16
Casos históricos Mussitação...........2(2):66
A ilusão de “sósias”em um delírio sistematizado crônico...3(1,2):96-96 Negativismo.........2(2):66
Freud e o uso de cocaína: história e verdade..............2(1):42-47
Neurolépticos.........2(2):81
Irmã Germana...............1(1):54-58
Neuropsicologia.......2(2):76
Um caso clínico de catatonia descrito por Kahlbaum.........2(2):98-100
Neurosífilis...........2(1):32
Descrição clássica/ Homenagem Oligofrenia..........2(2):81
Demência precoce na sexta edição de Kraepelin em 1899....1(1):59-67 Parafrenia............1(1):3
Heinroth e a melancolia: descrição, ordenação e concei- Parafrenia tardia...........1(1):21
to............2(1):48-52

Site provisório: http://www.medicina.ufmg.br/ccp

Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):95-95 95


NORMAS DE PUBLICAÇÃO

1 - A revista Casos Clínicos em Psiquiatria destina-se à a) título (com tradução para o inglês); Seamenn WB. The case of the pancreatic pseu-
publicação de casos clínicos psiquiátricos em diversas b) nome completo do autor (ou autores), acompanha- docyst. Hosp Pract 1981; 16 (sep):24-25.
modalidades, bem como discussões e comentários sobre do(s) de seu(s) respectivos(s) título(s); 8.2 - LIVROS E OUTRAS MONOGRAFIAS
os mesmos. c) citação da instituição onde foi realizado o a) Autor(es) - pessoa física:
2 - A revista tem periodicidade semestral (junho e dezem- trabalho; Eisen HN. Immunology: an introduction to mole-
bro) com a seguinte estrutura: Editorial, Auto-relatos, d) endereço do autor para correspondências; cular and cellular principles of the immune respon-
Artigos Originais, Casos Literários, Patografia, Caso e) resumo do trabalho em português, sem exceder o se. 5th. New York: Harper and How, 1974:406.
Histórico, Descrições Clásssicas/Homenagem, limite de 150 palavras;
Seguimento, Cartas e Index CCP. b) Editor, compilador, coordenador como autor:
f) Palavras-chave (três a dez), de acordo com a lista
2.1 - Para efeito de categorização dos artigos, considera-se: Dausset J, Colombanij D. eds. Histocompatibility
Medical Subject Headings (MeSH) do Index
a) Auto-relato: descrição pelo próprio portador de Medicus; testing. Copenhague: Munksgaard; 1973:12-18.
transtorno mental de sua condição, envolvendo sua g) Texto: Artigos originais devem procurar seguir o 8.2.1 - Capítulo de livro:
vivência pessoal, a sintomatologia, as repercussões padrão de uma anamnese psiquiátrica (identifi- Weinstein L, Swartz MN. Pathogenic properties of
psicossociais, o tratamento ou outras questões que cação, queixa principal, história da moléstia atual, invading microorganisms. In: Sodeman WA Jr,
julgue pertinente, acompanhada eventualmente de antecedentes pessoais, história familiar, exame Sodeman WA. eds. Pathologic physiology: mecha-
complementos por membro do Corpo Editorial e psíquico, hipóteses diagnósticas, conduta, evolução nisms, of disease. Philadelphia: WB Saunders;
de comentário ou discussão por especialista em seu e outros itens considerados necessários), eventual- 1974:457-472.
caso. mente precedido por introdução e seguido de dis- 8.2.2 - Trabalhos apresentados em congressos, seminários, reu-
b) Artigos Originais: casos clínicos que apresentam a cussão e conclusão. niões, etc:
experiência psiquiátrica, ou de profissional que lide h) Summary (resumo em língua inglesa), consistindo DuPont B. Bone marrow transplantation in severe
com portadores de transtorno mental, em função da na correta versão do resumo para aquela combined immunodeficiency with and unrelated
discussão do raciocínio, lógica, ética, abordagem, língua;
tática, estratégia, modo, alerta de problemas usuais MLC complatible donor. In: Whithe HJ, Smith R.
i) Key-words (palavras-chave em língua inglesa) de eds. Proceedings of the third annual meeting of the
ou não, que ressaltam sua importância na atuação acordo com a lista Medical Subject Headings
clínica ou psicossocial e mostrem caminho, condu- International Society for Experimental
(MeSH) do Index Medicus;
ta e comportamento para sua solução. Hematology, 1974:44-46.
j) Agradecimentos (opcional);
c) Caso Literário: trabalhos que se relacionem a k) Referências bibliográficas como especificado no 8.2.3 - Monografia que forma parte de uma série:
descrições literárias envolvendo transtornos mentais item 8. Hunninghake GW, Gadeck JE, Szapiel SV et al.
ou traços de personalidade. 7 - As ilustrações devem ser colocadas imediatamente após The human alveolar macrophage. In: Harris CC.
d) Patografia: casos clínicos focados na biografia de a referência a elas. Dentro de cada categoria deverão ser ed. Cultured human cells and tissues in biomedical
determinada personalidade de renome portadora de numeradas seqüencialmente durante o texto. Exemplo: research. New York: Academic Press, 1980:54-56
transtorno mental, com o objetivo de apresentar ele- (Tabela 1, Figura 1). Cada ilustração deve ter um título (Stoner GD. ed. Methods and perspectives in cell
mentos psicopatológicos interessantes e o significa- e a fonte de onde foi extraída. Cabeçalhos e legendas biology; vol. 1).
do destes para sua obra. devem ser suficientemente claros e compreensíveis sem 8.2.4 - Publicação de um organismo:
e) Caso Histórico: casos clínicos de valor histórico sob necessidade de consulta ao texto. As referências às ilus-
aspecto descritivo, diagnóstico, terapêutico ou out- Ranofsky AL. Surgical operations in short-estay
trações no texto deverão ser mencionadas entre parênte- hospitals: United States - 1975. Hyattsville,
ros, eventualmente acompanhados de nota intro-
ses, indicando a categoria e o número da tabela ou figu- Maryland: National Center for Helth Statistics.
dutória, comentários ou discussão.
ra. Ex: (Tabela 1). As fotografias deverão ser em preto e 1978; Dhew publication num. (PHS) 78-1785
f) Descrição Clássica/Homenagem: Divulgação de trabal-
branco, apresentadas em envelope à parte, serem nítidas (Vital and Health statistics; serie 13, nm. 34).
ho descritivo clássico de transtorno mental ou tra-
e de bom contraste, feitas em papel brilhante e trazer no
balho descritivo de autor a ser homenageado. 8.3 - TESES
verso: nome do autor, título do artigo e número com
Homenagens, por razões especiais a membros de Caims RB. Infrared spectroscopic studies of solid oxi-
que irão figurar no texto.
CCP. gens (Tesis doctoral). Berkeley, California: University of
8 - As referências bibliográficas são numeradas consecuti-
g) Seguimento: notas sobre a evolução de caso apresenta- California; 1965; 156pp.
vamente, na ordem em que são mencionadas pela pri-
do em edições anteriores. 8.4 - ARTIGO DE JORNAL (não científico)
h) Cartas: comentários por parte do leitor sobre o con- meira vez no texto. São apresentadas de acordo com as
normas do Comitê Internacional de Editores de Shaffer RA. Advances in chemistry are starting to
teúdo dos artigos ou sobre a revista, com possibili-
Revistas Médicas, citado no item 5. Os títulos das revis- unlock musteiries of the brain: discoveries could help
dade de réplica pelo autor ou pelos editores.
tas são abreviados de acordo com o Index Medicus, na cure alcoholism and insomnia, explain mental illness.
i) Index CCP: compilação por títulos, palavras-chave,
key-words, autores clássicos e epônimos dos casos publicação “List of Journals Indexed in Index Medicus”, How the messengers work. Wall Street Journal, 1977;
de edições anteriores (index completo encontra-se que se publica anualmente como parte do número de ago. 12:1 (col. 1). 10 (cl. 1).
on-line). janeiro, em separata. As referências no texto devem ser 8.5 - ARTIGO DE REVISTA (não científica)
3 - Os trabalhos recebidos serão analisados pelo Corpo citadas mediante número arábico sobrescrito e após a Roueche B. Annals of Medicine: the Santa Claus
Editorial de Casos Clínicos em Psiquiatria, que se reser- pontuação, quando for o caso, correspondendo às refe- culture. The New Yorker, 1971; sep. 4:66-81.
va o direito de recusar trabalhos ou fazer sugestões rências no final do artigo. Nas referências bibliográficas, 9 - Agradecimentos devem constar de parágrafo à parte,
quanto à estruturação e redação para tornar mais práti- citar como abaixo: colocado antes das referências bibliográficas, após as
ca a publicação e manter certa uniformidade. No caso de 8.1 - PERIÓDICOS
key-words.
artigos muito extensos, a revista Casos Clínicos em a) Artigo padrão de revista. Incluir o nome de todos os
autores, quando são seis ou menos. Se são sete ou 10 - As medidas de comprimento, altura, peso e volume
Psiquiatria se reserva o direito de publicá-los em quan- devem ser expressas em unidades do sistema métrico
tas edições julgar necessárias. mais, anotar os três primeiros, seguidos de et al.
You CH, Lee HY, Chey RY, Menguy R. decimal (metro, quilo, litro) ou seus múltiplos e
4 - Os trabalhos devem vir por e-mail ou em duas vias, digi-
Electrogastrografic study of patients with unexplai- submúltiplos; as temperaturas, em graus Celsius; os
tados em espaço duplo, impresso em papel padrão ISO
A4 (210 x 297mm), com margens de 25mm, trazendo ned nausea, bloating and vomiting. Gastroenteroly valores de pressão arterial, em milímetros de mercúrio.
na última página o endereço e telefone do autor e a indi- 1980; 79:311-314. Abreviaturas e símbolos devem obedecer padrões
cação da categoria do artigo, conforme item 2.1, acom- b) Autor corporativo: internacionais. Ao empregar pela primeira vez uma
panhado do disquete com o arquivo nos padrões Word The Royal Marsden Hospital Bone-Marrow abreviatura, esta deve ser precedida do termo ou
6.0 ou superior, fonte Arial ou Times New Roman Transplantation Team. Failure os syngeneic bone- expressão completos, salvo se se tratar de uma unidade
tamanho 12. marrow graft without preconditioning in post hepa- de medida comum.
5 - Para efeito de normatização, serão adotados os titis marrow aplasia. Lancet 1977; 2:242-244. 11 - Os casos omissos serão resolvidos pela Comissão
Requerimentos do Comitê Internacional de Editores de c) Sem autoria (entrar pelo título): Editorial.
Revistas Médicas (Estilo Vancouver), que são seguidos Coffee drinking and cancer of the pancreas 12 - A publicação não se responsabiliza pelas opiniões emi-
pelas mais conceituadas revistas científicas internacio- (Editorial). Br Med J 1981; 283:628. tidas nos artigos.
nais. Estas normas poderão ser encontradas na íntegra d) Suplemento de revista:
13 - Os artigos devem ser enviados para:
nas seguintes publicações: Revista ABP-APAL (atual Mastri AR. Neuropathy of diabetic neurogenic
Revista Brasileira de Psiquiatria) 1998; 20(1):31-38, bladder. Ann Intern Med 1980; 92 (2 pt 2):316-
International Committé of Medical Journal, Editors, 318. Casos Clínicos em Psiquiatria
Uniforms requeriments for manuscripts submitted to Frumin AM, Nussabaum J, Esposito M. Functional Av. Prof. Alfredo Balena, 190
biomedical journals, Can Med Assoc J 1995; asplenia: demonstration of esplenic activity by bone 30130-100 - Belo Horizonte - MG
152(9):1459-65, em espanhol no Bol Of Sanit Panam marrow sean (resumem). Blood 1979; 54 (supl Tel: (31) 3273 1955
1989; 107 (5):422-31. 1):26. Fax: (31) 3226 7955
6 - Todo trabalho deverá ter a seguinte estrutura e ordem: e) Revistas paginadas por fascículos: e-mail: ccp@medicina.ufmg.br

96 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):96-96

You might also like