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ARTIGO ORIGINAL 27

Thiago Roseiro1
Margareth Attianezi2 A puberfonia e o universo da voz
masculina
Puberphonia and the male voice universe

RESUMO
Este artigo tem por objetivo o esclarecimento do profissional de saúde que trabalha com adolescentes sobre os impactos vocais e
sociais da puberfonia ou falsete mutacional em jovens do sexo masculino. Discute os mecanismos anatômicos e fisiológicos da produ-
ção da voz com uma abordagem histórica, lembrando o período medieval, quando crianças eram castradas para atender finalidades
especificamente artísticas da época. A castração não era garantia do aparecimento de um prodigioso cantor, no entanto suscitava no
castrati dificuldades no reconhecimento do seu próprio lugar enquanto sujeito numa sociedade patriarcal. Ainda hoje, nos tempos
modernos, se observam alguns padrões do pensamento medieval sobre masculinidade. O puberfônico, quando se depara com a in-
tolerância da sociedade às diferenças, sofre com rótulos e preconceitos. Algumas vezes isso é reflexo de como a sociedade reconhece
essa diferença; outras, de como esse adolescente se reconhece na sociedade. A voz aguda acarreta, além de impactos sociais e psi-
cológicos, impactos orgânicos. O puberfônico pode apresentar uma patologia vocal de origem funcional. Portanto, é imprescindível
pensar num processo de terapia vocal para esse adolescente, que abranja exercícios para a voz e que desenvolva possibilidades desse
indivíduo descobrir uma nova voz.

UNITERMOS
Puberfonia; voz na adolescência; disfonia

ABSTRACT
This article has as objective the clarification for the health professional, who works with adolescence, about vocal and social impacts of
puberphonia or mutational falsettos on young male adults. It discusses the anatomical and the physiological mechanisms of production of
the voice taking historical approaches, looking at the medieval period, when children were castrated to meet specific artistic purposes of that
time. The castration was not a guarantee of the creation of a prodigious singer, however, it caused on the castrati difficulties in recognition of
their place in a patriarchal society. Now, in modern times, some patterns of the medieval vision of masculinity are still seen. The puberphonic,
when facing society’s intolerance to differences, suffers with labels and prejudices. Sometimes it comes from how society recognizes difference,
and sometimes, as this teenager recognizes himself in society. The acute vocal pitch produces not just social and psycological impacts but
also organic ones. The puberphonics may present a vocal pathology of functional origin. It is therefore mandatory to think of a vocal terapy
process for this teenager to extend exercises for the voice well as to develop possibilities to discover a new voice.

KEY WORDS
Puberphonia; voice in the adolescence; dysphonia

INTRODUÇÃO a emoção da fala. Nela estão características que


podem dizer muito sobre o sujeito e sua forma de
A voz como um “presente” natural exerce lidar com o mundo.
um papel fundamental na evolução das habilida- A adolescência pode ser aqui entendida como
des comunicativas humanas. Em uma sociedade um período em que esse indivíduo está se desem-
cuja comunicação oral é uma forma fundamental baraçando da identidade infantil, mas ainda não se
de relação com os demais seres, a voz cria, dentro
do mecanismo da fala, o papel de mensageiro su- 1
Fonoaudiólogo do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (NESA/UERJ).
bliminar das informações verbais. É por meio das 2
Fonoaudióloga do NESA/UERJ; mestre em Saúde Coletiva do Núcleo de Estudos de
entonações da voz (a prosódia) que se transmite Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NESC/UFRJ).

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reconhece numa identidade adulta. Soma-se a isso elevação da laringe associada à mudança do tom
o aparecimento dos caracteres sexuais secundários para cima. Dessa forma, o que caracteriza a voz
e a necessidade de identificação social para além do adolescente portador de falsete mutacional ou
do ambiente familiar. puberfonia é uma voz agudizada, estridente, metá-
Attianezi(1) aponta que ao entrar na puberda- lica, que pode ser confundida com a voz feminina.
de os caracteres sexuais secundários são definidos, Tsuji et al.(12) referem que quando uma pessoa
e a voz sofre modificações significativas em de- produz um pitch vocal (sensação auditiva do som
corrência dos novos padrões hormonais. Durante da voz) não condizente com o de seu sexo, esse fa-
a adolescência há aumento súbito no índice de tor resultará em muitos inconvenientes, principal-
crescimento e no tamanho da laringe, principal mente na esfera social, podendo causar inúmeros
órgão da fonação. As características femininas e prejuízos psicológicos e profissionais.
masculinas emergem. A muda vocal decorre desses
novos padrões hormonais, que, atuando na larin-
ge, transformam-na em uma laringe adulta, tendo IMPACTOS HISTÓRICO-SOCIAIS
como conseqüência forte impacto vocal.
Para meninos em período de muda vocal, Ao longo da história da humanidade a as-
a instabilidade tonal é bem marcada. A voz sofre simetria das relações entre homens, mulheres e
modificações devido ao crescimento estrutural da crianças é marcante e favorável ao pensamento do
laringe, ao maior abastecimento respiratório e a homem como a figura de poder. No entanto, como
questões comportamentais. Isso leva esse adoles- observou o proeminente político e revolucionário
cente a um padrão vocal de tonalidade mais grave orador francês Honoré-Gabriel Riqueti, conde de
e mais condizente com o socialmente esperado Mirabeau (1749-1791): “chegou o tempo de julgar
para um homem adulto. os homens pelo que têm aqui, sob a testa, entre
Em homens as pregas vocais não só aumen- as sobrancelhas”. A partir desse pensamento de
tam cerca de 10 mm em comprimento, pelo au- Mirabeau, é possível entender dois homens: o que
mento ântero-posterior da cartilagem tireóide, pode ser julgado pelo que lhe é evidente, e o que
como também se espessam. A laringe sofre re- pode ser julgado por algo que se originaria na men-
baixamento em relação a sua posição cervical, há te. Em ambos os casos, a voz é tangível, pois uma
uma ampliação das cavidades de ressonância e, voz forte e grave propicia um julgamento de força,
como conseqüência, a porção inferior da exten- de ordem, de segurança e de razão, exemplo da
são vocal (freqüências graves) cai cerca de uma “inaudível voz divina”, pois é pouco provável que
oitava. A freqüência vocal de adultos jovens do alguns mais religiosos, ao pensar na voz de Deus, o
sexo masculino é aproximadamente C3 (a nota façam mentalizando uma voz fina e fraca.
dó que fica localizada na tecla central do piano) Em outra óptica, a história nos remete ao
na escala musical. Essas alterações ocasionam final do século XVI, quando os madrigais eram
como características rouquidão e quebras de so- considerados formas profanas de manifestação
noridade temporárias. musical cantadas com vozes femininas. O gosto
Em alguns casos, apesar do crescimento pelo timbre feminino ganhou a sociedade euro-
normal e do desenvolvimento das características péia da época. Diante dessa circunstância, a Igreja
sexuais secundárias, o adolescente pode reter uma e a sociedade buscaram trazer para seus rituais
voz típica do período pré-muda vocal. Esse distúrbio artísticos esse timbre agudo sob uma outra forma,
vocal é de origem predominantemente funcional, pois não era permitido à mulher “ter voz”. Assim,
ou seja, relacionado com o mau uso da voz e do como recurso, se valem da castração de meninos
aparelho fonador, propiciando fonação em falsete. com idades entre 7 e 12 anos, considerado perío-
As mudanças observadas entre a fonação nor- do pré-muda vocal, o que impedia o desenvolvi-
mal e a em falsete nos levam a crer que haja alta mento dos caracteres sexuais secundários, incluin-

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do o desenvolvimento vocal para um timbre mais No entanto o uso de uma excessiva constrição
grave, mantendo-se a voz da criança. Essa prática laríngea e tensão, característico da produção da voz
gerou grandes cantores ovacionados pelo público aguda, pode levar à formação de elementos patoló-
por suas lindas e destras vozes. gicos na região glótica, como nódulos e edemas, as-
A prática da castração se deu para cumprir sim como a configurações glóticas condizentes com
finalidades especificamente artísticas da época por essas patologias, as chamadas fendas glóticas. Esse
parte da igreja e objetivando a ascensão social por quadro, no qual o mau uso da voz leva a lesão da
parte de algumas famílias. Porém a castração não estrutura glótica e sua reconfiguração, é classificado
garantia o surgimento de um cantor prodigioso, como uma disfonia orgânica funcional. (1, 9).
pois tal fenômeno não depende apenas de caracte-
rísticas biológicas(8, 11).
Os castrati que se tornaram grandes canto- IMPACTOS PSICOLÓGICOS
res têm o reconhecimento da sociedade até os
dias atuais. Como exemplo citamos o napolitano A instabilidade gerada pela percepção de não
Carlo Broschi (Farinelli), um dos últimos castrati, se encontrar mais no universo infantil, tampouco
considerado o mais bem pago da história. No en- estar inserido no universo adulto, por vezes pro-
tanto, percebe-se que as repercussões da ausência picia o prolongamento do período de muda vo-
hormonal suscitavam no indivíduo diversas ques- cal. Normalmente essas inadaptações apresentam
tões de ordem sexual, psicológica e social, visto caráter passageiro. Contudo, quando há implica-
que a voz traduzia todo o lado infantil/feminino ções na questão da identidade do sujeito, como a
ao falar e eclipsava o homem diante dos outros. infantilização e a busca de uma identidade sexual
Principalmente diante de uma sociedade de estru- e/ou tribal, é preciso refletir sobre o cerne desses
tura patriarcal. processos para se pensar posteriormente em uma
Avançando no tempo, para o adolescente metodologia terapêutica melhor.
moderno tais questões talvez não se mostrem tão Ao se referir à adolescência, a palavra iden-
diferentes, embora as implicações orgânicas sejam tidade pode ser encontrada em uma diversida-
menores para o puberfônico. Para diagnosticar de de conceitos biológicos, sociais e da unidade
uma puberfonia necessita-se descartar a possibili- do sujeito. Uma identidade se constitui a partir
dade de alterações orgânicas. No entanto os pre- dos modelos disponíveis a esse sujeito. Nesse
ceitos sociais de visão de homem e de masculinida- aspecto, podemos entender que a identificação
de ainda têm uma raiz histórica forte. Tanto que, do sujeito com uma figura adulta – e mais tarde
quando se reflete sobre as questões do gênero, as sua identificação numa figura adulta – explora o
estruturas sociais e históricas privilegiam o homem, campo da permissibilidade que a sociedade dá a
atribuindo a ele virilidade. Quando esse jovem vai esse indivíduo de elaborar suas possibilidades e,
de encontro ao imaginário coletivo, facilmente re- em contrapartida, o quanto esse sujeito se permi-
cebe rótulos por não estar em adequação ao pa- te explorar tais possibilidades(5).
drão esperado para um homem. Assumir uma nova postura vocal implica mais
do que diminuir a voz em alguns tons. Perceber-
se enquanto sujeito da sua voz talvez seja o ponto
IMPACTOS ORGÂNICOS central dessa discussão, pois o lugar social ocupado
pelo sujeito, seja por escolha, permissividade, ou por
Pinho(9) afirma: “o trato vocal é propenso a imposição social, coloca esse adolescente geralmen-
alto grau de absorção de energia, devido ao predo- te numa posição desfavorável de enfrentamento das
mínio de elementos moles e absorventes. Além dis- dificuldades da vida, ao se deparar com a intolerân-
so, não mantendo diâmetro absolutamente cons- cia da sociedade às diferenças. Desse modo, a voz,
tante, determina a formação de várias freqüências que há um tempo é reflexo de sua história, pode não
de ressonância”. estar sendo uma aliada diante dessas dificuldades.

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CONCLUSÃO se reconhece nessa nova voz, pois na “outra voz”


ele está seguro de seu conhecimento sobre si, até
O tratamento para puberfonia costuma ser mesmo sobre o papel social que construiu ao longo
rápido e bastante eficaz. A terapia vocal enfoca de sua vida. Logo, ao assumir a responsabilidade de
exercícios que visam o relaxamento corpóreo, o uma nova voz, emerge então uma parte dele mes-
rebaixamento laríngeo, a adequação respiratória mo, que poderá ser reconhecida como própria.
para a fala e o foco ressonantal. A descoberta Os inconvenientes relatados pelos pacien-
de uma nova voz de tom mais grave requer o tes sobre a reação dos outros à sua voz têm várias
desenvolvimento de novas impressões auditivas nuanças, desde confusões ao telefone até dificul-
e sinestésicas sobre seu aparelho fonador e sua dades para conseguir emprego e/ou se manter em
produção vocal. cargos de autoridade no trabalho. Pois a voz sempre
Contudo, paralelamente à terapia vocal, deve- os coloca em “cheque”, em situações que geram
se ter em mente as questões que levam esse indi- sofrimentos e dificuldades no lidar com o outro.
víduo a produzir uma voz aguda. E que essa voz já Assim como as lagartas que se transformam
faz parte de como esse indivíduo se reconhece. em borboletas, é possível durante esse processo de
Durante as sessões do processo terapêutico descoberta de uma voz mais grave o afloramento
geralmente aparece outra possibilidade vocal dis- de um novo sujeito. Comumente esse indivíduo re-
tinta dessa que o adolescente sustenta. Uma voz de conhece e assume sua autonomia diante da família
tom mais grave, a qual ele não consegue por vezes e da sociedade, bem como vê e explora suas infini-
identificar como a sua própria voz. Assim, ele não tas possibilidades na utilização de sua voz.

REFERÊNCIAS
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do sexo feminino. Rio de Janeiro: 2004. Tese de Mestrado, NESC-UFRJ.
2. Bloch P. Problemas da voz e da fala. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes. 1963; cap. XVII.
3. Budant TCM. Alterações endócrinas e suas implicações vocais no período da adolescência. Curitiba: 1999. Monografia
(especialização), CEFAC – Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica.
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In: II SNPPM (Seminário Nacional de Pesquisa em Performance Musical), 2002, Goiânia. Goiânia: Anais do II SNPPM
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10. Taquette SR, Vilhena MM, Santos UPP, Barros MMV. Relatos de experiência homossexual em adolescentes mascu-
linos. Ciência & Saúde Coletiva. 2005; 10(2): 399-407.
11. Tavares IM, Carvalho MG. Nem homens nem anjos: o papel social dos castratti na história. In: Seminário Internacional
Fazendo Gênero 7: gênero e preconceitos, 2006, Florianópolis. Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 7:
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