You are on page 1of 3

25/04/2018 A face de Janus dos direitos - Revista Cult

Sobre a relação entre política, moral e democracia em Habermas

Delamar José Volpato Dutra

Um dos teóricos que Habermas tem em vista quando trata do tema da relação entre
política, moral e democracia é Carl Schmitt, que protestou contra o liberalismo em
nome do que ele chamou de ‘político’. O elemento propriamente político residiria,
para Schmitt, na vontade, não na razão, e estaria limitado pelo Estado de direito
liberal. Tal elemento apareceria claramente, por exemplo, na conhecida formulação de
Hobbes: auctoritas, non veritas facit legem [“é a autoridade, não a verdade, que faz a
lei”].

A face de Janus: entre o normativismo moral e o funcionalismo positivista

Segundo Habermas, os direito subjetivos, que são o cavalo de batalha do direito


privado, quando têm sua normatividade moral defendida de maneira forte ou idealista,
perdem a sua significação intersubjetiva. Além disso, desencadeiam a reação do
positivismo que oferta uma interpretação funcionalista de tais direitos, privilegiando
o direito objetivo. No lugar de uma fundamentação moral dos direito subjetivos, o
positivismo apela simplesmente à soberania do povo, que pode ser entendida como
apelo democrático. Esse apelo, porém, não dá conta justamente do conteúdo moral de
tais direitos, ou seja, independente da soberania do povo.

Habermas distingue, portanto, (I) a defesa positivista da soberania do povo e (II) a


defesa liberal do direito privado como valor moral intrínseco. O problema é que a
defesa da soberania do povo como fonte da legitimidade dos direitos subjetivos
obscurece seu conteúdo moral, ao passo que a defesa moral de tais direitos obscurece
seu caráter intersubjetivo. De tal forma que tanto o apelo positivista à soberania do
povo, quanto o apelo a um conteúdo moral dos direitos subjetivos independente da
soberania do povo, não atingem o sentido intersubjetivo de liberdades de ação
estruturadas juridicamente.

Kant e Rousseau: democracia e moral

Kant é introduzido como o grande inspirador dos direitos subjetivos fundamentados


moralmente. Isso decorre da reação de Kant contra Hobbes, justamente pela
fundamentação instrumental dos direitos defendida por este último. Kant teria
mostrado a necessidade de que a moral venha a fundamentar os direitos subjetivos.
Apesar disso, Kant precisou fazer referência, em sua teoria, à vontade soberana do
povo, na medida em que precisava justificar as leis que realizam sua liberdade.

Isso o conduz a Rousseau e, no que concerne à relação entre direitos humanos e


soberania popular, Habermas declara: “em ambos [os autores], existe uma não
confessada relação de concorrência entre os direitos humanos, fundamentados
moralmente, e o princípio da soberania do povo” (Direito e democracia: entre faticidade e
validade). A lição que Habermas retira de ambos são os elementos processuais

https://revistacult.uol.com.br/home/a-face-de-janus-dos-direitos/ 2/7
25/04/2018 A face de Janus dos direitos - Revista Cult
envolvidos na legitimação dos direitos que realizam a liberdade. Contudo, Rousseau
lhe é mais simpático porque, diferentemente de Kant, que teria anteposto os direitos
morais à soberania do povo, portanto ao direito positivo e à política, Rousseau teria
dissolvido os direitos subjetivos na própria forma do exercício da soberania. Segundo
Rousseau, na interpretação que lhe dá Habermas, a vontade geral só poderia se
expressar por meio de leis gerais e abstratas, o que levaria necessariamente a evitar
tudo o que contrariasse a liberdade. Assim, o exercício da soberania do povo conforme
ao procedimento das leis gerais e abstratas garantiria também a substância do direito
humano originário formulado por Kant, a saber, a liberdade. Como veremos,
Habermas recusará em Rousseau sua demasiada adesão ao republicanismo.

Habermas e o republicanismo

Entende-se, desse modo, que Habermas queira perscrutar um caminho que consiga
unir a moral dos direitos humanos com a soberania do povo ou a política, bem como
honrar o caráter intersubjetivo dos direitos. Ou seja, busca uma formulação a partir
da liberdade compreendida dentro do conceito de reconhecimento. Evidentemente,
tudo isso prepara o caminho para ele apresentar sua teoria discursiva da democracia,
que será, então, capaz de unir moral e direito e, também, honrar o caráter
intersubjetivo da justificação dos direitos.

Desse modo, pode-se vislumbrar que Habermas está mais próximo do


republicanismo, ainda que ele diga ser um republicanismo kantiano, do que do
liberalismo, pois na teoria do discurso “se fundamenta a consideração de direitos e
deveres em relações recíprocas de reconhecimento. Todavia, o republicanismo vem ao
encontro desse conceito de direito, uma vez que valoriza tanto a integridade do
indivíduo e de suas liberdades subjetivas, como a integridade da sociedade na qual os
particulares podem reconhecer-se, ao mesmo tempo, como indivíduos e como
membros. Ele liga a legitimidade das leis ao processo democrático de sua gênese”. O
problema, para ele, é que o republicanismo sobrecarrega a cidadania em um sentido
ético, imputando-lhe um conjunto de virtudes capaz de colocá-la em sintonia com o
bem público, como formulado exemplarmente por Rousseau.

Ele propõe que seja mantido um sentido jurídico que não impute virtude ao cidadão,
assim como foi consubstanciado na própria teoria discursiva da democracia. O modo
de ler jurídico desliga o sentido do exercício dos direitos subjetivos de mandamentos
morais, abrindo aos atores espaços de arbítrio mais amplos do que os definidos
moralmente.

Segundo Habermas, a diferença crucial entre liberalismo e republicanismo consistiria


em como o papel do processo democrático é entendido. Para o liberal, o processo
democrático teria a função de programar o Estado no interesse da sociedade. Já, para o
republicano, a política seria constitutiva para a socialização. A vantagem do
republicanismo residiria na preservação do significado democrático de uma sociedade
que se organiza comunicativamente; a sua desvantagem residiria em ser idealista
demais ao fazer o processo democrático dependente de cidadãos virtuosos. O engano
do republicanismo consistiria na redução ética do discurso político.

Embora Rousseau e Kant tenham pretendido juntar ambas as perspectivas, Rousseau


teria dado mais peso ao republicanismo, ao passo que Kant mais peso ao liberalismo.

Democracia, direitos humanos, regra da maioria

Habermas defende um nexo conceitual entre democracia e direitos humanos. Isso é


importante, pois parece possível conceber a democracia sem os direitos humanos,
como, por exemplo, uma democracia plebiscitária, ou os direitos humanos sem
democracia. Nesse sentido, Habermas tem uma concepção normativa de democracia,
pois vincula os dois conceitos.

Os direitos humanos liberais não podem ser adequadamente formulados sem


discussão política, pois são indefinidos no seu significado. Por sua vez, não pode
haver democracia no sentido que lhe confere a teoria discursiva de Habermas, sem
que à sua base já esteja operando pragmaticamente um espaço de liberdade tal qual
aquele protegido pelos direitos humanos. Isso tem, inclusive, consequências sobre o
modo de se compreender a regra da maioria.

O princípio da democracia define que parte do consenso que dá legitimidade ao direito


deve resultar do acordo de todos. Não é difícil apontar a problematicidade de tornar
operacionalizável uma tal exigência, devido ao seu alto conteúdo idealizador. Para
tornar a democracia mais realista, ela passa por um duplo processo de limitação, que
preenche, ainda, certamente, as condições de um procedimento democrático, mas de
modo aproximado.

https://revistacult.uol.com.br/home/a-face-de-janus-dos-direitos/ 3/7
25/04/2018 A face de Janus dos direitos - Revista Cult
O primeiro processo de limitação é aquele pelo qual a soberania do povo, enquanto
vontade democrática, se exerce de forma representativa ou delegada; o segundo, dá-
se pela introdução da regra da maioria como forma de decisão nos órgãos colegiados,
nos parlamentos e nos pleitos em geral.

É evidente que nessa passagem do todos para uma maioria que decide como
representantes há uma perda de cognição, de normatividade. Essa perda tem que ser
compensada por medidas acautelatórias. Assim, “as decisões da maioria são limitadas
por meio de uma proteção dos direitos fundamentais das minorias; pois os cidadãos,
no exercício de sua autonomia política, não podem ir contra o sistema de direitos que
constitui esta mesma autonomia”. Uma das limitações das decisões da maioria é que
elas não podem atentar contra o próprio procedimento democrático. Por essa regra,
estaria proibida a decisão tomada por ocasião da eleição de Hitler na Alemanha, que
acabou com o regime democrático da República de Weimar. Haveria ainda, por fim,
limitações às decisões da maioria que adviriam da prevalência da validade moral sobre
a jurídica em matérias já regradas moralmente pela ética discursiva proposta pelo
próprio Habermas.

D E IXE O S E U C O M E N TÁ R IO

Insira seu nome completo

Insira seu e-mail

ENVI AR »

Abril

LEIA

(HTTPS://REVISTACULT.UOL.COM.BR/HOME/CATEGORIA/EDICOE

S/CULT-233-ABRIL-2018/)

ASSINE (HTTPS://WWW.CULTLOJA.COM.BR/CATEGORIA-

PRODUTO/REVISTA-CULT/EDICOES/ASSINATURA/)

COMPRE

(HTTPS://WWW.CULTLOJA.COM.BR/PRODUTO/CULT-233-ABRIL-

2018/)

(https://revistacult.uol.com.br/home/categoria/edicoes/cult-233-abril-
2018/)

https://revistacult.uol.com.br/home/a-face-de-janus-dos-direitos/ 4/7

You might also like