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O violão no Brasil

depois de
Villa-Lobos
FÁBIO ZANON
C
omo o café e o futebol, o violão está professor Alfredo Imenes, heroicamente se sujeitaram
indissociavelmente ligado a uma visão sócio- ao ridículo público ao se apresentarem, por exemplo,
cultural do Brasil, e nossa identidade musical no Clube Mozart, centro musical da elite carioca.
é impensável sem a sua presença. E não é para Os primeiros concertos de violão solo
menos. Instrumentos da família do violão foram documentados no país foram oferecidos pelo violonista
já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese, e José cubano Gil Orozco em 1904 e não chegaram a atrair
Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de muita atenção, mas supõe-se que já houvesse um
cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do ensino sério de violão clássico nessa época, já que
século XVI revelam em comum o acompanhamento Villa-Lobos admitiu haver aprendido violão pelos
ao som de viola”. métodos do espanhol Dionísio Aguado (1784-1849).
Dessa forma, desde o primeiro encontro que define Entretanto, aquele que podemos apontar como
nossa identidade cultural, o violão está presente. o primeiro concertista brasileiro não sabia ler música
Mas sua trajetória é tortuosa. O violão em seu e tocava com o violão invertido, mas com as cordas
formato atual é, na verdade, um desenvolvimento em posição normal: Américo Jacomino, o “Canhoto”
organológico do séc. XIX. Os instrumentos trazidos (1889-1928). Canhoto era filho de italianos, o que
pelos jesuítas provavelmente foram as vihuelas, alaúdes ilustra uma nova tendência de popularização do violão:
e violas – as quais, simplificadas, tornaram-se guitarras a sua adoção pela classe operária imigrante. Não é um
barrocas – que, levadas ao interior do país pelos mero acidente os luthiers Di Giorgio, Del Vecchio
bandeirantes, foram adotadas como o instrumento e Giannini terem se estabelecido no Brasil
folclórico nacional por excelência: a viola caipira. Isto, e transformado sua atividade artesanal em linha de
conjugado à marcada diferença cultural entre as classes produção de instrumentos dentro de poucas décadas.
sociais no período imperial, estigmatizou o violão – Mas o violão continuava sendo ridicularizado na
como acontecia na Espanha – como o instrumento imprensa, como alvo de charges derrogatórias, apesar
do populacho, dos capadócios e da marginalidade, em do enorme sucesso popular de violonistas-compositores
oposição ao piano, que realizava um ideal de bom tom como João Pernambuco (1883-1947).
das famílias urbanas mais abastadas. O ano da “virada da casaca” é 1916, quando
Até a metade do séc. XIX há uma certa confusão, o crítico do jornal “O Estado de São Paulo” ouviu e se
como atestam as “Memórias de um Sargento de rendeu à arte do virtuose e compositor paraguaio
Milícias”, entre a viola e o violão, mas depois de 1850 Agustín Barrios (1885-1944), que residiu no Brasil em
já fica clara a diferença entre a viola, um instrumento decorrência de seu sucesso. No mesmo ano, Canhoto
tipicamente sertanejo, e o violão, ou a guitarra francesa apresentou-se no Conservatório Dramático e Musical
(como era chamada nos métodos à venda no Rio de com extraordinário êxito.
Janeiro), instrumento favorecido no acompanhamento “É através deste concerto que Américo Jacomino
do cancioneiro popular de tradição urbana. Até este conquista a elite paulistana e assim, possibilita o início
momento, não há uma literatura específica para da dissolução do preconceito que freava
o instrumento publicada no país; os exemplos o desenvolvimento da música para violão”.
existentes são escritos para piano, sem dúvida pelo fato A partir de então, a imprensa de São Paulo
de não haver violonistas capazes de ler música. e do Rio de Janeiro passou a considerar o violão como
O violão também foi adotado como baixo- instrumento de concerto e até a elogiar Barrios,
contínuo dos incipientes grupos de choro, e a má fama Canhoto e a espanhola Josefina Robledo, aluna de
decorrente é festejada nos romances de Lima Barreto. Tarrega que também residiu no Brasil por vários anos.
Os primeiros defensores sérios do violão como Como vemos, talvez surpreendentemente, o violão
instrumento de concerto, como o engenheiro como instrumento de concerto ainda não completou
Clementino Lisboa, o desembargador Itabaiana e o 100 anos no Brasil, o que faz da vulcânica

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são os frutos mais suculentos dessa síntese.
De todos os compositores que Seria absolutamente impensável a realização desta
obra dentro do contexto acanhado do violão clássico
escreveram inspirados pela arte no Brasil dos anos 20. Por mais divergências que
Villa-Lobos possa ter tido com o dedicatário, Andrés
de Segovia, Villa-Lobos Segovia, a personagem dominante do violão no século
XX, foi, sem dúvida, o vislumbre das possibilidades
é o único que parte de um latentes do violão, permitido pelo extraordinário poder
persuasivo de Segovia, que estimulou Villa-Lobos
conhecimento em primeira mão a escrever uma coleção comparável às grandes séries
de estudos para piano ou violino. Não é exagero dizer

do arcabouço técnico do que os 12 Estudos são um divisor de águas dentro


da história do violão. De todos os compositores

instrumento para a realização que escreveram inspirados pela arte de Segovia,


Villa-Lobos é o único que parte de um conhecimento
em primeira mão do arcabouço técnico do instrumento
de uma linguagem individual. para a realização de uma linguagem individual, que
incorpora uma luxuriante paleta harmônica e um
personalidade de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) um compromisso com a inovação no discurso musical.
fenômeno ainda mais singular. As contingências sócio- Prova da qualidade visionária destas obras é a espera,
culturais fizeram com que seu instrumento público até 1947, para que Segovia as incluísse em seus
fosse o violoncelo e que o violão fosse somente um programas e até 1953 para que fossem publicados.
laboratório de fundo-de-quintal, que ele utilizava para Neste hiato, Villa-Lobos já havia retornado
penetrar nas rodas de choro. A maior parte das obras definitivamente ao Brasil, e sua linguagem havia dado
que escreveu antes de 1920 perdeu-se, e a Suíte Popular uma guinada na direção de um certo conservadorismo
Brasileira (1912-23) só foi publicada décadas mais tarde positivista e neo-clássico que pode ser detectado na sua
– à sua revelia – na França. É uma obra característica série de 5 Prelúdios (1940).
do período, onde a fronteira entre o idioma clássico O legado de Villa-Lobos é tanto uma benção como
e as formas de dança popular não é muito nítida. um peso para os compositores da geração posterior.
Por mais original e promissora que possa parecer Seus Prelúdios e Estudos são as obras mais populares
a produção da primeira fase de Villa-Lobos, até 1922, do violão no séc. XX, tocados por todos os violonistas
há uma nítida mudança de marcha em sua estética que de qualquer nível de excelência, e gravados centenas
coincide com a residência em Paris nos anos 20, de vezes. Seu Concerto para violão e orquestra de 1951
um fenômeno observado em outros compositores é uma das poucas obras brasileiras, talvez a única,
de orientação nacionalista. Parece que a distância com lugar assegurado no repertório internacional
e a receptividade do novo ambiente lhe permitiram do gênero. As possibilidades de reconhecimento
realizar uma síntese entre uma visão pragmática, internacional, assim abertas para um compositor
que aceita a superposição de influências externas brasileiro, podem ser um tremendo fator de inibição,
como uma profecia auto-realizada em uma cultura pelo temor à epigonia.
colonizada, e uma visão idealizada, derivada de Some-se a isso o fato de que uma sólida cultura
Rousseau, em que o compositor se via como um bom clássica para o violão ainda tardou algumas décadas
selvagem, corrompido por estas mesmas influências. para cristalizar-se no Brasil. O perfil de Barrios
A formidável série de Choros, as maiores obras para ou Canhoto não era suficientemente “clássico” para
piano e os 12 Estudos para violão, compostos em 1929, o projeto artístico de Villa-Lobos, e a importante

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contribuição de professores como Attilio Bernardini Por um lado, o rádio enfraqueceu as distinções
(1888-1975) teve conseqüências mais visíveis no campo de classe através do gosto musical e transformou-as numa
do violão popular. A distinção entre o violão de massa indistinta chamada “ouvinte”, disposta a ouvir
concerto e o violão popular foi gradualmente se o violão sem preconceitos; em 1928, o interesse pelo
acentuando nos anos 1930, 40 e 50 e alguns dos instrumento é vasto o suficiente para o surgimento
músicos de maior visibilidade, como Dilermando Reis de uma revista, “O Violão”, no Rio de Janeiro. Por outro,
(1916-1977), Aníbal Augusto Sardinha, o “Garoto” ainda faltava uma metodologia que permitisse
(1915-1955), e Laurindo de Almeida (1917-1995), o surgimento de um número significativo de concertistas
construíram quase que a totalidade de suas carreiras de violão que preenchessem um vazio só ocasionalmente
à sombra da Era do Rádio, criando um vasto repertório quebrado por raras visitas de artistas internacionais como
seresteiro no caso de Dilermando, incorporando alguns Regino Sainz de la Maza, Andrés Segovia (a partir
elementos impressionistas que apontam para de 1937) e Abel Carlevaro (nos anos 40).
a bossa-nova no caso de Garoto, ou simplesmente O desenvolvimento desta metodologia veio com
estabelecendo-se nos EUA como um músico de jazz o uruguaio Isaías Sávio (1902-1977), que se estabeleceu
no caso de Laurindo. em São Paulo nos anos 30. Sávio foi um concertista de
Não obstante as limitações destes grandes artistas modestos recursos, mas um devotado professor e autor
na esfera do violão clássico, eles estabeleceram uma de mais de 100 peças originais para violão, algumas das
relação próxima e estrearam algumas obras do quais, como a Batucada das Cenas Brasileiras, perduram
compositor que mais se esforçou em enfraquecer as no repertório. Ele teve um papel considerável na
barreiras entre a música clássica e a música popular promoção do violão dentro do establishment musical do
de qualidade: Radamés Gnatalli (1906-1988), que assim país, publicou dezenas de métodos e arranjos, e formou
tornou-se o autor da obra violonística mais significativa gerações de violonistas que prontamente se
e numerosa a partir dos anos 50, incluindo 5 concertos estabeleceram como professores em outras capitais,
para violão e orquestra (1952, 53, 55, 61 e 68). com destaque para Antonio Rebello (1902-1965)
A advocacia de sua obra, ministrada mais tarde por no Rio de Janeiro. A Sávio também devemos a criação
violonistas da esfera clássica, estimulou-o a compor do curso oficial de violão nos conservatórios e, pouco
extensivamente e criar obras de considerável interesse, antes de falecer, nas universidades. Ele teve
como a Brasiliana nº 13, a Suíte, os 10 Estudos, a sensibilidade de não sufocar a natural vocação do
os 3 Estudos de Concerto e Alma Brasileira; seu violão brasileiro para o cross-over e, entre seus alunos,
legado se estende à música de câmara com a suíte podemos contar tanto um Luís Bonfá ou um Toquinho
Retratos para 2 violões, a Sonatina para flauta e violão, quanto um Carlos Barbosa Lima.
uma Sonata para violoncelo e violão e outra para A relação de Sávio com os compositores
violoncelo e 2 violões, além de inúmeros arranjos que “sinfônicos” foi algo tímida; a instrução dos
incluem o violão num contexto semi-orquestral. A obra compositores custou a incorporar a técnica de escrita
de violão de Gnatalli traz todas as melhores qualidades para violão – uma novidade que Segovia havia imposto
e os mais evidentes problemas de sua produção como a compositores como Ponce e Turina nos anos 20 –,
um todo: a excelente escrita instrumental, o exemplo de Villa-Lobos provou-se um ideal alto
as inesperadas soluções harmônicas e o verdor demais para se alcançar, e a falta de seriedade com que
da inspiração, mas também a notória falta de paciência se encarava o violão no início do século ainda criou
com o acabamento e um caráter sonambulístico reverberações nos anos 40 e 50. Some-se a isso
e quase-improvisatório que, sob um certo ponto de o desfavor em que a estética nacionalista caiu após
vista, pode ser uma qualidade. Depois de Villa-Lobos, a revolução de 1964 e temos um desconfortável e algo
a obra de violão de Gnatalli é a mais apreciada vergonhoso hiato na incorporação da obra de Camargo
e freqüentemente tocada no exterior. Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone ao

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tão alta quanto a dele no repertório brasileiro pela
precisão de escrita, inventividade no tratamento
instrumental e variedade de expressão. Seu quase total
desaparecimento do repertório internacional é um
acidente de percurso, e nenhuma outra obra da escola
nacionalista merece maior atenção. O mesmo deve ser
dito do Concerto para violão e orquestra (1976),
possivelmente a mais bem-concebida obra brasileira
do gênero, mas que ainda não teve a chance de ser
plenamente avaliada devido ao seu quase-ineditismo.
Duas peças curtas, Canção Brasileira (1970) e Lenda
Sertaneja (1982) completam um corpus de obras para
Almeida Prado. violão de máximo interesse.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO A paixão de Mignone pelo violão em seu último
período criativo foi causada em grande parte pelos
repertório internacional de violão. frutos colhidos da profissionalização do ensino de
Camargo Guarnieri (1907-1993) seria, levando-se violão no país. Os anos 60 e 70 marcam não só uma
em conta seu implacável artesanato e concisão, o extraordinária expansão do ensino do violão popular
compositor ideal para dar continuação ao fio condutor com o advento da bossa-nova, mas também a
de Villa-Lobos, mas na prática isso não aconteceu. Ele consolidação da carreira internacional de uma geração:
se exasperava com as dificuldades de se escrever bem Carlos Barbosa Lima (n.1944), Turíbio Santos (n.1940),
para o instrumento, e seu único Ponteio (1944, dedicado Sérgio (n.1948) e Eduardo Abreu (n.1949), Sérgio
a Carlevaro) para violão não tem o mesmo carisma dos (n.1952) e Odair Assad (n.1956) e, mas tarde, Marcelo
homônimos pianísticos. Seus 3 Estudos (nº 1: 1958, Kayath (n.1964). A percepção do Brasil como o país
nos 2 e 3: 1982), apesar de extraordinários como do violão deve muito a estes dois eventos conjugados.
composições, apresentam um caráter torturado O cenário nacional também se beneficiou desse
e esotérico que apela somente aos intérpretes mais arranque e uma nova geração de didatas se estabeleceu
intelectualmente inclinados. As 2 Valsas-choro (1954, neste período, com destaque para Henrique Pinto
1986) são obras bem mais simpáticas, mas, como de (n.1941) e Jodacil Damasceno (n.1929).
praxe em Guarnieri, a 2a delas ainda não está sequer Junto com Isaías Sávio, esses violonistas foram
editada. Lorenzo Fernandez (1897-1948) foi ainda o ponto de referência para toda uma geração de
menos generoso: deixou somente um pequeno Prelúdio compositores nacionalistas que deixaram itens isolados
(1942) de parco interesse e um arranjo da Velha de considerável interesse, como José Vieira Brandão
Modinha (1938, original para piano como parte da (1911-2002) com o Mosaico, Walter Burle-Marx (1902-
Segunda Suite Brasileira) dedicado a Segovia, que 1991), autor de Bach-Rex e Homenagem a Villa-Lobos,
freqüentemente é tocado como bis. Souza Lima (1898-1982) com seu Cortejo e Divertimento,
Se a contribuição destes compositores magnos de e Lina Pires de Campos (1918-2003), autora de
nosso nacionalismo é numericamente decepcionante, 4 Prelúdios e Ponteio e Toccatina. Três compositores
o mesmo não se pode dizer de Francisco Mignone já falecidos merecem uma menção particular pela sua
(1897-1986). Suas primeiras tentativas de escrever para importância dentro da vida musical brasileira: Cláudio
o violão foram bem modestas, mas em 1970 ele Santoro (1919-1989), autor de um Estudo, um Prelúdio
produziu a série de 12 Valsas, em todos os tons e da Fantasia Sul América; Theodoro Nogueira
menores, e 12 Estudos que, sem manifestarem o ímpeto (1913-2002), autor de extensa obra que inclui 6
renovador de Villa-Lobos, ocupam uma posição quase Brasilianas, 5 Valsas-Choro, 4 Serestas, 12 Improvisos e um

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Concertino para violão e orquestra; e César alcance artístico. Os Momentos I-IV, a Homenagem
Guerra-Peixe (1914-1993) autor de 6 Breves, 10 Lúdicas, a Villa-Lobos, as Reminiscências, o Prólogo e Toccata,
4 Prelúdios e da primeira Sonata brasileira para violão, a Entrada e Tango, as Rememórias e o Concerto para
de 1969, uma obra extremamente engenhosa da sua 2 violões e orquestra cobrem 30 anos de produção
fase nacionalista. artística, atestam sua imaginação poderosa e o colocam
Os anos da ditadura militar provocaram uma como um verdadeiro herdeiro de Villa-Lobos, em sua
dramática re-configuração da vida musical do país. escrita detalhada, robusta realização instrumental
A considerável repressão da liberdade de expressão e perfeito equilíbrio entre a cor local e as necessidades
forçou artistas e intelectuais a tomarem posições de um argumento formal de maiores proporções.
drásticas. Compositores de tendência governista não A considerável dificuldade técnica de suas obras tem
tiveram sucesso em persuadir as autoridades se mostrado um fator inibidor, e Nobre é, num plano
da necessidade de um desenvolvimento contínuo internacional, mais respeitado que tocado, mas este
da educação musical, e tiveram de responder por isso é um fator que deve ser superado em favor de obras
depois da abertura nos anos 80. Uma maioria de de qualidade superlativa que merecem atenção
compositores opostos ao regime refugiou-se na rotina incondicional. Já Edino Krieger obteve considerável
do ensino universitário e, seguindo o modelo sucesso com sua Ritmata de 1974, e suas obras mais
americano, cristalizou um sistema de ensino acadêmico recentes, Passacaglia in Memorian Fred Schneiter e seu
que prescinde da atuação no dia-a-dia do compositor Concerto para 2 violões e orquestra parecem prontas a
profissional e encoraja o surgimento de “processos” seguir o mesmo caminho. Um compositor de produção
composicionais que muitas vezes só podem ser mais mirrada, mas de sumo interesse, é Osvaldo
decodificados por colegas. Ao mesmo tempo, Lacerda (n.1927), autor de três encantadoras peças,
a participação ativa dos cantores/compositores de Moda Paulista, Ponteio e Valsa Choro. Um item isolado
MPB no processo de abertura política relegou os de Ronaldo Miranda (1941), Appassionata, tem
compositores clássicos a uma posição secundária merecido uma calorosa acolhida internacional;
dentro do meio cultural e a um recrudescimento a Sonatina de José Alberto Kaplan (n.1935) e a peça
do interesse da imprensa pela produção de concerto, de mesmo título de Sérgio Vasconcelos Corrêa
uma situação que não parece passível de reversão (n.1934), também autor de um Concerto, demonstram
num futuro próximo. grande profissionalismo de fatura.
O violão, como um natural mediador, no Brasil, A produção dos compositores independentes,
entre o universo da música clássica e da popular, seguindo a esfera de interesse dos intérpretes a quem
encontrou-se subitamente numa posição privilegiada. é dirigida, cobre um amplo espectro de possibilidades
Intérpretes como Barbosa Lima, Turíbio Santos e o duo estéticas. Almeida Prado (n.1943) realizou
Assad, inicialmente escolados na tradição clássica experimentos com a sonoridade, comparáveis às suas
do violão, hoje atuam numa tênue linha divisória em Cartas Celestes para piano, em Livre pour Six Cordes
que a fronteira entre o que é clássico e o que é música e Portrait de Dagoberto, dedicado ao violonista paulista
instrumental brasileira não é muito clara. radicado na Suíça, Dagoberto Linhares, mas sua Sonata
Os compositores ativos criaram seus nichos estéticos, oscila entre uma energia “prokofieviana” e um
muitas vezes opostos, e foram seduzidos pela nacionalismo desbragado. Outro prolífico compositor
garantia de inclusão de suas obras para violão de música para violão é Ricardo Tacuchian (n.1939),
no repertório regular. cuja produção pende entre o nacionalismo urbano
Os compositores de orientação pós-nacionalista da Série Rio de Janeiro e da Imagem Carioca para
que mais contribuíram para o repertório brasileiro são 4 violões e o experimentalismo sonoro das duas Lúdicas
Marlos Nobre (n.1939) e Edino Krieger (n.1928). e dos dois Impulsos para dois violões.
A obra de Marlos Nobre é extensa e de incalculável A exploração de técnicas pouco convencionais

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encontra em Sighs de Jorge Antunes (n.1942) e no de modulação rítmica; Alexandre Eisenberg (n.1966),
Estudo nº1 para violão e narrador de Rodolfo Coelho autor de ambiciosos projetos formais de caráter mais
de Souza (n.1952) o seu canal de vazão. A polissemia tradicional como o Prelúdio, Coral e Fuga e a Pentalogia;
produziu ao menos uma obra de interesse e Marcus Siqueira (n.1974), dono de um refinado
permanente, Que Trata de España de Willy Corrêa ouvido para colorido instrumental, que é ilustrado pelo
de Oliveira (n.1938). Impromptu Fragile, Impromptu Móbile e Elegia e Vivo; seu
A proliferação de concertistas de atuação local concerto para violão, harpa, celeste e 2 orquestras de
e as óbvias vantagens da colaboração entre eles e câmara Hoquetus, Ecos, Espelhos ainda aguarda estréia.
compositores ainda não plenamente estabelecidos têm Há também autores de itens isolados de alta qualidade,
criado espaço para uma atividade extensa, frenética e como Mikhail Malt (n.1957) e seu Lambda 3.99 para
difícil de avaliar, mas eu apontaria os nomes de quatro violão e sons gerados por computador; Achille Picchi
compositores nascidos depois de 1960 que apresentam (b.1957), de feição algo mais convencional e
todas as condições para uma plena aceitação bartokiana, com seu Prelúdio, Valsa e Finale e 3 Momentos
no repertório internacional: Alexandre de Faria Poéticos para violão e orquestra; Harry Crowl (n.1958),
(n.1972), cuja Entoada foi agraciada com o primeiro de genuína erudição, autor de Assimetrias; e Roberto
prêmio no Concurso Internacional “Andrés Segovia” Victorio (n.1959), com seu Tetraktis e um Concerto para
de composição em 1997, e que desde então tem escrito violão, flauta e orquestra. Todos estes compositores,
obras de extrema intensidade teatral, que absorvem com a provável exceção de Faria e Eisenberg, têm
alguns elementos do minimalismo, informadas por de conviver com a nova ordem: dificuldades para
um raciocínio harmônico personalíssimo e de total publicação, distribuição e registro fonográfico destas
intransigência de expressão: o Prelúdio nº1 - Olhos de obras levam-nos à tábua de salvação das universidades
uma Lembrança”e nº2 Death of Desire, além de dois e das sociedades e festivais de música contemporânea;
concertos para violão e orquestra, o segundo dos quais, uma aceitação menos circunscrita à sua área de atuação
Mikulov , foi estreado com sucesso sem precedentes será obra do acaso e do interesse continuado dos
na República Tcheca; Artur Kampela (n.1960), cujas intérpretes.
Danças Percussivas, também premiadas num concurso Mais afortunados são aqueles que transitam na
internacional na Venezuela, incorporam elementos tênue linha entre o clássico, o jazz e o instrumental
brasileiro. No mundo, e cada vez mais no Brasil, hoje,
DISCOGRAFIA há uma verdadeira indústria de sociedades, festivais,
A OBRA PARA VIOLÃO DE AMÉRICO JACOMINO “CANHOTO”; Gilson editoras e companhias discográficas dedicadas
Antunes, violão - independente
exclusivamente ao violão “clássico”, e entenda-se por
VILLA-LOBOS - OBRA INTEGRAL PARA VIOLÃO SOLO; Paulo Pedrassoli,
clássico não uma categorização estética, mas tão
violão - UERJ clássica
ALMA BRASILEIRA; Duo Assad - Nonesuch somente de técnica instrumental. Uma parcela
CONCERTO À BRASILERA; Daniel Wolff, Orq. de Câmara da ULBRA, significativa do público para estes eventos e produtos
Tiago Flores, reg. – independente carece de uma ampla cultura musical e certamente não
GAROTO - O GÊNIO DAS CORDAS - gravações originais - EMI dispõe de elementos para uma apreciação crítica da
OBRAS DE CAMERON, AMARAL VIEIRA, CORTES, HOLLANDA CAVALCANTI E
produção contemporânea; normalmente são estudantes
LINA PIRES DE CAMPOS; Sérgio Assad, violão- Acervo Funarte
ou amadores sérios que travaram seu primeiro contato
MÚSICA NOVA BRASILEIRA; Mário da Silva Jr, violão - independente
MANHÃ DE CARNAVAL; Graham Devine, violão – Naxos
com o violão através do pop ou do jazz. O perfil deste
LPs púbico determina a aceitação internacional de
12 ESTUDOS DE FRANCISCO MIGNONE; Carlos Barbosa Lima, violão compositores-violonistas como Sérgio Assad (n.1952)
MARLOS NOBRE: Yanomami, 3 Ciclos Nordestinos, 4 momentos; duo que, além de ser um dos integrantes do renomado duo
Assad, Dagoberto Linhares, violão Assad, tem intensificado sua produção nos últimos
RAFAEL RABELLO INTERPRETA RADAMÉS GNATALLI; Rafael Rabello, violão
15 anos; obras como Aquarelle, sua Sonata, a série

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de Jobinianas, e várias peças para duo de violões como obras são, conseqüentemente, restritas às formas de
Vitória Régia, Pinote e Recife dos Corais já fazem canção e dança, o que não as impede de serem
parte do repertório regular de estudantes do mundo adotadas amplamente como material de concerto
todo. A extensa, variada e instrumentalmente eficiente mundo afora. Êxito incondicional tem obtido a obra de
obra de Paulo Porto Alegre (n.1956), Daniel Wolff Paulo Bellinati (n.1950), cujo Jongo já foi gravado pelos
(n.1967) e Maurício Orosco (n.1976) parece destinada mais destacados solistas internacionais e que já
ao mesmo êxito. produziu centenas de obras na mesma veia, mas Marco
O traço que distingue estes compositores daqueles Pereira (n.1955), Celso Machado (n.1953) e Guinga
chamados violonistas “populares” é uma evidente (n.1950) também têm uma ampla base de admiradores.
ambição formal decorrente de sua atividade como Um caso singular encontramos em Egberto
concertistas. Compositores-violonistas cuja principal Gismonti (n.1944), celebrado internacionalmente como
atuação é na área dos shows amplificados ou como um dos maiores instrumentistas do jazz
acompanhantes de cantores ou solistas de jazz tendem contemporâneo, mas cujas obras Central Guitar
a se encarar como herdeiros da tradição de Canhoto, e Variations: Hommage à Webern se alinham à produção
Garoto, Dilermando Reis ou Baden Powell, e suas experimental de concerto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Averill, 1990. in www.cafemusic.com, 1998.

FÁBIO ZANON
Concertista, mestre pela Universidade de Londres e membro da “Royal Academy of Music” de Londres.

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