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A cultura como fator de contestação social – um estudo acerca do

movimento beatnik.

Culture as a social contestation factor: a study on the beatnik movement.

Kelly Caroline Zimmermann Kirsch1


FEEVALE

Resumo:
O presente estudo tem como objetivo analisar as relações entre as influências
sociais, o estilo de vida, as preferências artísticas e a estética pessoal de grupos de
contracultura com os mesmos fatores vigentes na sociedade em que o grupo se
constituiu. Como estudo de caso, trabalharemos com o movimento beatnik, que teve
origem no final da década de 40, e era formado por jovens que, através de um
movimento literário próprio, um estilo de vida inspirado na filosofia existencialista e
uma estética melancólica, expressavam sua contestação ao contexto social, político e
cultural de sua época. Para isso, será feita uma pesquisa bibliográfica de caráter
qualitativo, buscando, primeiramente, compreender os fatores sociológicos e culturais
que compunham tal cenário para, posteriormente, compreender os significados dos
elementos presentes na cultura do grupo e a relação entre ambos. Com tal análise, é
possível perceber que os movimentos de contracultura surgem através de pessoas que,
com uma percepção crítica e não-conformista, contestam aspectos da sociedade vigente
em que estão inseridos através das artes, das correntes de pensamento e da estética.

Palavras-chave: cultura, contracultura, sociologia, literatura, estética.

Resumo:
This study aims to analyze the relationship between social influences, the
lifestyle, aesthetic preferences and personal artistic counterculture groups with the same
factors prevailing in the society in which the group established. As a case study, work
with the beatnik movement, which originated in the late 40s, and was formed by young
people who, through himself a literary movement, a lifestyle inspired by the
existentialist philosophy and aesthetics of melancholy, expressed their challenge to the
social, political and cultural life of his time. This will be done a literature search for
qualitative, seeking first to understand the sociological and cultural factors that made for
such a scenario, then, to understand the meanings of the elements present in the gang
culture and the relationship between them. With such analysis, it is possible to realize
that the counterculture movements of people come through that with a critical

1
Bacharel em Design de Moda e Tecnologia, pesquisadora de moda e Mestranda em Processos e
Manifestações Culturais.
perception and non-conformist, challenge aspects of current society in which they live
through the arts, the currents of thought and aesthetics.

Key-Words: culture, counterculture, sociology, literary, esthetic.

Introdução

Com o estudo que segue, objetivamos analisar as relações do movimento


estético-literário beat, a estética pessoal dos membros de tal movimento, seu estilo de
vida e o contexto sociológico da sociedade em que estes estavam inseridos. Para isso,
fundamentaremos nosso trabalho em uma pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo,
dando grande enfoque ao caráter histórico e social do período, a fim de que possamos
dar um forte embasamento às nossas conclusões.
Desde o do século XX, em especial após a Segunda Guerra Mundial 2, os
fatores políticos, econômicos e socioculturais têm influenciado os jovens a formarem
grupos com ideologias, perspectivas de vida e críticas sociais próprias. Tais valores e
comportamentos refletem-se na sua estética pessoal e na sua relação com produção e
consumo cultural, fazendo com que estes formem um novo grupo cultural dentro da
sociedade que estão inseridos.
LARAIA (1986) afirma que determinados códigos sociais advém de heranças
culturais:

O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os


diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim
produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma
determinada cultura.
Graças ao que foi dito acima, podemos entender o fato de que indivíduos de
culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma série de
características, tais como o modo de agir, vestir, caminhar, comer, sem
mencionar a evidência das diferenças lingüísticas (...). (LARAIA, 1986,
p.69)

2
Embora “algumas práticas de agrupamentos juvenis específicos já tenham sido identificadas no período
anterior” à Segunda Guerra Mundial (FEITOSA, 2003, p.1), foi depois da mesma que, em função da
prosperidade financeira atingida pelos Estados Unidos e pelo sentimento de oposição aos modelos
governamentais, que grupos comportamentais específicos passaram a se formar. Até então, os conceitos
de “cultura jovem” e de “juventude” não estavam de fato consolidados. (FEITOSA, 2003)
A maneira com que as pessoas de determinado período ou grupo social se
vestem, se comunicam, produzem ou consomem bens culturais é um reflexo direto do
que acontece ao seu redor e da maneira com que elas percebem tais acontecimentos.
Assim como a análise desses elementos pode ajudar a compreender um determinado
período histórico, a análise do período histórico pode também fazer com quem
compreendamos tais posicionamentos e comportamentos dentro do grupo social.
A professora Ana Claudia Oliveira, em seu texto de apresentação do livro
Moda e Linguagem, da socióloga Kathia Castilho, confirma essa teoria, dizendo que:

Na construção do corpo, assim como na das roupas de cada época, estão


instalados os valores que ganham forma e voga em configurações estéticas
que se encadeiam ciclicamente. (...) Intimamente imbricada às feições do
sujeito que cada época faz emergir como uma das suas expressões, a moda é,
dentre essas, talvez, a expressão mais significante, que faz circular o sistema
de valores partilhado pela coletividade com as ruas regras de conduta. (...)
Na moda e por ela, os sujeitos mostram-se, mostrando os seus modos de ser
e estar no mundo, o que os posiciona neles. (CASTILHO, 2004, p.9)

Oliveira afirma ainda que a maneira como a pessoa se veste e se mostra


proporciona fatores pelos quais “se posiciona e desempenha seus papéis no contexto
sociocultural. (...) O sujeito adota figurativamente um determinado tipo de parecer, que
é uma declaração de sua identidade, suas crenças, suas convicções e seus valores”
(CASTILHO, 2004, p.12).
Por essas razões supracitadas, acreditamos que ideologias 3 e angústias comuns
motivaram os jovens a formarem grupos de contracultura 4, nos quais acabariam por
exteriorizar seus pensamentos e ideários através de estéticas e movimentos artísticos e
culturais que trazem em si imbricados uma série de valores imateriais.
Sendo esses grupos uma oposição à cultura dominante na sociedade, cremos
que eles também se tratam de grupos culturais, uma vez que, dentro de si, trazem
códigos e valores específicos, como os citados anteriormente por meio da referência de
Laraia.

3
De acordo com Clifford Geertza, no livro “A Interpretação da Cultura” (1989), ideologias são coleçoes
de propostas políticas, “talvez um tanto intelectualizadas e impraticáveis, mas, de qualquer forma,
idealistas”, podendo também ser chamadas de “romances sociais”.
4
Podemos definir contracultura com um ideário, conjunto de fatores, práticas ou manifestações que
contestam os valores vigentes na cultura dominante ou de massa de determinado contexto sócio-histórico.
A contra cultura e o movimento beatnik – uma história de contestação
social.

A história dos grupos de contracultura se iniciou no século XX. Após a


Segunda Guerra Mundial, o mundo, em especial os países capitalistas desenvolvidos
apresentavam um crescimento econômico excepcional. Nos Estados Unidos, por
exemplo, a economia passava por um grande avanço, marcado por um grande
consumismo alavancado pelo “mito do modelo do ano”, com uma grande necessidade
de consumir uma série de novos utilitários advindos do crescimento tecnológico, que
iam de carros a eletrodomésticos. Surgia, assim, o chamado american way of life, estilo
de vida tipicamente norte-americano, onde o consumo de novos produtos seria a chave
da felicidade (LOPES, 2006).
O país norte-americano assumia de fato o posto de grande potência capitalista,
já que possuíam a vantagem de ter tomado parte de uma guerra internacional sem que se
território estivesse sob conflito (BRANDÃO; DUARTE, 1990).
A maneira com que o mundo se dividiu após o final da guerra, com a vitória
dos Aliados5 foi de suma importância para essa disseminação da cultura norte-
americana. Enquanto a Europa Ocidental, a América Central e a do Sul estavam sob
influência cultural, ideológica e econômica dos Estados Unidos, que defendia a
expansão do sistema capitalista, a maior parte da Ásia e o Leste Europeu ficaram
domínio soviético, que possuía um sistema socialista baseado no partido Comunista.
Com isso, duas vertentes ideológicas pairavam sobre o mundo: a capitalista,
representada pelos Estados Unidos, e a comunista, representada pela União Soviética.
As duas superpotências, que até então eram aliadas – Estados Unidos e URSS6,
tiveram seus laços rompidos a partir de 1947, quando o país norte-americano uniu-se e
passou a apoiar financeira e belicamente a Inglaterra, a fim de juntos bloquearem o
avanço comunista.
A tensão entre as duas potências estava instaurada e ambas passaram a
disputar as áreas de influência internacional. A essa espécie de conflito, deu-se o nome
de Guerra Fria e, segundo Lopes (2006), ele serviu de justificativa para que os Estados
Unidos utilizassem toda a sua força política a fim de afastar a “ameaça vermelha” (o

5
Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética.
6
A URSS (União das Repúblicas Socialistas) foi uma nação constituída de várias repúblicas soviéticas.
comunismo) de suas áreas de influência, o que, nas concepções dos próprios norte-
americanos, seria o mundo inteiro. O país se auto-intitulava “guardião da democracia
ocidental”, disposto a fornecer ajuda a qualquer país “ameaçado pelo comunismo”
(BRANDÃO; DUARTE, 1990).
Esse confronto político, militar, econômico e ideológico entre as potências
supracitadas e seus aliados nunca chegou a tornar-se um conflito de fato. Apesar disso,
foi suficiente para “aprofundar o abismo que separava o Ocidente capitalista do mundo
comunista” (BRANDÃO; DUARTE, 1990, p.15).
Temendo uma nova crise, uma vez que seus principais mercados consumidores
– os europeus – encontravam-se economicamente arrasados após o conflito, o governo
norte-americano instaurou políticas de emprego, induzindo o comunismo à população,
além de desenvolver medidas que auxiliassem seus parceiros capitalistas que haviam
sido fortemente atingidos pela guerra a se reerguerem. Passando a conceder uma série
de investimentos públicos e empréstimos aos países em questão, os Estados Unidos
alegavam que seu principal objetivo era repelir o fim do socialismo que ameaçava uma
expansão.
Porém, o auxílio do governo norte-americano se deve principalmente ao fato
de que o que havia não era uma real preocupação com o comunismo e os países por ele
afetados. Sua intenção era “impor um modelo econômico multinacional, fundamental
para a manutenção da supremacia econômica externa dos Estados Unidos”
(BRANDÃO; DUARTE, 1990, p.16). D qualquer forma, uma boa parte dos cidadãos
norte-americanos discordava desse posicionamento e temiam que uma nova guerra de
fato se concretizasse.
Porém, da mesma maneira como se diz que esse conflito nunca chegou a se
concretizar, “de fato”, da mesma maneira ele também não teve um fim. O que ocorreu,
depois de a tensão entre as duas potências atingir um nível quase insustentável, quando
bases de mísseis soviéticos foram descobertas em Cuba 7, foi uma espécie de
coexistência pacífica.
Com o suposto fim da Guerra Fria, estabeleceu-se uma nova ordem mundial.
Com um mundo em desordem, a única certeza que se tinha é que aquele era um
momento não apenas marcado pelo fim de conflitos internacionais, mas sim o fim de
7
“Em outubro de 1962, os norte-americanos descobriram bases de mísseis soviéticos em Cuba, e
Kennedy (então presidente americano) deu um ultimato a Nikita Kruschev (primeiro-ministro soviético)
para a retirada dos foguetes. Essa situação colocou o mundo bem perto de uma guerra nuclear, até que
Kruschev aceitasse as exigências do presidente norte-americano, em troca de um compromisso formal de
absoluto respeito dos EUA pela soberania de Cuba.’ (BRANDÃO; DUARTE, p.43)
uma era para todo mundo. Um clima de incerteza pairava no ar, e o sentimento de
melancolia e de perda pós-guerra era suprido por bens materiais. A população norte-
americana gozava de um excelente desempenho, o que possibilitou a difusão de uma
cultura de consumo para a classe média.
Os avanços no consumo, somados ao retorno dos maridos ao lar, depois de um
longo período fora de casa em função da guerra, deram origem a um grande crescimento
no índice de natalidade nos Estados Unidos, fenômeno que foi chamado de baby boom.
Num período em que não faltavam empregos e oportunidades, um grande aumento
populacional, que para países subdesenvolvidos seria um quadro problemático, para os
norte-americanos era motivo de euforia: um aumento populacional significava também
um impulso na sociedade de consumo. (LOPES, 2006)
Essa sociedade de consumo que se formava, trazia em si não apenas um
interesse por bens materiais e utilitários, mas bens da industrial cultural também, que
apresentava uma explosão em diversos campos:

O incessante desenvolvimento da tecnologia, tornado-a cada vez mais


sofisticada, principalmente nos meios de comunicação (fotografia, disco,
cinema, rádio, televisão, etc), passou a atingir um grande número de
pessoas, dando origem à chamada “cultura de massa”.
Ao contrário das culturas erudita e popular, a cultura de massa não está
ligada a nenhum grupo social específico, pois é transmitida de maneira
industrializada, para um público generalizado, de diferentes camadas sócio-
econômicas. O que temos, então, é a formação de um enorme mercado de
consumidores em potencial, atraídos pelos produtos oferecidos pela indústria
cultural. Esse mercado constitui, na verdade, a chamada sociedade de
consumo. (BRANDÃO; DUARTE, 1990, p.11)

Além da explosão cultural acontecendo, havia também o fato de que o jovem


estava mais independente financeiramente graças à prosperidade e aos bons rumos que a
economia do país estava tomando. Com a reestruturação dos lares nesse período, mães e
filhos também estavam no mercado de trabalho, o que aumentava o poder de consumo
das famílias, incluindo os mais jovens. Uma vez que estes jovens já não precisavam
mais ajudar nas despesas domésticas, sobrava mais dinheiro para seus consumos
pessoais. O nascimento dessa cultura jovem global despertou interesse de fabricantes de
bens de consumo, que passaram a produzir produtos específicos para esse “novo
consumidor’:
A população mundial estava mais jovem do que nunca e para atingir seu
“novo alvo” a indústria cultural tratou de buscar novos produtos que iam do
jeans ao fast food, passando pelo cinema, televisão e, é claro, pela música.
(LOPES, 2006)

Para esses jovens, uma boa parte da indústria cultural era destinada e um
mercado especializado se formava. Era uma geração de jovens consumistas, que
aproveitavam o conforto que a modernidade lhes oferecia. Os jovens desse período
passam a ser o tipo de consumidor que, a partir de então, viraria “tudo de cabeça pra
baixo”. É o que a editora de moda Diana Vreeland definiu como Youthquake ou
“Terremoto Jovem” (PALOMINO, 2003, p.58). Através desse processo, a revolução
cultural jovem foi a matriz de uma revolução muito mais ampla, refletindo-se nos
costumes, no gosto cultural e no apreço pelo lazer em toda uma sociedade.
De acordo com KEHL (2007), esses jovens privilegiados circulavam entre
clubes, envolviam-se com atividades esportivas, freqüentavam lanchonetes, passavam a
consumir com maior constância guloseimas, roupas, cosméticos e acessórios para
carros. Essa infinidade de novos bens de consumo surgia impulsionada pela
prosperidade financeira e para impulsionar o consumo. A fim de manter a economia
interna do país estável e em contínuo crescimento, os fabricantes e as agências de
publicidade encarregavam-se de incentivar os cidadãos a consumir cada vez mais.
Amparados por uma economia em crescimento e incentivados por novos
movimentos culturais, os jovens passaram a criar sua própria cultura, que incluía
vestimentas diferenciadas dos mais velhos e preferências musicais diferenciadas.
Os jovens que haviam crescido em meio à insegurança da guerra muitas vezes
encaravam esse “novo mundo”, impulsionado pela indústria cultural e pelas facilidades
de compra “de uma forma confusa e ansiavam por maiores espaços: mesmo fora do
mercado de trabalho, a necessidade de comprar, criada pelo marketing, fazia emergir o
‘desajuste’ desses jovens” (LOPES, 2006).
Era um período de oposições e contrastes: enquanto alguns jovens se
encantavam com a prosperidade até então desconhecida e alimentavam o consumismo
influenciado pelo governo, outros inconformavam-se, questionando seu papel na
sociedade e refletindo sobre a maneira com que as massas estavam submissas e
alienadas:
Apesar do progresso e da industrialização, a sociedade norte-americana
permaneceu com valores morais arcaicos e preconceituosos, criando um
vazio e uma insatisfação na juventude, principalmente da classe média.
É dentro desse contexto que surge uma cultura própria da juventude, reflexo
de suas tendências comportamentais de revolta, expressa principalmente
pela música, de forma individualizada ou em pequenos grupos.
(BRANDÃO; DUARTE, 1990, p.12)

Em meio a esse mundo de transformações e de culturas massificadas, surgia


aquilo que daria início ao conceito de contracultura e influenciaria os demais grupos
(tribos urbanas8) que viriam posteriormente: o movimento beat. De acordo com
BRANDÃO e DUARTE (1990), a Guerra Fria e a cultura de consumo excessivo
serviram de influência para a formação de “um pequeno grupo de jovens universitários
que, através de um movimento literário, tentavam oferecer um estilo de vida alternativo
ao mundo materialista da sociedade norte-americana” (p.26). Segundo HOFFMANN
(2008), esse movimento expressava uma clara manifestação de sentimentos que vinham
perturbando a sociedade, em especial os mais jovens. E essa reação contra o
establishment9 teve seu nascimento justamente onde a “a tecnocracia10 atingia o auge de
seu desenvolvimento: os Estados Unidos” (HOFFMANN, 2008, p.43), mais
especificamente na cidade de São Francisco.

Iniciado por Jack Kerouac11 e consolidado por seus seguidores – William


Burroughs, Allen Ginsberg e Cassady –, o movimento beat traduzia-se em “gestos de
desobediência” e tinha como origem “a frustração do meio intelectual que vivia a
Guerra Fria, o temor de uma guerra nuclear 12, entre outros conflitos” (TAVARES, 1983
apud HOFFMANN, 2008, p.42). Essa geração “sem futuro” era composta por
estudantes, poetas, artistas e escritores:

8
Embora o termo tenha sido passado a usar apenas na década de 80, ele se aplica a uma série de grupos
surgidos algumas décadas antes.
9
O sistema, o grupo dominante de uma sociedade. (CARMO, 2000)
10
A sociedade onde o aparato industrial atinge o ápice da sua integração organizacional e “na qual seus
governantes justificam-se através de especialistas técnicos que, por sua vez, se justificam através de
formas cientfícas de conhecimento para além das quais não cabe recurso algum. Tem como característica
a capacidade de se fazer ideologicamente invisível, expande seu poder como um imperativo cultural
incontestável” (PEÇANHA apud HOFFMANN, 2008).
11
Jack Kerouac (1922-1969), escritor norte-americano tido como o maior ícone e um dos precursores do
movimento beat.
12
Naqueles anos, o mundo descobria um novo medo: a ameaça permanente da guerra nuclear (CARMO,
2000, p.29).
Inconformados, os escritores da chamada beat generation buscavam refletir
sobre a multidão solitária absorvida pela ânsia de segurança, pela submissão
generalizada, pelo conformismo e pela necessidade de identificação com a
imagem que a sociedade exige de cada um (CARMO, 2000, p.29).

O inconformismo e o espírito de contestação desta geração começam de fato e


ganham amplitude com a publicação de On the Road (Pé na Estrada)13, de Kerouac. O
livro, tido como a “bíblia” dessa geração e o iniciador da contracultura, influenciou toda
uma juventude que se deslumbrava com os relatos de vida nômade: “a estrada simboliza
a viagem sem rumo como os conquistadores errantes do faroeste americano de outrora”
(CARMO, 2000, p.28).

Escrito em 1951 e publicado em 1957, o livro conta:

(...) as experiências e atitudes de um grupo de agitados jovens norte-


americanos, loucos para viver emoções fortes e cujos principais interesses na
vida, além da literatura, giravam em torno de viagens, estradas, agitadas
festas, jazz, sexo, carona, drogas. Andavam mal barbeados, cabelos em
desalinho, irreverentes e rebeldes.

Através da recém inaugurada rodovia Rota 66 e outras estradas, cruzaram os


Estados Unidos em carro próprio ou carona de um lado para outro. Era um
jeito diferente de viver o mito do vagabundo (CARMO, 2000, p.28).

Uma série de artistas, ao longo do tempo, foram influenciados pela obra literária
de Kerouac, em especial “Pé na Estrada”:

A questão é que tal geração se multiplicou em muitas. Bob Dylan fugiu de


casa depois de ler On the Road. Chrissie Hynde, dos Pretenders, e Hector
Babenco, de Pixote, também. Jim Morrisson fundou The Doors. No alvorecer
dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a tornar-se cantor, fundindo rap e
13
“On the Road” é o segundo romance de Jack Kerouac, e sua publicação é um evento histórico, na
medida em que o surgimento de uma genuína obra de arte concorre para desvendar o espírito de uma
época. (...) É a mais belamente executada, a mais límpida, e se constitui na mais importante manifestação
feita até agora pela geração que o próprio Kerouac, anos atrás, batizou de beat e da qual o principal avatar
é ele mesmo (MILLSTEIN apud BUENO, na introdução de KEROUAC, 2008, p.7).
poesia beat. Jakob Dylan, filho de Bob, deixou-se fotografar ao lado da
tumba de Jack (...), como o próprio pai fizera, vinte anos antes (BUENO, na
introdução de KEROUAC, 2008, p.12).

O termo beat, que contemplava um movimento literário 14, poético e


comportamental, podia ser traduzido como beatitude, santificação, mas também como
“batida” (do jazz), embalo, ritmo (“usado também pra expressar cansaço, saturação”). A
expressão remetia às batidas, ao ritmo compassado daquele momento. O nome Beatles,
inclusive, derivou da fusão das palavras beat e beetles15. Se referia, também, a um
“estilo de vida aventureiro pelos que, sem eira nem beira, andavam à deriva pelas
estradas da América, em busca de aventura, aproveitando-se da opulência material do
american way of life” (BRANDÃO; DUARTE, 1990, p.26, grifo nosso). Assim, ainda
afirma Carmo, o movimento beat não consistia apenas uma libertinagem, uma falta de
normas ou um modo de vida baseado no improviso. Ser beat significava:

(...) a busca de um envolvimento profundo que traz música,


balanço, liberdade, prazer, na procura da realidade marginal das
minorias raciais e culturais no interior da sociedade norte-
americana. (BRANDÃO; DUARTE, 1990, p.26)

Desta forma, o termo “geração beat”, bem como a cultura produzida por esta,
não consistem em “movimento estético-literário organizado” e com normas
preestabelecidas. Este se referia, na realidade, a poetas e escritores (como, além dos já
citados Kerouac, Burroughs e Gingsberg, também Lawrence Ferlinghetti, Gregory
Corso, Gary Synder, etc.) que viviam de maneira nômade pela América dos anos 50 e
mostraram, no campo das artes, que “poesia e prosa podiam ser criadas como uma
experiência vivida pelo próprio autor, fora de qualquer padrão acadêmico-universitário”
(BRANDÃO; DUARTE, 1990, p.26 e 27).

14
O estilo literário beat pode ser considerado “laudatório, verborrágico, impressionista, vertiginoso,
incontido, ‘espontâneo’, repleto de sonoridade, de gíria, de coloquialismo e de aliterações (...)” (BUENO,
na introdução de KEROUAC, 2008, p.11). Além de Kerouac, os principais autores do movimento foram
movimento William S. Burroughs e Allen Ginsberg.
15
Besouros
Logo a imprensa, contrariando a contestação dos beats criou, com intenção
depreciativa, a expressão beatnik, que consistia da fusão de beat com nik, terminação da
palavra Sputnik, o primeiro satélite soviético lançado no espaço, em 1957. O termo
tinha a intenção de designar “os rebeldes jovens americanos aludindo à suposta simpatia
deles pelas idéias esquerdistas e de revolta contra o conformismo” (CARMO, 2000,
p.29).

O movimento beat pode ser considerado uma das expressões mais significativas
da contracultura. Foi com ele que surgiu “o primeiro movimento literário
verdadeiramente popular que acontecia nos Estados Unidos desde a Geração Perdida da
Década de 2016” (PEÇANHA, 1987 apud HOFFMANN, 2008, p.43). Além disso,
deixou também marcas na história da arte tendo como ícone o artista plástico Jackson
Pollock17 – amigo de Jack Kerouac e conhecido como Jack the Dripper.

Para os críticos, eles eram apenas jovens burgueses revoltados com suas próprias
vidas. Mas, rejeitando os velhos valores burgueses, os beats iniciavam um movimento
de valorização da espontaneidade e da natureza, além da “expansão da percepção”,
oportunizada pelas drogas, pelo jazz e pelas religiões orientais (CARMO, 2000, p.28):

Allen Ginsberg (1926-1997) fazia freqüente uso de alucinógenos a fim de


ampliar a percepção e a sensibilidade poética. E todos eles buscavam uma
outra ordem espiritual: a “viagem” interna.

Outro membro, embora mais independente da geração beat, William


Burroughs (1914-1997), mais velho que os demais, se tornara célebre pela
variedade e quantidade de drogas que já experimentara. Seu primeiro livro,
Junky (em inglês “drogado”), de 1953, retrata como ir a fundo no vício.
Trata-se obviamente das “fissuras” provocadas pelas drogas pesadas:
dependência, delírios, devaneios e visões alteradas (CARMO, 2000, p.28-
29).

16
Grupo de literários norte-americanos que viviam na Europa, especialmente em Paris, na década de 20.
Dentre eles, destacavam-se Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Além de escritores, alguns músicos
do jazz também fizeram parte do movimento.
17
Pintor norte-americano que foi referência no movimento do expressionismo abstrato.
Os beats estavam relacionados com os existencialistas franceses surgidos no
pós-guerra. Tendo como “papa” (CARMO, 2000) o filósofo Jean-Paul Sarte 18 (1905-
1980), o existencialismo era uma corrente de pensamento surgida na França, no período
que sucedeu à Segunda Guerra Mundial:

Após a Segunda Guerra Mundial, um grupo de filósofos franceses refletia


sobre a angústia da existência humana. O impacto da experiência traumática
das guerras mundiais havia gerado ampla discussão entre alguns intelectuais,
e se tornara moda particularmente entre os jovens. Tratava-se do
existencialismo (CARMO, 2000, p.25).

O existencialismo era um fenômeno e se espalhava com facilidade pelo mundo.


Com a juventude politizada que se formava no Brasil, não foi diferente. Até as
festividades carnavalescas foram influenciadas por esse movimento, com a criação da
marchinha “Chiquita Bacana”, que tratava, de acordo com Carmo, de uma mulher
existencialista “que só se cobria com uma casca de banana” (CARMO, 2000, p.25). A
repercussão foi tamanha que a música chegou a ganhar uma versão francesa – e,
posteriormente, foi gravada também na Argentina, Itália, Holanda, Inglaterra e nos
Estados Unidos. Toda essa repercussão espelhava o fato de que o existencialismo era o
reflexo de um clima espiritual que atingia o mundo inteiro:

Descrente da capacidade de a humanidade solucionar racionalmente seus


problemas, a juventude do pós-guerra se via tomada por uma sensação de
desânimo e desespero. Isso, porém, não resultava em inatividade absoluta. Os
existencialistas, ateus, deram a essa juventude novas formas de pensar o
mundo, a partir do pressuposto de que existir já é um enorme absurdo.
O primeiro objeto de reflexão filosófica dessa doutrina é o homem, não na
sua essência ou no mundo das idéias, mas na sua existência concreta. Os
filósofos afirmam que somos os arquitetos de nossas vidas, os construtores de
nosso próprio destino, embora submetidos a limitações reais do dia-a-dia.
Numa espécie de inversão da proposição de Descartes (Penso, logo existo), o
núcleo seria “existo, logo penso”. Paralelamente procuram desvendar o
mundo interior do ser humano, a solidão, o sentimento de revolta (CARMO,
2000, p.25-26, grifo nosso).
18
Filósofo francês, influenciado por Kant, Hegel e Heidegger. Em seu relacionamento amoroso com
Simone de Beauvoir, difundiu idéias modernas de não-monogamia e casamento liberal. Oriundo de uma
família pequeno-burguesa, era contra esse modelo de vida. (SARTRE, 2006, p.5-6 – biografia do autor)
O existencialismo influenciava toda uma geração que se encontrava desolada e
buscava algum sentido na vida. Mas não era apenas sobre os nichos intelectuais que
movimento se refletia. CARMO (2000), afirma que muitos jovens de fato inseriam-se
com rigor acadêmico na compreensão da filosofia existencialista, porém uma boa
parcela deles, “mais superficiais”, absorviam do movimento apenas os valores de
estética pessoal (a moda).

Como vemos, embora o existencialismo tivesse seu ponto inicial na filosofia,


onde os pensadores buscavam sentido na vida e debatiam sobre o livre arbítrio do ser
humano, o movimento acabou por determinar o comportamento e o estilo de vida de
toda uma geração de jovens que procuravam “encontrar o seu eu”. Com um estilo de
vestir que beirava a melancolia – bem como suas idéias –, esses jovens reuniam-se em
cafés, especialmente em Paris, para beber, ouvir jazz, recitar poemas pacifistas e discutir
suas idéias. A melancolia e a permissividade desses jovens eram apenas um reflexo do
mundo em que viviam e do seu descontentamento com os rumos da sociedade, mas
eram vistos de maneira negativa pelas gerações mais velhas:

A imaginação popular distorcia a figura do existencialista: recusa às normas


estabelecidas, aparência descuidada, cabelos abundantes, amargura e
desrespeito à moral tradicional, entrega aos prazeres da vida. Considerava-se
que se preocupavam apenas em explorar o lado melancólico da existência
humana, o desespero, e se compraziam no tédio. “Existencialista” passou a
designar as pessoas que se desviavam do procedimento usual ou que
infringiam as regras estabelecidas.
Jovens com trajes em desalinho, displicentes, com barbas, com casacos de
couro preto, (...) bebiam e dançavam, ouvindo jazz.
Sartre passou a ser o responsável pelo suposto caráter permissivo, em
particular dos adolescentes atormentados da época. “A vida não tem sentido,
Deus está morto, não existe lei moral, o homem é uma paixão inútil”. Ao
falar dessa maneira, o filósofo insuflava os jovens, os rebeldes e os
descontentes. Na verdade, porém, Sartre não traz solução para os
adolescentes sem rumo. Mas em todo o mundo, e em particular no continente
americano, foi entendido como a voz da rebelião e da liberdade (CARMO,
2000, p.27).
Sobre o estilo melancólico dos beats e existencialistas, vemos a análise de
Wilson (1985), citado por Hoffmann (2008):

À medida que os beatniks exageravam os lábios pálidos, os cabelos lisos e as


roupas pretas e o tornavam uma espécie de uniforme de revolta, e que Mary
Quant19 transformava na última moda. A utilização do preto pelos beatniks
vinha das modas existencialistas do pós-guerra, da margem esquerda de
Paris, apesar de o preto ser a muito tempo o sinal da revolta anti-burguesa.
(...) A combinação das influências dos dandies e dos românticos que
transformava o preto numa afirmação estrondosa de revolta (WILSON, 1985
apud HOFFMANN, 2008, p.49-50).

Como se pode perceber, o estilo pessoal dos jovens do movimento beat, embora
tenha vindo a tornar-se moda para mesmo aqueles que não pertenciam ao movimento,
traduzia os anseios e sentimentos dessa geração. As roupas pretas e a certa rigidez do
estilo dândi, os cabelos lisos, a palidez dos rostos eram claramente um retrato da
melancolia de uma juventude que não via seu papel na sociedade e não sabia que futuro
lhe aguardava.

Os beats podem ser considerados influenciadores dos movimentos que viriam


em seguida. Os posteriores mods e hippies podem ser considerados “continuadores de
um estilo de vida, princípios e objetivos delineados por aquela geração”. (PEÇANHA,
1987 apud HOFFMANN, 2008, p.47).

Considerações finais

Com o presente estudo, verificamos que os grupos de contracultura, aqui


exemplificados pelo movimento beatnik, surgem a partir de fatores sociais, políticos e
econômicos das sociedades em que os membros de tais grupos estão inseridos e
traduzem-se em elementos culturais e estéticos.
Compreendemos, assim, que, através da moda, em sua amplitude geral – não
apenas, mas também através da indumentária – se caracteriza todo um período histórico.
As pessoas que lançam modismos ou criam movimentos culturais, em geral, são aquelas

19
Uma das mais reconhecidas estilistas das décadas de 50 e 60, foi a responsável pela criação da
minissaia e envolvia-se com o movimento beat.
que estão profundamente inseridas no contexto sociológico de seu tempo, podendo
assim identificar os novos comportamentos que, futuramente, substituirão os então
vigentes. Assim, podemos dizer que entre moda e história se estabelece uma relação
mutuamente constitutiva.
Para realizar tal estudo e compreensão, existe certa dificuldade em estabelecer
conceitos definitivos sobre o fenômeno moda, relacionado com fatores sociológicos. Da
mesma forma, há uma complexidade em definir e limitar os grupos sociais e seus
períodos, considerando que as transformações mundiais ocorrem de maneira sutil e
progressiva, fazendo com que, durante alguns períodos de transição, a sociedade mescle
características dos movimentos que está prestes a deixar para trás com outras dos que
estão sendo inseridos em sua realidade.
Precursores das idéias de contracultura, indo contra os padrões de consumo e
ideológicos da sociedade vigente, os beats deixaram um legado cultural e ideológico
que possibilitaram o surgimento de posteriores grupos contraculturais.
Percebemos, nesse estudo, a conexão entre os fatores sociológicos vigentes e a
moda utilizada pelas massas no período. Esse entendimento se fez necessário para que,
na análise isolada da contracultura, compreendêssemos o porquê de determinada
indumentária tribal. Compreendendo a história, se compreende o porquê da contestação;
compreendendo a estética vigente (moda), se compreende o porquê da estética do grupo
contestatório. Além da moda, vemos as artes – plásticas e literatura, por exemplo –
como características do grupo. Cremos que humanidade sempre utilizou as artes para
expressar sua revolta e contestação.
Com essa análise, acreditamos que as tribos também são fatores sociológicos,
sendo influenciadas por e influenciadoras de sua sociedade. Com isso, compreendemos
não apenas a história do grupo da contracultura estudado, mas também adquirimos uma
maior capacidade de compreensão dos grupos que surgiram posteriormente e continuam
surgindo, bem como compreender de onde surgem muitas dos modismos que
visualizamos nas passarelas e revistas de moda.
Todos esses fatores nos levam a confirmar que a moda não se limita, e mais, não
se foca apenas ao vestuário. Nela estão imbricados também fenômenos artísticos –
música, literatura, cinema, artes visuais –, de comunicação – televisão, rádio, mídia
impressa –, além de fatores comportamentais.
REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, Antonio Carlos e DUARTE, Milton Fernandes Duarte. Movimentos


culturais da juventude. São Paulo: Moderna, 1990.

CARMO, Paulo Sérgio. Culturas da Rebeldia. São Paulo: SENAC-SP, 2000.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2008.

HOFFMANN, Ana Cleia Christovam. A moda do pós-guerra revisitada para a


construção do cenário underground de Porto Alegre. Novo Hamburgo, 2008. 97 f.
Monografia (Design de Moda e Tecnologia) – ICET, Centro Universitário Feevale,
2008.

KEROUAC, Jack. On the Road. São Paulo. L&PM. 2008. 384p.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1986.

LOPES, Marcos Carvalho. O Rock Clássico e a invenção da juventude. Jataí, 2006.


Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/blogs/o-rock-classico-e-a-invencao-da-
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MAFFESOLI, Michel. Tribalismo pós-moderno: da identidade às identificações.
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PALOMINO, Érika. A Moda. São Paulo: PubliFolha, 2003.

PRODANOV, Cleber Cristiano. Manual de Metodologia Científica. 3. ed. Novo


Hamburgo: Feevale, 2006.

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM,
2007.

TRINCA, Tatiane Pacanaro. Moda e Contracultura: uma relação paradoxal, s.l., s. ed.,
2005.

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