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Este livro toma a dor moral do melancólico como


uma resposta ao real em jogo na melancolia, à luz do conceito,
extraído do ensino de Jacques Lacan, sobre a foraclusão do
Nome-do-Pai. A abordagem dessa dimensão foraclusiva não
se fez sem o pressuposto ft'eudiano de qu~;os pacientes
melancólicos estão identificados narcisicamente ao objeto
perdido. Sem nenhum pudor no desmasçaramento de si e
como consequência da impossibilidade de fazer ..o luto; o
melancólico não acredita na melhoraee se apresenta··como o
pior de todos em suas rela9.ões, o que, na clinica, muitas vezes,
pode inviabilizar o tratamento. Diante disso, a questão
fundamental que o livro procura encarar diz respeito ao modo
como apsicanálise pode tratar esses sujeitos que carregam em
o
si mesmo essa dor autodestrutiva. A prática analítica aponta,
nesses casos, para a necessidade de produzir um sentido,
baseado no dito do paciente, constituindo-se em.uma espécie
de "ajuda contra" o Outro mau que vem à tona no âmago do
vazio essencial da melancolia. Ao ocupar um lugar de
anteparo contra esse Outro mau, o psicanalista visa ao que há
de mais irredutível no insuportável do sofrimento, abrindo•··
uma perspectiva de apaziguamento desse gozo desenfreado e
sem limites. É uma abertura que cria as chances para o
tratamento tocar em algum investimento libidinal que ligue o'
melancólico à vida.
A dor moral da melancolia

MARIA DE FÁTIMA FERREIRA

B
$CF:IPTUM
Direção da Coleção Estudos Clínicos
lucío!a Freitas de Macêdo

Revisão
luciana lobato

Produção
Silvano Moreira

Capa, projeto gráfico e diagramação


Fernanda Moraes e José Arnaldo Mendes I UTOPIKA EDITORIAl

Ferreira, Maria de Fátima


Ador moral da melancolia I Maria de Fátima
Ferreira.
Belo Horizonte. Scriptum livros, 2014.
221p.
!. Psicanálise.
ISBN 978·85·89044·65·3

CDU: 616.89
COD:616.8917

EDITORA SCRIPTUM
Rua Fernandes Tourinho, 99
Savassi I Belo Horizonte I MG I Brasil
55I3JI32231789
scriptum@scriptum.com.br Dedico este livro à memória de meus pais, Gercz!do e]oanct.
editora@scriptum.com.br
www.livrariascriptum.com.br
Com amor.
AGRADECIMENTOS

O presente trabalho é uma versão adaptada para o formato


de livro de minha tese de doutorado, defendida na UFRJ - Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, no IP- Instituto de Psicologia, em
fevereiro de 2011. Parte dessa pesquisa já havia sido feita durante
meu mestrado em psicanálise, pela UFMG - Universidade Federal
de Minas Gerais, na FAFICH- Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, em Belo Horizonte. O texto original prevalece, mas algu-
mas alterações foram feitas, a partir de novas elaborações suscitadas
desde a defesa da tese.
Quero agradecer à Vera Besset, que acolheu minha pes-
quisa de tese na UFRJ e apostou na sua realização, possibilitando
minha participação no Núcleo de Pesquisa "Clínica Psicanalítica"
- CLINP- IP /UFRJ, e na equipe da revista Arquivos Brasileiros de
Psico!o,gia do IP/ UFRJ. A CAPES agradeço o apoio à pesquisa de
doutorado
Agradeço à Ana Cecília Carvalho, orientadora da disserta-
ção de mestrado na UFMG, com quem tive a oportunidade de co-
nhecer e debater os impasses que giram em torno da melancolia,
tema tão caro a ela, e cujas discussões muito contribuíram para que
eu ingressasse no doutorado.
Agradeço aos colegas da EBP- Escola Brasileira de Psica-
nálise e do IPSMMG - Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de
Minas Gerais, especialmente os do núcleo de pesquisas em psicoses
- espaço de investigação e discussão - do qual participo desde sua
fundação e com o qual partilho minhas indagações clinicas sobre as
psicoses, dentre elas, a melancolia, seu tratamento e seus impasses.
Em especial, dentre os colegas da EBP e1da AMP- Asso-
ciação Mundial de Psicanálise, gostaria de agradecer a J ésus Santiago,
Elisa Alvarenga, Roberto Mazzuca, Éric Laurent, Jacques-Alain
Miller, Jean-Claude .Maleval e Nieves Soria Dafunchio, com os quais
pude não somente dialogar, mas buscar referências teóricas funda-
mentais que permitiram um debate vivo sobre a melancolia, como
se verá nas páginas que se seguem.
Agradeço à Lucíola Macêdo a leitura pontual e as sugestões
preciosas para que este livro pudesse se tornar mais leve. À Luciana
Lo bato agradeço o cuidado e o impecável trabalho na revisão.
Quero agradecer também, em especial, aos colegas do Ins-
tituto Raul Soares, hospital psiquiátrico onde pude trabalhar ao longo
de muitos anos. Foi graças à nossa prática nessa instituição que meu
grande interesse em investigar esse tema, tão presente em nosso co-
tidiano clínico, nasceu e pôde-se desenvolver. Foi aí que também
aprendi, com a clínica das psicoses e das urgências, a não recuar
diante dos casos graves.
Agradeço a Romildo do Rêgo Barros, que aceitou fazer o
prefácio deste livro.
Aos meus queridos irmãos, pelo incentivo e apoio.
Aos meus amigos, tão caros e tão especiais, não posso dei-
xar de registrar a minha enorme gratidão. São tantos os nomes, que
evocá-los aqui seria muito difícil. Cada um de vocês sabe o impor-
tante lugar que ocupa, não somente neste percurso do livro, mas na
minha vida. "O que é característico de nossa operação, tornar esse
Ao Maurício Gontijo, que, com sua presença, faz a vida gozo possível, é a mesma coisa que o que escreverei como gouço-
ficar mais bela. sentido jj'ouis-.rens]. É a mesma coisa que ouvir um sentido. É de
suturas e emendas que se trata na análise. Mas convém dizer que
devemos considerar as instâncias como realmente separadas. Ima-
ginário, simbólico e real não se confundem. Encontrar um sentido
implica saber qual é o nó, e emendá-lo bem graças a um artifício."

(Jacques Lacan)
SUMÁRIO

PREFÁCIO:
Ador da existência 13
Romildo do Rêgo Barros

CAPÍTULO 1:
Oa bile negra ao pecado: leituras psicanalíticas 17
1.1. Adoutrina dos quatro humores 19
1.2. Da doença ao tratamento 25
1.3. Todo homem excepcional é melancólico 33
1.4. Amelancolia e o pecado 37
1.5. Omelancólico: filho de Saturno 42
1.6. Aanatomia da melancolia 46

CAPÍTULO 2:
Dor moral, negação e indignidade 53
2.1. Melancolia e alienação mental 55
2.2. Da alienação à doença mental 66
2.3. Do delírio de perseguição ao delírio de negação 76
2.4. Ador moral e o delírio de indignidade 82
2.5. Apsicose maníaco-depressiva 90
2.6 ..Apsiquiatria clássica e os fenômenos da melancolia 98
CAPÍTULO 3:
Asombra do objeto recai sobre o eu 105
3.1. Ahemorragia da libido 107
3.2. As vicissitudes da libido e a melancolia 111 PREFÁCIO
3.3. Aperda no eu 116 Ador da existência
3.4. Asombra do objeto e o império do supereu 135
3.5. Oproblema da identificação narcísica 142 Romildo do Rêgo Barros
3.6. Hamlet e a perda do objeto 148

CAPÍTULO 4: A melancolia tem uma longa história. Ao longo dessa his-


Ogozo que mortifica 155 tória, produziram-se explicações diversas para sua origem e lhe foram
4.1. Amorte do sujeito na melancolia 155 atribuídas diferentes localizações e etiologias, no corpo e na alma. A
4.2. Das Ding e a melancolia 158 cada vez, tratou-se igualmente de situar a que setor do saber ela cor-
4.3. Anão extração do objeto a e sua localização 173 responde: será a melancolia uma doença, um pecado, uma posição
subjetiva?
Uma pergunta parecida pode igualmente ser feita sobre a
CAPÍTUlO 5: extensão semântica da própria palavra "melancolia" ao longo do
Otratamento psicanalítico na clínica da melancolia 183 tempo. Para citar um só exemplo, deixando um pouco de lado a eti-
5.1. Um perseguido melancólico? 185 mologia, que nos remete à bife negra, cuja composição e função são
5.2. OOutro será sempre uma ameaça 193 hoje dificilmente compreensíveis: 1 até que ponto aquilo que os gre-
5.3. Ajudar contra o Outro mau 203 gos chamavam de melancolia pode ser aproximado do que se chama
hoje em dia- sobretudo depois da invenção dos antidepressivos -
de depressão? Ou ainda, que relação existe entre o homem taciturno
REFERÊNCIAS 213 que precisa afastar-se do convívio para criar- o "homem de gênio",
segundo Aristóteles, a quem se atribuiu a autoria do "Problema
.XXX"- e aquele outro que Freud foi recolher nos limites da valori-
zação da vida e no qual reconheceu a identificação com um objeto
perdido?
Maria de Fátima Ferreira, que trata, neste seu livro, da me-
lancolia como dor moral, enxerga, nos dias de hoje, um esforço, por
parte dos médicos, em capturar o mal em algum desvão do cérebro,
retirando, assim, a melancolia do domínio da ética, em que se abrigou

13
Em 1917, Freud abordou, à sua maneira, a questão da me-
há séculos. Com isso reatam, segundo nossa autoria, com uma ten-
dência que já existia na Antiguidade: "[...] se assiste hoje, no âmbito lancolia. Para isso, não procurou suas origens e sua localização, mas
da medicina biológica, a um retorno aos antigos. Não será surpresa, simplesmente opôs a melancolia a uma outra forma de reação à
perda: o luto, cujo trabalho, por vezes longo e penoso, permite ao
pois, se nos depararmos com práticas nas quais prevalecem a locali-
sujeito a retomada de uma certa equivalência entre os objetos, que
zação da tristeza e da melancolia nas dobras do cérebro."
voltam a ser passíveis de substituição. A melancolia se revela , então'
É claro que, diferentemente do que se pensava na Antigui-
como uma espécie de recusa à perda, em que já não se distingue entre
dade, a tentativa de localização da melancolia nos nossos dias faz
tere ser o objeto perdido, restando para o sujeito se nada lhe servir
parte de um combate contra uma dimensão que, na verdade, era es-
de anteparo -uma única saída final, a de ele próprio perder-se.
tranha aos antigos: o sujeito, tal como o entende a psicanálise, e que
A tarefa do psicanalista é, nesse contexto, particularmente,
Lacan situou como algo que só poderia ter surgido com o advento
exigente. Segundo nossa autora, o que o melancólico pede ao analista
da ciência moderna. De qualquer forma, parece ser própria da me-
lancolia uma certa dispersão, uma multiplicidade, que fez dela, alter- é que testemunhe a sua corrida vertiginosa em direção à morte, que,
se podemos falar assim, completaria o seu destino de dejeto. O ana-
nadamente, objeto da medicina, da filosofia e da religião, como indica
lista é chamado a dar corpo ao Outro de um desejo mau, que com-
a autora, ao enumerar "a melancolia propriamente designada pelos
pôe desde sempre com o sujeito um enredo sinistro, cujo fechamento
médicos da Antiguidade, a influência de Saturno para os filósofos,
se dá com a destruição pela via de um esvaziamento do sentido.
e, já na Idade Média, o pecado, para os padres da Igreja."
O analista, ao impedir que esse esvaziamento vá dema-
Ou seja: se fossem reunidos em um só tempo alguns perso-
siado longe, recupera, de certo modo, uma função de caução. Se
nagens que ao longo do tempo foram considerados melancólicos: entre
não da castração, pelo menos na manutenção do necessário inter-
doentes, pecadores, gênios -e até heróis, como nos mostra a autora-
valo entre a identificação com o objeto perdido e a passagem ao
talvez não se achasse muita coisa comum entre eles. Isso empresta à
ato, algumas vezes fatal. Maria de Fátima Ferreira expressa essa
melancolia um lugar peculiar na cultura e na história, uma vez que nem
função nestes termos:
o corpo, nem a mente, nem o espírito conseguem fixá-la. Curiosa-
mente, a melancolia tem ocupado, nas artes, na medicina, na morai, nas
[...] ao ajudar o melancólico a fortalecer o imaginário, operando pela
religiôes, etc., um lugar que não é muito diverso daquele que ocupa o via do sentido [o analista} abrirá possibilidades para deixar o real mais
próprio objeto para o sujeito melancólico, para quem nenhum objeto distante, resultando em um apaziguamento do gozo desenfreado. Aí se
concreto, existente, daria conta do valor daquele que se perdeu. sustenta, acredita-se, o lugar específico do analista, na clínica da me-
Freud expressou esse paradoxo com uma fórmula defini- lancolia, como um anteparo à passagem ao ato (p.21 O).
tiva, ao afirmar que "o doente sabe a quem perdeu, mas não o que
perdeu nele". 2 Lacan, por sua vez, chamava nossa atenção para o bu-
raco que se abre para o sujeito com a perda de um objeto que tinha
para ele uma função essencial, de "caução da sua castração", isto é,
de garantia da manutenção -precária que seja- do sujeito no sim-
bólico, no qual os objetos valem significantes.

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NOTAS
1
Maria de Fátima Ferreira sugere, no entanto, uma aproximação entre a condição
de resíduo que tinha a bile negra para os antigos e a função de resto que tem 0
objeto para Laca~: "lvfas, .o ~ue causa uma grande surpresa é a teoria dos antigos CAPÍTULO 1
sobre a melancolia ser atributda a um resíduo indigesto que culminaria em um ex-
cesso de b~e negra no corpo. ~onforme foi dito acima, a bile negra, enquanto ex-
cesso e res1d~o, pod: ser .relacionada, em termos lacanianos, ao excesso de gozo,
DA BILE NEGRA AO PECADO:
quando o objeto a nao fo1 extraído do campo da realidade." LEITURAS PSICANALÍTICAS
2
FREUD, Sigmund. Duelo y melancolia. Buenos A.ires: Amorrortu, 1992. p.241.
·(Obras Co111pletas, v.14).

Desde a Antiguidade, a melancolia já era alvo de interesse


dos médicos e filósofos. Cabe esclarecer que essa investigação tem
início no século V a. C, momento em que a melancolia surge como
doença. Ao percorrer os estudos dos médicos e filósofos dessa
época, constata-se uma riqueza incomum na forma como buscavam
investigar a doença, extraindo dela os principais sintomas e propondo
um tratamento. A riqueza que se encontra, ao longo da história da
medicina e da filosofia antigas, diz respeito a uma plasticidade em
relação à noção de melancolia. Esta se caracterizou, em uma época
anterior ao advento da ciência, sob a égide de três importantes no-
ções: a melancolia propriamente designada pelos médicos da Anti-
guidade, a influência de Saturno, para os filósofos, e, já na Idade
Média, o pecado, para os padres da Igreja.
A doutrina dos quatro humores teve grande importância na
medicina da Antiguidade. Buscou-se, até o século XIX, a origem da
loucura na relação dos humores com o corpo. A importância em se
.retomar essa história se deve a uma necessidade de contextualização,
já que se assiste, hoje, no âmbito da medicina biológica, a um retorno
aos antigos. Não será surpresa, pois, se nos depararmos com práticas
nas quais prevalecem a localização da tristeza e da melancolia nas do-
bras do cérebro. Um dos pontos altos que ilustram essa retomada é a
depressão, vista pela psiquiatria atual como um continuum sindrômico,
sensivelmente tratado por fármacos. Tal perspectiva, herdada dos an-

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tigos, ao retirar da cena o sujeito, faz prevalecer o fOrpo. Com isso,
no ano 427 a. C. e falecido em 347 a. C. Para Platão, a melancolia
verifica-se que o cientificismo biológico, apoiado na cultura das ava-
significava, inicialmente, "senão a loucura verdadeira, pelo menos
liações, visa a naturalizar o ser falante, fazendo deste um objeto ava-
uma má saúde moral, que obscurecia e enfraquecia a vontade e a
liável pelo computador. Com efeito, ao erradicar o sujeito da clinica,
razão; ela constituia, com efeito, um sintoma do que e~e descreve em
empobrece-se a sua fala e retoma-se a um certo obscurantismo.
Pedro como a pior alma: aquela do tirano" (PLATAO apud KI.I-
A melancolia foi tema de investigação do especialista em
BANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.47). A leitura de Pedro
fllosofia antiga e medieval Raymond Klibansky e dos historiadores
leva os autores de Sattmze et ia méiancoiie a buscarem em A República,
de arte Erwin Panofsky e Fritz Saxl, que se debruçaram, durante mui-
tos anos, de forma profunda, sobre o assunto. de Platão, outras referências sobre a melancolia, como esta: "um
homem torna-se um tirano quando, em virtude de sua natureza, ou
Assim, Klibansky, Panofsky e Saxl (1964/1989), 3 em sua
de sua maneira de viver, ou das duas, ele está embriagado, sibarítico 5
obra Saturne et ia méiancoiie,' afirmam que a melancolia surge tanto
e melancólico" (PLATÃO apudKLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL,
para a fllosofia quanto para a medicina, na Antiguidade, por volta do
1964/1989, p.47). Ao encontrar essa concepção de melancolia como
século IV a. C., quando passa a ser referida a duas grandes influências
um sintoma da tirania, não se pode deixar de associá-la ao que Freud
culturais: a noção de loucura nas grandes tragédias e a noção de furor
(1923/1976) esclarece: a tirania, na melancolia, é exercida pelo su-
na filosofia platônica. Contudo, desde o século V a. C., já existiam
pereu em relação ao eu. Isso se justifica pelo fato de que, "~a melan-
sintomas que, naquela época, eram atribuídos a uma substância ne-
colia, o objeto a que a ira do supereu se aphca fm mclwdo no eu
fasta, a bile negra, "o obscurecimento da consciência, o 'abatimento,
mediante identificação" (FREUD, 1923/1976, v.19, p.68). Na me-
o medo e as alucinações [... ].Todos esses sintomas seriam conside-
lancolia, o eu não manifesta nenhum protesto -apresenta-se como
rados como efeitos dessa substância nefasta: cujo nome 'negro' evo-
culpável e submete-se aos castigos que lhe são infligidos.
caria tudo que é funesto e noturno" (KLIBANSKY; PANOFSKY;
SAXL, 1964/1989, p.45-46). Naquela época, a bile negra era geral-
O que está influenciando agora o supereu é, por assim dizer, um: c~U­
mente tão reconhecida como a causa da loucura, que, a partir do fim tura pura de pulsão de morte, e, de fato, ela, com bastante frequenc1a,
do século V a. C., começa-se a utilizar as expressões estar com um humor obtém êxito em impulsionar o eu à morte, se aquele não afasta o seu
negro e estar acometzdo de cólera como sinônimos de estar louco. Nessa tirano a tempo (FREUD, 1923/1976, v.19, p.69-70).
época, começa-se a discernir os traços de melancolia patológica nas
grandes figuras de heróis malditos que uma divindade ultrajada tinha
castigado com a loucura, por exemplo, Ajax, Heracles e Belerofonte. 1.1. A doutrina dos quatro humores
No século IV a. C., o que se observa é que a potência da fascinação
dessas grandes figuras foi suficientemente intensa para recobrir a Klibansky, Panofsky e Saxl (1964/1989) informam que o
noção de melancolia. Por isso, a melancolia torna-se, então, uma doença termo melancolia vem de melan) que significa "negro", em grego, e
de heróis (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989). de chale, que significa "bile". Além disso, na teoria dos quatro humo-
A passagem da doença de heróis para uma autêntica loucura res , a melancolia estaria associada a uma parte precisa do corpo, o
será operada por Platão, discípulo de Sócrates, nascido em Atenas, baço, (1ue secretaria a "bile negra", secreção que, como a fleuma, a
bile amarela e o sangue, formariam os "quatro humores".
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Assim, na literatura fisiológica dos médilsos antigos, esses a um aumento acima da média de uma dessas qualidades: a bile negra
quatro humores corresponderiam aos elementos cósmicos e às divi- (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989).,
sões do tempo. Acreditava-se que, em torno desses humores, girava Contudo, segundo Klibansky, Panofsky e Saxl (1964/1989),
toda a existência e o comportamento da humanidade, e, além disso, é preciso destacar que o mérito de ter combinado todas essas noções
segundo a maneira como eles fossem combinados, determinariam o em um único sistema se deve a Hipócrates. Ele estabeleceu uma cor-
caráter do individuo. Um autor anônimo escreveu, em torno de 1130: respondência entre os elementos, as qualidades e os humores. De
seu talento surgiu um tratado, Da natureza do homem, obra de funda-
Existem, com efeito, quatro humores no homem, que imitam os diver- mental importância, datada de 400 a. C. Suas referências permane-
sos elementos; eles aumentam em estações variadas, reinam sobre di-
ceram essenciais por mais de dois mil anos. Encontra-se aí a
·versas idades. O sangue imita o ar, aumenta na primavera, reina na
infância. A bile (amarela) imita o fogo, aumenta no vedo, reina na ado- elaboração de um esquema que retrata a doutrina dos humores em
lescência. A melancolia (ou bile negra) imita a terra, aumenta no outono, um quadro que contém os seguintes elementos:
reina na maturidade. A fleuma imita a água, aumenta no inverno, reina
na velhice. Quando eles não são abundantes e nem em defasagem com Humores Estação Qualidades Idade
relação à justa medida, o homem está em pleno vigor (ANÓNIMO Sangue Primavera Quente e úmido Infância
apud KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.32). Bile amarela Verão Quente e seco Adolescência
Bile negra Outono Frio e seco Maturidade
É importante salientar que a doutrina dos quatro humores Fleuma Inverno Frio e úmido Velhice
dominou a orientação da fisiologia e da psicologia até quase os nos-
sos dias ..Além disso, a melancolia estaria aí sustentada e até justifi-
O que torna mais completa a doutrina humoral é que, a par-
cando o fato tão comum de algumas pessoas se sentirem mal em
tir desse esquema, os humores estariam relacionados às quatro esta-
determinadas estações do ano. Constata-se, pois, que isso não é sem
relação com a antiga doutrina dos humores. ções e às quatro idades do homem. Assim, surgia a ideia de que a
predominância de mn dos quatro humores deveria causar os sinto-
Mas, para que a teoria humoral ganhasse definitivamente o
mas de doença, por causa de uma ruptura do equilíbrio. O que se
seu assento, foi preciso aguardar as elaborações de Empédocles, mé-
evidencia, desde então, é que a predominância de um humor no
dico e filósofo, ainda no século V a. C. Em seu esforco o filósofo
' ' homem seria considerada como um tipo de disposição a uma doença.
elaborou a doutrina dos quatro elementos: o fogo, o ar, a água e a
Tal etapa da doutrina dos quatro humores foi rapidamente levada à
terra, e deu um grande passo ao tentar explicar o homem a partir
dos quatro temperamentos. Sobre esse assunto, os seguidores de Hi-
desses elementos. A essa teoria dos quatro elementos os sucessores
de Empédocles acrescentaram a noção de que cada um desses ele- pócrates escreveram que
mentos possuiria uma qualidade particular. Ao fogo se ligaria o calor,
um verão ou um outono muito seco convêm aos fleumáticos, mas
ao ar se jlltltaria o frio, à água, a umidade, e à terra, a secura. Ao ela- fazem muito mal aos coléricos, que correm o risco de um ressecamento
borarem essa concepção, estabeleceram que a doença seria, portanto, total, pois seus olhos tornam-se secos, eles ficam febris e alguns entram
o resultado de um excesso ou de um defeito em uma dessas particu- em um estado de melancolia doentia (LI1TRE apud KLIBANSKY;
laridades. O humor melancólico estaria relacionado, a partir de então, PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.41-42).

20 21
Não causa surpresa constatar, assim, qtte a teoria dos hu- Ora, a ideia de doença, ao ser definida conceitualmente
mores~ relacionada às quatro estações do ano, prevaleceu até o século como um resíduo, um sedimento daquilo que o corpo não pôde ab-
XIX. Conforme se verá mais adiante,Jean-Etienne Dominique Es- sorver e que, uma vez permanecendo em excesso, geraria doenças,
qmrol (1772-1840), em 1838, não indicava apenas medicamentos não nos passou desapercebida. Essa atenção dos sábios antigos à
para combater a melancolia. Esse psiquiatra tratou de um paciente noção de resto, de resíduo, do que não pode ser reabsorvido, ganha
que, de acordo com as estações do ano, apresentava mudanças na uma nova significação no ensino de Lacan. A psicanálise é muito
sua condtção de saúde. Por isso, Esquirol, baseando-se na teoria dos sensível à questão do resto, do resíduo, de alguma coisa do humano
médicos antigos, prescreveu-lhe também um ambiente saudável em que não é redutível, eliminável, absorvivel. A ideia antiga de um resto
termos de clima atmosférico. que, de algum modo, "sobe à cabeça" e provoca os sintomas, adqture,
A partir de então, os ·termos H colérico", "fleumático" e assim, uma significação particular. Efetivamente, sabe-se, com Lacan,
"melancólico" são utilizados para designar tanto os estados patoló- que nem tudo é reabsorvido pelo simbólico; um resto insiste, retoma.
gtcos quant~ as competências constitucionais. O excesso de sangue Dessa forma, pode-se reler a sabedoria dos antigos sob uma nova
no corpo nao se constttmna como uma doença. Por outro lado, a luz: a particularidade do homem, seu temperamento, sua maneira de
bile negra, que seria a responsável pelo "humor melancólico" seria ser não residem em uma combinação harmoniosa de elementos
considerada como uma degeneração insana da bile amarela ~u do constitutivos, mas, antes, naquilo que faz defeito à harmonia, que ex-
sangue. A bile negra iria caracterizar um humor mórbido e nesse cede, transborda, resta, e não se reduz. Essa questão interessa parti-
sentido, a melancolia, dentre os humores, seria o que portaria ~m pa- cularmente a esta investigação, pois é impossível não relacionar tal
radoxo, ou sep, que poderia designar ora uma verdadeira doença, ora resíduo com a função do objeto a, quando este não é extraído do
apenas uma predisposição ou temperamento. campo da realidade, na psicose melancólica. Lacan, em seu texto "De
. As doenças seriam provocadas pelas partes indigestas dos uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses", ao
altmentos, que, ao se introduzirem no organismo do homem, pro- se referir à constituição do sujeito, indica que "o sujeito do desejo
duzmam os "humores residuais". Dentre estes, a bile negra seria um suporta aqui o campo da realidade, e este só se sustenta pela extração
dos resíduos, uma espécie de sedimento daquilo que não foi digerido do objeto a, que, no entanto, lhe fornece seu enquadre" (LACAN,
e se mantena veementemente no corpo. Os humores residuais se ori- 1957/1998, p.560). Pode-se, então, relacionar a bile negra dos sábios
ginam, assim, a partir das substâncias indigestas. Eles, então "subiam antigos, como excesso, resíduo, com o que, na teoria lacaniana das
até a cabeça e provocavam doenças" (KLIBANSKY; PM-JOFSKY; psicoses, seria esse objeto a não extraído do campo do Outro.
SAXL, 1964/1989, p.37-38). Para os sábios da Antiguidade, a saúde absoluta é um ideal
É nessa via que se encontra, no "Problema XXX, I", atri- do qual se pode aproximar, mas jamais atingir. Na realidade, para
buido a Aristóteles, uma descrição minuciosa da bile negra como eles, a combinação perfeita e harmoniosa dos quatro humores não
~endo um '~resíduo", um sedimento daquilo que não é cozido, pois existe. Sempre haverá um resto, um excesso, um resíduo. E é a partir
e como coztmento que se considera a digestão: "pois 0 depósito da- desse resíduo que os sintomas se anunciam. No entanto, para a psi-
qutlo que não é c~zido se n:antém veementemente no corpo; é 0 canálise, o resto é de outra ordem, e é preciso saber qual é a posição
caso da btle negra (ARISTOTELES apud PIGEAUD, 1998, p.17). do sujeito diante desse resíduo, disso que não pode ser aproveitado

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harmoniosamente, e de que modo esse resto ope~a e funciona para Foi a filosofia de Aristóteles, já bem antes do século I ou II
o sujeito. de nossa era, que, pela primeira vez, favoreceu a noção puramente mé-
Na clínica psicanalítica da melancolia, percebe-se o modo dica da melancolia e o conceito platônico de furor. Essa união, segundo
como o sujeito se identifica a esse resto. Ao introjetar6 o objeto, acaba I<libansky, Panofsky e S<L'Cl (1964/1989), encontra sua expressão em
por incorporá-lo, expressão que Karl Abraham (1924 / 1970) utiliza ao uma tese paradoxal para os gregos, ou seja, a de que não somente os
se referir ao processo da melancolia. Com isso, o sujeito acaba por se heróis trágicos, mas todos os homens verdadeiramente fora do comum
posicionar, ele próprio, como um dejeto. Mas o que causa uma grande seriam melancólicos..Mais adiante, ver-se-á, no "Problema XXX, I",
surpresa é a teoria dos antigos sobre a melancolia ser atribuída a um de Aristóteles, a relação entre o homem de gênio e a melancolia.
resíduo indigesto que culminaria em um excesso de bile negra no Ao longo dessa investigação, como se pode facilmente
corpo. Conforme foi dito anteriormente, a bile negra, como excesso e constatar, encontram-se inúmeras 1nanifestações sinton1áticas rela-
resíduo, pode ser relacionada, em termos lacanianos, ao excesso de cionadas à melancolia, tantas que se faz razoável uma confrontação
gozo, quando o objeto a não foi extraído do campo da realidade. com a situação atual em relação à questão. Vê-se que o fato de a me-
Nos autores de Saturne et la mé!anco!ie (1964/1989), encon- lancolia ser empregada para descrever uma diversidade de situações
tra-se uma distinção da melancolia em relação aos outros humores: que escapam do campo psicopatológico remonta a essa época. Cons-
tata-se, hoje, que as pesquisas neurocientíficas, em que a psiquiatria
Contrariamente aos outros humores, a doença nomeada 'melancolia' biológica busca encontrar as causas da tristeza no mapeamento ce-
se caracterizava principalmente por sintomas de alteração do espírito, rebral, advêm dessa herança deixada pelos antigos, para os quais o
indo do medo, da misantropia e do abatimento profundo à loucura sob
suas formas mais terríveis. Mais tarde, a melancolia pôde ser definida
corpo seria a sede das doenças mentais. Contudo, tais teorias não
tanto como uma doença física comportando repercussões mentais, levam em conta o sujeito. O corpo, para a psicanálise, não é o orga-
quanto como um ~'permixtio rationil' (transtorno da inteligência) de ori- nismo biológico, mas é um corpo comprometido pela ação do signi-
gem física. Está aí uma particularidade que deve ter facilitado conside- ficante, atravessado pela cadeia significante.
ravelmente o processo de diferenciação entre simples temperamento
melancólico e melancolia doentia. Efetivamente, a ambiguidade dos
sintomas psicológicos deixava fluida a fronteira entre doença e nor~
malidade e impunha o reconhecimento de 1.m1a disposição que, mesmo 1.2. Da doença ao tratamento
de natureza melancólica, não necessitava que o sujeito fosse descrito
como um homem ao qual a doença afetasse de maneira real e continua Dentre os quatro humores, a bile negra, que é a base da me-
(KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.44).
lancolia, foi a que mais interessou aos autores dos tratados médicos. Em
grego, como se viu, a bile negra é nomeada de melcmcholia e, em latim,
A melancolia, vista sob essa particularidade, seria colocada
atrabilia. Ela se caracterizaria pela produção de sintomas que alteram o
no domínio da psicologia e dos estudos dos traços fisionômicos. Isso
espírito, cujos principais sinais seriam a ansiedade e o abatimento.
ofereceria condições para uma transformação da doutrina dos quatro
Jacl<:íe Pigeaud (2008), um dos especialistas em medicina
humores em uma teoria do caráter e dos tipos mentais. Muitos au-
antiga, tradutor de vários autores gregos, refere-se à "dor de existir"
tores da época começaram a conceber o melancólico reportando-se
como sendo um fator preponderante na melancolia já nessa época.
a descrições físicas aliadas a fatores psicológicos.
24 25
Confere um tratamento especial a essa expressão 1e, em suas formu- Mas, ao se estudar a melancolia, nos antigos, constata-se
lações, se refere ao "desespero" do homem, indicando que estes se uma grande labiliclacle entre a melancolia e outras doenç~s. Alguns
desesperam de ser, ou seja, de viver, porque sabem que irão morrer. elos exemplos dessa labilidade seriam o furor, a mama, a hiclrofob1a,
Para o autor, tanto a literatura da Antiguidade grega quanto a da An- que, em vários autores antigos, poderiam facilmente evoluir para a
tiguidade romana ensinam que "a filosofia ou a simples arte de viver melancolia. Isso sugere que a grande dificuldade em se operar e dug-
nascem, de início, dessa ferida" (PIGEAUD, 2008, p.68). nosticar as categorias psicopatológicas vem de longa data, desde a
Para a psicanálise, a "dor de existir" é inerente ao sujeito. Antiguidade. Assim, para a psicanálise, é preciso estabelecer distin-
Lacan, em "Kant com Sade" (1963/1993), irá debruçar-se sobre a ções entre as categorias, bem como as devidas estruturas clínicas às
questão do sádico, que obtém prazer ao ver a dor no Outro. Esse quais elas pertencem. O que se considera, na psicanálise, é o sujeito
tema é importante, uma vez que, para a psicanálise, o que impede em relação aos fenômenos e sintomas que perturbam seu corpo. Para
uma pessoa de cair em desespero, por causa da "dor de existir", é o se operar na clínica psicanalítica, eleve-se levar em conta o real e o
desejo. O desejo opera aí como um divisor de águas, impedindo o modo pelo qual cada sujeito lida com seu sintoma.
sujeito de cair na "pura dor de existir". Tal tema, o de uma pura dor Um aforismo de Hipócrates situa o temor e a tristeza no
de existir, será designado por Colette Soler (1988-1989a) como um centro ela melancolia: "se temor e tristeza duram muito tempo, esse
dos termos que caracterizará a psicose melancólica e a distinguirá da estado é melancólico" (HIPÓCRATES apud PIGEAUD, 2006,
tristeza, própria ela "dor ele existir", que está presente em todo sujeito p.123-124). Ao mesmo tempo, Hipócrates descreve a hipocondria,
neurótico. Lacan (1963/1993), no texto "Kant com Sade", desdo- em Nialadies, II, 72, contendo os mesmos sintomas ela melancolia:
brou a expressão "dor moral", presente na psiquiatria clássica, em
"dor ele existir", como um elos fenômenos elementares ela melanco- Preocupação, doença difícil; o doente parece ter nas vísceras uma es-
lia. Nesse sentido, a melancolia apresenta um sujeito que, por não se pécie de espinho que o espeta; a ansiedade o atormenta; ele foge da luz
posicionar em relação ao desejo, anteparo da "dor de existir", se en- e dos homens, ele ama as trevas, ele é tomado pelo temor [... ] machu-
contra na maís "pura dor ele existir". Se, para a psicose melancólica, a cam-no quando o tocam; ele tem medo; ele tem visões assustadoras,
sonhos horríveis, e, às vezes, ele vê os mortos [...] quanto ao tratamento
ausência do desejo é o que destempera e clesregula as relações elo su-
para este doente, damos para beber o ellibore e purga~os a cabeça, e,
jeito, isso aponta para a importância elo lugar do analista no tratamento. depois, damos um medicamento que faz defecar (HIPOCRATES apud
Um aspecto relevante que Pigeaucl (2006), autor de La ma- PIGEAUD, 2008, p.14).
ladie de l'âme, aborda é o transtorno ela imaginação. Tal referência foi
designada por um médico antigo, Rufus ele Éfeso: Destacou-se, também, ele um texto pseudogalênico, a ocor-
rência ele uma lesão do pensamento na melancolia:
Os sinais da melancolia são temor, hesitação, pensamento errôneo a
respeito de um único objeto [... ] uma meditação continua e a tristeza A melancolia é uma doença que lesa o pensamento, com mal-estar e
fazem aparecer a melancolia. [... J aqueles que têm o espírito sutil e que aversão pelas coisas mais caras, sem febre. Em algtms desses doentes,
são muito perspicazes entram facilmente em melancolia, pelo fato de acrescenta-se uma bile abundante e negra que ataca tanto o esôfago,
que são rápidos em seus movimentos e têm grande capacidade de pre- que eles vomitam, ao mesmo tempo, seus pensamentos são também
ver e imaginar (RUFUS DE ÉFESO apudPIGEAUD, 2006, p.132). atingidos (GALENO apudPIGEAUD, 2006, p.126).

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Pode-se observar que, entre os antigos, ~ melancolia e seus prevaleciam as prescrições tais como; o doente deve permanecer em
sintomas apresentavam uma variedade de causas, apontando para vá- I ares bem iluminados; abster-se de ahmentos pesados; moderar o
rios fenômenos. Suas características variavam, e, a cada época da An- ug mo de vinho·' fazer exercícios físicos; combater a insônia; e evi-
consu
tiguidade, atribuía-se à melancolia uma determinada causa: o furor
taras ideias apavorantes. A terapêutica mais importante que esse mé-
dos heróis malditos, a doença negra, o temperamento influenciando
dico recomendava era a música.
o caráter, a influência do astro Saturno, o pecado de Adão, a tristeza, No entanto, já naquela época, alguns médicos, tais como
o medo, uma lesão da inteligência e transtorno da imaginação, o ex- Tito discípulo de Asclepíades, preconizavam, para alguns casos
cesso de bile negra, dentre outros.
mai; violentos, o uso da "terapia de choque", como a flagelação
O tratamento proposto consistia na ingestão do ellébore, e a privação de alimentos e bebidas. Ao contrário de Tito, Archi-
uma planta que fazia o doente vomitar e evacuar. Tal intervenção géne da Apameia não prescrevia remédios psicológicos. Esse mé-
possibilitaria retirar o excesso de bile negra do corpo. As sangrias dico destacou alguns sintomas da melancoha e por 1sso vale
também eram indicadas com o mesmo propósito: a extração do ex-
descrevê-los:
cesso de bile negra do corpo. Reitera-se a constatação de que, ao in-
tervirem com tais procedimentos, os antigos tratavam a melancolia Pele escurecida, inchaço, odor fétido, a gulodice associada a uma ma-
a partir do conhecimento que possuíam e com ênfase no organismo greza constante, a depressão, a misantropia, as tendências suicidas [...],
biológico, em que a dimensão subjetiva não era considerada deter- os medos, as visões e as passagens bruscas da hostilidade, da mesqui-
minante. nharia e avareza à sociabilidade e à generosidade. Se a melancolia sim-
ples se transformasse em loucura manifesta, os sintomas eram:
Por volta do ano 91 a. C., o médico grego Asclepíades da
alucinações de todos os gêneros, o medo dos demônios, as ilusões [...],
Bitinia transmite seus preceitos em Roma, onde apresenta à comu- o êxtase religioso (ARETEU ap~rdi<lJBANSKY; PANOFSKY; SAXL,
nidade uma divisão sistematizada da doença mental em três catego- 1964/1989, p.97-98).
rias. E, graças aos escritos de Aulus Cornelius Celse, elas foram
relatadas pelos autores de S aturne et la mélancolie: Já por volta do século II, Sorano critica severamente as dou-
trinas terapêuticas de seus predecessores. Ele indicava mais os remé-
1) O furor (phrenesis), que surgia brutalmente e era acompanhado de dios psicológicos, pois separava a loucura da melancolia. A loucura,
febre; 2) a tristeza que a bile negra parece provocar, muito persistente, segundo ele, tinha sua sede na cabeça, ao passo que a melancolia teria
sem febre; e 3) uma forma completamente crônica, que resultava seja
sua sede no corpo, na bile negra. Mas se observa que mesmo os re-
de uma desordem da imaginação, tanto triste quanto alegre, seja de
uma desordem da inteligência (AULUS CORNELIUS CELSE ap~rd médios psicológicos não implicavam nenhuma relação entre o mé-
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.95). dico e o doente.
Conforme Klibansky, Panofsky e Saxl (1964/1989), por
Desses três tipos de doença mental, não somente o se- volta do século II, Galeno contesta os preceitos que os médicos an-
gundo, mas também o terceiro tipo seria classificado como "melan- teriores desenvolveram. Ele somente irá concordar com Rufus de
colia". Quanto aos tratamentos, Aulus Celse propunha mais os de Éfeso, cuja doutrina dominará os ensinamentos das escolas de me-
ordem psicológica, em detrimento do uso de medicamentos, em que dicina até a entrada da época atual. Pode-se dizer que, no que diz res-
peito ao conceito médico de melancolia, serão as ideias de Rufus de
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No irúcio, foi uma ideia de doença que se atribuiu, primeiramente, a
Éfeso que prevalecerão ao longo de mais de 1.500 anos. Seu tratado
um aumento excessivo ou a uma alteração não natural do bmtJor me!att-
foi retomado por Galeno, e, a partir dos escritos galeanos, puderam- có!ico, depois,. a uma queimação da bile amarela. Concomitante com esta
se conhecer suas formulações. O que Rufus apresentou foi impor- idcia de uma melancolia puramente doentia, entretanto, nasce outra
tante, pois ele diferenciava a bile negra, resultante do resfriamento ideia, a de uma·constituição melancólica, que, por sua vez, interpretar-
do sangue, de uma melancolia queimada, muito mais nociva, que seria se-á de duas formas: seja como a condição, de qualquer forma excep-
proveniente da "combustão" da bile amarela. Foi, então, através dos cional, dos grandes homens, tal como o "Problema X){,.'C, I" a descreveu,
seja como um dos tipos de disposição, que constittúa a doutrina dos Qua-
escritos de Galeno, em sua obra intitulada De !ocis affectis, que os au- tro Temperamentos, sistematizados depois de Galeno (KLIBANSKY;
tores de Saturne et la mélancolie (1964/1989) chegaram aos preceitos PANOFSKY; SA.XL, 1964/1989, p.123).
de Rufus.
Assim, os médicos compreenderam a bile negra natural como Como se pode observar, na citação anterior, o tipo melancó-
um dos quatro humores presentes de maneira constante no corpo e lico se deprecia gradualmente e, no decorrer das épocas seguintes, es-
a descreveram como uma espécie de resíduo do sangue, espesso, frio tará sempre identificado a uma má disposição, permanecendo
e, como tal, manchado pelas impurezas e por dejetos, susceptível de condicionado pela ideia original de doença. A ideia do "Problema
originar a doença, mesmo se ela não apresentasse verdadeira nocivi- XXX, I" ' isto é, a de o melancólico ser dotado de gênio, conforme se
dade em pec1uena quantidade. Por outro lado, sob a denominação verá mais adiante, será praticamente esquecida até o século XII.
melancolia queimada, eles compreenderam a bile negra doente que não se Mesmo após o século XJI, na Idade Média, a tese mencionada teve
classificaria entre os quatro humores, mas seria proveniente da com- pouca influência sobre a concepção geral.
bustão da bile amarela. A partir de então, ela não somente seria sem- Do ponto de vista de uma classificação psicológica, a melan-
pre a geradora da doença, mesmo quando ela estivesse presente em colia foi ligada não somente aos humores nocivos, mas às faculdades
proporções menores, mas devia sua existência a um processo de cor- danificadas do espírito, e isso ocorreu desde o século IV a. C., conforme
rupção. A partir dessas bases, foram fundamentados os pilares da escrevem os autores de Saturne et la mélancolie (1964/1989). Foi no século
teoria médica da melancolia. IV a. C. que o médico Posidônio classificou a melancolia de acordo
Conforme se observa no quadro apresentado na página 21, com os transtornos da imaginação, da inteligência e da memória, cujas
cada um dos humores deveria predominar no curso de uma das qua- lesões danificariam respectivamente o cérebro anterior, o médio cérebro
tro estações e regeria uma das quatro idades do homem. Aos humo- e o cérebro posterior. Note-se, mais uma vez, a prevalência das causas
res atribui-se, dessa época em diante, um papel na diversidade dos da melancolia tendo como origem o corpo. Mas essa classificação só
caracteres. Assim, os comportamentos amável, risonho ou depri- ganhou força a partir dos séculos Xll e Xlii, quando se torna maior a
mido, lamurioso ou irritável, violento e colérico ou tímido e indeciso necessidade de uma desctição sistemática das doenças da alma. Nesse
teriam como causa os quatro humores. contexto, a classificação da melancolia estaria associada, cada vez mais,
Acompanha-se a evolução da noção de melancolia nos an- aos transtornos da memória, da imaginação ou da inteligência, con-
tigos em três direções: forme descrevem os autores de Saturne et la mélancolie, baseados na obra
de Giovanni de Concorregio, Prática nova (GIOVANNI DE CONCOR-
REGIO apudKLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989):

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Naqueles que pensavam que não tinham cabeça, 0\1 que viam homens quando Pinel inaugura a era da psiquiatria, cujo paradigma será o da
pretos, o transtorno era da imaginação, ao passo que a inteligência e a
alienação mentaL No entanto, verificar-se-á que o tratamento pro-
memória permaneciam intactas. Os que durante uma epidemia de peste
esqueciam o nome de seus pais conservavam, no todo, um pensamento posto pela psiquiatria ainda guardaria relação com o tratamento dos
e uma imaginação corretas. Enfim, o doente que jogava os vasos ao médicos antigos, como a sangria e os vegetais que provocam vômitos
chão, ou uma criança pela janela, não era acometido nem em sua ima- e os purgativos, além da prescrição de climas mais amenos. O que se
ginação, nem em sua memória, mas em sua capacidade de reflexão e constata é o fato de que, mesmo sendo outro o paradigma da psi-
discernimento, "porque ele não sabia que os vasos eram frágeis e a
quiatria, o corpo ainda seria o objeto das intervenções dos psiquia-
criança vulnerável, e porque ele considerava que era ·justo e útil jogar
tais objetos pela janela, como se eles pudessem ser nocivos na casa" tras. A dimensão subjetiva ainda permanece à parte, e o tratamento
(KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.157-158). proposto seria o moral.

Posto isso, verifica-se que é a partir do século XIII que se


afinam as diferenças entre as causas ''substanciais" e as causas "aci- 1.3. To do homem excepcional é melancólico
dentais", e entre os sintomas "gerais" e os sintomas "particulares"
da melancolia, o que implicará também o estabelecimento de dife- O "Problema XXX, I", atribuído a Aristóteles (ou a um de
rentes medidas terapêuticas. seus discípulos), explica a teoria da melancolia introduzindo novos
Segundo Klibansky, Panofsky e Saxl (1964/1989), a partir desdobramentos. Embora Aristóteles não abandone a teoria da bile
dos séculos XIV e XV, os estudiosos se deram por tarefa traduzir os negra como causa da melancolia, a partir desse filósofo, as desordens
preceitos da doutrina medieval dos temperamentos em uma lingua- da timia influenciando as alterações do humor ganham novo desta-
gem mais acessíveL Com isso, observa-se certa vulgarização da me- que. O caráter do homem excepcional, que se destacava em diversos
lancolia, cujo conceito logo se espalha através de manuscritos, campos do saber, é atribuído à melancolia.
almanaques e panfletos vendidos de casa em casa por preços módi- Foi Aristóteles que, pela primeira vez, favoreceu a união
cos. O conteúdo dos panfletos, que retratava o melancólico de forma entre a noção puramente médica da melancolia e o conceito platõ-
negativa, não só influenciou leitores comuns, mas acabou influen- nico de furor. Essa união encontra sua expressão no que, para os
ciando historiadores e teólogos. O que prevaleceu, pois, até o século gregos, constituiria uma tese paradoxaL Essa tese defende que não
XVIII, foi uma depreciação do melancólico pelos escritos fJ!osóficos, somente os heróis trágicos como Ajax, Heracles e Belerofonte, mas
que descreviam um indivíduo incontestavelmente inferior. todos os homens verdadeiramente fora do comum, que se realizaram
Na evolução descritiva da melancolia, com o surgimento no domínio das artes ou na poesia, na filosofia ou na política, seriam
da psiquiatria, a partir de Philippe Pinel (médico francês, 1745-1826), melancólicos. Isso é explicado no célebre "Problema XXX, I", "Da
a concepção dos antigos segundo a qual a melancolia seria uma reflexão, do intelecto e da sabedoria", escrito por Aristóteles por
doença ligada aos humores não teve prosseguimento. Pinel, desig- volta do século I ou II. Trata-se de um documento que concerne à
nado "pai da psiquiatria", em suas investigações no campo da alie- relação da melancolia com o gênio. A grande proposição que nele se
nação mental, acabou por eliminar a visceralidade como causa da apresenta é: "Por que será que todos os homens que foram excep-
loucura. Assim, a teoria dos humores dos antigos restará inoperante cionais em filosofia, em política, em poesia ou nas artes seriam ma-

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nifestamente melancólicos, e alguns ao ponto de 15erem tomados por fora do comum, ou seja, um gênio, a bile negra deve ~onser_var uma
crises causadas pela bile negra?" (ARJSTÓTELES apttdPIGEAUD,
temperatura média, nem muito quente, nem mmto fna (senao a me-
1998, p.59).
lancolia seria muito profunda).
Para o filósofo, a bile negra é um humor que está presente
A partir desse princípio, pôde-se constituir a tese segundo
em todos os homens. No entanto, a doença física melancólica e as
a ual todos os homens excepcionais seriam melancólicos. Nessa
características temperamentais podem ou não se manifestar. Estas,
conq d1·cão
, , uma predominância excessiva da bile negra deixa os ho-
para serem manifestas, dependem diretamente de uma alteração tem-
mens profundamente melancólicos, mas, em pouca proporção, faz
porária e qualitativa do humor melancólico. Tal alteração pode ser
com que alo-uns se distingam da massa.
causada ora por distúrbios digestivos, ora por um calor ou frio des-
o" que merece ser destacado na apresentação de Pigeaud
medido. Além disso, a causa poderia ser relativa a uma preponderância
(1998) sobre o "Problema XXX, I" é. que,_ nele, Ar~stóteles sistema-
constitucional e quantitativa do humor melancólico sobre os outros.
tiza as variações do thymos para atnbm-las as vanaçoes da b!le negra:
Aristóteles compara o efeito da bile negra na alma com o
efeito do vinho. Para ele, ambos pressionam o espírito, mergulhando A maneira de se comportar, o nível de energia, ou simplesmente a ca-
a vítima em estados espirituais que seriam normalmente estranhos. pacidade de viver dependem dessa bile negra. Porque,. a<~ final d~ disti-
Nesse sentido, da mesma forma que o vinho, de acordo com sua mitl, ou seja, da indisposição de ser, ao termo da altmuz, ou seja, da
temperatura e quantidade absorvida, a bile negra produziria variados ausência de toda a vontade de ser, há o desespero, a mo,rte c o enfor-
camento. Tal é a saída possível, senão frequente (ARISTOTELES apncl
efeitos emotivos, que deixam os homens alegres ou tristes, loquazes
PIGEAUD, 1998, p.30).
ou taciturnos, delirantes ou apáticos, desencadeando os mais diversos
estados mentais.
Mais que isso, a instabilidade da bile negra passa fisiologica-
A diferença essencial entre os efeitos do vinho e os da bile mente pelo quente e pelo frio: "as virtudes do corpo, de uma parte, como
negra é que os da última não são temporários. Eles tornam-se carac-
a saúde e o bom estado, residem [...] na mistura e no bom acordo do
terísticas permanentes em todos os casos em que a bile negra for na-
quente e do frio, seja na sua r~lação recíproca interna, seja relativamente
turalmente predominante e não simplesmente nos casos em que for
ao meio ambiente" (ARlSTOTELES apudPIGEAUD, 1998, p.20-21).
esfriada ou aquecida pela influência da doença. ':Assim, o vinho torna
Nesse sentido, o medo é explicado por Aristóteles como
um homem anormal, mas somente por um período breve, ao passo
uma paixão que resfria o indivíduo. A maior covardia, a maior cora-
que a natureza (ou seja, nesse caso, a disposição melancólica) torna-
gem, o talento, a eficácia e até mesmo a loucura, tudo depende da Cir-
o anormal para toda a vida" (ARISTÓTELES apud KLIBANSKY;
cunstância e do estado da bile negra. Por exemplo, se o anúncio de
PANOFSKY; S&'\:L, 1964/1989, p.77).
um perigo (cujo efeito é o resfriamento) encontra uma bile negra em
Para o filósofo, a melancolia é a natureza aérea da bile
estado frio, o indivíduo se comporta como um covarde. Assim, a b!le
negra. As veias dilatadas (de ar e não de sangue) do melancólico são
negra terá aberto o caminho para a covardia (frio + frio = covardia).
a prova. Esse pneuma constituiria uma força capaz de colocar o orga-
Daí a seguinte formulação de Aristóteles: "Quando, com efe1to, a
nismo em estado de tensão e o pressionaria em busca de uma des-
mistura é muito fria para a ocasião, ela engendra distimias sem razão
carga de ar, especialmente no ato sexual. Para gerar um melancólico
[...]" (ARJSTÓTELES apttd PIGEAUD, 1998, p.23).

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Nesse contexto é que o melancólico se pode tornar rei, 1.4. A melancolia e o pecado
poeta ou filósofo. l\Ias a melancolia também pode fazer o indivíduo
se tornar colérico, piedoso, violento, falante ou silencioso. E isso Conforme escreve Cinzia Corvi (2010), o que se pode ve-
pode ser provocado tanto pelo efeito do vinho quanto pelo da bile rificar, na Idade Média, na visão de alguns teólogos, é que eles rela-
negra. cionaram a origem do humor melancólico ao pecado. No discurso
O que Aristóteles descreveu a respeito das consequências dos padres da Igreja, que se fundamenta sobre os princípios da teo-
da distimia e da atimia, que, em um grau elevado, podem levar o me- logia medieval, a causa principal da melancolia diz respeito ao pecado
lancólico ao desespero e ao desejo de abandonar a vida por enfor- de Adão contra Deus. Nessa mesma época, Hildegarde von Bingen
camento, interessa bastante a esta investigação. Esse tema foi (1 098-1179), uma beneditina alemã, defende a ideia de que a melan-
investigado por Freud, em suas elaborações sobre a pulsão de colia estaria relacionada ao fato de .Adão ter violado a lei. Em decor-
morte, em 1923. Segundo Freud, na melancolia, impera a pulsão rência disso, a melancolia pesaria sobre todas as raças, como o castigo
de morte, levando o sujeito às tentativas de autoextermínio. Ai, o de Adão. Essa tese concebe a bile negra (a melancolia) como conse-
medo da morte não está presente para barrá-la. Nesse aspecto, quência do pecado original, falta primordial do homem. Ao estabe-
pode-se articular o medo da castração ao medo da morte. Na me- lecer tal ligação, ela consideraria a melancolia patológica e o próprio
lancolia, o que se presentifica, então, é o impulso autodestrutivo, temperamento melancólico, mas também tudo isso que desviaria o
que, ao imperar, pode levar o sujeito à morte. O que prevalece é a homem da condição perfeita e harmoniosa do paraíso. Segundo
preponderância do desejo de morte sobre o medo da morte. E isso Corvi (2010), do ponto de vista clínico, Hildegarde associa aos deta-
leva diretamente à investigação de Lacan, pois se verá que essa não lhes realistas uma descrição muito precisa da melancolia. Em seu
presença do medo da morte, ou seja, ausência de castração, tem re- livro As causas e os remédios (BINGEN apttd CORVI, 2010, p.SO), ela
lação com o que ele nomeou de não inscrição do "N orne-do-Pai" descreve os diferentes sintomas da. melancolia e os interpreta à luz
para as psicoses. Se, para Aristóteles, a bile negra engendra covardia da teologia. Nessa abordagem, a bile se transforma em amarga, e a
e medo, diferentemente disso, Lacan, em "Televisão" (1973/2003), melancolia, em sombra de impiedade. Sua descrição oferece uma
irá retomar o tema da covardia, sob o prisma moral, indicando que imagem da maneira como esse humor é formado no corpo de Adão
ela pode culminar na psicose melancólica: "bastando que essa co- em consequência do pecado (indiretamente através da sugestão e
vardia, por ser rechaço [rejet] do inconsciente, chegue à psicose - é opinião do Diabo). Nesse sentido, se o homem tivesse permanecido
o retorno no real daquilo que foi rechaçado na linguagem; é a ex- no paraíso, ele teria sido protegido de todos os h~tmores nocivos,
citação maníaca pela qual esse retorno se faz mortal" (LACAN, mas os acontecimentos se desenrolaram de outra maneira e os ho-
1973/2003, p.524-525). mens se tornaram "tristes", "tímidos'' e "inconstantes" de espírito.
Ela escreve a esse propósito:

Quando Adão que conhecia o bem fez o mal comendo a maçã, a me-
lancolia jorrou nele sob o efeito desta contradição: pois esta não se en-
contra no homem, estando ele dormindo ou acordado, sem intervenção
do diabo: efetivamente, a tristeza e o desespero vêm da melancolia que

36 37
passou para Adão em virtude de seu Pecado. Pois\ desde que ele trans- causa principal da melancolia já havia sido definida no século XII
grediu o preceito divino, a melancolia se fixou em seu sangue, assim
por Hildegarde von Bingen. Se Freud (1929-1930/1974) disse, em
como a claridade desaparece quando se apaga a lamparina e que só resta
um cordão fumegante e fétido (BINGEN apud CORVI, 2010, p.80). "0 mal-estar na ciVilização", que a pulsão de morte é inerente ao
homem e que é responsável pela agressividade e destruição, para
Assim, se, na visão de Hildegarde, a melancolia é uma con- Burton, o maior inimigo do homem é o homem, que, possuído pelo
sequência da falha e, portanto, uma espécie de punição contra o pe- Diabo, sempre procura se prejudicar. Chama a atenção o fato de que
cado, para Lacan, a melancolia, por estar rechaçada da linguagem, é Burton tenha rompido com a ideia dos médicos antigos baseada na
uma psicose, o que faz com que o melancólico experimente fenô- teoria dos humores como causa da melancolia. Ao trazer como causa
menos mortíferos em seu mais alto grau. É curioso observar, na evo- o pecado, ele dá ênfase a uma outra causalidade, na qual se pode lo-
lução do delírio melancólico, a presença das ideias de indignidade e calizar a implicação do sujeito em sua culpa por ter-se afastado do
de danação, relacionadas a Deus. Nesse aspecto, a visão dos teólogos bem supremo, que, para Burton, é Deus.
da Idade Média trouxe uma contribuição importante para esta inves- Para Lacan, o mortal na psicose matúaca e melancólica diz
tigação, já que situou a origem da concepção da melancolia como respeito a um dizer que não é orientado pelo desejo, em que o que
um pecado contra Deus, como um pecado mortaL Assim, pela via se presentifica é uma covardia moral que, em seu mais alto grau,
da definição que os teólogos da Idade Média deram à melancolia, leva à morte. Nesse sentido, o pecado original estaria para Burton
ver-se-á, na descrição da psiquiatria clássica, o quanto o tema dope- (1621 /2000) como a causa principal da melancolia, ao passo que,
cado contra Deus povoa o delirio do melancólico. Na clinica das psi- para Freud, seria a pura cultura da pulsão de morte o que leva o su-
coses, é muito frequente a presença de Deus nos delirios, seja no pereu a infligir golpes contra o eu, quando este se identifica ao ob-
de!irio megalomaníaco da paranoia, em que o sujeito se acredita jeto perdido. Freud nos diz que "uma pessoa sente-se culpada (os
Deus, seja na melancolia, em que o sujeito, pela culpa sem dialetiza- devotos diriam 'pecadora') quando fez algo que sabe ser mau"
ção e pelo delirio de indignidade, acredita estar condenado por Deus, (FREUD, 1929-1930/1974, v.21, p.147). Mas, mesmo que a pessoa
podendo até mesmo se matar. não tenha realizado um ato 'mau', apenas tenha identificado a in-
Ora, para os representantes da teologia, na Idade Média, tal tenção de fazê-lo, ela pode-se sentir culpada. Para Freud, 'mau' é
pecado, em seu mais alto grau, atinge a alma do pecador e chega a tudo aquilo que, por medo de perder o amor do Outro, nos faz sen-
fervilhar, o que culmina no desespero e na condenação à morte. Para tir ameaçados.
Lacan (1973/2003), esse mesmo fenômeno do desespero e da con- Para Burton (1621 /2000), a causa principal do desespero
denação à morte é traduzido como covardia moral, que, na psicose do melancólico é a enormidade de suas culpas e o insuportável fardo
melancólica, pode ser mortífera. Isso nos leva a investigar a melan- de seus pecados, que originam uma grande cólera e o descontenta-
co.lia a partir da hipótese de que o analista, na clin.ica da melancolia, mento de Deus. Tudo isso é percebido com tanta profundidade que
funciona como um anteparo ao ato suicida. os melancólicos se acreditam reprovados, abandonados por Deus,
Burton (1621/2000) aponta como causa principal da me- desde já condenados. Todos os que se enquadram nesse tipo são ins-
lancolia o pecado de Adão, que comeu do fruto proibido. Con- trumentos do Demônio, "escravos do pecado, e suas culpas são tão
forme se viu anteriormente, a atribuição do pecado de Adão como grandes que eles não podem ser perdoados" (BURTON, 1621/2000,

38 39
p.1.805). A faculdade imaginativa também desempenha, na obra de Sobre os remédios para curar a melancolia, Burton
Burton, um papel preponderante, originando vários distúrbios, den- (1621 /2000) enfatiza os cuidados necessários com a alimentação e
tre eles, visões extravagantes e revelaçôes absurdas. os banhos. Além disso, prescreve o exercício corporal, os ares e a
Retomar-se-á aqui o que Lacan afirma em "Televisão": músíca, que ele designa como o remédio soberano contra o deses-
pero e a melancolia. Recomenda também a ingestão de vinhos. Um
Um pecado, o que significa uma covarclia moral, que só é situado, em dos procedimentos indicados é a purgação. Esta pode ser feita "por
última instância, a partir do pensamento, isto é, do dever de bem dizer, cima", ao vomitar, ou "por baixo", ao evacuar. Outro tipo de purga-
ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura. E o que se segue -
bastando que essa covardia, por ser rechaço h;iet] do inconsciente, che-
ção indicada é a sangria, que se faz em alguma parte do corpo, para
gue à psicose - é o retorno no real daquilo que foi rechaçado da lin~ "extrair o humor bile negra".
guagem; é a excitação maníaca pela qual esse retorno se faz mortal Em sua obra, Burton descreve as sangrias:
(Li\CAN, 1973/2003, p.525-526).
Primeiramente, abrir uma veia do braço, com uma faca afiada, da cabeça
Se, para o pastor Burton (1621 /2000), o pecado engendra ou do joelho, ou de qualquer outra parte do corpo, de acordo com as
a culpa, o desespero e a condenação, para Lacan, a covardia moral necessidades. Em seguida as ventosas com ou sem incisão. Elas fazem
efeito mais rápido e podem ser aplicadas em diversas partes do corpo,
da psicose melancólica tem sua causa no fato de que o inconsciente
a fim de extirpar os humores, as dores e as flatulêndas. As sanguessugas
foi rechaçado. O que retoma como efeito dessa rejeição é o real, ma- são muito consideradas para cuidar da melancolia, particularmente,
nifestando-se em todos os sintomas mortíferos aí presentes. sobre as hemorroidas (BURTON, 1621/2000, p.1.123).
A descrição feita por Burton, em 1621, sobre o desespero,
pode ser relacionada àquela elaborada, em 1882, por Jules Cotard, Quanto às purgações, tanto para vômitos quanto para eva-
psiquiatra francês. Ele descreveu a melancolia com ideias de dana- cuação, recomendava-se fazê-las com plantas e ervas medicinais da
ção e de condenação à morte (COTARD; CAMUSET; SÉGLAS, época. Uma das mais utilizadas, como se viu, era o ellébore, usada para
1882/1997). Chama a atenção o fato de Cotard ter descrito esse tipo purgar a bile negra. Eis, mais uma vez, o tratamento da melancolia
grave de patologia melancólica totalmente dentro do paradigma da inteiramente centrado nos órgãos do corpo.
medicina psiquiátrica, mas guardando uma estreita relação com a des- Além dos tipos de melancolia descritos anteriormente, en-
crição de Robert Burton (1621/2000) sobre o pecado, a culpa e a contra-se, na obra de Burton (1621/2000), dois outros tipos: a me-
condenação. Pode-se constatar que o tema do delírio melancólico lancolia amorosa e a melancolia religiosa. A primeira é descrita e
com ideias de danação já existia. Contudo, do ponto de vista teoló- . definida por sintomas de ciúmes, como uma suspeita sentida pelo
gico, era visto como um pecado contra Deus. Ainda sobre a culpa amante para com o ser amado, acima de tudo, pelo medo de que ele
que o melancólico carrega, ver-se-á que, do ponto de vista da psica- ou ela seja amante de outro. A segunda, pelo excesso de devoção,
nálise, esta é definida não em relação ao pecado, em que o sujeito pelo receio do castigo eterno e do julgamento final. Aqueles que se
mantém o Outro, Deus, como lugar do Bem supremo. A culpa me- encontram nessa condição só pensam em rezar e jejuar.
lancólica se origina na relação entre o eu e o supereu, diante da perda Reitera-se que, desde a Antiguidade, as sangrias já eram um
do objeto, quando o melancólico se identifica ao objeto a. procedimento médico, sendo, portanto, indicadas sob esse domínio.

40 41
l

O procedimento de "extrair o humor bile negra" nós leva a relacio- tempo, à doença e à maneira de tratá-la. A via do "conhecimento"
nar, novamente, a bile negra (que, em excesso, engendraria a melan- seria sua forma de redenção. A melancolia vem, então, de Saturno,
colia) à não extração do objeto a na psicose. Na psicose melancólica, mas ela é, na realidade, um "dom único e divino", já que Saturno é
a não extração do objeto a vai-se manifestar através de vários fenô- o mais nobre e potente dos planetas. É a partir de Ficin que a apro-
menos que o melancólico apresenta. Serão vistos, a seguir, quais são ximação entre a bile negra da melancolia e a influência de Saturno
especificamente tais fenômenos. Ao se observar a tentativa dos mé- se faz de maneira mais precisa. Ele considerava Saturno como um
dicos, na Antiguidade, de extrair o excesso de bile negra do corpo astro essencialmente maléfico, e a melancolia, como um destino fun-
do paciente melancólico, não se pode deixar de indagar sobre o lugar damentalmente funesto. Para Ficin, a bile negra:
do psicanalista diante da não extração do objeto a no caso da psicose
melancólica. Por ora, arrisca-se uma proposição: os antigos atribuíam [...] em si, semelhante ao centro do mundo, pressiona a alma a buscar
a causa da melancolia ao excesso de bile negra, e esse excesso cor- o centro das coisas singrllares. E a bile negra a eclifica até a compreensão
responderia, em termos psicanalíticos, ao objeto a lacaniano, quando das coisas mais superiores, assim como ela está em plena concordànda
com Saturno, o mais alto dos planetas (FICIN apud KLIBANSKY;
este não foi extraído do campo do Outro, originando, para a melan-
PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.412).
colia, vários fenômenos mortíferos.
Até aqui se viu a melancolia relacionada à bile negra (aos
Nessa via, se o artista ou o sábio aceitam o dom de Saturno,
quatro humores), pelos médicos da Antiguidade, ao pecado, pelos eles também devem aceitar as suas consequências. Ser melancólico é
teólogos da Igreja, na Idade Média, aos homens excepcionais, por
ser saturniano. Por um lado, é um privilégio, uma honra, que faz do
Aristóteles. Outra relação importante destaca-se com Marcile Ficin homem um ser extraordinário; mas, por outro lado, é a pior das mal-
(1433-1499), ligando, agora, a melancolia ao astro Saturno.
dições, que condena à solidão e à tristeza. Donde se segue que os
pensadores que se dão à especulação e à contemplação mais intensa
sofrem, em um grau extremo, de melancolia:
1.5. Omelancólico: filho de Saturno
Mas entre os cultos, estes sobretudo oprimidos pela bile negra, que
Conforme lilibansky, Panofsky e Saxl (1964 / 1989), Marcile se aplicam com zelo ao estudo da Hlosofia, desprendem seu pensa-
Ficin foi o primeiro a associar o que Aristóteles havia nomeado por mento do corpo e das coisas corporais, para uni-lo às coisas incorpo-
"melancolia dos homens excepcionais" ao "furor divino" de Platão. rais: pois por um lado a maior dificuldade de sua empreitada exige
uma maior tensão do pensamento, e por outro lado, este se desvincula
Ele mesmo se considerava filho de Saturno, ou seja, melancólico, e
tanto do corpo que se liga a uma verdade incorporai. Dai acreditar
sustentava a ideia de que todos os homens excepcionais são melan- que o corpo dos filósofos está somente meio vivo, por assim dizer,
cólicos. Seu pensamento terá uma considerável influência durante e torna-se melancólico (FICIN apud KLIBANSKY; PANOFSKY;
todo o Renascimento, momento em que se concebe a inquietude SAXL, 1964/1989, p.412-413).
como o fertilizante do gênio intelectual. Ficin estabelece que os sin-
tomas e a terapia da melancolia são da mesma natureza e provêm da Assim, todos os estudiosos estariam condenados à melan-
mesma influência de Saturno. O astro daria nascimento, ao mesmo colia e submetidos a Saturno, senão por seu horóscopo, pelo menos
por sua atividade. Claramente, em Ficin, somente a "melancolia na-
42 43
Se Saturno predomina em um mapa astral e é a causa de um tempera-
rural" pode constituir um perigo para o trabalhador intelectual. A
mento melancólico, a pessoa em questão será de grande auste ..idade
"melancolia adusta", ou queimada em função do excesso de calor
' . me~
morosa, grqssei.ra, terá pele escurecida, e se afundari em profund. as
não poderia originar senão as formas conhecidas de fraqueza de es- ditações, será excessivamente preocupada, miserável e descontente,
pírito e de demência. Mas, mesmo a "melancolia natural", pela sua triste e temerosa, sempre solitária e silenciosa (BURTON, 1621/2000,
instabilidade, pode ser muito perigosa. p.662-663).
A partir de suas construções, segundo Klibansky, Pa-
nofsky e Saxl (1964/1989), Ficin propôs um conjunto de métodos O humor melancólico, por isso, está submetido ao planeta
da terapêutica tradicional, ou seja: desde os métodos das prescri- Saturno. Note-se que Saturno era visto como o astro detentor de um
ções dietéticas às práticas supersticiosas da medicina astral e da "ia- poder demoníaco, que causava, no homem, antíteses. Nesse sentido,
trotnatemática". Esta última é uma ao mesmo tempo em que investia as almas com a preguiça e a apatia,
proporcionava ao homem a força da inteligência e da contemplação,
[...] doutrina iniciada na Antiguidade remota c que se manteve crn voga "como a melancolia, Saturno ameaçava aqueles que estavam sob o
na Europa até cerca do século XVII, a qual pretendia explicar os fenô- seu poder, por mais ilustres que fossem, com os perigos da depressão
menos fisiológicos e patológicos pelas influências astrológicas calcula- ou mesmo da loucura" (FICIN apud I<:LIBANSKY; PANOFSKY;
das por meios matemáticos (HOUAISS, 2001, p.l.559).
SAXL, 1964/1989, p.242).
Na mitologia, Saturno foi um filho que, com a ajuda da sua
Os remédios que Ficin propõe são de três ordens. Inicial-
mãe, castrou seu pai, Urano. Ao se tornar pai, o próprio Saturno foi
mente, a dietética, cuja regra é se abster de todo excesso, observar a
castrado por seu filho Júpiter, o único de seus filhos que foi salvo da
divisão do dia, escolher um lugar para morar e uma alimentação apro-
devoração paterna, graças a um capricho de sua mãe.
priados, praticar caminhadas, assegurar uma boa digestão, praticar as
Mas o que diz a psicanálise sobre o lugar de Saturno na me-
massagens da cabeça e do corpo e, sobretudo, a música. Em seguida,
lancolia e sobre esse personagem que foi tão presente na iconografia
vêm os medicamentos, principalmente à base de todas as espécies
e no imaginário dos pensadores durante centenas de anos?
de plantas, às quais se podem acrescentar as inalações aromáticas. Fi-
A edição brasileira de O Seminário IV: a r ela cão de obJ. e to
nalmente, a magia astral dos talismãs, que invocam a influência dos > '

de Lacan, apresenta, na capa, a reprodução do quadro "Saturno


astros e garantem a maior concentração de seus efeitos (KLIBANSKY;
devorando seu filho", de Francisco Goya. Da mesma forma, em
PANOFSKY; SAXL, 1964/1989, p.421-422).
O Seminário X: a angústia, Lacan se refere à devoração de Saturno.
Robert Burton (1621 /2000), aproximadamente dois séculos
.Nesse seminário, ele comenta uma observação clínica relatada por
após os escritos de Ficin, também se refere às influências de Saturno.
Piera Aulagnier, a propósito da passagem ao ato de um paciente:
Ele relaciona os humores sangue, fleuma, bile amarela e melancolia
"este senhor, de fato, apresenta-se na delegacia para dizer que nada
-ou bile negra- ao planeta Saturno. Para a questão sobre o motivo
na lei o impede de comer seu bebê que acaba de morrer" (LACAN,
pelo qual Saturno seria o planeta dos melancólicos encontra-se uma
1963/2005, p.206).
resposta. O temperamento de um indivíduo, alegre ou triste, depende
Tal paciente provoca a angústia no Outro pela reivíndicação
de um fenômeno cósmico, do aspecto do céu, na esfera do zodíaco,
de seu direito de devorar seu filho. Direito esse que Lacan nomeia
por ocasião do seu nascimento.

44 45
de "hilophclgie". Segundo Lacan, "ele se precipitou a lançar na angústia Hipócrates, este foi levado a tratar do sábio Demócrito, que "era
os guardiães da ordem, através da reivindicação por escrito do direito um velho abatido, muito melancólico por natureza e que, no final de
paterno ao que chamarei de hilofagia, para deixar clara a ideia re- sua vida, quase nãó apreciava a companhia e se abandonava muíto à
presentada pela imagem da devoração de Saturno" (LACAN, solidão" (BURTON, 1621/2000, p.17). Ele observa o quanto a me-
1963/2005, p.206). lancolia origina vários sintomas e confessa:
O pai devorador é um pai fora da lei, próximo ao pai freu-
diano da horda primitiva de "Totem e tabu". O pai que tem todos Eu empreendi este trabalho, [... ] para apaziguar meu espírito escre-
os direitos sobre sua prole, o único não submetido à lei da castração. vendo, porque eu tinha um coração cheio e a cabeça pesada, uma es-
Não foi por acaso que Lacan escolheu o quadro de "Saturno devo- pécie de apostema na cabeça, do qual eu desejava me livrar, e
empreender este trabalho me parecia ser a melhor maneira de aliviá-lo
rando seu filho" como capa de seu seminário que trata de "A relação [...]. Eu fiquei muito incomodado por essa doença, e talvez eu devesse
de objeto". A imagem de Saturno presentifica, para a psicanálise, não dizer pela rninha companheira lvlelancolia [... ] e é por esta razão que
apenas o fantasma de devoração que opera sobre os variados regis- [...] eu precisava [...] bater um prego com outro, aliviar uma dor com
tros para o sujeito, mas, sobretudo, este que opera no sujeito psicó- outra, uma ociosidade por outra, extrair um antídoto da víbora, trans-
tico, tal como o caso mencionado por Lacan. Pode-se citar aí o formar em antídoto a causa primária de minha doença (BURTON,
1621/2000, p.25-26).
psicótico melancólico, que se sente arruinado, destruido, que não
vale nada, o qual permanece no lugar que, suprimido pelo Outro,
Burton (1621/2000), de forma magistral, esclarece como
equivale a ser objeto do gozo do Outro. Isso é o que se presentifica
apreendeu a complexidade e o polimorfismo da melancolia. Ele
nos mais variados fenômenos da psicose melancólica.
afirma ter um "apostema na cabeça", que é, em sentido figurado,
Como já mencionado no item que trata da relação entre a
"um abatimento moral, um grande sofrimento, um desgosto"
melancolia e o pecado, o pastor inglês Robert Burton (1621 /2000)
(HOUAISS, 2001, p.259). Nomeava-se "Demócrito Júnior", pois
escreveu uma obra riquíssima sobre a melancolia. Retoma-se a ele
queria recuperar, através de sua obra, os escritos de Demócrito
aquí para dizer que, em 1621, além de abordar a relação íntima da
sobre a melancolia, que se perderam com o tempo. Ele relata que
melancolia com o pecado contra Deus, o pastor aborda também a
Hipócrates foi chamado para tratar de Demócrito, pois este passava
influência de Saturno. Descreve a melancolia de uma forma mais
noites e noites em um local afastado da cidade, dissecando os ani-
completa, em sua Anatomia da melancolia, e faz dela uma doença no
mais mortos, para conhecer a anatomia e encontrar, no corpo destes,
sentido moderno do termo.
o órgão que pudesse responder pela melancolia. Ele queria encon-
.trar o órgão da "atra-bílis", ou seja, da bile negra ou melancolia. A
partir daí, pretendia encontrar a origem dessa doença e a maneira
1.6. A anatomia da melancolia
pela qual é engendrada no corpo humano. Sua grande visada seria
a cura desse mal, e, através de seus escritos e suas observações,
A obra de Burton, Anatomia da melancolia, de 1621, é um
pretendia ensinar aos outros como preveni-la. O pseudônimo de
dos mais vivos exemplos do quanto os pesquisadores se debruça-
aDemócrlto Júnior" é uma referência ao riso de Demócrito, riso
ram sobre o tema da melancolia. Ele relata que, na época do médico
paradoxal, expressão de uma tristeza exaltada até o riso. Ao escolher

46 47

it
esse nome, Burton não esconde sua tendência pessbal à melancolia, uma mesma doença ofereceria uma diversidade de sintomas. Vê-se,
estado que pode ser entendido pelos outros como loucura, como novamente, o quanto a melancolia já era vista como uma patologia
foi o caso de Demócrito, o sábio tomado por louco pelos seus con- que comportaria uma plasticidade, desde a Antiguidade, e até mesmo
cidadãos. na Renascença. Ora, isso vai ao encontro desta investigação, pois,
Burton (1621/2000), ao escrever, se colocou no lugar de diante de tal profusão de sintomas e causas, pretende-se levantar
Demócrito, com o qual se identifica. Em seus escritos, ele se mostra quais seriam os fenômenos específicos da melancolia, bem como o
fiel à tradição antiga, em particular ao aforismo VI, 23, de Hipócrates, tratamento que a psicanálise pode oferecer a eles.
que faz da melancolia uma mistura de "medo e tristeza". Em relação à diversidade dos sintomas melancólicos que
Jackie Pigeaud (2008), em seu livro sobre a melancolia, co- se constata na obra de Burton (1621 /2000), dois estão sempre pre-
menta que Robert Burton retoma a obra democritiana a partir das sentes e foram destacados pelo autor: o medo e a dor. Suas pertur-
cartas de Hipócrates a Damagete, já que todo o tratado que Demó- bações provocam transtornos que vão desde o desespero, passando
crito havia escrito foi perdido. É nesse contexto que, ao retomar tal pelas doenças cruéis, até a morte. Ao desespero Burton dedica uma
obra, Burton pretende terminá-la: "ao me substituir por Demócrito, parte de sua obra e indica que tal transtorno é o pior deles, pois con-
eu pretendo fazer reviver Demócrito, perseguir e acabar seu tratado" tém o medo, o terror, a cólera, a tristeza, o furor, o desgosto e a dor.
(BURTON, 1621/2000, p.23). Burton escreve sobre a melancolia, a E ele indaga:
fim de evitar a melancolia que afirma carregar. Para ele, escrever seria
o modo de tratar o peso que suportava, já que sentia seu coração pe- [... ] quem pode fazer calar a voz do desespero? Aquilo que é especí-
fico a qualquer tipo de melancolia se encontra nesta, ela é mais que a
sado e a sua cabeça infectada. Ele indica para o tratamento da me-
melancolia em seu mais alto grau; é uma febre que queima a alma,
lancolia tanto o médico quanto o teólogo: o teólogo para atacar os assim produzida por esse estado miserável: medo, tristeza, desespero
vícios e as paixões da alma, a cólera, a luxúria, o desespero, o orgulho (BURTON, 1621/2000, p.l.802).
e a arrogância. Quanto ao médico, seria para utilizar os remédios
próprios às doenças corporais. Um século antes do surgimento da obra de Burton, em
Em sua obra, Burton (1621 /2000) assinala que toda a teoria 1586, o médico inglês Thimoty Bright escreveu um tratado sobre a
humoral que dominou a medicina da Antiguidade até o século XVII melancolia. Ele se dedicou a contemplar dois aspectos da doença: o
repousa sobre a física de Aristóteles, segundo a qual quatro elemen- científico e o religioso. Seu tratado apresenta as ideias de Hipócrates
tos comporiam o universo sublunar: o fogo, o ar, a água e a terra. e de Galeno sobre a teoria dos quatro humores e suas vicissitudes.
Ainda esclarece que foi a partir desses elementos que Hipócrates e · Dentre elas, vale destacar aquela que descreve o modo como o ex-
Galeno fizeram corresponder, por analogia, os quatro humores: a cesso de humor melancólico chega ao cérebro e suas consequências:
bile negra ou melancolia, o sangue, a bile amarela e a fleuma. A esses
humores Burton também relaciona a influência do planeta Saturno, [...) O humor melancólico subindo ao cérebro submete a imaginação
como já foi visto. ao terror por falsos objetos [...] O humor polui ao mesmo tempo a
substância e os espíritos do cérebro lhe fazendo inventar sem motivo
O que merece ser ressaltado, na obra de Burton, é a exis-
exterior ficções monstruosas que amedrontam o pensamento: o julga-
tência, em toda melancolia, de uma "semelhança diferente", ou seja, mento os recebe como lhe são apresentadas pelo instrumento desre~

48 49
gulado, e os transmite ao coração, que não possui t;J.em julgamento nem Embora os sintomas da melancolia apresentados por Bright
discernimento, e que, dando crédito às falsas relações do cérebro, faz,
(1586 I 1996) não se diferenciem dos listados pelos outros autores,
contra qualquer razão, explodir uma paixão desmedida (BRIGHT,
1586/1996, p.l25). os remédios que ele indica trazem novidades. Por exemplo, eles não
são exclusivamente vegetais, como é o caso do mel e de outros pro-
O que chama a atenção aqui é o modo como Bright dutos de origem animal, como o marflm de dente de elefante, as pé-
(158611996) se refere às impressões falsas vindas do exterior. Vê-se rolas, o âmbar e até mesmo o chifre de licórnio. Além desses, ele
o quanto ele, ainda em 1586, introduz ideias que apontam para 0 que indica alguns minerais, como a salpêtre, que é uma mistura natural de
Freud (191211969) desenvolveu sobre as impressões falsas vindas nitratos, uma espécie de talco de cor clara, e o antimônio.
do mundo exterior, ao se referir aos sintomas da paranoia. Freud Quanto ao tratamento, segue parecido com o que os demais
aponta o fenômeno da projeção para indicar que, quando uma per- autores já haviam proposto, sobretudo baseado nas teorias galenistas
cepção interna é suprimida, seu conteúdo ingressa na consciência do regime alimentar. Este se baseia na separação dos alimentos e be-
depois de sofrer uma deformação, sob a forma de uma percepção bidas que alterariam o humor melancólico, devendo-se então procu-
externa. Nos delírios de perseguição, a deformação do conteúdo con- rar substitui-los pelos seus contrários.
siste na transformação do afeto: aquilo que deveria ter sido interna- Em relação ao tratamento psicológico, Bright (1586 I 1996)
mente sentido como amor é percebido externamente como ódio. Na recomenda usar dos contrários, com a finalidade de desviar o espírito
melancolia, o processo, segundo Abraham (192411970), discípulo e do sujeito, de desviar sua obsessão. Ele propõe que o médico inter-
interlocutor de Freud, se desenvolve de modo contrário ao do me- venha com atitudes que levem a denegrir o objeto amoroso pelo qual
canismo da paranoia. Na melancolia, o ódio produzido se junta a o melancólico sofre, procurando provocar, no melancólico, outra
formulações internas que o melancólico constrói sobre si mesmo, paixão, como a cólera. Tal recomendação lembra as de Philippe Pinel
calcadas nas ideias de inferioridade e desvalorização, que culminam (1745-1826), em 1809, época em que a melancolia se torna uma
na seguinte proposição: "t\s pessoas não me amam, odeiam-me [...] doença da medicina e se enquadra na alienação mental. Pinel propõe
por causa de meus defeitos inatos. Assim, sinto-me infeliz e depri- o tratamento moral para essa patologia, que deve ser guiado por um
mido'' (ABRt\HAM, 192411970, p.40). centro único de autoridade que ensinaría os doentes a se reprimirem
No que diz respeito às causas da melancolia, o tratado de e domarem sua impetuosidade (PINEL, 1809 I 197 6). Nesse sentido,
Bright (1586 I 1996) aponta como sua causa principal a ingestão de ali- Claudio Godoy esclarece que:
mentos e o modo como o organismo os absorve. Nesse sentido, são
os órgãos do corpo que transformam os alimentos em humores, bem Por "moral" se poderia entender algo mais próximo ao que hoje em dia
chamaríamos ''psícológico'', ainda que seus pressupostos não deixem de
como as suas variações quantitativas. t\ qualidade dos humores é de-
ter fortes componentes ideológicos ~'morais", no sentido mais próprio
fluida a partir das propriedades do excesso de calor, que, no caso da deste termo. É neste período que surge o dispositivo da internação como
melancolia, culmina em uma alta temperatura interna. Em seu mais uma parte essencial do tratamento moral. [...] por sua vez o "asild' en-
alto grau, essa temperatura chega a queimar o humor bile negra, 0 que carnaria um ambiente inteiramente racional que poderia devolver a razão
caracteriza, então, a melancolia patológica. Eis, mais uma vez, a me- ao alienado. O tratamento moral buscava, então, através deste isolamento,
dirigir-se ao que "restava" de razão no alienado e ocupá-lo em um traba-
lancolia tendo como causa o mau funcionamento dos órgãos do corpo.
lho que pudesse afastá-lo de seu padecimento (GODOY, 2004, p.61).

50 51
A seguir, serão abordados os momentos li:m que a psiquia-
tria tomou a melancolia como uma doença, como ela foi descrita,
seus fenômenos e o tratamento que os psiquiatras clássicos propu-
seram para ela. CAPÍTUL02

DOR MORAL, NEGAÇÃO EINDIGNIDADE

Após a discussão sobre o modo como a melancolia era con-


cebida pelo saber dos médicos antigos, dos filósofos e dos teólogos,
na Idade Média, especialmente como eles formalizavam seu trata-
mento, pretende-se, agora, investigar como a psiquiatria clássica, to-
mada pelo viés da medicina, irá incorporá-la, sob variadas formas
clinicas. Tendo como bipótese que o lugar do analista, no tratamento
da melancolia, funciona como um anteparo à passagem ao ato sui-
cida, agora será necessário não somente descrever os fenômenos fun-
damentais que a psiquiatria clássica tão bem situou, mas, sobretudo,
verificar de que modo a melancolia foi tratada nesse contexto. Esse
percurso será o guia para situar a melancolia dentro dos aportes psi-
canalíticos, possibilitando uma discussão entre estes e os aportes da
psiquiatria clássica. Tal discussão permitirá que se extraiam as devidas
diferenças de paradigma e direção do tratamento.
O intuito de retomar os fenômenos da melancolia, con-
NOTAS
forme a psiquiatria clássica propôs, diz respeito à necessidade de real-
3
Ao longo deste livro, todas as traduções, para o português, das obras em francês, çar e reiterar aqueles a partir dos quais Freud e Lacan sustentaram
são de livre autoria da autora. suas elaborações acerca dessa patologia. Quando a psicanálise, com
4
Saturno e a melanmlia. Freud, bebe na fonte da psiquiatria clássica, ela não o faz no sentido
5
Sibarítico: Referente a, ou próprio de sibarita. Relativo à antiga cidade grega de uma continuidade em relação a esse saber, mas de uma desconti-
de Síbaris (Itália). Diz-se de pessoa dada à indolência ou à vida de prazeres, por
nuidade. Abre-se um novo paradigma. Freud também irá debruçar-
alusão aos antigos habitantes de Síbaris, famosos por sua riqueza c voluptuosi-
dade (FERREIRA, 1986, p.1.582). se sobre os fenômenos e os sintomas, contudo, abrirá outro campo
6
Cf. Karl Abraham, sobre os termos introjeção e incorporação (ABRAHAM, de investigação, ao considerar que os sintomas têm uma relação com
1924/1970). o inconsciente. Se o propósito deste estudo é o de investigar o lugar

52 53
do analista na clínica da melancolia, partindo da 'clínica da escuta e Esse autor dá ênfase ao papel ordinário das alterações dolorosas do
não da clinica do olhar, esta, por vezes reduzida aos fenômenos, não humor e descreve o que chamou de "loucura circular".
haveria como deixar de considerar os principais fenômenos dessa Na geração seguinte, não somente Jules Cotard (1840-1889)
categoria, que, nos dizeres dos pacientes, os afligem, e sobre os quais se destaca por separar o delírio de perseguição do delírio de negação, mas
incidirão a escuta e a intervenção do analista. Tomando o paradigma também Jules Séglas (1856-1939), ao ressaltar o aspecto da dor moral
do inconsciente freudiano, e, com Lacan, o inconsciente estruturado como essencial na melancolia. Ao se fazer esse percurso, será possível
como uma linguagem, pergunta-se como o sujeito, na melancolia, perceber as vicissitudes que a noção de dor moral sofrerá. Não se pode
pode surgir, conforme esse paradigma, em uma estrutura psicótica. deixar de atentar também para a obra de Emile Kraepelin (1856-
A dor moral é uma expressão das mais importantes para ca- 1926), que inaugurará as classificações das doenças mentais.
racterizar a melancolia, e, em função disso, pretende-se observar em
que contexto ela fez sua entrada no vocabulário da psiquiatria mo-
derna e que destino conheceu até a época contemporânea. Tal ex- 2.1. Melancolia e. alienação mental
pressão aparece na linguagem psiquiátrica por volta do início do
século XIX, durante o período no qual o paradigma é o da aliertação Para se situar a melancolia na época da alienação mental, é
mental. Nesse período, a escola francesa de Pinel e de Esquirol mini- importante destacar que esse paradigma corresponde à passagem da
mizou a importância do humor, em proveito da oposição entre o de- noção social e cultural de loucura ao conceito médico de alienação
lirio geral, que caracteriza a mania, e o delirio exclusivo, próprio da mental. Segundo Claudio Godoy (2004), pode-se localizar, nesse pe-
melancolia. No tratado de Pinel, ríodo, o passo fundador da psiquiatria, que introduz a loucura no
campo da medicina e passa a concebê-la como uma doença. E isso,
[... ] É assim que um delirio geral diferentemente acentuado, com varia- segundo Godoy, permite, na prática, subtraí-la de outros dispositivos,
dos graus de agitação, irritabilidade ou tendência ao furor, foi designado
entre eles, os judiciais e os policiais, para localizá-la no plano da as-
sob o nome de mania periódica ou continua. Conservei o nome de de-
lírio melancólico a este que seria dirigido exclusivamente a um objeto sistência médica. Conforme Godoy (2004), esse paradigma se desen-
ou a uma série particular de objetos, com abatimento, morosidade, e volve entre 1793 (época em que Pinel assume a direção da Bicêtre)
tendências ao desespero (PINEL, 1809/1976, p.138-139). e meados do século XIX, a partir da obra de Falret:

Em contrapartida, tanto Joseph Guislain (1797 -1860) A alienação mental se constitui em uma especialidade autônoma, oposta
quanto Wilhelm Griesinger (1817-1868) assinalam que as alterações a todas as outras doenças da medicina, e suas manifestações (mania,
do humor e, em particular, o humor doloroso e os sentimentos pe- melancolia, demência e idiotismo) não constituem para Pinel- um dos
autores, junto a Esquirol, que a caracterizam neste período - doenças
nosos, constituem um dado primeiro da patologia mental, porque irredutíveis, senão simples variedades que podem, inclusive, ocorrer no
fundam todo o resto, mas também porque tudo começa pela sua ex- mesmo paciente. Portanto, o que se destaca aqui é o singular de "a"
periência vivida. Já no período ulterior, no qual domina o paradigma alienação mental. Suas variedades de apresentação não lhe tiram o ca-
das domças mentais no plural, Jean Paul Falret (1794-1870) irá importar ráter de doença única, para a qual se propõe uma única forma de tra-
essas opiniões, sobretudo as germânicas, para a psiquiatria francesa. tamento: o tratamento moral (GODOY, 2004, p.60).

54 55
Como se viu, as palavras mania e melanc'61lia remontam à me- senta sua hipótese segundo a qual o que pode ter desencadeado esse de-
dicina da .Antiguidade clássica, muitas vezes pertencendo ao voca- lírio geral não tenha sido uma exaltação do humor, mas um grau variável
bulário corrente, ao idioma médico, ftlosófico e religioso. Por isso, de violência, que tomou toda a aparente significação de "mania sem de-
há razões para acreditar que a patologia do humor existiu comu- lírio" (LANTER1-L.AUR.A, 1996, p.11).
mente, tal como a consideram no século XXI, desde os tempos hi- Quanto à melancolia, Pinel, em seu Tratado, a define como:
pocráticos. Mas se sabe que, na .Antiguidade, os pressupostos eram
de outra ordem, e o estabelecimento e a vigência de uma patologia Os alienados deste tipo são dominados, às vezes, por uma ideia exclu-
guardavam relação com outros paradigmas. Consequentemente, a siva que eles lembram sem parar em seus propósitos, que parece ab-
forma como os antigos trataram a melancolia é diferente daquela que sorver todas as suas capacidades; outras vezes, eles permanecem
trancados em um silêncio obstinado por vários anos, sem deixar pene-
foi proposta pela psiquiatria clássica. Contudo, observa-se, no Tratado trar o segredo de seus pensamentos; alguns não deixam entrever ne-
de Esquirol (1772-1840), que este prescrevia vários tratamentos que nhum ar sombrio, e parecem dotados do mais são julgamento, quando
eram utilizados pelos médicos antigos, conforme se verá mais uma circunstância imprevista faz desencadear seu delírio repentina~
adiante. No momento, nosso exame focalizará a maneira como, à mente (PINEL, 1809/1976, p.163-164).
época da alienação mental, a patologia do humor começou a se for-
mular, com as concepções de Philippe Pinel, professor da Escola de .Ao se considerar o paradigma da alienação mental, percebe-
Medicina de Paris e chefe médico do Hospício da Salpêtriere. Pinel se como Pinel descreveu as duas formas opostas que, para ele,
vai tratar da melancolia e da mania, dentre outras doenças, e se diz podem ser assumidas pelo delírio melancólico:
inseguro em relação a esses dois termos, mas descreve a mania da
seguinte maneira: Nada é tão inexplicável e, entretanto, tão constatado quanto as duas
formas opostas que a melancolia pode tomar. É, algumas vezes, um
inchaço de orgulho, e a ideia quimérica de possuir imensas riquezas
A mania, espécie de alienação mais frequente, se distingue por uma ex- ou um poder sem limites; outras vezes, é o abatimento mais pusilâ-
citação nervosa, ou uma agitação extrema levada algumas vezes até o nime, uma consternação profunda, e mesmo o desespero (PINEL,
furor, e por um delírio geral mais ou menos marcado, algumas vezes 1809/1976, p.165-166).
com julgamentos mais extravagantes, ou mesmo um completo trans-
torno de todas as operações do entendimento[...] (PINEL, 1809/1976,
p.139). Vê-se que Pinel considera como sinônimos melancolia e de-
lírio melancólico. Além disso, nesse período, a melancolia ainda preva-
Em um comentário mais recente, Lanteri-Laura (1996) afirma lecia, contendo, em seu interior, não somente as ideias fabulosas da
que Pinel não definiu com precisão o que seria um delírio, mas apenas mania, mas as de grandeza próprias da paranoia. Será Jules Cotard
se sustentou em cuna concepção corrente na medicina do século XVIII. quem, em 1882, fará a separação entre o delírio dos perseguidos e o
Um dos exemplos que ampara essa critica é a análise de um caso clínico delírio de negação, próprio da melancolia, conforme se verá mais
de Pinel, em que um homem mata uma mulher. Nesse caso, segundo adiante.
Lanteri-Laura (1996), Pinel faz o diagnóstico de mania sem delírio. Con- F: de se destacar, no Tratado de Pinel (1809/1976), a afir-
tudo, Lanteri-Laura aponta uma inconsistência do diagnóstico e apre- mação de que a melancolia, com seu delírio particular, embora possa
permanecer estacionária durante muitos anos, também pode dege-
56 57
nerar-se em mania ou, algumas vezes, em suicídio. Ele ainda acres- fenômenos da compreensão humana, todos os efeitos da perver-
centa que o caráter do melancólico, tal como pensava Aristóteles, são de nossas tendências e todos os extravios de nossas paixões"
não necessariamente desencadearia a doenca. . No entanto' o melan- (ESQUIROL, 1838, p.399). Em seu Tratado, Esquirol se declicou a
eólico, seguindo as ideias involuntárias que lhe são sugeridas pelo de- fazer uma distinção entre o delirio geral e o delírio parcial.
lirio, pode impor-se privações funestas ou até mesmo chegar a No que tange à delimitação de um delirio geral e sua dis-
cometer crimes atrozes. As ideias delirantes, ao se imporem sobre o tinção do delírio parcial, lê-se, no Tratado de Esquirol:
melancólico, conduzem o sujeito a estabelecer falsas relações entre
alguns objetos. Tudo isso, segundo Pinel (1809/1976), se dá devido A melancolia com delírio ou lipemanja é uma doença cerebral carac-
a alguma afecção moral que o domina. Embora o autor não descreva o terizada pelo delírio parcial, crônico, sem febre, mantido por uma pai-
xão triste, debilitante e oprimente. A lipemania não poderia ser
que viria a ser a afecção moral, percebe-se que ele já aponta, mesmo
confundida com a mania cujo delírio é geral, com exaltação da sensi-
sem aprofundar, a causa do delirio como uma afecção moral. bilidade e das faculdades intelectuais, nem com a monomania, que tem
Ainda na época da alienação mental, Esquirol (1838) ado- por característica as ideias exclusivas com uma paixão expansiva e ale-
tará uma posição bastante análoga ao definir, em seu princípio clas- gre (ESQUIROL, 1838, p.406).
sificatório, o delírio geral e o delírio parcial. Este compreende uma
variedade marcada pela tristeza, sendo designado como lipemania, e Quanto à causa da lipemania, trata-se de uma clisposição he-
a outra variedade é expressa pela alegria e expansão, que vai caracte- reditária, de acordo com a qual os melancólicos já nasceriam com
rizar o grupo das monomanias, com lesões isoladas da inteligência, dos um temperamento particular. Essa disposição é fortalecida pelos ví-
afetos ou da vontade. É curioso observar Esquirol, em seu Tratado cios da educação e "por causas que agem mais diretamente no cére-
(1838), abolir as palavras melancolia e mania do quadro das doenças bro, na sensibilidade e na inteligência. As causas que a produzem são
mentais. Para ele, o substantivo melancolia, que, naquela época, já mais comumente morais" (ESQUIROL, 1838, p.407). Eis aí a me-
estava consagrado na linguagem popular, exprimia o estado de tris- lancolia apresentada como uma doença cuja causa principal é de
teza habitual de alguns indivíduos. Por isso, ordem moral, mas sendo produzida também por causas orgânicas,
cerebrais e hereclitárias. Qual o tratamento que se prescrevia a essa
l...] essa palavra devia ser deixada aos moralistas e aos poetas, que, em doença cuja causa era a hereditariedade? Esse aspecto será mais de-
suas expressões, não estão obrigados a tanta severidade quanto os mé~ senvolvido por IZraepelin (1913 / 1993), que indicará o caráter da in-
dicos [...] ao passo que a palavra !J/Ot!OJJJaJtict exprime um estado anor- curabilidade da melancolia.
mal da sensibilidade física ou moral, com delírio circunscrito e fixo
(ESQUJROL, 1838, p.399). Uma descrição minuciosa, baseada em suas observações
clinicas, levou Esquirol (1838) a elucidar os principais sintomas da
Vê-se, assim, uma nova expressão surgir no que diz respeito lipemania ou melancolia com delírio, Ele se refere à lentidão e uni-
à melancolia no campo da psiquiatria. É nesse contexto que Esquirol formidade das ações do melancólico, bem como uma recusa ao mo-
designa, doravante, para se referir à mêlancolia, o termo !ipemania. vimento e uma tendência à solidão e à ociosidade. Observa-se,
O conceito de monomania atribuído às doenças abarca, também, uma recusa aos alimentos, muitas vezes, devido ao caráter
então, "todas as anomalias misteriosas da sensibilidade, todos os imperativo das alucinações. Quanto ao sono, os lipemaniacos dor-

58 59
mem pouco, pois, segundo Esquirol (1838), o m'edo, o terror e as suas formulações sobre a melancolia, buscou referências na psi-
alucinações os mantêm acordados. · quiatria de sua época. .
Em relação aos sintomas, vale apontar que a melancolia Também ao se debruçar sobre os Tratados de Pmel e de Es-
com delirio ou lipemania apresenta duas diferenças bem acentuadas: quirol, é preciso destacar o fato de que, em ambos, "a noção de dis-
túrbio do humor não figura no primeiro plano, e [... ] por outro lado,
Os lipemaniacos são de uma susceptibilidade muito irritável e de uma mais que da desordem da timia, trata-se de anomalias descritas em
mobilidade extrema. Tudo ocasiona neles uma impressão muito viva; a
termos de paixões ou de distúrbios do comportamento" (LANTERl-
mais ligeira causa produz neles os mais dolorosos efeitos, os aconteci-
mentos mais simples, os mais comuns lhes parecem fenômenos novos LAURA, 1996, p.13).
e singulares, preparados de propósito para atormentá-los e prejudicá- No Tratado de Esquirol (1838), encontram-se aspectos im-
los. Tudo é forçado, exagerado em sua maneira de sentir, pensar e agir. portantes sobre o tratamento da melancolia. O autor prescreve não
Essa excessiva susceptibilidade lhes faz encontrar, sem cessar, nos ob- só a administração de alguns medicamentos, mas, antes de tudo, por
jetos exteriores, novas causas de dores. [... ] tanto a sensibilidade, con-
se tratar de uma doença difícil de curar, indica a medicina moral, que
centrada sobre um único objeto, parece ter abandonado todos os
órgãos; o corpo fica impassível a qualquer impressão, quanto a mente busca, no coração, as primeiras causas do mal. Tal medicina é reco-
só se manifesta sobre um único assunto que absorve toda a atenção e mendada por ser baseada em atitudes de protesto, que provocam o
suspende o exercício de todas as funções intelectuais (ESQUIROL,, choro, consolam, mas partilham dos sofrimentos e revelam a espe-
1838, p.4n414). rança. Por isso, é mais indicada que as outras. Assim, "o tratamento
da lipemania pode ser higiênico, moral ou farmacológico" (ESQUI-
Assim, Esqtúrol nota uma extraordinária exaltação da sen- ROL, 1838, p.465).
sibilidade no lipemaníaco, que culmina sempre em uma sensação do- Esquirol faz um retorno aos médicos antigos, pois, con-
lorosa. Com isso, pode-se acompanhar Esquirol ao dizer que "os forme se viu, na doutrina dos humores, prescrevia-se um ambiente
lipemaníacos ficam inacessíveis a toda impressão estranha ao objeto saudável em termos do clima atmosférico, que exerceria uma grande
de seu delirio, encontrando-se sem razão, porque eles percebem mal influência sobre as faculdades intelectuais e morais do homem. Por
as impressões; um abismo os separa, dizem, do mundo exterior" exemplo, "um clima seco e temperado, um belo céu, uma tempera-
(ESQUIROL, 1838, p.414). Ora, essa descrição leva imediata- tura amena, um local agradável e variado convêm aos melancólicos"
mente a uma relação com as formulações que Freud irá desenvol- (ESQUIROL, 1838, p.465). Ao indicar isso, Esquirol descreve um
ver em relação à psicose. Em 1924, em seu texto "Neurose e caso clínico de um paciente que, de acordo com as estações do ano,
psicose", ele se refere à psicose como um conflito entre o eu e o muda seu estado de saúde. Tal paciente estava muito bem em todos
mundo exterior (FREUD, 1924b/1976). Mas é interessante lem- os aspectos de sua vida, mas, quando se aproximava o outono, sen-
brar que, nove anos antes, em "Luto e melancolia", Freud (1915- tia-se fracassado, triste, preocupado e suscetível. O próprio paciente
1917 /1974) refere-se ao melancólico como aquele que, ao se assim lhe dizia:
deparar com a perda, descreve seu eu tomado por uma ideia de
culpa tão grande, que pode culminar em um delírio de inferiori- Pouco a pouco eu negligenciei meus negócios, abandonei minha casa
dade e de indignidade. Nesse sentido, ver-se-á o quanto Freud, em para fugir da tristeza, me sentia fraco, bebi cervejas e licores, rapida-
mente fiquei irritável, qualquer coisa me contrariava, me agitava e eu

60 61
me tornei insuportável para os meus e até perigoSo. l''lfeus negócios so- se o trabalho e, particularmente, o trabalho no campo. Hoje em
freram com este estado. Eu tinha insônia e inapetência. Nem as opi- dia, esse preceito é evocado por toda a parte e posto em práti-
niões, nem os ternos conselhos de minha esposa, de minha familia, não ca na Alemanha, na Inglaterra e na França" (ESQUIROL, 1838,
tinham mais efeito em mim. Enfim, eu cai em uma profunda apatia,
incapaz de qualquer coisa, senão beber e me enfurecer. Com a aproxi- p.469).
mação da primavera, eu me senti renascer para as minhas afeições, re- Pode-se, a partir de tais indicações, afirmar que, além da
c~perei toda a minha atividade intelectual e meu ardor pelos negócios música, a laborterapia era largamente difundida nessa época como
(ESQUIROL, 1838, p.466), uma das formas de tratamento da melancolia. Esquirol também
aposta no tratamento moral, ou seja, persuadir o melancólico através
. Tal paciente
. estava temeroso de voltar a se sentir doente , do uso das paixões. E afirma que:
po1s era o terce1ro ano em que, a cada início de outono, era acome-
tido por sensações diferentes, ficando muito abatido, tedioso e triste, Tanto é preciso impor c vencer as resoluções mais determinadas ins-
afastando sua tristeza com a bebida. Diante do exposto pelo pa- pirando nos doentes uma paixão mais forte que aquela que domina
ciente, Esquirol indicou, "após mil perguntas", um médico que iria sua razão, substituir um temor real por um temor imaginário, como
também é preciso conquistar a confiança deles, reerguendo sua cora-
acompanhá-lo durante todo o verão, observando seu regime alimen-
gem abatida e fazendo nascer a esperança em seus corações. Cada me-
tar. Além disso, recomendou: "Você se banhará frequentemente e lancólico deve ser tratado de acordo com um conhecimento perfeito
beberá de tempos em tempos água de Sedliz. A comida será legu- do alcance de sua mente, de seu caráter e de seus hábitos, a fim de
mes" (ESQUIROL, 1838, p.467). A prescrição mais importante, que subjugar a paixão que, controlando seu pensamento, mantém seu de-
retoma inteiramente o que os antigos prescreviam, era a de que par- lírio (ESQUIROL, 1838, p.471-472).
tisse, no início do outono, para uma região mais quente, para fugir
do frio. Assim, com tal tratam~nto, livrou o paciente de mais um epi- Quanto ao tratamento pelo ellébore, que os médicos anti-
sódio de melancolia. gos prescreviam como purgativo, Esquirol tece severas críticas,
Além dessas indicações, Esquirol sugeria que os pés dos dizendo que é uma raiz muito perigosa. No entanto, refere-se a
melancólicos permanecessem sempre aquecidos. Devia-se também Pinel, que preferia purgativos mais leves, mais doces, como as
suspender todo alimento salgado, irritante e de difícil digestão. Além chicórias, as plantas espumosas, combinadas com alguns sais neu-
disso, o exercício físico e as viagens eram bem recomendados, por tros, que são suficientes para interromper a constipação.
distraírem o cérebro do doente e destruirem a fixação das ideias tão Em relação às sangrias prescritas pelos antigos, Pinel as em-
desesperadoras. pregou muito pouco. Já Esquirol acabava indicando-as apenas para
Esquirol, ao se referir ao tratamento, faz menção ao tra- serem aplicadas na parte do corpo da qual o paciente se queixava:
tamento moral, inaugurado por Pinel: "Pinel exprime a opinião "Algumas vezes me veio com sucesso a aplicação de sanguessugas
que todo hospício de alienados esteja perto de uma fazenda, onde em um dos lados da cabeça, quando os lipemaníacos queixavam-se
os doentes possam trabalhar" (ESQUIROL, 1838, p.469). As mu- de forte dor contínua desse lado" (ESQUIROL, 1838, p.479). Até
lheres trabalhariam com costura, tricô e outras atividades manuais, mesmo a água fria era indicada, em grandes doses, contra o suicídio.
ao passo que os homens trabalhariam com a terra. Em uma nota Ao prescreverem as sangrias, nota-se que a ênfase recai sobre o or-
de rodapé, Esquirol afirma que "há mais de 30 anos aconselhou- ganismo e que a dimensão subjetiva não está em questão. Essas ob-

62 63
servações levam à constatação de que, mesmo\ que a ideia de uma de dor moral, como fundamental para se estabelecer o diagnóstico
afecção moral esteja presente nesses autores, os tratamentos que in- de melancolia, será discutida, a partir da contribuição de alguns au-
cidem sobre o organismo ainda têm força. tores lacanianos. ·
Um passo importante em relação à dor moral, típica da me- Wilhelm Griesinger toma a mesma direção de Guislain, ao
lancolia, será dado por Joseph Guislain (1797-1860). Em seu Traité estabelecer o primado das alteraçôes do humor sobre a patologia
sur !es phrénopathies, publicado em 1833, esse autor acredita que a lou- mental, sobretudo no recorte que faz da dor moral:
cura inicia-se sempre por uma alteração do humor e dos afetos, que
ele designa como frena!gia, experiência apavorante e dolorosa, na qual A observação mostra que, na grande maioria dos casos, a loucura se
as representações e a inteligência se encontram lesadas: inicia, não pelos discursos desprovidos de sentido ou pelos atos ex-
travagantes, mas pelas transformações no caráter, pelas anomalias do
[...] Primitivamente, a alienação mental é um estado de mal-estar, de an- sentimento de si mesmo e do humor, e pelos estados emocionais que
siedade, de sofrimento: uma dor, mas uma dor moral, intelectual ou ce- daí resultam. E, de fato, os primeiros sinais da alienação são marcados
rebral, como se quiser entender [...} Dizer que a alienação mental é um por um sentimento de mau humor, de descontentamento, de opres-
distúrbio da razão seria uma proposição errônea: isso seria tomar um são, de ansiedade, que nada motiva [...] A discriminação da força e da
sintoma secundário pelo fenômeno fundamental. Muitos alienados não energia do eu, o recalcamento do complexo de suas ideias têm por
perderam nunca a razão; todos, no entanto, em raras exceções, sofrem: resultado um estado psíquico doloroso de uma espécie indeterminada,
eis aí a alteração mãe de onde provém o incômodo nas ideias, o distúr- um abatimento dos sentimentos, extremamente penoso em razão
bio da inteligência, a aberração nas qualidades instintivas, e toda a série mesma de sua obscuridade; as novas ideias e os novos pensamentos
de atos violentos e bizarros que caracterizam a alienação mental, sob mórbidos que surgem quando levam a uma dilaceração da mente, o
suas diversas formas e em suas diversas combinações (GUISLJ\IN, sentimento da divisão da personalidade e uma subjugação eminente
1833, p.l-3). do eu. i\ dor moral se mostra sob uma das formas conhecidas de agi-
tação, de ansiedade, de tristeza, c traz com ela todas as consequências
assinaladas mais acima de uma modificação total da reação contra o
Para Guislain (1833), é inegável que, nas doenças mentais, mundo exterior, e de uma perturbação na atividade motora da mente
"uma impressão dolorosa foi conduzida sobre a moral, e que um (GRIESJNGER, 1865, p.70-71).
estado de impressionabilidade mórbida, todo especial, deve ser
considerado como um elemento fundamental dessas afecções" Não se podia deixar de apresentar as citações de Guislain e
(GUISLf\IN, 1833, p.116). de Griesinger, já que eles mostram, claramente, que a locução dor
As observações de Guislain são importantes, pois, ao que tnora! designa uma alteração primeira da experiência vivida, que inau-
tudo indica, ele teria sido o primeiro a empregar a expressão dor gura todas as evoluções possíveis da alienação mental. Mais adiante
tnora!. A contribuição desse autor vai em direção oposta à de Fine! se verá como Jules Cotard e Jules Séglas fizeram referência à dor moral
e Esquirol, já que, para Guislain, no início de uma alienação mental, na melancolia, tendo como sustentação as ideias de Guislain e de
está uma alteração do humor, a ji-enafgia, sempre penosa e angus- Griesinger. Mas, antes de dialogar com eles, será preciso mencionar
tiante. A partir daí, surgem os aspectos delirantes. Tal expressão é o trabalho de Jean-Pierre Faltet, que, na metade do século XIX, inau-
de grande relevância, pois a doutrina psicanalítica irá se referir à gura um novo paradigma: não mais o da alienação mental, mas o das
dor moral como um fenômeno primário na melancolia. A noção doenças mentais.

64 65
Nesse novo paradigma, conforme GodQy (2004) esclarece, A loucura não é uma doença única, poderia revestir as formas mais di-
longe de se tratar de uma doença única, a patologia mental se com- versas, variável ao infinito no grau das individualidades e das circuns-
punha de uma série de espécies mórbidas. O que Falret instaura, com tâncias, dependendo do meio e da educação nos quais vivem os
indivíduos que são atingidos. Essas circunstâncias acidentais podem
o novo paradigma- o das doenças mentais - é a ênfase na semiologia
imprimir as diversidades secundárias, mais aparentes que reais, as ma-
e na observação clínica do paciente, já que, com as múltiplas entida- nifestações mais salientes da loucura, mas elas não agem profundamente
des mórbidas, torna-se crucial a avaliação diagnóstica. Quanto a isso, sobre a essência da doença. O progresso mais sério que se possa realizar
Godoy irá dizer que: em nossa especialidade consistirá na descoberta de espécies verdadeira-
mente ~aturais, caracterizadas por um conjunto de sintomas físicos e
morais, e por uma evolução especial (FALRE'I; 1864/1994, p.l34).
Quando se tratava de "a alienação mental", bastava que se distinguisse
esta de outras doenças do campo da medicina e, uma vez reconhecida,
só havia uma modalidade de tratamento (o tratamento moral). A pato- Observa-se que Falret deve muito a Guislain e a Griesin-
logia mental, ao constituir-se como um conjunto de doenças distintas, ger, mas suas investigações situam-se no paradigma das doenças
com seus sinais particulares e seus singulares modos de evolução, re- mentais, ao passo que os autores citados permaneceram no para-
queria que fossem reconhecidos tais sinais. É assim que se desdobra a
digma da alienação mental. Falret não afirma que a patologia mental
"semiologia" psiquiátrica em sua máxima riqueza (GODOY, 2004, p.61).
começa pela frenalgia, para se diversificar depois no curso da evolu-
Assim, seguir-se-á o momento em que o paradigma das ção temporal, mas que ela é composta de certo número de doenças
doenças mentais ganha destaque. irredutíveis umas em relação às outras, e é por isso que ele rompe
com a unidade da alienação mental, proposta por Pinel. Essas doen-
ças específicas não representam o desenvolvimento no tempo de
2.2. Da alienação à doença mental uma única raiz original. Cada uma deve ser considerada em sua ori-
ginalidade. Ao estabelecer a loucura circular, ele descreverá "a evo-
Na metade do século XIX, duas obras concernem direta- lução sucessiva e regular do estado maníaco, do estado melancólico,
mente ao problema da dor moral: de início, a obra de Falret e de um intervalo lúcido mais ou menos prolongado" (FALRET,
(1864/1994), que coloca em primeiro plano os distúrbios do humor 1864/1994, pA61-462).
como tais e descreve) na loucura circular, a alternância entre a mania Com as investigações de Falret (1864/1994), a melancolia
e a melancolia, não mais como delírio geral ou de!irio parcial, mas e a mania são definidas com suas especificidades particulares. Em
como alteração tímica específica. Em seguida, a obra de Séglas seu Tratado, Falret irá descrever a loucura circular, tomando-a por uma
(1894), que vai elaborar sua definição para dor moral. ·nova forma de doença mental. Mas, antes de entrar nessa nova
Embora Falret tenha-se esforçado para manter a unidade forma, ele adverte que existem, nas doenças mentais, períodos de re-
da patologia mental, em seus estudos, ele acaba por romper com essa missão e de intermitência, que também acontecem na loucura circular,
ideia, inaugurando o paradigma das doenças mentais como uma plu- que poderiam ser confundidos com a loucura circular propriamente
ralidade irredutível: dita. Por isso, irá desenvolver considerações que merecem ser desta-
cadas. Para ele, não é raro observar o curso contínuo da doença com
a mesma intensidade e as mesmas características. Esse é um fato bem

66 67
conhecido, que ele observa não só na medicina geral, mas também A circularidade diz respeito ao fato de que existe na mania (antes da
na medicina mental. No entanto, segundo ele, ainda não teria havido explosão da agitação) um estado melancólico, e existe, antes do de-
um estudo aprofundado sobre a frequência e a intensidade dessas sencadeamento da melancolia, um estado de mania. Tal característica
remissões e dessas intermitências na evolução das doenças mentais. da mania de se transformar em melancolia, ou vice-versa, tem lugar,
Como consequência, muitos erros capitais surgiram dessa lacuna na em alguns casos, de forma acidental. Mas, para que a loucura circular
observação. Falret tece comentários, sobretudo, ao Tratado de Esqui- se constitua como tal, é preciso observar, durante muito tempo, essa
rol, ao dizer que: sucessão de estados: depressão e excitação. Muitas vezes, por toda a
viela do doente.
A alienação geral, por exemplo, é uma das causas pelas quais tantos Assim, a loucura circular é caracterizada "pela evolução su-
doentes tão diferentes uns dos outros são classificados indistintamente
cessiva e regular do estado maníaco, do estado melancólico e de um
sob o nome genérico de maníacos. É uma das causas também pelas
quais, no estudo das alienações parciais, existe e se perpetua a doutrina intervalo lúcido mais ou menos prolongado" (FALRET, 1864/1994,
da unidade do delírio, da monomania, dmltrina tão errônea aos olhos p.461-462). Podem variar a intensidade e a duração, que dependem
da ciência, e tão funesta ao tratamento e à medicina legal dos alienados, de cada doente. A partir disso, pode-se perceber o quanto Falret tra-
visto que ela assemelha a loucura à paixão extrema, e não permite balhou para caracterizar a loucura circular como uma
estabelecer entre elas nenhuma linha de demarcação (FALRET,
1864/1994, p.457).
!,. .. ] verdadeira forma de doença mental, porque ela consiste em um
conjunto de sintomas físicos, intelectuais e morais, sempre idênticos a
Ao levantar tais críticas, Falret refere-se, então, ao caráter eles mesmos, nos diversos períodos e se sucedendo em uma ordem
de intermitência nas doenças mentais, que é muito conhecido (por determinada (Fr\LRET, 1864/1994, p.462).
exemplo, a mania intermitente). Mas ele ataca o problema com ques-
tões sobre a regularidade ou a irregularidade da intermitência, e sobre Quanto ao estado maníaco, ele é caracterizado por uma exal-
os sinais que podem anunciá-la. Ele visa a reconhecer, desde a pri- tação da inteligência e de sentimentos, que avançam progressiva-
meira crise, os sinais de uma loucura intermitente. mente em pouco tempo, culminando em atos estranhos 'e
A preocupação com a cura já está assinalada por esse autor, desordenados. Nesse estado, os movimentos são rápidos e inces-
a partir de sua observação sobre a evolução das doenças. Contudo, santes. É nesse período que os pacientes não internados se deslo-
a forma prevalente de intervenção psiquiátrica, nessa época, impunha cam, reviram todos os seus móveis, mudam de apartamento,
o isolamento do doente do mundo exterior, restringindo-o ao asilo. modificam seu jardim, fazem projetos, escrevem, compõem músi-
Isso aponta para o tratamento moral. Inclusive, um dos tratamentos . cas. Tudo isso é feito quase instantaneamente, segundo relata Falret
que prevalecia, nessa época, era o da laborterapia, inaugurado por (1864/1994).
Pinel, seguido por Esquirol, I<raepelin e outros. Será visto, mais Nesse estado, o doente experimenta o sentimento de uma
adiante, como Falret interveio nos tratamentos da melancolia. perfeita saúde física, com aumento do apetite e, apesar da ausência
Por essa via, Falret (1864 / 1994) introduz o que ele designa de sono, o doente vive isso sem fadiga. Alguns casos apresentam alu-
como loucura circular. Ele não se refere, ao usar tal expressão, a ne- cinações muito intensas (FALRET, 1864/1994). O quadro é mar-
nhuma das doenças mentais (mania e melancolia) especificamente. cado, ainda, por exaltação e extrema excitação.

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A mudança do quadro ocorre após un~ tempo mais ou ção de que, muitas vezes, esses doentes figuram ora entre os me-
menos longo, de acordo com cada doente. A excitação começa a di- lancólicos, ora entre os maníacos, segundo o momento em que eles
minuir progressivamente e, quando a agitação cessa, tem início o qua- são observados.
dro de depressão. Segundo Falret: Quanto à hereditariedade dessa forma de loucura, Falret
(1864 I 1994) é extremamente cauteloso para afirmar a sua pertinên-
[...] nesta época, os doentes apresentam um tal contraste com o estado cia. Para ele, as pesquisas até então realizadas sobre a hereditariedade
anterior que eles podem parecer razoáveis [... ] eles dissimulam frequen-
das doenças mentais eram questionáveis. Parece evidente que esse é
temente algumas .ideias delirantes que lhes restam ainda do período de
exaltação, ou outras que começam a brotar (FALRET, 1864/1994, um assunto que o autor não se apressou em concluir. No entanto,
p.465). K.raepelin (191311993) afirma o caráter hereditário da psicose ma-
rúaco-depressiva, como se verá mais adiante.
Nesse contexto, o estado de depressão começa a se estabelecer, Quanto ao tratamento dos doentes, conforme escreve Falret
aos poucos. O doente fica mais calado, predominando agora a hu- (186411994), este foi dividido em dois tipos, defendidos por duas es-
mildade. Com o tempo, todos esses sintomas aumentam, o que faz colas diferentes: o físico, pela escola somatista; o moral, pela escola
surgir um estado de solidão e imobilidade. A referida humildade cul- psicológica. A primeira escola concebia a loucura como uma doença
mina, inclusive, no fato de os doentes recusarem os seus familiares, física, portanto, não precisaria buscar outros meios que não fossem os
acreditando não merecê-los. O abatimento é visivelmente pronun- remédios para tratá-la. A segunda, a escola psicológica, não via na lou-
ciado. Inclusive "o instinto de conservação está enfraquecido, a tal cura senão uma afecção da alma, por isso indicava o tratamento pelos
ponto que o doente não teria impulso suficiente para buscar alimen- meios morais, que se ordenavam por objeções. Falret (1864 I 1994) con-
tos ou pedi-los, se não lhes fossem oferecidos, mesmo com insistên- siderava que tanto uma quanto a outra escola exageravam em defender
cia" (FALRET, 186411994, p.467). seus meios de tratamento. Para ele, "o homem é constituído por dois
Assim, apresenta-se um doente cujo curso das ideias está princípios, a alma e o corpo. [...] entre a alma e o corpo a união é íntima
lento, os sentimentos debilitados e os movimentos demorados. Nesse [...] nenhum fenômeno moral pode se manifestar sem a cooperação
estado, ele experimenta um mal-estar geral. Segundo Falret (1864 I do físico e vice-versa" (f"'I\LRE1~ 186411994, p.679). Nesse aspecto,
1994), o período de depressão é normalmente mais longo que o de ex- é categórico, ou seja, em uma prática, "nenhum meio deve ser negli-
citação. Depois que o estado de depressão atinge seu apogeu, ele per- genciado" (FALRET, 186411994, p.679).
manece estacionário, até ir diminuindo pouco a pouco e chegar a um É interessante notar que, da época da alienação mental para
intervalo lúcido. Nesse estado, o doente restabelece suas relações, sai do .a das doenças mentais, surge o tratamento físico através de remédios
torpor físico e moral e volta às suas obrigações, inclusive ao trabalho. próprios, além da manutenção do tratamento moral. Falret
Uma das observações que o autor considera importante (186411994) se empenha, em seu Tratado, em desenvolver mais de-
diz respeito à frequência da doença. A grande dificuldade apontada talhadamente o tratamento moral. ,
em relação ao diagnóstico é que, na maioria das vezes, o médico Falret defende o tratamento moral geral ou coletivo em de-
acompanha o paciente apenas em um dos estados, e não ao longo tr'imento do tratamento individual, devido à condição da ciência de
do curso de sua enfermidade. Tal situação culmina com a constata- sua época:

70 71
Se a ciência estivesse mais avançada, o tratamento individual poderia como uma profunda mudança no tratamento a partir desses princí-
ocupar 0 primeiro lugar [... J Seria a via de dar conta, .no_ trat~tmento pios. Pnv1leg~a-se então:
de um alienado, da forma especial de sua doença, das md1caçoes p:r-
ticulares resultantes de sua individualidade mórbida (FALRET,
Afastar as causas que tinham gerado a doença; subtrair o alienado de
1864/1994, p.682).
sua influência raivosa, transportando-o para um meio novo, longe das
pessoas, dos lugares e hábitos que tinham produzido e que tendiam a
É curioso 0 fato de ele contestar o tratamento individual, perpetuar sua doença; afastar obstáculos que podiam se opor à sua so-
levando em consideração o estado da medicina mental da época. Para lução feliz, na medida em que eles se apresentavam; favorecer, enfim,
ele, se prevalecesse 0 tratamento individual, seria o mesm~ que negar as condições exteriores, a tendência natural da doença em direção à
toda regra geral em terapêutic'; e, portanto, negar toda c1enc1a, trans- cur_a, e ajudar, de tempos em tempos, a natureza, por meios apropriados
aplicados a respeito: tais são os princípios consagrados por essa medi-
formando-a em arte. Considera-se que, ao mtroduz1r a 1de1a do tra-
cina higiênica e oportunista. Da qual Pinel foi, entre nós, o mais ardente
tamento individual, Falret já demonstra um posicionamento diferente pro~agador e cuja medida de isolamento foi a expressão mais completa
diante dos pressupostos de sua época. . (FALRET, 1864/1994, p.684).
Contudo , constata-se aí a prevalência de uma . c1enc1a
que valoriza uma conduta universal aplicada de forma 1gual para O doente descrito por Falret (1864/1994) é concentrado
todos, em detrimento do que é particular a cada doente. E 1sso, em si mesmo; inteiramente voltado para suas preocupações; 0 seu
sabe-se, não ocorreu somente nessa época. Observa-se, amda mundo prevalece sobre o mundo exterior; é egoísta e sem sociabili-
hoje, que a psiquiatria biológica recomenda procedimentos Uni- dade; é arrastado por suas ideias e sentimentos doentios para fora
versais, tais como exames sofisticados do mapeamento cerebral, da realidade e apenas exerce um fraco controle sobre suas próprias
em busca da localização da região responsável pelo smt.oma e 1de1as. Essas características são a verdadeira base sobre as quais re-
das prescrições de medicamentos para combater tal sofrimento. pousam os principais fundamentos do tratamento geral. Diante desse
Entretanto, a partir dos pressupostos de Freud, con_' a desco- quadro, o papel do médico no tratamento moral seria o de provocar
berta do inconsciente, a psicanálise privilegia uma clímca da cau- a reação interior dp doente sobre seu próprio comportamento, ins-
salidade psíquica. A investigação freudiana introduz a tigando-o a uma luta contra suas disposições doentias. O médico
formulação de mecanismos psíquicos inconsCientes como causa ainda deve buscar como seu auxiliar mais poderoso o próprio doente
dos sintomas. Como escreve Godoy: "[...] a psicanálise abre um.a e se esforçar para fazer nascer nele a reflexão.
dimensão não contemplada nem pela psiquiatria nem pela psi- Cabe, pois, indagar como eram conduzidos esses tratamen-
cologia tradicional. Será nessas pequenas coisas da vida cotidian~ tos. Ao mesmo tempo em que Falret (1864 / 1994) indica que o mé-
que Freud saberá ler a lógica dos processos mconsc1entes dico deve opor-se diretamente às ideias e aos sentimentos doentios
(GODOY, 2004, p.73). . pelo raciocínio e pela intimidação, ele critica esses meios. Para ele, a
0 tratamento geral, ao invés de ser aplicado a um doente oposição direta ao delirio pelos silogismos e pela violência não pro-
em particular, é dirigido a um grande número de doentes ao mesmo ~uz senão irritação, atos violentos ou dissimulação. Segundo Falret,
tempo e repousa sobre princípios gerais: o da h1g1ene moral e o do o médico deve buscar meios indiretos para obter a reação dos doen-
isolamento. Falret retoma a reforma feita por Pmel, concebendo-a tes. São esses os meios indicados:

72 73
Operar um desvio no delírio, provocando outras id6ias ou outros sen- Falret (1864/1994), _são inúmeras, agindo no aumento da estima de
timentos que lhe façam contrapeso. [...] Uma indicação é pela via da SL Os de:\bnlios do delino seriam verificados quando o doente recitasse
ocupação sob todas as suas formas; substituir uma autoridade estranha para o pu co atento que o escuta.
à vontade doentia; acalmar a atividade exuberante das faculdades inte-
lectuais e morais pelo repouso do cérebro e a monotonia das sensações, . ,- Outros fatores importantes seriam a organização (ou clas-
e dirigir a atividade que não se pode extinguir para um objetivo real e sificaçao,
1 - ou hierarquia) dos alienados e a reação de uns d oentes em
diferente do delírio; provocar a reflexão sobre si mesmo pelo contras- re açao, aos
. outros. Buscava-se agrupá-los de modo que ) por suas ca-
te entre tudo que envolve o doente c seu antigo meio (FALRET, ractensucas mentais, pudessem exercer uma influência favorável
1864/1994, p.688). sobre os outros.
. E:U resumo, o tratamento prescrito para os alienados se
O passo seguinte é a indicação dos meios para que tal cura
~ana atraves de ~egras, vida comunitária, ocupação e classificação.
possa acontecer no interior dos asilos. Falret (1864 / 1994) faz menção Falret, enfim, asstn~la o quanto essa "submissão exterior reage logo
a Esquirol, que já dizia que o estabelecimento dos alienados nos asi- em seu estado intenor e até sobre o curso de suas ideias" (FALRET
los seria o mais potente instrumento de cura. 1864/1994, p.697). " ,
Os asilos da época, descritos por Fa1ret (1864/1994), são
lugares com regulamentos, que estabelecem o preenchimento de s- 1 Se Falret (1864/1994) não enfatizou a "dor moral" . "
' , sera
eg as,. em 1894, quem o fará. Antes, verificar-se-á 0 quanto foram
todas as horas do dia e forçam cada doente a reagir contra a irre-
~ssen_ciais, para o estabelecimento da clinica da melancolia, as inves-
gularidade de suas tendências, ao se submeterem à lei geral. Há ~gaçoes do psiqwatra Jules Cotard. Sua pesqtúsa é de suma impor-
uma regra para todos, e não para cada um. O doente é obrigado a tancia pa~a o estudo ora proposto, pois irá distinguir do delírio de
se esforçar para não se deixar cair em uma vontade alheia a ele, persegwçao a autoacusação, mecanismo básico da melancolia. Con-
evitando, assim, as punições destinadas a quem infringe o regula- f~rme se verá em Freud e em Lacan, tal mecanismo será 0 respon-
mento. Ora, sabe-se que ordens e regras consomem o cotidiano savel por todo o aruqwlamento do sujeito, na melancolia.
dos doentes nos asilos. Eis um potente meio de tratamento que Por volta dos anos 1850, muitos estudos já haviam sido fei-
os asilos ofereciam. tos pela psiqwatna no campo das perturbações mentais e, no entanto,
Outro mecanismo importante é a prevalência dç uma vida
a melancolia atnda se encontrava inserida no delírio de perseguição
comunitária, que se presentifica através de reuniões nos dormitórios como uma das formas desse delirio. '
à noite e nas salas de reuniões ou nos ateliês durante o dia. Isso di-
Na introdução de seus escritos sobre o delírio de negações,
ficu1ta o isolamento e a tendência do alienado para a introspecção.
Cot~rd (1882/ 1997) menciona o médico francês, Ernest-Charles
Tal vida comunitária exerceria uma influência salutar, favorecendo
Lasegue,. d~ grupo da Salpêtriere, que, em 1852, destacou, de uma
a cura, ao realizar, às vezes, todos os princípios do tratamento geral. maneira medita, o delirio de perseguição das diversas formas de me-
Outro princípio seria o da ocupação, pela via do trabalho,
lancolia: A partir desses estudos,Ju1es Cotard (1882/1997), psiquiatra
sob todas as formas. Alguns eram destinados ao trabalho manual. q~e fazia parte do corpo clinico da Salpêtriere, prosseguiu investi-
Outros, à instrução primária, leitura, poesia, recitais em público, gando a afec.ção melancólica, encontrando, então, três tipos distintos
canto, música. Tanto do ponto de vista físico quanto do intelectual, de melancolia: a melanco!ta szmples, a estuporosa e a ansiosa. Ao mesmo
observar-se-iam mudanças. As vantagens da ocupação, segundo

74 75
tempo em que analisou seus sintomas específicos, s\parou-a do de- . - ComJ a,. finalidade
.
de precisar as diferenças entre 0 ueJZno
J ,. · ·'
ae
ersegucçao
P." . e o uellrto
. . . o: ' de neuacão Cotard (1882/1997) p b ·
erce eu a lmpor-
lírio de perseguição e construiu um arcabouço conceitual que muito
tancta de dtsnngmr um npo de hipocondria do quadro geral da hi-
favoreceu não só o avanço dessa diferenciação, mas, sobretudo, abriu
pocondna. T_:ata-se, pois, da hipocondlia moral. O paciente com delírio
caminho para o devido recorte psiquiátrico dessa categoria clínica.
de. persegmçao apresenta traços que vão desde a hipocondria inicial
Vale extrair desse campo conceitual o desenvolvimento da expressão
ate a megalomama, ao passo que o paciente com delírio de negação
!Jipocondlicc moral, uma vez que ela obteve um lugar especial ao longo
apresenta uma . ~ profunda
. depressão' com anst.edade q ue1xosa
· e um
das investigações de Cotard e daquelas realizadas por pesquisadores
profundo
d - d1sturb10
. da sensibilidade moral · Na ort.gem d d 1· ·
o e mo
que vieram depois. e negaçao, esta a melancolia com depressão ou estupor e a me-
lancoha ag!tada ou ans10sa; Não escapou a Cotard (1882/1997) um
ponto
, de. extrema_ tmportancta·· o delírio na-~ 0 se m o d'fi 1 1ca, mesmo
2.3. Do delírio de perseguição ao delírio de negação se a mam~estaçao da melancolia se alternar ora em depressão ora
em agJtaçao.
Um dos grandes interesses em enfatizar a relevância das in-
É importante observar que as várias características desta-
vestigações da psiquiatria clássica é o fato de que, nesse terreno, se
cadas por ele, nessa afecção psíquica, estarão presentes nos estudos
descreveu o fenômeno de base da melancolia, a saber, o mecanismo
de Ab=aham e de Freud, mas é possível eleger um trecho de suas ela-
de autoacusação. Tal mecanismo tem um lugar de destaque na me-
boraçoes que corrobora o que foi dito:
lancolia, desde a psiquiatria clássica, passando pela obra de Freud,
de Lacan e de outros autores contemporâneos da psicanálise. Nesse Nestas formas predominam a ansiedade, uma ansiedade interior terrí-
sentido, Cotard é muito relevante para esta pesquisa, pois foi ele vel, os tem~res, os terrores imaginários, as ideias de culpa, de perdição
quem primeiro descreveu o mecanismo de autoacusação. A partir e .de danaçao; os doentes acusam a si mesmos, eles são incapazes in-
dos estudos do psiquiatra e neurologista alemão Wilhelm Griesinger dtgnos, eles fazem a infelicidade e a vero-onha
A o de su-s
'" f-m
" 1']'.Ias; :trao
-
pren,de-los, condená-los à morte; queimá-los ou cortá-los em pedaços
(1865), Cotard encontra sustentação para dizer que, "sob a influência
(COfARD, 1882/1997, p.28). '
do mal-estar moral profundo que constitui o distúrbio psíquico es-
sencial da melancolia, o humor ganha um caráter absolutamente
Isso quer diz.er que, diferentemente do delírio de perseguição,
negativo" (COTARD, 1882/1997, p.26). T:l, pois, por esse caminho
na melancolia com de/mo de negação, os pacientes acusam a si mesmos e
. com tss_:), eles ~róprios são seus perseguidores. A singularidade da~
que Cotard edifica sua investigação acerca do delírio de negação
melancólico. Ele busca inspiração, sobretudo, no fator isolado por
descnçoesde Cotard (1882/1997) sobre os sintomas melancólicos
Griesinger, que diz respeito ao humor negativo do melancólico. A
desses pacte~tes consiste na delimitação e na extração elo traço prin-
partir daí, encontra razões para estabelecer a distinção entre o delírio
ctpal do dehno de negação: o fenômeno de autoacusação. Conse-
de perseguição e o delírio de negação. Assim, ele designa o estado desses
quentem~nt:, a distinção entre o delírio de perseguição e 0 delirio
doentes como "delírio de negações". Nesse quadro, a disposição ne-
~e negaçao e a mamfestação, nesse último, do fator da autoacusacão.
gativa é elevada ao mais alto grau, no qual o doente apresenta nega-
E claro que, no delírio de perseguição, também está presente 0 • fe-
ção de tudo, opondo-se e resistindo a tudo.
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nômeno da acusação, mas ele se apresenta de m'aneira ,diferente; Algumas vezes, essas manifestações são acompanhadas por
nesse caso, a acusação é feita ao Outro, segundo a terminologia la- ideias de ruina, que se parecem com um delírio negativo, conforme
caniana. descrito. Os melancólicos tornam-se empobrecidos e se apresentam
A partir do que foi desenvolvido, percebe-se que o fenô- assim para as pessoas que lhe são próximas. Merece destaque o modo
meno da acusação desempenha um papel fundamental na estrutura- como Cotard (1882/1997) refere-se ao delírio de negação, opondo-
ção do delírio de negação. Como se constatará mais adiante, esse lhe o delírio de grandeza, típico dos perseguidos, favorecendo a de-
fenômeno servirá de guia ao se estudarem outros autores, não só limitação do campo conceitual: "Isso é o avesso dos delírios de
Freud e Lacan, como também seus leitores. grandeza, no qual os doentes se atribuem não só imensas riquezas,
Além desse ponto, é importante ressaltar, na melancolia, o como também todos os talentos e todas as capacidades" (COTARD,
que o saber psiquiátrico isolou como sendo a predisposição môrbida 1882/1997, p.32).
profunda, que é acompanhada de alteração da sensibilidade com a Uma das primeiras negações que se manifesta precoce-
presença da anestesia. Esse fator da anestesia relacionada à melan- mente no melancólico é com relação à possibilidade de se curar. Essa
colia será tema observado também pelo contemporâneo de Cotard, negação irá culminar em um quadro de negação do mundo exterior
Jules Séglas, que irá desenvolver com mais profundidade esse assunto, e de sua própria existência. Em um grau mais elevado do delírio de
e por Freud (1895a/1987), em seu "Manuscrito G". negação, quando este já se encontra constituído, ele tem como objeto
Com o intuito de construir o caminho por onde evolui o a própria personalidade do doente ou o mundo exterior. No caso de
delírio do melancólico que apresenta autoacusação, até chegar ao ser ele mesmo o objeto, o doente apresenta uma característica bem
delírio das negações, Cotard (1882/1997) faz uso, então, da expres- peculiar, que foi isolada por Jules-Gabriel Baillarger, aluno de Esqui-
são "hipocondria moral". 7 Partindo, pois, da hipocondria moral, Co- rol, ao estudar os paralíticos. Nesses casos, os doentes apresentam-
tard pretende fundamentar sua exposição a respeito da evolução se sem estômago, sem cérebro e sem cabeça, e ainda se recusam a
do delírio das negações. Nessas condições, o doente que se encon- comer e não conseguem mais digerir. Frequentemente, retêm suas
tra sob esse domínio não acredita naquilo que o outro afirma de fezes. Podem-se apresentar também com a ideia de que nunca irão
positivo a seu respeito, nem nas manifestações de afeto que lhe morrer. Para Cotard (1882/1997), isso se deve ao fato de que, na fase
são dirigidas. A evolução do delírio melancólico se dá desta ma- de estupor, os doentes imaginam, antes de tudo, que estão mortos.
netra: O fato de acreditarem que não têm estômago traz uma consequência
ainda maior: uma recusa à alimentação. Ao passo que, no delírio de
Os melancólicos ditos sem delírio são efetivamente acometidos por
.perseguição, a recusa de alimentos aparece quando a ideia dehrante
um delírio triste, tendo como objeto o estado de suas faculdades mo-
rais e intelectuais, e apresentando já uma forma negativa evidente. Eles
diz respeito ao fato de acreditarem que alguém possa envenená-los.
têm vergonha ou mesmo horror de sua própria pessoa e se desesperam Se, na hipocondria dos melancólicos, há uma prevalência
imaginando que não poderão jamais reencontrar suas faculdades per- da humildade, da pobreza e da ausência absoluta de valor, na hipo-
didas. Eles lamentam sua inteligência esvaecida, seus sentimentos apa- condria dos perseguidos, prevalece uma boa imagem de si, com pre-
gados, sua energia desaparecida. [...] Afirmam que não têm mais
servação da organização. Nestes, há uma responsabilização do
coração, afeição por seus parentes e seus amigos, nem mesmo por seus
ülhos (COTARD, 1882/1997, p.30).
mundo exterior por seus males. Muitas vezes, acusam seu médico e

78 79
chegam ao delírio de perseguição propriamente cortstituído. Assim, ele que, com o tratamento, os fenômenos possam diminuir. Mas as
no perseguido, as influências nocivas convergem de fora para dentro ideias delirantes e as negações persistem no mesmo grau. Considera
de sua pessoa, ao passo que, no melancólico, a influência nociva parte certa melhora o fato de que o doente passe a apresentar um quadro
de dentro dele para o mundo externo. ele loumra cinular ou quadros ele acesso ou intermitentes, conforme des-
Cotard (1882/ 1997) é incisivo em sua investigação, e os ele- critos por Falret (1864/1994).
mentos que reuniu até aqui parecem recortar bem as distinções entre O delírio ele negação que Cotare! (1882/1997) investigou
uma afecção e outra, distinguindo, com clareza, o delírio de negação merece uma melhor descrição, já que alguns autores ele sua época se
em relação ao delírio de perseguição. No entanto, ele vai indicar que, mostraram receosos ele conferir a esse delírio o estatuto de uma en-
nos casos mais graves da melancolia com delírio de negação, cos- tidade específica ela melancolia. A polêmica ela sociedade psiquiátrica
tuma-se detectar a presença de alucinações, nas quais "os doentes ela época se polarizou entre duas posições: aqueles que consideravam
creem-se envolvidos por chamas [...] e ouvem vozes qne lhes repro- o delírio de negações como um quadro nosográfico em si mesmo,
vam seus crimes; e leem sua sentença de morte ou repetem que estão diferente ela melancolia, e os que o entendiam como um estado de-
danados" (COTARD, 1882/1997, p.34). lirante especial de certas formas graves ele melancolia ansiosa que
Vale ressaltar que, na alucinação dos persegcüdos, os pa- avançavam para a cronicidacle. Esse assunto foi bastante debatido
cientes chegam a dialogar, respondendo a seus interlocutores imagi- por ocasião do Congresso de Blois, quando se reuniram várias auto-
nários. Nos melancólicos, diferentemente disso, quando existe ridades psiquiátricas, em 1892.
alucinação, não se observa o diálogo. À época desse congresso,Jules Cotare! já havia falecido, por
Um fator grave que predomina na melancolia com ideia de isso, Jules Séglas foi quem retomou a discussão sobre o tema, esta-
danação é o suicídio. Embora, nesses quadros, os pacientes acreditem belecendo com mais precisão o valor semiológico e a patogenia desse
já estarem mortos, eles não deixam ele se destruir. Cotard assinala delírio particular. Segundo ele, as discussões provieram elo fato de
que "uns querem se queimar, sendo o fogo a única solução; outros qne não se entendia muito bem a significação do termo "delírio ele
querem ser cortados em pedaços e buscam por todos os meios pos- negações". Além disso, ressalta que o termo carece de precisão, já
s.íveis satisfazer essa necessidade doentia de mutilações, de destruição, que Cotare! (1882/1997) o aplicou tanto ao sintoma do delírio quanto
ele aniquilamento total" (COTARD, 1882/1997, p.36). ao conjunto da enfermidade. Séglas (1892/1997) indica que o termo
Por isso é que se observa, na clínica ela melancolia, que os "delírio" não pode e não deve designar mais que um conjunto de
atos de mutilar-se, autoagredir-se e suicidar-se são características cen- ideias delirantes. O delírio de negações, consequentemente, ela
trais. Mais adiante, à luz dos textos de Freucl e de Lacan, ver-se-á mesma forma que os delírios de autoacusação, de grandeza e ele per-
como eles desenvolvem e favorecem esclarecimentos antes inexis- seguição, não pode ser suficiente para constituir uma forma mental
tentes em relação a esses fenômenos. Tais fenômenos são pontos determinada e só pode ser entendido como um conjunto ele ideias
fundamentais neste estudo, pois irão elucidar, dentro do objetivo delirantes de negação. Estas podem apresentar-se sob uma forma de
proposto, a melancolia em relação às psicoses e às neuroses. ,delírio as sistemático (como na paralisia geral, na senilidade ou em al-
Para os propósitos ele cura, Cotare! (1882/ 1997) observa gumas formas ela paranoia) ou ainda como delírio sistematizado, es-
que a melancolia é de prognóstico deplorável, embora se refira ao fato pecialmente na melancolia, em que se observa esse "delírio ele

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negações" em um particular estado de fixação e de sistematização. Entre os fenômenos descritos, todos da maior relevância, encon-
Tal é a forma especialmente encarada por Cotard (1882/1997). tram-se dois fatores essenciais: a dor moral e o delirio de indignidade.
Na tentativa de esclarecer e retificar o mal-entendido gerado A anotação deste último vem elucidar que, embora silenciosamente
entre alguns membros da Sociedade Psiquiátrica da época, Séglas e sem se dirigir agressivamente ao outro, a sua manifestação cons-
(1892/1997) propõe não empregar mais o termo "delírio de nega- titui fator decisivo na clínica, no que diz respeito à elucidação do
ções", senão especificando-o mais precisamente. Assim, ele propõe diagnóstico. Tais fenômenos constituem o quadro da melancolia
designá-lo como delirio de negações melancólico, ou melancolia com simples sem delírio, também designada como melancolia com consciên-
delírio de negações, ou delirio de negações tipo Cotard. Neste, são cia ou hipocondria moral. São eles a dor moral, os distúrbios cenesté-
descritos seis sintomas característicos: 1) ansiedade melancólica; 2) sicos e os distúrbios intelectuais, sendo estes também designados
ideias de condenação e de possessão; 3) tendência ao suicídio e às de parada psíquica.
mutilações voluntárias; 4) analgesia; 5) ideias hipocondríacas de não Observa-se que a dor moral é própria da melancolia e já
existência ou de destruição de diversos órgãos, do corpo inteiro, da havia sido recortada como principal elemento da afecção. Quanto
alma, de Deus, etc.; e 6) ideia de não poder jamais morrer, cujo agru- aos distúrbios físicos da melancolia, esses são muito variados, e Séglas
pamento constitui propriamente o que se conhece como Síndrome (1894) os descreve como dores sem muita localização, fadiga intensa,
de Cotard. palpitações, perda do apetite, constipação, insônia e sonolência. Além
A importância de Cotard para esta investigação liga-se ao desses, existem os distúrbios psíquicos que acompanham os físicos.
modo como esse autor formulou o delírio das negações como avesso Estes são denominados de depressão psíquica. Trata-se, então, de abulia
do delírio de perseguição. Nesse campo, destaca-se Jules Séglas, que, ou apatia, falta de resolução, lentidão dos movimentos, monotonia
partindo desses estudos, faz avançar a investigação da melancolia, ao da fala, falta de cuidados corporais.
extrair da hipocondria moral de Falret um dos principais fenômenos na Embora outros autores acreditem que a dor moral cause a
base dessa doença, que é a dor moral. Ver-se-á o quanto suas ideias parada psíquica, Séglas (1894) é categórico ao afirmar que a dor moral
serão relevantes, sobretudo para Lacan, que buscou a expressão dor é secundária, ou seja, que ela resulta da derivação da consciência das
de existir, derivando-a da dor moral descrita por Séglas. Esse avanço modificações advindas no exercício das faculdades intelectuais.
no estudo da melancolia influenciou investigações posteriores reali- A cenestesia presente na melancolia é descrita como sendo
zadas sob a luz da psicanálise. o sentimento de inexistência do corpo. Nesse aspecto, os distúrbios
que sobrevêm em decorrência do início da melancolia atingem as
_funções orgânicas e culminam em numerosas sensações novas que
2.4. A dor moral e o delírio de indignidade podem modificar o complexo cenestésico habitual. Séglas (1894) lo-
caliza o modo como tais distúrbios se apresentam, isto é, "as imagens
Jules Séglas, psiquiatra que fazia parte da Salpêtriere, des- interiores não são mais adequadas às suas excitações normais; e as
tacou-se ao descrever o quadro melancólico em suas lições clínicas, sensações, mesmo regularmente transmitidas, não chegam à cons-
De la melancolie sans déliré (1894) e Le délire dans la mélancolie9 (1889), ciência, senão como inúmeras impressões alarmantes por sua estra-
nas quais apresentou os fenômenos elementares dessa patologia. nheza" (SÉGLAS, 1894, p.287).

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Essa descrição permite compreender o distúrbio da melan- Em sua forma mais simples de melancolia, essa dor consiste em um
colia associado ao modo como Freud (1915-1917 /1974) descreverá sentimento vago de opressão, de ansiedade e de tristeza. Ela também
esse processo, isto é, como sendo interditado em relação ao trabalho pode-se transformar, repentinamente, em ideias isoladas, concretas,
interno entre as instâncias psíquicas, por ocasião de uma grande airando em torno de um tema penoso, constimindo um verdadeiro
perda. delírio. Paralelamente, a inteligência apresenta as anomalias formais
O processo descrito por Séglas (1894) para estudar a dor que foram descritas por Séglas (1894). A dor moral é, segundo Grie-
moral origina-se do estado cenestésico penoso e do distúrbio do singer (1865, p.264), em suma, "um sentimento de infelicidade moral
exercício intelectual. Na verdade, a dor moral pode ser resumida em profundo; o doente se sente incapaz de agir, suas forças desaparecem
um sentimento de impotência, que se traduz por uma "depressão e ele se encontra triste e abatido, ele perdeu completamente a estima
dolorosa." Nessas condições, o melancólico apresenta-se com ex- por si mesmo". O humor se torna negativo e, consequentemente,
pressões bem particulares em suas atitudes, na sua fisionomia e na ou o paciente se queixa de tudo, manifestando suas insatisfações, ou
mímica, que expressam a sua dor e "traduzem toda a gama das pai- elas se voltam sobre ele. Mas ele sente que toda essa disposição ne-
xões tristes, desde o abatimento e o tédio até a angústia, o terror ou gativa não é justificada. Griesinger acrescenta que:
o estupor" (SÉGLAS, 1894, p.290). Tudo isso provoca no melancó-
lico um estado de anestesia e desestesia psíquica de forma que ele [... ] a regra da causalidade exige tine esta tristeza (à qual ele se sente
"fica insensível às excitações normais, o que faz com que ele se isole aprisionado) tenha um motivo, uma causa, e antes que o sujeito se in-
cada vez mais do mundo exterior, fechando-se sobre si mesmo. Ele terrogue sobre isso, a resposta lhe advém: todas as espécies de pensa-
mentos lúgubres, de sonhos, de pressentimentos e de apreensões
não participa mais do que se passa ao redor dele, tudo lhe parece pe-
(GRIESINGER, 1865, p.269).
noso. [... ] Ele vê tudo negro" (SÉGLAS, 1894, p.290).
Segundo Séglas (1894), Griesinger (1865), fundador da psi-
E ele conclui dizendo que "o delírio é também uma tenta-
quiatria alemã, já afirmara que o humor do melancólico é negativo.
tiva de explicação deste estado" (GRIESINGER, 1865, p.269). As
E, de uma forma bem ampla, viu-se em que e como isso se desdobra
investigações feitas por esse autor são essenciais, pois, em seu Tratado,
no delírio das negações, a partir dos estudos de Cotard. Mas, para
introduz uma causalidade subjetiva:
Séglas (1894), esses são sintomas da melancolia simples, designada
assim por ser sem delírio ou com consciência. Caso o delírio se de- Podemos confirmar pela experiência que as exortações, os sentidos afe-
senvolva, "ele é uma tentativa de explicação dos fenômenos doloro- tados, o raciocínio, não têm nenhuma influência sobre este estado de
sos primitivos" (SÉGLAS, 1894, p.291). tristeza engendrado pela doença cerebral, e que as ideias que provocam
As ideias de Griesinger merecem ser colocadas em destaque, este estado devem ter uma origem interna subjetiva c, portanto, um ca-
ráter de irrefutabilidade que lhes tornam inacessíveis (GIUESINGER,
porque serão importantes para a psicanálise, já que, em sua investiga-
1865, p.267).
ção, esse autor buscava a causalidade do delírio. Influenciado por
Guislain, Griesinger caracteriza a melancolia essencialmente como
Griesinger (1865) introduz, então, o conceito de causali-
uma "dor moral que persiste por si mesma, mas que é mais reforçada
dade, que se tornará importante para a psicanálise, já que é a ques-
pela impressão moral que vem do exterior" (GRIESINGER, 1865).
tão da causa que se encontra no fundamento da fórmula freudiana

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(Wo es zvar, sol! Icb werden) da assunção do 'sujeito (LACAN, Quanto à melancolia delirante, ela é descrita por Séglas
1960a/1998, p.856). E Lacan acrescentará, ainda, que a categoria de (1894) sob variadas formas, cujas características principais são a hu-
causalidade é tributária do próprio conceito de sujeito. O fundador mildade e a autoacusação. Vale lembrar que Cotard (1882/1997) já
da psiquiatria alemã indica também que, na melancolia, tratando-se assmalara que a autoacusação está na base do delírio de negações. A
de uma psicose, a resposta funesta e lúgubre é anterior ao problema descrição de Cotard é bem parecida com a de Séglas:
da causa. O delírio tem justamente essa função de explicação, o que
será colocado em destaque por Freud no caso Schreber. Aí onde ldeias ~~ ruína, de humilhação, de incapacidade, de autoacusação, de
culpabilidade para com a sociedade, para com Deus, ideias de danação,
Griesinger (1865) distingue uma causa desconhecida, na qual estaria de perseguição, medo do castigo, de tormentos, do inferno, e, às vezes,
a origem da dor moral do melancólico, Freud (1915-1917 /1974) vai ideias especiais de negação e de imortalidade (SÉGLAS, 1894, p.297).
situar uma perda que, diferentemente da perda conhecida do enlu-
tado, é uma perda desconhecida. Nesse sentido, o delírio é um sin- Mas tal como afirmado anteriormente, o delíi:io do melan-
toma secundário na melancolia. cólico é uma formação secundária, na qual, em sua origem principal,
Vale destacar o modo como Séglas (1894) descreve o suicí- estão os fenômenos descritos por Séglas (1894) como manifestações
dio melancólico, dizendo que as tentativas, às vezes, fracassadas de da dor moral, um dos elementos fundamentais da melancolia. O fe-
se matar são justificadas pelo fato de que, ao melancólico falta energia nômeno da "parada psíquica" guarda relação com os distúrbios das
suficiente para despender em tal ação. Ele afirma que: ideias sobre si mesmo. De acordo com Séglas, "as imagens interiores
não são mais adequadas", e o que chega à consciência são "impres-
Sem dúvida, a maioria dos melancólicos rumina durante muito tempo sões alarmantes por sua estranheza" (SÉGLAS, 1894, p.287).
seus projetos de suicídio, inventando todas as espécies de planos [...]
Quanto à autoacusação e à humildade, Séglas (1894) assi-
mas na realidade, somente escondem uma falta absoluta de decisão e
de iniciativa, inerente à sua condição mesma de melancólicos [...] eles nala que não são suficientes para o diagnóstico da melancolia, pois
são incapazes de deslocar energia necessária e fazer um esforço sério estão também presentes em outras manifestações patológicas. Mas,
para se matar [.. .]. Esta falta de energia nos explica por que, na maioria em se tratando da melancolia, elas estão sempre presentes, como fun-
das vezes, suas tentativas são ridículas ou inacabadas [...] mas elas podem damentais, integradas na constituição da justificativa delirante.
acontecer de repente, sob o golpe de um ataque ansioso, de terror pa-
É, pois, a dor moral, com todos os seus sintomas psíquicos,
nofóbico, pelo fato de um impulso súbito (SÉGLAS, 1894, p.295).
a causa do delírio na melancolia. Este se apresenta com um círculo
Baseando-se nessa questão do suicídio, Séglas parece ter razão, de lamentações bem monótono e uma fixação em relação à parada
mas somente em parte. Contudo, a clínica psicanalítica da melancolia · psíquica. Nesse aspecto, Séglas já assinala uma distinção em relação
ensina que é difícil estabelecer se isso se confirma, ou seja, se o melan- . ao delírio paranoico: "É bem dife,rente da sistematização progressiva
cólico não se mata quando está gravemente deprimido. Vê-se que, de outras certezas delirantes" (SEGLAS, 1889, p.298).
mesmo que seja preciso coragem para se matar, pois o paciente terá que A indignidade sentida pelo melancólico manifesta-se através
despender uma grande quantidade de força para realizar tal ato, algumas ela descrição de suas ideias sobre si mesmo, presentificadas pelo sen-
vezes, observa-se que isso acontece, como o próprio Séglas disse na ci- timento de incapacidade, por meio do qual o paciente se sente in-
tação anterior, "pelo fato de um impulso súbito" (SÉGLAS, 1894, p.295). digno de conviver com outras pessoas e merecedor de todo o mal

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assento que lhe pareça o menos confortável [...] Se ele recusa os ali-
que 0 aflige. A descrição do melancólico feita por Séglas mer~ce ser
mentos é porque ele não pode pagá-los e porque ele descobre que eles
apresentada: "ele se acredita culpado, mdigno de se com~rucar com são muito suculentos para el;. Se ele trabalha, ele se constrange às ta-
seus semelhantes; ele não passa de um ammal, uma besta, em suma, refas as mais repugnantes (SEGLAS, 1889, p.303).
uma porcaria. Ele não serve para nada na Terra; melhor sena se es-
tivesse morto" (SÉGLAS, 1889, p.302-303). . O delírio do melancólico refere-se a esse lugar de dejeto,
Um dos aspectos relevantes, na investigação de Séglas, e o de negação de si e do mundo. E é causado pela nocividade que ele
fato de, além de ter descrito a "dor moral" na melancolia, ter buscado representa para os outros, ou seja, o delírio do melancólico, mono-
subsídios em seus contemporâneos, tanto em Cotard, quan:o em temático e empobrecido, justifica e desvela seu statu.r abjeto. As ideias
Guislain e Falret, para estabelecer a distinção entre o melancohco e delirantes do melancólico·são acompanhadas de passividade e de re-
perseo-uido: enquanto o melancólico acusa a si mesmo, o perse- signação. Muitas vezes, essa resignação aparece para o doente por-
0
guido a~usa os outros. O delírio do melancólico tem, logo, uma tando um sentimento de aniquilação, por estar submetido a um poder
forma centrífuga, em que o sujeito figura como o centro do mal e tão invencível, que o faz se sentir incapaz de lutar. Séglas assinala que
do crime, pois, nele, vê-se que o delírio se inicia na própna pessoa e "se eles sofrem é porque mereceram devido a suas faltas, é apenas
passa a envolver parentes, amigos e até toda a humamdade. Nessa justiça" (SEGLAS, 1889, p.304). Tal resignação pode levar o paciente
forma centrífuga, marcada pela humildade, o sujelto acred1ta ser no- a produzir, inclusive, uma expectativa delirante de punição. Séglas
civo ao Outro, de acordo com a terminolog1a lacaruana .. Ao passo (1889) observou que uma de suas pacientes se sentia em um tribunal,
que, nos perseguidos, as característic~s são diferentes, po1s ~les. acu- pronta para se dirigir ao palanque de execução. Percebe-se o quanto
sam os outros, sendo, então, o seu delíno marcado pela caract~nstlc~ o delírio de indignidade gera consequências e abarca, em grande es-
centrípeta, na qual 0 sujeito, orgulhoso, afirma que o Outro e que ,e cala, o modo como o melancólico convive com as pessoas à sua
nocivo. Além disso, 0 melancólico é um hunulde, ao passo qu~, o v.er- volta, reiterando a posição passiva, humilde, inferior e resignada em
dadeiro perseguido é um orgulhoso. No primeiro, destaca-se um delírio relação aos outros.
de espera" acompanhado por um medo de que uma mfeliCJdade o as- Nessa via, Lasegue, que já descrevera o delírio de persegui-
sole, por ter provocado algo ruim a alguér;>: "alguém va1 mata-lo, ele ção, distingue-o do delírio do melancólico: "O melancólico é um
será maldito, sua familia será arruinada" (SEGLAS, 1889, p.302-303). indiciad~ (prévenu), e o perseguido é um condenado (condamne)" (Lii.SEGUE
O delírio de indio-nidade mostra a posição (indigna) de hu- apudSEGLAS, 1889, p.308). Ser indiciado significa ficar em uma po-
b . I
milhação que 0 paciente assume em suas relações pessoa1s. sso se sição de espera da sentença, ou seja, da punição e do castigo. É isso
manifesta a partir do modo como o paciente se apresenta. ~eu andar .que caracteriza a expectativa delirante de punição que Freud (1915-
é tímido, embotado; sua voz é sempre baixa. Uma caractensuca que 1917 /1974) descreverá em "Luto e melancolia". Quanto ao para-
· Séglas destaca é a recusa do paciente em cumprimentar o outro. Isso noico, este já recebeu a condenação de morte e passa a se sentir
se justifica da seguinte forma: perseguido.
Se Cotard descreveu o delírio de negações - no qual o su-
[...} porque ele não é digno de receber as expressões de estima que lhe jeito não tem nome, não tem idade, não nasceu, não tem nem pai nem
dirigimos, que não vale a pena que se ocupe dele. Ele recusa a se assen- mãe, e, em alguns casos, ele próprio não existe e não está vivo- Séglas
tar 00 lugar que lhe oferecemos; ou se o deixamos livre, ele escolhe o
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aprofundou a investigação sobre a dor moral, oriunda da "parada antigos, Kraepelin é o psiquiatra que abre um novo campo: o das
psíquica", que compromete profundamente o melancólico. As ideias classificações das doenças mentais em quadros nosológicos. Pode-
dos dois convergem para um mesmo plano, tanto do ponto de vista se dizer que ele inaugura o DSM (Manual Estatístico e Diagnóstico
clínico, quanto do ponto de vista conceitual. Ver-se-á o quanto Freud de Transtornos Mentais), abrindo camínho para a medicina mental
utilizará esses conceitos para descrever a melancolia ao longo de sua classificatória. Nesta, as investigações cerebrais, classificatórias, ocu-
obra, sobretudo em relação aos fenômenos próprios dessa categoria. pam um lugar privilegiado, em que o sujeito per-manece de fora, su-
Antes de iniciar o próximo item, cabe, ainda, uma incursão turado pela medicalização do corpo.
nas elaborações kraepelinianas sobre a psicose marúaco-depressiva. Jacques Poste! e David Allen (1993, p.6-7), na apresentação
A importância de suas descrições se fez patente desde o início do de parte do tratado de I<raepelin, La folie maniaque-dépressive, 10 consi-
século XX. A partir de Kraepelin, a melancolia ganha uma nova de- deram-no o verdadeiro fundador da nosografia psiquiátrica atual,
signação: psicose maníaco-depressiva. Para Kraepelin, a psicose ma- sobre a qual repousam ainda o DSM III-R e a Classificação Interna-
rúaco-depressiva se reduz a uma única causa: o corpo. Com isso, uma cional de Doenças- décima edição, o CID 1O.
causalidade psíquica permanece de fora. Toda a investigação dos psi- A psicose maníaco-depressiva entra, a partir de 1913, no
quiatras franceses em torno de uma causa psíquica fica, a partir de quadro das doenças mentais endógenas. Vale esclarecer que uma
Kraepelin, reduzida ao corpo. Isso não é sem consequências para a afecção de tipo endógeno é caracterizada, segundo Henri Ey
terapêutica, que se reduz ao tratamento moral e à laborterapia. (1981, p.290), "pelo papel atribuído à herança e à constituição e
também aos fatores biológicos humorais e hormonais". Kraepelin
(1913/1993), ao descrever os tipos dessa doença e suas manifesta-
2.5. A psicose maníaco-depressiva ções, pretende classificá-la de uma maneira rigorosa. É nesse con-
texto que ele tece críticas aos psiquiatras anteriores, sobretudo
Em 1913, na oitava edição de seu Tratado sobre as doenças Falret, que havia descrito a loucura circular. I<raepelin (1913 / 1993)
mentais, Emile Kraepelin confirma, pela primeira vez, a natureza en- subdividiu em quatro grupos as formas clínicas da psicose marúaco-
dógena, quase constitucional, da loucura marúaco-depressiva. Nessa depressiva:
ocasião, a melancolia se junta ao quadro da psicose marúaco-depres- • Os estados maníacos: a hipomania, a mania aguda, as ma-
siva. Ao que parece, isso representou uma perda de sua individuali- nias delirantes e confusas.
dade nosológica em proveito da loucura circular descrita por Falret. • Os estados depressivos: a melancolia grave, a melancolia
Ademais, perdeu-se também o fator preponderante que os psiquia- delirante e paranoide, acompanhada, às vezes, por alucinações na
tras anteriores isolaram: a dor moral. A investigação da escola fran- forma dita "fantástica" com delírio hipocondríaco, ideias de negação
cesa acerca da causalidade psíquica, tendo como fator preponderante de órgãos, que é a Síndrome de Cotard.
a dor moral, perde valor. Por outro lado, constata-se que Kraepelin, • Os estados nos quais a variabilidade do humor persiste
ao localizar a causa da melancolia no corpo, faz um retorno aos pres- entre as crises) e mesmo em certos casos os substitui, constituindo
supostos dos médicos antigos, já que, para estes, a causa principal da então toda a doença. Esses são os estados "de excitação constitucio-
melancolia também se situava no corpo. Mais que um herdeiro dos nal", de "depressão constitucional" e de "irritabilidade constitucional".

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É também o "temperamento ciclotimico", caracterizado por uma al- Sérgio Laia (2009) discute essa questão em um de seus
ternância entre excitação e depressão, nos quais não se apresentam) artigos. Na opinião desse autor, os equívocos que foram produzidos
obrigatoriamente, crises verdadeiramente maníacas ou depressivas. no DSM-IV em relação aos transtornos bipolares criam um emba-
Enfun, os estados mistos, em que se encontram os elementos ma- raço no próprio campo das classificações em relação ao estabeleci-
níacos associados na mesma crise que a dos elementos depressivos. mento do diagnóstico. Existem casos que não se enquadram nos
Até então, acreditava-se na incompatibilidade entre a depressão e a rótulos e acabam ficando fora do sistema, relegados a uma subcate-
mania na mesma fase evolutiva. goria sem especificação. De acordo com Laia (2009), essa subcate-
O que impressiona, ao se percorrer o Tratado de I<raepelin goria decepcionante chega a criar situações inusitadas e com-
(1913/1993), são as afirmações contundentes a respeito da psicose prometedoras para a metodologia da classificação e sua aplicabilidade
maníaco-depressiva, entre as quais a de que o doente não será pou- clínica. Isso porque, no âmbito dos 1O diferentes diagnósticos de
pado de um futuro demencial. Além disso, afirma-se que ela condena transtornos da personalidade listados no DSM-IV-TR, o diagnóstico
o doente a recaídas sucessivas, que poderão levar a um estado termi- transtorno de personalidade sem outra especificação tem sido o de
nal "deficitário". Postei e Allen (1913/1993) dizem que, com esse maior frequência.
autor, o doente mental não pode mais transitar livremente, devendo Por essa via, pode-se constatar uma "impotência em diag-
ficar trancado no asilo. O caráter endógeno já se refere à incurabili- nosticar, ou, ainda, a comprovação de que os sintomas carregam o
dade. Mais uma vez, encontra-se não só a referência do tratamento que a orientação lacaniana nos permite designar como um irredutivel
moral que os psiquiatras anteriores propunham, mas, com as pesqui- à classificação" (LAIA, 2009, p.94). Isso é um problema que pode
sas de I<raepelin, o caráter incurável da doença também é ressaltado, minar a confiabilidade do modelo categórico de classificação diag-
o que aponta para o fato de que o próprio psiquiatra não concebia nóstica. Para a psicanálise de orientação lacaniana, o que aparece
uma melhora, nem com o tratamento moral. como contrassenso metodológico e clínico, para os defensores do
Vale destacar que, se o fator endógeno prevalece, o trata- DSM, tem relação estreita com a dimensão opaca e irredutível do
mento, o doente e a melhora ficam restritos. Se o corpo é a sede da sintoma. Ao fazer uma correspondência entre as noções de "cate-
doença, considerada hereditária, qual seria a eficácia clínica de uma goria" e de "tipo clínico", Laia lembra que, para Lacan (1973/2003,
classificação tão minuciosa? Observa-se, hoje, que a psiquiatria bio- p.554), "os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os
lógica busca a localização, através de mapeamentos feitos por exames outros do mesmo tipo". Assim, verifica-se que:
complexos, da tristeza e da dor de existir nos neurotransmissores,
nas dobras do cérebro. O manual de classificação das doenças, o Para Lacan, mesmo no âmbito ele um mesmo tipo clinico, de uma
DSM-IV, classifica os ditos "transtornos mentais" como categorias, mesma categorização, os sintomas de um sujeito não só podem como
são diferentes daqueles que outro sujeito apresenta, porque- ao con-
e o DSM-V subdivide não somente as categorias, mas também as
trário da abordagem defendida pelo DSM - há algo na constituição
dimensões. Desde I<raepelin, aponta-se para um modo de diagnos- dos sujeitos e na economia libidinal de seus sintomas que se furta à
ticar a partir da classificação dos transtornos em quadros clínicos categorização diagnóstica e que diz respeito tanto à evanescência do
que se agrupam por semelhanças. Isso não é sem consequências sujeito como efeito significante, quanto ao modo como essa substân-
na clínica. cia fluida que Lacan chamou de 'gozo' se imiscui nos corpos (LAIA,
2009, p.95).

92 93
Contudo, para ](raepelin (1913/1993), o ~orpo é o suporte opostas que dão seu nome à doença. Ao lado delas, observam-se,
e o meio de toda patologia mental. Assim, o autor sustenta as inves- ainda, os estados mistos, nos quais as manífestações maníacas e me-
tigações sobre a psicose maníaco-depressiva, baseado em uma teoria lancólicas se associam entre elas (KRAEPELIN, 1913/1993).
orgânica da doença mental. Como se viu, isso não difere muito da As formas clínicas pelas quais a loucura maníaco-depressiva
concepção de alguns médicos da Antiguidade, que viam o corpo se apresenta são caracterizadas, normalmente, pela oposição entre as
como sede das doenças da alma. crises maníacas e as crises depressivas. Em seguida, surgem os esta-
A loucura maníaco-depressiva compreende, por um lado, dos mistos, compostos de elementos emprestados a esses tipos clí-
o domínio da loucura periódica e da loucura circular, por outro, a nícos opostos em aparência. Segundo I<raepelin,
mania simples e os estados patológicos que se designam pelo nome
de melancolia. Segundo ](raepelin (1913/1993), todas as formas tra- [...] a observação não nos mostra somente a aparição de transições imper-
ceptíveis entre esses diferentes estados, mas .revela, também em um muito
zidas nessa unídade clíníca, curto espaço de tempo, que o mesmo doente pode experimentar sucessi-
vamente mudanças, as mais variadas (KRAEPELIN, 1913/1993, p.96).
[...] não somente apresentam entre elas uma série de transições, sem
que se possa observar o limite onde uma começa e a outra termina,
mas, ainda, em um único e mesmo caso, pode acontecer a invasão de
A melancolia, nomeada por Kraepelin como depressão,
uma sobre a outra ou a sucessão de uma após a outra (KRAEPELIN, divide-se em seis formas: melancolia simples, estupor, melancolia
1913/1993. p.25). grave, melancolia paranoide, melancolia fantástica e melancolia
confusa.
Para Kraepelin (1913/1993), tanto na prática, quanto na O quadro melancolia simples abarca as formas mais leves do
teoria, é absolutamente impossível separar as formas simples, perió- estado de depressão, que são caracterizadas pela aparição de uma ini-
dicas e circulares; em todas, existem transições imperceptíveis: bição psíquica simples, sem transtornos sensoriais e sem ideias deli-
rantes. Nesses casos, o humor do paciente é dominado, ora por um
Por um lado, [... ] vemos no mesmo doente se sucederem uma após a abatimento profundo e triste, ora por uma agitação ansiosa, mal de-
outra não somente a mania e a melancolia, mas também os estados de
finida. Quando a iníbição psíquica atinge seu mais alto grau pode en-
confusão profunda e de incoerência, ideias delirantes bem marcadas
e, enfim, oscilações leves do humor. No mais, uma coloração especial
gendrar o estado de estupor. "Os doentes ficam totalmente paralisados,
e uniforme do humor forma comumente o fundo sobre o qual apare- eles não podem mais perceber e elaborar as impressões exteriores,
cem os acessos propriamente ditos de loucura maníaco-depressiva não compreendem mais as questões que lhes colocam, não têm ne-
(KRAEPELIN, 1913/1993, p.25). nbuma ideia de sua situação" (KRAEPELIN, 1913/1993, p.131).
A melancolia grave é observada quando, junto aos quadros de
É por essa via que o autor classifica os estados maníacos, melancolia simples, surgem os dístúrbios sensoriais e as ideias deli-
cujos sinais essenciais são a fuga de ideias, o humor alegre e a neces- rantes: "Os doentes percebem as figuras, os espíritos, os cadáveres
sidade imperiosa de atividade. Quanto aos estados melancólicos ou de seus próximos; díante de seus olhos passam todas as espécies de
depressivos, esses são caracterizados pela tristeza ou angústia, e pela coisas díabólicas" (KRAEPELIN, 1913/1993, p.133). Nesses qua-
dificuldade em pensar e em agir. Essas são as duas formas clínicas dros, as ideias de autoacusação desempenham um papel importante.

94 95
Uma das características observadas é o fato de a rellgião oferecer um Os argumentos, ao longo do Tratado de Kraepelin
terreno fértil a essas ideias delirantes de autoacusação. Do ponto de (1913/1993), sobre a psicose maníaco-depressiva são baseados na
vista físico, o doente se sente incurável, quase morto, não se consi- hereditariedade dessa doença. Com Kraepelin, como já se disse, o
dera mais um verdadeiro homem. que está na base da doença é o corpo. Assim, a teoria kraepeliniana
Vale destacar, nas descrições de Kraepelin, a possibilidade se fundamenta, essencialmente, na organogênese.
de conviverem juntos o delírio de perseguição e o delírio de autoa- Merece ser destacado o caráter hereditário da psicose ma-
cusação: níaco-depressiva:

Estreitamente ligadas· ao delírio de autoacusação estão as ideias de per- A unidade da loucura maniaco~deprcssiva advém das diferentes formas
seguição. O doente espera em toda parte ser humilhado e xingado; ele que ela compreende, que podem se substituir umas às outras heredita-
está desonrado. Ele não quer mais se mostrar em lugar algum. Olham riamente. Nos membros de uma mesma família, encontramos muito
para ele, cochicham diante dele, tossem, cospem quando ele passa, frequentemente uma próxima da outra, loucuras periódicas ou circula-
ficam chocados com sua presença, considerando-a como ofensiva [...] res bem caracterizadas, distúrbios de humor, estados de confusão apa-
na sociedade, tudo o que dizem está relacionado a ele (KRAEPELIN, recendo uma única vez acidentalmente e, enfim, oscilações do humor
1913/1993, p.l37). leves e regulares de um estado anormal e permanente da vida senti-
mental (KRAEPELIN, 1913/1993, p.26).
Já a melancolia paranoide é designada aos doentes que se sen-
tem observados, seguidos pelos espiões e ameaçados pelos assassi- Assim, prevalecendo a hereditariedade, o campo subjetivo
nos. Nesse quadro, o humor é triste, abatido e, às vezes, desesperado. fica exclwdo, induzindo-se, por sua vez, à exclusão do psicótico ma-
Do ponto de vista prático, é importante assinalar a tendência ao sui- niaco-depressivo do campo social. A esse respeito, Kraepelin afirma:
cídio, que, nesses quadros, é frequente. "sejamos cautelosos, desconfiemos, jovens médicos que me escutam,
Outro grupo de casos, designado por melancolia fantástica, é o louco é perigoso e permanecerá até sua morte, que, infelizmente,
caracterizado pelo desenvolvimento das ideias delirantes e distúrbios é raramente rápida" (KRAEPELIN, 1913/1993, p.12). Tampouco
sensoriais: "o doente vê maus espíritos, a morte, cabeças de animais, seria válido escutar o doente. É inútil, segundo seu ponto de vista,
fumaça no quarto, homens negros nos tetos, monstros pululantes" escutar o doente psiquiátrico, pois "a ignorância da língua do doente
(KRAEPELIN, 1913/1993, p.145). Nesses quadros, as ideias deli- é, em medicina mental, uma excelente condição de observação"
rantes hipocondríacas também estão presentes. No interior de seu (KRAEPELIN, 1913/1993, p.18). Ao se referir desse modo aos pa-
corpo, tudo está morto, queimado, petrificado, vazio. Existe nele uma cientes, poder-se-ia inferir ainda que, para esse autor, o que prevalece
espécie de decomposição. Ao descrever esses quadros, Kraepelin é a observação.
(1913/1993) se refere às ideias de negação de Cotard. O percurso empreendido por Kraepelin é esclarecedor
Quanto à melancolia confusa, essa é uma das formas mais gra- sobre o momento em que, na psiquiatria, abre-se a via, com novos
ves da melancolia, com ideias delirantes. É caracterizada pelos dis- postulados, para inaugurar a época dos códigos internacionais das
túrbios profundos da consciência, com presença de inúmeros doenças. Certamente, a multiplicidade das classificações e nomeações
distúrbios sensoriais. que hoje se atribuem, tão facilmente, à dor de existir e à tristeza, vis-
tas como doenças localizadas no corpo, decorre desse momento. Daí
96 97
as inúmeras pesquisas sobre o mapeamento do cér~bro em busca da gência. No entanto, acaba por dizer que "as causas que a produzem
região responsável pelos sintomas psíquicos. Hoje, para cada suposta são ordinariamente morais" (ESQUIROL, 1838, p.2-7).
descoberta, assiste-se a uma proliferação de novos medicamentos, Reforçando a discussão sobre o aspecto moral da melan-
nos quais se deposita a ilusão de recompor uma saúde perfeita, um colia,Joseph Guislain, psiquiatra belga, se distancia das ideias de Es-
estado mental perfeito. Busca-se uma sutura do mal-estar, inerente à quirol. Em seu tratado sobre Asfrenopatias, de 1833, referiu-se ao fato
constituição humana. de que, no início de uma alienação mental, está sempre presente uma
impressão dolorosa que foi dirigida sobre a moral, o que gera um es-
tado mórbido, considerado como um elemento fundamental das
2.6. Apsiquiatria clássica e os fenômenos da melancolia afecções mentais, entre elas, a melancolia. Por essa ocasião, abre-se
um campo de investigação em que se introduz o que se tornará a ca-
Conforme se viu, a dor moral é uma expressão das mais im- racterística principal da melancolia: a frenalgia, traduzida pelos psi-
portantes para caracterizar a melancolia, quando surge, no século quiatras alemães e franceses como dor moral e que Lacan desionará b '

XIX, para descrever um dos principais fenômenos dessa patologia. mais tarde, como dor de existir.
Cabe, então, de acordo com o percurso empreendido na psiquiatria Para esses autores, a dor moral designa uma alteração primá-
clássica, situá-la em relação ao que os autores disseram sobre ela. ria da experiência vivida, que inaugura todas as evoluções possíveis
Além disso, pretende-se apontar que o delírio melancólico tem uma da alienação mental.
evolução que poderá, algumas vezes, comportar ideias de persegui- As investigações empreendidas pelo psiquiatra Jules Cotard
ção. traçam uma linha divisória entre o campo do delírio dos perseguidos
Viu-se que Philippe Pinel (1809/1976), ao se referir às e o do delírio dos melancólicos. Esse autor será o primeiro a separar
ideias delirantes que se impõem sobre o melancólico, relaciona-as a tais categorias. A partir de seus estudos e pesquisas clínicas, con-
uma afecção moral que domina o paciente. Pode-se deduzir, a partir forme se viu, ele irá trazer para a clínica da melancolia sua mais nobre
disso, que, desde a época da alienação mental, as investigações de contribuição, em que ele destaca o fenômeno da autoacusação como
Pinel apontavam para a hipótese de que o delírio melancólico tinha sendo o fundamental para se referir à melancolia. Freud irá retomar
como causa primária uma afecção no plano moral. Embora não tenha esse fenômeno como essencial na distincão entre melancolia e neu-
desenvolvido o que vem a ser tal afecção, é importante situar a ori- rose obsessiva.
gem dessa expressão. Foi nesse contexto que surgiu Jules Séglas, contemporâneo
Mais tarde, em 1838,Jean Etienne Esquirol restringiu 'o uso .de Cotard. O que o segundo apontou como destaque foi o fenômeno
do termo melancolia e propôs o termo lipemania. Suas ideias quanto da autoacusação como fator primordial para a melancolia. Entre-
à causa diferem das de Pinel, pois, para o primeiro, as causas da me- tanto, será o primeiro que irá descrever, com mais profundidade, o
lancolia são hereditárias, o melancólico já nasce com um tempera- fenômeno da dor moral e o delírio de indignidade presentes na me-
mento particular. Por outro lado, Esquirol se refere à melancolia, lancolia. Tais fenômenos, para esse autor, constituem o quadro da
atribuindo a ela como causa uma disposição inata que diz respeito melancolia simples sem delírio, também designada como melancolia
mais diretamente ao cérebro e incide sobre a sensibilidade e a inteli- com ronsciência ou hipocond1ia moral. São suas características a dor moral,

98 99
os distúrbios cenestésicos e os distúrbios intelectuais, sendo esses úl- castigos, suplicios, do inferno, e, algun1as vezes, ide.ias especiais de
timos também designados de parada p_ríqttica. negação e de imortalidade. Em Le délire dans la mélancolie 11 (1889), Sé-
Quanto aos distúrbios físicos, estes são de toda ordem, glas afirma que tais ideias não variam, exceto na aparência, pois todas
dores vagas e generalizadas, fadiga intensa, zumbidos, palpitações, apresentam um denominador comum: elas estão ligadas à dor moral
constipação, insônia e sonolência. Tudo isso constitui um novo es- assim como aos distúrbios corporais e de ideação.
tado cenestésico penoso. Uma depressão psíquica acompanha esse O delírio, para Séglas (1889), é uma tentativa de interpreta-
estado, um estado de abulia com apatia, falta de resolução, lentidão ção do estado de aniquilamento profundo, ou das causas que 0 pro-
tanto dos movimentos, quanto da fala, que se torna monótona e duzltam, do qual ele busca a razão ou considera as consequências.
lenta. Encontram-se também os distúrbios formais da ideação, mar- Nesse sentido, o conteúdo da ideia delirante será tão penoso quanto
cados pela dificuldade em fixar a atenção, em agrupar as ideias, em a dor que o sujeito sofre. Se ele se encontra nesse estado, é porque
seguir um raciocínio. Séglas descreve: alguma coisa de muito grave se aproxima, e o delírio se constitui,
conforme dizia Griesinger, como uma resposta que vem diante da
[...) a lentidão em compreender as perguntas (Guislain) ou em res- questão sobre a causa de seu sofrimento.
pondê-las, que, ao se acentuar, pode resultar no mutismo, a dificuldade O delírio localiza uma falta moral no lugar da causa desco-
de evocar e ele conservar as lembranças, certa tendência ao automa-
nhecida, definida por Freud (1915-1917/1974) como "uma perda
tismo do pensamento (SÉGLAS, 1894, p.288).
desconhecida". Essa falta moral justifica os distúrbios que invadem
A partir dessa descrição, pode-se compreender por que o melancólico, que lhe fazem procurar, por exemplo, em seu delírio,
Freud (1915-1917 /1974) colocará a melancolia em série com a esqui- a causa da punição em seus pecados de juventude. Assim, o delírio
zofrenia. Em "Luto e melancolia", ele se referirá a essas duas afecções con_stitui a causa desconhecida, fornecendo ao melancólico a expU-
como narcísicas, já que nelas se verificam também os fenômenos de caçao de seu patbo_r atual. A causa desconhecida, ou a falta desconhe-
crises corporais do tipo hipocondríacas e distúrbios ao nível da cadeia cida, corresponde estruturalmente à falha no psiquismo descrita por
significante: indo do "automatismo" à "parada psíquica". Freud e, em Lacan, à foraclusão do Nome-do-Pai. Para que o delírio
Essas duas espécies de distúrbios (do corpo e do pensa- se desvende, deve-se identificar a estrutura do desencadeamento da
mento) estão na origem da dor moral. Segundo escreve Séglas, "a melancolia, resumida por Freud (1915-1917 / 1974) pela expressão
dor moral provoca no melancólico um estado de anestesia, de de- "perda de um ideal". Essa perda disso que fazia suplência à foraclu-
sestesia psíquica [... ] Ele vê tudo negro, [...] ele se isola do mundo, e são do Nome-do-Pai provoca os distúrbios do corpo e do pensa-
se fecha sobre si mesmo" (SÉGLAS, 1894, p.290). mento que culminam na dor moral.
Quanto à melancolia com delírio, Séglas a descreveu . Nesse sentido, de acordo com tal descrição, pode-se dedu-
como uma "tentativa de explicação dos fenômenos dolorosos pri- Zir que o delírio é um sintoma secundário na melancolia. t\ relevância
mitivos" (SÉGLAS, 1894, p.290). Nas descrições desse autor, o de- dessa constatação, no campo da investigação psiquiátrica, irá condu-
lírio melancólico se apresenta pelas ideias de ruina, de humildade, de zir este estudo para o caminho empreendido mais tarde por Lacan,
incapacidade, de autoacusação, de culpabilidade para com a socie- que afirmará que o delírio, nas psicoses, é uma tentativa de cura e
dade, para com Deus, ideias de danação, de perseguição, medo de guarda estreita relação com a foraclusão do Nome-do-Pai. Se, para

100 101
Séglas (1894), o delírio é uma tentativa de explicação dos fenômenos mesmo, por isso, seu delírio tem um caráter divergente, uma forma
dolorosos primitivos, para Lacan (1956-1957 /1998), conforme se centrífuga, partindo do doente para atingir os que o rodeiam. Se-
verá, é o retorno, no real, daquilo que foi foracluído no simbólico. gundo Séglas (1889), nos perseguidos sistemáticos, o delírio é con-
Embora esses dois autores descrevam os fenômenos da melancolia vergente, ou seja, os outros é que o acusam, partindo, então, de
sob diferentes paradigmas, para ambos, o delírio é secundário. Isso fora para dentro, de uma forma centrípeta. Se, na melancolia, o de-
é o que aqui se salienta. lírio tem sempre um caráter de humildade, nos perseguidos, é o
A partir do estudo que se empreendeu junto à psiquiatria contrário, o delírio apresenta sempre um caráter orgulhoso.
clássica, pode-se dizer que os delírios melancólicos também possuem Séglas (1889) é categórico ao dizer que o melancólico
uma escala evolutiva própria. Na melancolia, diferentemente de ou- pode apresentar ideias de perseguição. Quando isso acontece, o
tros tipos de doenças mentais, as modificações intelectuais se insta- que não é tão comum, eles são dominados pelo caráter particular
lam progressivamente, o que possibilita aos doentes terem consciência do delírio, isto é, "se a polícia o procura, se algumas pessoas lhe
da transformação que sobrevém em suas particularidades psíquicas. manifestam hostilidade, é porque eles são culpados, porque fize-
Tal observação, lembra Séglas (1894), é traduzida pelo melancólico, ram mal a alguém, que ele merece ser vigiado, detido, condenado"
quando diz não mais se sentir como antes e perceber que perdeu (SÉGLAS, 1889, p.307). É o que Séglas designa como delírio de es-
suas faculdades intelectuais. pera. Lasegue (apud SÉGLAS, 1889) nomeia o melancólico de pre-
Apresentam-se, assim, as duas origens da dor moral do me- venido, ao passo que o perseguido já é um condenado, nos diz Séglas
lancólico, ou seja, o estado cenestésico doloro.ro e os transtorno.r do exercício (1889).
intelectual. O fenômeno nomeado como dor moral indica uma de- Para Séglas (1889), a humildade e a autoacusação são ca-
pressão dolorosa, é o sintoma mais impressionante da melancolia, é racterísticas importantes para se fazer o diagnóstico de melancolia,
o que mais a caracteriza. Observar-se-á que tal fenômeno representa mas nem sempre são suficientes, pois podem ser encontradas em
uma característica fundamental para o estabelecimento do diagnós- outras patologias psíquicas. O que ele afirma ser condição essen-
tico psicanalítico. cial para se fazer o diagnóstico é a presença fundamental da dor
Na melancolia, o delírio é considerado um processo da moral, a fixidez, a monotonia. Daí a necessidade de se buscar sem-
doença. Assim, inicialmente, tem-se o quadro de uma melancolia pre, em tais casos, a ocasião em que a doença teve início. Dessa
simples, que pode ou não evoluir para uma melancolia delirante. Do forma, podem-se encontrar os sintomas fundamentais de um es-
ponto de vista psíquico, os primeiros e principais sintomas que cons- tado melancólico antes da eclosão delirante.
tituem a melancolia são os transtornos cenestésicos e emocionais Caso a melancolia evolua para uma melancolia delirante,
(dor moral) e as alterações no exercício das operações intelectuais as ideias que prevalecem são as de ruína, de humildade, de incapa-
(transtornos da formação das ideias, parada psíquica e abolia). É des- cidade, de autoacusação, de culpabilidade, tanto para com a socie-
ses primeiros sintomas que, segundo Séglas (1889), procedem os dade quanto para com Deus, ideias de danação, de perseguição,
transtornos do conteúdo das ideias, ou seja, o delírio. medo de castigos, de martírios, medo do inferno e, às vezes, ideias
É importante diferenciar o delírio do melancólico do delírio de' negação e de imortalidade. O pano de fundo comum das ideias
do paranoico. Na melancolia, o sujeito não acusa os outros, mas a si delirantes do melancólico são a humildade e a autoacusação.

102 103
Pode-se dizer, a partir do percurso feito\aqui com os psi-
quiatras que investigaram o delírio melancólico, que tal delirio passa
por uma evolução. Ele sempre se originará de uma melancolia sim-
ples, ansiosa ou com depressão. Caso o quadro evolua para a me- CAPÍTULO 3
lancolia com delírio, estarão presentes várias ideias de ruína, de
indignidade, de culpabilidade, de autoacusação e, inclusive, de per- A SOMBRA DO OBJETO RECAI SOBRE OEU
seguição. Daí a pertinência, em relação à doutrina da psicanálise,
de se estar atento à sutileza dessas evoluções, no sentido de se evi-
tarem equívocos diagnósticos, privilegiando apenas os fenômenos,
em detrimento do sujeito. .Ao inaugurar um paradigma radicalmente diferente do mo-
delo da psiquiatria, a visada freudiana colocará em relevo o que pas-
sou a ser chamado, com Lacan, de a singularidade do sujeito, do
sujeito do inconsciente, e não mais a pura descrição dos fenômenos,
tal como se viu antes. Freud investigará as causas dos sintomas le-
vando em conta o inconsciente. .Ao diferenciar a forma de resposta
dada pelo sujeito no luto e na melancolia, ele implicará, aí, o sujeito.
Embora não tenha descrito casos de melancolia, ao distin-
guir os fenômenos do luto e da melancolia, Freud acaba por contri-
buir para as intervenções do analista no tratamento do melancólico.
.A distinção entre as neuroses-psicoses, na obra de Freud, é
produto de uma longa elaboração. Foi necessária uma profunda
transformação de suas teorias, a partir de sua prática clinica, justa-
mente a fim de torná-las válidas para o campo das psicoses. Tal trans-
formação só foi possível após a teorização do narcisismo e da teoria
da libido.
No começo do século XX, Freud pertencia ao movimento
NOTAS . psicopatológico que, em suas investigações, ultrapassaria o limite im-
7
Essa expressão não é dele, foi tomada de empréstimo aos estudos desenvolvidos
posto pelo método descritivo da psiquiatria clássica. Para esse grupo,
pelo psiquiatra francês Dr. J. Falret. mais além da delimitação fenomenológica, era necessário buscar as
8 Da melancolia sem de/frio. causas, origem e mecanismos das diferentes entidades clinicas, que
9
O delírio na melancolia. qão se reduziriam ao mero suposto de uma etiologia orgânica. Esse
10
Esse estudo constitui, na 8a edição do Tratado de Psiquiatria, o capitulo XI da se- grupo inaugurou um movimento psicopatológico que acabou por
gunda parte (LEIPZIG, 1913/1993, parte lll).
11
desorganizar os ideais da psiquiatria clássica, "associado a várias ins-
O delírio na melancolia.
104 105
tituicões universitárias: inicialmente Ribot e Janet êm Paris, Bleuler O primeiro momento da melancolia localizado por Freud
em Bughiilzli e encontraria seu ápice no sistema de Jaspers, na Ale- encontra-se em seu "Rascunho G: melancolia", de 1895, em que de-
manha" (MAZZUCA, 2004a, p.7-8). Esse grupo estava preocupado, signou a melancolia sob os auspícios de uma hemorragia libzdinal. O
mais além dos fenômenos, em buscar hipóteses explicativas sobre a segundo momento foi estabelecido em 1915, quando elabora o texto
natureza, origem, causas e mecanismos das diferentes entidades clí- "Luto e melancolia". Nessa ocasião, vê-se que, ao lado do tema da
nicas. Desse modo, constituiu-se uma psiquiatria das estruturas psi- perda, Freucl introduz algo que é de outra natureza e que pode ser
copatológicas na qual "os aportes da psicanálise,' mesmo fortemente inserido sob o registro do delirio melancólico: os delírios de inferio-
criticados, ocuparam um lugar de destaque" (MAZZUCA, 2004a, ridade e de indignidade. Tal quadro é proveniente de uma inferiori-
p.7 -8). Freud pertencia a esse grupo e foi um dos representantes mais dade moral, que se transforma em delirio de indignidade. Mas não é
eminentes. qualquer inferioridade. Na melancolia, esta se completa por uma in-
Serão aqui destacados, da obra de Freud, os três momentos sônia, uma recusa de se alimentar, enfim, pela supressão da pulsão
em que ele situou os fenômenos da melancolia. Ver-se-á o quanto que compele todo ser vivo a se apegar à vida. Encontram-se aí dois
ele utllizou os fundamentos dos psiquiatras de sua época para eluCI- quadros: o problema da .libido debilitada, extenuada, e o problema
dar, do ponto de vista da psicanálise, os principais mecanismos da do delírio melancólico. Acredita-se que toda a fenomenologia da me-
melancolia, bem como seus fenômenos. lancolia se divida de acordo com esses dois eixos.
No decorrer de sua obra, observa-se que, para esclarecer o No terceiro momento, constituído em 1923, Freud estabe-
mecanismo próprio da melancolia, em 1915, foi preciso que os apor- lece as relações entre "O Eu e o Isso" e descreve a primazia do fe-
tes teóricos do narcisismo e da identificação já estivessem estabele- nômeno da autoacusação, que, na melancolia, pode chegar a uma
cidos, muito embora, nessa época, ele não deixasse claro o estatuto certeza delirante de punição.
da melancolia como pertencendo ao campo da psicose. A partir de 1920, vários trabalhos de Freud vieram a escla-
Ao se examinar o itinerário empreendido por Freud em recer e a acrescentar detalhes importantes à especificidade dos fenô-
suas sucessivas elaborações, é possível observar que a melancolia não menos da melancolia, entre os quais podem ser citados os textos
teve tanto destaque em sua obra, quanto as elaborações acerca da es- "Psicologia de grupo e análise do eu" (1921/1976) e "Neurose e psi-
quizofrenia, da paranoia e, principalmente, das neuroses. No entanto, cose" (1924b/1976).
vê-se que Freud, em vários momentos de sua obra, explorou esse
tema. Pode-se verificar o quanto Freud hesitou em relação ao lugar
em que situaria a melancolia, algumas vezes atribuindo-lhe indícios . 3.1. A hemorragia da libido
de uma neurose, outras vezes, localizando-a junto às psicoses. Acre-
dita-se que ele termina por classificá-la do lado das psicoses, embora, Em seu "Rascunho G: melancolia" (1895a/1987), Freud
ainda assim, ele se interrogue sobre os fenômenos melancólicos na tece uma de suas grandes elaborações acerca da melanco.lia, apresen-
neurose. Embora não caracterize a melancolia como uma psicose, tando a noção de perda de libido como elementar para designá-la.
pode-se verificar que as suas descrições quanto à perda do objeto no Vale destacar o quanto Freud relacionava, nessa ocasião, a melanco.lia
luto e na melancolia seguem caminhos distintos. com o desfalecimento da libido sexual, o que o leva a acrescentar

106 107
novos elementos sobre a etiologia da melancolia. F\:eud descreve a termos linguísticos, .Lacan avança e permite estabelecer em que con-
especificidade da melancolia, bem como as características e correla- dições se dá a operação pela qual o sujeito psicótico permanece ha-
ções possíveis com outras patologias, tais como a neurose de angús- bitado pelo objeto a. Afirma, ainda, que o sujeito só poderá se
tia, a neurastenia e a anestesia sexual. É o primeiro estudo mais constituir a partir da extração de gozo do campo do Outro.
aprofundado que o autor faz sobre o tema. Embora Freud (1895a/1987) tenha apresentado, passo a
Na ocasião em que escreveu o "Rascunho G", Freud es- passo, suas novas concepções, resultado de suas investigações
tava às voltas com as mais recentes descobertas que fizera acerca sobre a melancolia, destacar-se-á a última parte do "Rascunho G:
das excitações sexuais e seus efeitos na predisposição às neuroses. melancolia", na qual ele relaciona a melancolia como hemorragia de
Os aspectos por ele propostos mostram a dedicação com que de- libido.
senvolvia sua pesquisa, relacionando-a com o saber psiquiátrico es- A pergunta lançada por Freud, logo de inicio, é a seguinte:
tabelecido na ocasião, sem, no entanto, distanciar-se de seu rigor "Como se explicam os efeitos da melancolia?" (FREUD, 1895a/1987,
na investigação da causalidade psíquica, no que tange à subjetivi- p.226). Segundo ele, os efeitos da melancolia são de inibição psíquica,
dade do doente em relação aos sintomas. com empobrecimento pulsional e o respectivo sofrimento gerado
O conteúdo desse manuscrito, embora ainda esteja baseado por ambos. Importante destacar a forma como ele descreve a ocor-
em uma concepção fisiológica da sexualidade, contém ideias que rência desses efeitos, sob o ponto de vista psíquico:
serão a sustentação para os estudos posteriores de Freud, particular-
mente "Luto e melancolia", de 1915-1917, e "O Eu e o Isso", de Quando o grupo sexual psíquico se defronta com uma grande perda da
quantidade de sua excitação, pode acontecer urna retração para dentro
1923. Em 1895, a principal ideia formulada é marcada pela expressão
na esfera psíquica, que produz um efeito de sucção sobre as quantidades
de que, na melancolia, há uma hemorrctgia de libido. Merece destaque a de excitação contíguas. Os neurônios associados têm que liberar sua ex-
maneira como Freud já lança mão de uma hipótese que será desen- citação, o que produz sofrimento (FREUD, 1895a/1987, p.226-227).
volvida em 1915. Os termos em que expressa sua nova ideia são: "O
afeto que corresponde à melancolia é o do luto - ou seja, o desejo Freud aponta que a consequência desse processo é que os
de recuperar algo que foi perdido" (FREUD, 1895a/1987, p.222). neurônios envolvidos se desfazem de sua excitação, e isso acarreta
Freud esclarece, ainda, que, na melancolia, trata-se de uma perda na uma produção de sofrimento. A finalização desse processo irá de-
vida pulsional, isto é, a ideia é a de que, na melancolia, "o luto é pela sencadear, na esfera psíquica, a instalação de um empobrecimento
perda da libido" (FREUD, 1895a/1987, p.223) (Grifo nosso). da excitação, ou seja, uma hemorragia interna. Assim, tal hemorragia se
Ver-se-á que, para constituir o campo da realidade psíquica, . estende também às outras pulsões e funções, entre elas a atividade
Freud desenvolve a ideia da extração da libido dos objetos. Mais nutricional e sexual.
tarde, Lacan (1957-1958/1998), ao retomar o texto freudiano, faz Nesse aspecto, em uma análise recente do "Rascunho G"
uma releitura desse processo, introduzindo aí o conceito de extração Jacques-Alain Miller (201 O) se refere à anestesia presente na melan:
do objeto a. Percebe-se o quanto Lacan se baseou em Freud para c,olia, dizendo que Freud se refere à falta de sensação voluptuosa es-
construir suas elaborações sobre a construção da realidade nas neu- perada do ato sexual, denominada de frigidez. Miller aponta que, a
roses e nas psicoses. Ao introduzir a noção de metáfora paterna em partir da problemática da perda de libido sexual, devido à hemorragia

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interna, pode-se descrever, desde Freud, "uma clínib da evacuação zado. Deve-se observar também que Freud não se deixou contaminar
do gozo, pois o que se denomina libido ou voluptuosidade é o que pelas elaborações ele pesquisas contemporâneas, que localizavam a
nós chamamos gozo. Evidentemente, Freud entende essa evacuação melancolia como uma afecção do organismo, de caráter hereditário.
como um elemento patológico" (MILLER, 2010, p.302). Por isso mesmo, acredita-se, ele avançou.
Pode-se dizer que, quando o grupo sexual psíquico retrai- Organizam-se, então, nesse primeiro momento, as elabota-
se para dentro da esfera psíquica, isso produzirá um empobrecimento ções de Freud sobre os fenômenos da melancolia como decorrentes
da excitação que se caracteriza por uma hemorragia interna. Essa re- daperda de libido provocada pela hemorragia interna. No "Rascunho G:
tração atua, então, "de uma forma inibidora, como uma ferida, num melancolia", a preocupação ele Freud (1895a/1987) era estabelecer
modo análogo ao da dor" (FREUD, 1895a/1987, p.227). a distinção entre o luto e a melancolia. A questão das intervenções
Com isso, Freud explica que a dor característica da melancolia do analista no tratamento desses pacientes ainda permanecia por ser
é decorrente da retração da excitação, com o seu consequente empo- desenvolvida, o que será feito, embora não cletalhadamente, em
brecimento. Ou seja, a dor é efeito de uma hemorragia interna, represen- "Luto e melancolia" (1915-191 7/197 4).
tada por uma ferida. Pode-se dizer, então, que o modo como Freud Para se chegar ao segundo momento das elaborações freu-
caracteriza a dor na melancolia é pela expressão uma ftrida psíquica. Em dianas acerca da etiologia dos sintomas da melancolia, bem como
Séglas (1894), conforme se abordou, há uma dor moral, representada dos fenômenos que os melancólicos apresentavam, será necessário
pela parada psíquica. Observa-se uma relação bem estreita entre essas consultar os textos que precedem as postulações de "Luto e melan-
duas expressões. É possível afirmar que aparada psíquica é um aconte- colia". Trata-se do momento em que Freud (1914/1974) formaliza
cimento decorrente da ftridapsíquica, por onde escoaria toda a libido. seu conceito de narcisismo. f:, pois, ao traçar as relações entre o eu
Nesse sentido, observa-se que, se uma hemorragia no nível e os objetos externos que Freud irá distinguir, a propósito da libido,
orgânico é algo que pode tirar a vida de uma pessoa, uma hemorragia duas disposições: libido do eu e libido objeta!.
no nível psíquico é, também, algo que pode levar à morte- psíquica A partir dessa nova distinção entre libido do eu e libido ob-
e, até mesmo, orgânica.· Isso permite afirmar que o escoamento da jeta!, Freud terá elementos para distinguir as patologias psíquicas,
libido na melancolia, marcado pela expressão hemorragia interna, indica culminando em sua formalização de uma concepção metapsicoló-
uma distinção, feita por Freud, entre o luto e a melancolia. Ao usar gica12 sobre a melancolia. Ressalta-se, nessa formalização metapsi-
a expressão hemorragia interna, o autor já estabelece uma diferenciação: . cológica, a relevância de seu texto "Sobre o narcisismo: uma
há, na melancolia, uma jé1ida na esfera psíquica. introdução" (1914/1974).
Assim, pode-se observar o quanto Freud, muito no início
de sua investigação, estava alinhado com as pesquisas de seus con-
temporâneos, os psiquiatras clássicos, sobretudo aqueles que insisti- 3.2. As vicissitudes da libido e a melancolia
ram no fator da dor moral como fundamental na melancolia. Pode-se
dizer que a descrição que Freud faz da dor psíquica, elo empobreci- , A diferença entre a libido e outras formas de energia psí-
mento do eu, com sua consequente inibição, é a de um fenômeno quica permite situar a diferença entre os modos como ocorrem os
análogo ao da dor moral, cujos sintomas Séglas (1894) havia caracteri- processos sexuais e os nutritivos. Tal distinção culminou na forma-

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lização de que existe uma quantidade de libido que se movimenta, da libido" (FREUD, 1895a/1987, p.223). A partir desse ponto, pode-
aumentando ou diminuindo, e é responsável por "explicar os fenô- se dizer que a hemorragia interna que ali é descrita ocorre original-
menos psicossexuais observados" (FREUD, 1905/1972, p.223). No mente devido a um processo que repercute na esfera do eu. Tal
entanto, Freud alerta para o fato de que a libido do eu sô poderá ser situação apresenta um eu que não consegue investir libido em objetos.
observada quando tiver sido transformada em libido do objeto. Esse acúmulo de libido no eu, na melancolia, atinge o ponto mais alto
Nesse sentido, vale destacar a passagem em que ele aponta as vicis- ao produzir uma "ferida" por onde escoa toda a libido ali represada.
situdes da libido de objeto, pois ela abre caminho para a formulação Isso torna o eu empobrecido, em função do desastre libidinal.
sobre a origem da libido na melancolia: O conceito de narcisismo é fundamental para o entendi-
mento da investigação psicanalítica sobre a melancolia, pois é em
[...} quando ela é retirada dos objetos, é mantida em suspenso em con- função dele que Freud (1914/1974) descortinou toda uma incursão
dições peculiares de tensão e é finalmente defletida sobre o eu, tor- teórico-clínica para definir as linhas de desenvolvimento da referida
nando-se assim libido do eu mais uma vez. Em contraste com a libido
categoria clínica. A partir do texto sobre o narcisismo é que Freud
de objeto, também descrevemos a libido do eu como libido "narcísica"
(FREUD, 1905/1972, p.224). funda as bases para uma teoria do eu. Com isso, é possível verificar
o quanto Freud se ancora na ideia de um eu como sendo represen-
Assim, a expressão "libido nardsica" deriva do termo "li- tante de um limite corporal. Nesse sentido, é no eu que ocorre o pro-
bido do eu". Nesse sentido, no eu se situa o reservatório de onde blema da "hemorragia psíquica" e da "ferida" responsável pela dor
são enviadas as catexias de objeto e para onde são novamente reco- melancólica. Além de considerar o lugar ocupado pelo narcisismo
lhidas. Por isso Freud encontra razões para afirmar que "a catexia li- no desenvolvimento sexual, adentra problemas mais profundos das
bidinosa narcísica do eu é o estado de coisas original, realizado na relações entre o eu e os objetos externos. Com isso, irá traçando uma
primeira infância, sendo meramente abrangido pelas manifestações distinção detalhada entre "libido do eu" e "libido objetai".
posteriores da libido" (FREUD, 1905/1972, p.224). Isso parece fundamental, pois são as formulações presen-
Seguindo tal ideia, mas ainda não convencido de sua teoria tes no texto "Sobre o narcisismo: uma introdução" (FREUD,
da libido, Freud (1905/1972) irá afirmar que é, pois, em função da 1914/1974) que irão esclarecer a distinção entre libido do eu e libido
economia da libido que se podem observar e descrever os distúrbios objeta!, bem como abrir caminho para, em 1915, se estabelecerem
neuróticos e psicóticos mais profundos, especialmente quanto às vi- valiosas pistas quanto ao destino do objeto na melancolia. Nesse mo-
cissitudes da libido do eu. No entanto, somente a partir da análise mento, Freud descortinará seu segundo postulado sobre os fenôme-
do caso Schreber, escrita em 1912, é que Freud (1912/1969) terá ar- . nos da melancolia, que, nesse artigo, já não serão mais apresentados
gumentos clínicos elucidativos do processo pelo qual se estabelece como perda de libido, mas como perda de objeto. Ver-se-á, mais adiante,
uma patologia mais grave, no caso, uma psicose, tomando como re- que, ao lado do tema da perda de objeto, na melancolia, Freud intro-
ferência o modo como se efetuam, nesse contexto, as obstruções ao duz o delírio melancólico se desdobrando sobre dois eixos: o delírio
desenvolvimento da libido. de inferioridade e o delírio de indignidade.
Como se viu no "Rascunho G: melancolia", o processo em É, pois, o estudo sobre o narcisismo que permite a Freud
que ocorre a melancolia se situa a partir de uma importante "perda aprofundar a psicologia do eu, sobretudo ao descobrir que somente

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existe transferência da libido do eu para os objetos a partir da esfera Pacientes desse tipo queixam-se de que todos os seus pensamentos são
de um narcisismo secundário, diferenciado do narcisismo primário conhecidos e suas ações vigiadas e supervisionadas; eles são informados
sobre o funcionamento desse agente por vozes que caracteristicamente
(que faz parte da fundação do eu), no qual o estabelecimento da libido
lhes falam na terceira pessoa- "agora ele está pensando nisso de novo",
em direção aos objetos traz consigo as consequências da primeira fase "agora ele está saindo" (FREUD, 1914/1974, p.113).
narcísica. É importante mencionar essa questão porque, como se verá
nesta investigação, a identificação nardsica do melancólico ao objeto Para Freud, essa queixa é inteiramente jctstificada, pois um
resulta em sérias consequências para a constituição do seu eu. poder que vigia e faz crítica existe em cada um.
Segundo Freud, o substituto do narcisismo perdido na infân- Merece destaque o momento em que Freud se refere à ori-
cia, período em que o ser humano é o seu próprio ideal, aparece sob a gem do sentimento da estima de si, que guarda relação íntima com
forma do ideal do eu; e é sob essa forma que o sujeito procura recuperar o desenvolvimento do eu. Segundo ele, a estima de si é a expressão
seu narcisismo perdido. Assim, "o que ele projeta diante de si como maior do modo como o indivíduo se vê - é a expressão do tamanho
sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, do eu. Indica, ainda, que é o sentimento mais primitivo de onipotên-
na qual ele era seu próprio ideal" (FREUD, 1914/1974, p.111). cia que um indivíduo já experimentou e que o ajudará a aumentar
Se Freud aponta que a "supervalorização sexual de um ob- sua estima de si. Tal afirmação servirá como elemento para distinguir
jeto é a idealização do mesmo" (FREUD, 1914/1974, p.111), como as vicissitudes da estima de si nas neuroses e nas psicoses. Ele parte
é que se verifica o ideal do eu na melancolia? Ou será que se pode da premissa de que a estima de si depende inteiramente da libido
dizer que, na melancolia, tal função se encontra alterada, sendo pos- narcisista. Assim, faz a descrição de que, "nos parafrênicos, a autoes-
sível afirmar que não há a valorização porque o objeto, na melancolia, tima aumenta, enquanto que, nas neuroses de transferência, ela se
tem outro destino? Pretende-se encontrar 'respostas para tais ques- reduz" (FREUD, 1914/1974,p.115).
tões a partir dos textos "Luto e melancolia" (1915-1917 /197 4) e Na melancolia, a incapacidade de amar é vista como um
"O Eu e o Isso" (1923/1976), nos quais Freud desenvolveu bem a fator desencadeante que faz com que a estima de si diminua, favore-
teoria sobre as instâncias psíquicas, o eu, o supereu e o isso, bem como cendo o sentimento de inferioridade, típico dos melancólicos, que
a relação do eu com o supereu. Ver-se-á que, na melancolia, é o su- Freud (1915-1917 /1974) desenvolverá em "Luto e melancolia". A
pereu quem prevalecerá, aniquilando então o eu, que sofreu altera- fonte do sentimento de inferioridade que os pacientes vivenciam é,
ções, por causa do desastre libidinal. sem sombra de dúvida, o empobrecimento do eu, "por causa das
Não obstante, em seu estudo sobre o narcisismo, Freud já enormes catexias libidinais dele retiradas - por causa, vale dizer, do
oferece as primeiras elaborações que, mais tarde, serão agrupadas . dano sofrido pelo eu em função de tendências sexuais que já não
sob o nome de supereu. O modo como ele se refere a tal instância estão sujeitas a controle" (FREUD, 1914/1974, p.116).
é, inicialmente, como um "agente". Assim, ele procura, a partir de A estima de si é descrita em três partes: uma parte é primá-
tal "agente", compreender como se processam os delírios de perse- ria- ou seja, é o resíduo do narcisismo infantil. Outra parte decorre
guição nos casos de paranoia, que são, como se sabe, consequência qa onipotência que é corroborada pela experiência (a realização do
do desenvolvimento da libido: ideal do eu). Uma outra ainda provém da satisfação da libido objeta!.
Pelo que se vê até o momento, na melancolia, a estima de si com-

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prometida tem a ver com os danos causados pela cc»nstituição do eu Interessa salientar, na perspectiva de distinguir o processo do luto e
melancólico. Nesse caso, o ideal do eu fica sacrificado. Ele nada mais o processo da melancolia, que ele estabelece a analogia entre as duas
é do que a projeção, na esfera do ideal, daquilo que não pode mais categorias, extraindo a especificidade dos fenômenos de cada uma.
ser sustentado pelo eu, ou seja, o narcisismo primário, que se desen- O que se segue são os passos dados por Freud para delimitar as
volve da seguinte maneira: duas modalidades. Destaca-se esse momento como o segundo mais
importante em suas elaborações acerca dos fenômenos da melan-
O desenvolvimento do eu consiste num afastamento do narcisismo pri- colia.
mário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse es-
A correlação entre o luto e a melancolia, que Freud apre-
tado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em
direção a um ideal do eu imposto de fora, sendo a satisfação provocada senta, começa por definir o que é o luto:
pela realização desse ideal (FREUD, 1914/1974, p.l17).
O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda
Acredita-se que há um problema crucial da melancolia em de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o
país, a liberdade ou o ideal ele alguém, e assim por diante. Em algumas
relação à passagem do narcisismo primário para o narcisismo secun-
pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto;
dário. Tudo indica que, nos casos de melancolia, a "nova ação psí- por conseguinte, suspeitamos que essas pessoas possuem uma dispo-
quica" não se efetiva, deixando o sujeito na primeira fase narcísica, sição patológica (FREUD, 1915-1917/1974, p.275).
no narcisismo primáno.
Isso posto, cabe indagar se a constituição do eu na melan- Em relação ao luto, segundo Freud, não há indicação de in-
colia se dá da mesma forma que em outras afecções patológicas e tervenção médica, pois este é superado com o tempo.
em que medida o eu melancólico se distingue do eu na neurose. Quanto à melancolia, esta se apresenta, para Freud, como:
É o que se espera encontrar em "Luto e melancolia", texto
no qual Freud (1915-1917 /1974) irá descrever como o eu se apre- Um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo
senta na melancolia, o modo como está identificado e quais as con- mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e
qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a
sequências de tal identificação. Com isso Freud estabelecerá, nesse
ponto de encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvileci-
momento, seu segundo postulado, que trata do fenômeno funda- mento, culminando numa expectativa delirante de punição (FREUD,
mental da melancolia, ou seja, a identificação do melancólico ao ob- 1915-1917/1974, p.276).
jeto perdido.
Chama a atenção a expressão com que Freud se refere à
posição do melancólico: uma "expectativa delirante de punição".
3.3. A perda no eu Como se viu anteriormente, essa descrição evoca a de Cotare!
(1882/1997), que não só isolou, mas também descreveu o meca-
A teoria que Freud construiu para dar conta da particulari- qismo do delírio de autoacusação, que culmina no delírio de punição
dade do eu melancólico repousa fundamentalmente em dois concei- como específico da' melancolia: "os pacientes acusam a si mesmos",
tos, ambos originais de seu pensamento: identificação e narcisismo. e, com isso, eles mesmos são seus perseguidores. É essencial cons-

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tatar que, nesse momento, Freud considerava impo!Jtantes, para dis- As consequências da perda de objeto no luto e na melan-
tinguir a melancolia do luto, os fenômenos tão bem descritos por colia são, portanto, distintas e orientam-se para a especificidade da
Jules Cotard, conforme se trabalhou no capítulo anterior. resposta de cada um:
No texto, Freud estabelece, passo a passo, a distinção entre
o luto e a melancolia e verifica que os traços encontrados na melancolia No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesse são plena-
mente explicadas Pelo trabalho do luto no qual o eu é absorvido. Na
também podem ser observados no luto. No entanto, anuncia uma ca-
melancolia, a perda desconhecida resultará num trabalho interno se-
racterística importante que os distingue. Trata-se de que, na melancolia, melhante e será, portanto, responsável pela inibição melancólica . .A
há uma perturbação da estima de si, o que não está presente no luto. diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enig-
Para compreender o processo que ocorre na melancolia, mática porque não podemos ver o CJUC é que o está absorvendo tão
vale ressaltar o que vem a ser o trabalho do luto: "O teste da realidade completamente (FREUD, 1915-1917/1974, p.278).
revelou que o objeto não existe mais, passando a exigir que toda a li-
bido seja retirada de suas ligações com aquele objeto" (FREUD, Freud sinaliza para o fato de que a perda melancólica é
1915-1917/1974, p.276). Mas, segundo Freud, não é tarefa fácil uma desconhecida. A diminnição da estima de si é um fator que tem
pessoa abandonar uma posição libidinal. O fato de reconhecer a como implicação um empobrecimento do eu em grande escala, cul-
perda, na realidade, do objeto amado não impede que esse objeto minando nas queixas e autorreprovações. Destaca-se, então, que,
permaneça carregado libidinalmente, já que o desligamento da libido no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio, ao passo que, na
não se efetua de maneira imediata, nem em uma só operação. Por melancolia, é o próprio eu. Assim, pode-se dizer que, no luto, o
isso, quando se perde um objeto, o trabalho do luto vai ocorrendo "buraco" da depressão está do lado de fora, no mundo externo, ao
passo a passo, em uma sucessão de pequenas operações que "são passo que, na melancolia, o "buraco" é interno, no eu. Isso produ-
executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de zirá ressonâncias na clínica diferencial entre o luto e a melancolia.
energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, Nesta, vê-se nm sujeito que se apresenta totalmente desvalorizado,
a existência do objeto perdido" (FREUD, 1915-1917/1974, p.277). que se mostra incapaz de qualquer realização e moralmente des-
Assim, a pessoa evoca cada uma das lembranças do objeto perdido, prezível. Nessas condições, encontra motivos para se repreender e
e a libido vinculada ao objeto é hipercatexizada. A consequência é se envilecer: "[...] esperando ser expulso e punido. Degrada-se pe-
que o processo de desligamento da libido em relação às lembranças rante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes, por
do objeto se realiza e libera novamente o eu, desinibindo-o. Assim estarem ligados a uma pessoa tão desprezível" (FREUD, 1915-
se conclui o trabalho do luto. 1917/1974, p.278).
Quanto à melancolia, Freud irá dizer que o paciente não sabe A descrição do delírio de inferioridade e de indignidade foi
o que perdeu. O paciente sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu feita por Jules Séglas 13 de forma profunda, conforme se viu anterior-
nesse alguém. Pode-se dizer, então, que: "Isso sugeriria que a melan- mente. Observa-se, assim, o quanto Freud buscou referências nesse
colia está, de alguma forma, relacionada a uma perda objetai retirada autor, para retratar a posição melancólica quando o quadro se exa-
da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de in- cerba, culminando no fenômeno essencial da dor morai e, em decor-
consciente a respeito da perda" (FREUD, 1915-1917/1974, p.278). rência, no delírio de indignidade.

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Contudo, é importante destacar a advertência feita por mentos. Ou, nas palavras do próprio Freud (1915-1917 /1974, p.280),
Freud (1915-1917 /1974): não se deve contradizer um paciente que como se verá adiante, "a chave do quadro clínico". Note-se bem 0
faz tais acusações contra seu eu, pois ele deve estar com a razão. que Freud diz a esse respeito: "trata-se do efeito do trabalho interno
Como se viu anteriormente, verifica-se que Freud caminha por uma que lhe consome o eu - trabalho que, nos sendo desconhecido, é,
direção oposta ao tratamento moral que alguns psiquiatras clássicos porém, comparável ao do luto" (FREUD, 1915-1917/1974, p.278).
propunham. Ao indicar que não se deve contradizer o paciente De fato, o melancólico sofreu uma perda relativa a um ob-
quando este se autoacusa, já aponta um modo específico de inter- jeto, mas o que ele apresenta, ao falar dessa perda, refere-se a uma
venção para o analista. E isso permite pensar o lugar do analista perda relativa a seu eu. Assim Freud introduz o modo como, no me-
como sendo o de acolher o melancólico, sem a pretensão de modi- lancólico, o eu se constitui: "Vemos como nele uma parte do eu se
ficar o seu delirio através da persuasão. coloca contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-
O ponto essencial, para Freud, não consiste em saber se o a como seu objeto" (F.REUD, 1915-1917/1974, p.280). Nesse ponto
melancólico apresenta uma descrição correta de sua condição psico- de sua elaboração, apresenta-se o esboço do que, mais tarde, em 1923,
lógica, já que, para ele, diferentemente da visão psiquiátrica, o delírio ele desenvolverá como sendo a instância crítica, o supereu, que é o
deve ter uma causa. Segundo Freud, "ele [o melancólico] perdeu seu responsável pelos conflitos e pelas modificações no eu melancólico.
amor-próprio e deve ter tido boas razões para tanto" (FREUD, 1915- O que sobressai, no quadro clinico da melancolia, é a insa-
1917/1974, p.279). Ora, vê-se o quanto Freud avança em relação à tisfação com o eu. Mas o que se observa é que as autoacusações de
psiquiatria de sua época, ao buscar saber as causas pelas quais o me- um melancólico são, na verdade, acusações que se ajustam a outrem,
lancólico perdeu seu amor-próprio. Ele já indica, com isso, o lugar a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar. Assim, ao exa-
diferenciado do analista: o de escutar o paciente. Ao buscar a causa minar os fatos, Freud acaba por confirmar tal conjectura e fornece
do delírio melancólico, sinaliza para o lugar do analista no ato de aco- a chave principal do quadro clínico da melancolia: "É assim que en-
lher o melancólico, e não de refutar ou desviar o delirio como sendo contramos a chave do quadro clinico: percebemos que as autorre-
um erro, um déficit. criminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram
Lembre-se de que até mesmo Falret (1864/1994), que dis- deslocadas desse objeto para o eu do próprio paciente" (FREUD,
cordava da posição do médico de se opor ao delirio diretamente atra- 1915-1917/1974, p.280).
vés da persuasão, recomendava intervenções através de meios Vê-se o quanto o fenômeno de autoacusação, isolado e des-
indiretos para obter a reação dos doentes. Dentre os meios indicados, crito por Cotard, segue como um dos fatores fundamentais para a
o médico deveria "desviar a atenção do delírio, provocando outras teoria freudiana da melancolia. Esse processo é descrito da seguinte
ideias ou outros sentimentos que lhe façam contrapeso. Uma indi- maneira:
cação é pela via da ocupação em todas as suas formas" (FALRET,
Existem, num dado momento, uma escolha objetai, uma ligação da H~
1864/1994, p.688).
bido a uma pessoa partictllar; então, devido a uma real desconsideração
Já Freud dirá que, na realidade, toda a falta de interesse, toda
ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetai foi
a incapacidade de amar e de trabalhar do melancólico, tudo isso é se- destroçada. O resultado não foi o normal- uma retirada da libido desse
cundário. Aquilo a que Freud visa é a causa que provoca esses senti- objeto e um deslocamento da mesma para um novo -, mas algo dife~

120 121
rente, para cuja ocorrência várias condições parecct~p ser necessárias. A Eis, então, pela primeira vez, a gênese da frase que encerra
catexia objeta! provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada.
o processo que ocorre na melancolia: "A sombra do objeto caiu
Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para
o eu. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas sobre o eu" (FREUD, 1915-1917/1974, p.281). Disso decorre que
serviu para estabelecer uma identificação do eu com o objeto abando- uma perda objeta! se transforma em uma perda do eu, e o conflito
nado. Assim a sombra elo objeto caiu sobre o eu, e este pôde, daí por entre o eu e a pessoa amada passa a ser vívido pela separação entre
diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o o eu e a atividade crítica do eu, que é alterado pela identificação.
objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetai se transformou
O próprio Freud buscou, em vários autores, contribuições
numa perda do eu, e o conflito entre o eu e a pessoa amada, numa se-
paração entre a atividade critica do eu e o eu enquanto alterado pela valiosas para desenvolver o que seria essa identificação com o objeto.
identificação (FREUD, 1915-1917/1974, p.281-282). Otto Rank (apudFREUD, 1915-1917 /1974), por exemplo, disse que
a escolha objeta! se efetuaria em uma base narcisista. Foi a partir
É possível verificar, assim, que o conceito de identificação dessa afirmação que Freud (1915-1917 /1974) assinalou que um dos
utilizado na definição da melancolia é extraído do interior da teoria mecanismos mais importantes nas afecções narcisistas é a substitui-
do narcisismo (retirada da carga de libido do objeto e seu desloca- ção da identificação pelo amor objeta!, sob a forma de incorporação.
mento para o eu, que é comum a todo sujeito). No entanto, as par- Reafirma, em "Luto e melancolia", a ideia que já havia apresentado
ticularidades de cada patologia psíquica levam o narcisismo de cada em seu texto ''A pulsão e suas vicissitudes":
um a se apresentar de modo específico. Nesse sentido, pode-se
fazer um contraponto entre o modo como, na paranoia e na me- [...] A identificação é uma etapa preliminar da escolha objetai, que é a
lancolia, ocorre a retirada da libido para o eu. Enquanto na paranoía primeira forma- e uma forma expressa de maneira ambivalente- pela
qual o eu escolhe um objeto. O eu deseja incorporar a si esse objeto e,
o narcisismo exalta e infla o eu do sujeito, na identificação narcisista em confC?rmidade com a fase oral ou canlbalista do desenvolvimento
do melancólico, ao contrário, constitui-se uma ferida permanente- libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o (FREUD, 1915-
mente aberta para a perda libidinal, esvaziando o eu até o empo- 1917/1974, p.282).
brecimento total, uma libidorragia, poder-se-ia dizer, que explica-
de acordo com Freud (1915-1917 /1974)- o assombroso eclipse Freud passa, então, a investigar os estados depressivos que
no melancólico da pulsão que leva todos os seres vivos a aferra- se seguem à morte de uma pessoa amada, na neurose obsessiva, e os
rem-se à vida. compara na melancolia.
Freud sustenta que o sujeito fracassa no cumprimento do Segundo ele, na neurose obsessiva, há um conflito devido
trabalho do luto ante a perda da pessoa amada e que reage utilizando à ambivalência, que empresta um cunho patológico ao luto, que o
o recurso de identificar-se com o objeto perdido para, desse modo, força a expressar-se sob a forma de autorrecriminação, no sentido
reconstruí-lo em seu próprio eu. Isso permite separar a ambivalência de que a própria pessoa enlutada é culpada pela morte do objeto
amor-ódio, já que o eu, por uma parte, conserva o amor pelo objeto amado, isto é, que ela a desejou. Mais adiante, esse aspecto será
abandonado e, por outra, se enfurece com esse objeto substitutivo, abordado a partir do modo como Hamlet respondeu à perda de seu
agora reconstruído no seu eu. É por isso que as queixas do melan- ' situando-se, com Lacan, as vicissitudes do luto nesse caso. Já
pai,
cólico constituem uma satisfação de tendências sádicas. na melancolia, a predisposição à doença vai além da perda por

122 123
morte, incluindo situações de desprezo, desconsideração ou desa- O ponto central em que Freud sustenta tal tese é a contra-
pontamento, que podem trazer para a relação sentimentos opostos dição notadamente marcada na posição do melancólico. Ele chama
de amor e ódio, ou reforçar uma ambivalência já existente. Entre as a atenção para o fato de que o melancólico não se comporta como
precondições para a melancolia, Freud inclui o conflito devido à um indivíduo normal que, juntamente com as suas autorreprovações,
ambivalência: adota uma posição de modéstia, tendendo mais a escondê-las diante
dos outros. Pelo contrário, o melancólico carece de todo pudor e até
Se o amor pelo objeto- um amor que não pode ser renunciado, embora poderia destacar-se o traço oposto, isto é, o desejo de comunicar a
o próprio objeto o seja- se refugiar na identificação narcisista, então o todo o mundo seus defeitos, como se obtivesse nisso uma satisfação.
ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degra-
A expressão que Freud utiliza é bastante clara: o melancólico "en-
dando~o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sá(Üca de seu sofrimento
(FREUD, 1915:1917/1974, p.284). contra satisfação no desmascaramento de si mesmo" (FREUD, 1915-
1917/1974, p.279).
A partir disso, Freud direciona-se para as consequências Na clínica da melancolia, meti tas vezes, o paciente implora
observadas quando o ódio entra em ação no objeto substitutivo. Faz ao analista para que ele o abandone ou para que confirme seu status
uma analogia entre a neurose obsessiva e a melancolia, mas distingue abjeto. Ao acolher o melancólico, o analista acaba por adotar uma
o processo em ambas as afecções. Segundo ele, posição em que não reafirma a ideia do melancólico como um fra-
cassado, sem, no entanto, lançar mão de qualquer persuasão.
[... ] i\ autotortura na melancolia, sem dúvida, agradável, significa, do Esse aspecto da autorreprovação do melancólico é uma
mesmo modo que o fenômeno correspondente na neurose obsessiva, das marcas distintivas do estrago promovido pela hemorragia libi-
uma satisfação das tendências do sadismo e do ódio relacionadas a um dinal no eu, que culmina no delírio de inferioridade. Esse traço, ca-
objeto, que retornaram ao próprio cu do individuo (FREUD, 1915~
racterística marcante do melancólico, é infranqueável, como disse
1917/1974, p.284).
Freud (1915-1917 /1974), ao trabalho psicanalítico. Ou seja, havia,
O papel da autopunição é, via de regra, o de expressar a no delírio melancólico, um ponto não dialetizável. Talvez seja nisso
hostilidade do paciente em relação ao objeto original e torturar o que Freud (1923/1976) esbarrou quando da dificuldade em falar
ente amado através da doença, o que, a princípio, parece estranho. do tratamento psicanalítico para esses pacientes. Contudo, ele afir-
Mas o próprio Freud se ocupa em esclarecer a origem e a natureza mava que, diante dos delírios de inferioridade ou de indignidade,
dessas autotorturas e dessas autorrecriminações, chegando à con- ou de autoacusações, presentes no melancólico, não se pode con-
clusão de que tais recriminações e autoacusações são, na verdade, tradizer o paciente. Desse modo, Freud aponta, mais uma vez, para
heteroacusações. Ou seja, se amoldam muito pouco à sua própria uma direção oposta àquelas dos psiquiatras, que sustentavam sua
pessoa e muitas vezes ajustam-se à outra, a quem o doente ama prática no tratamento moral.
ou tenha amado. Tem-se então a chave de leitura que se abre para Freud, dessa maneira, dá pistas para se pensar o lugar do
o quadro clínico da melancolia: as autorreprovações são reprova- analista na clínica da melancolia. O lugar do analista não é o de se
' ao delírio do melancólico. Funcionar como uma barreira à pas-
opor
ções contra um objeto de amor que se tenha voltado para o pró-
pno eu. sagem ao ato não se dá pela via de contradizer o paciente.

124 125
Nesse sentido,Jean-Claude Maleval (20110) 14 dirá que só o Freud introduz a questão da mania como sendo uma ten-
fato de o analista acolher o melancólico já é um anteparo ao ato dência de transformação da melancolia. Segundo ele, o conteúdo da
suicida. Segundo esse autor, o que o melancólico pede é que seja mania em nada difere do conteúdo da melancolia: ambas as desor-
mandado embora, que se confirme seu lugar de dejeto. Supõe-se dens lutam com o mesmo complexo. São, pois, as mesmas condições
que a ideia freudiana de não contradizer o melancólico aponta na econômicas que estão na base das duas afecções.
direção de que ele seja acolhido, de se aceitar o desmascaramento Até o final de "Luto e melancolia" (1915-1917 /1974), ob-
que tal paciente faz de si mesmo. Observa-se c1ue, embora Freud serva-se o esforço de Freud em retomar a comparação entre o luto
não avance na clínica da melancolia, a partir de casos clínicos, ele e a melancolia, buscando as causas da última:
já fornece elementos para pensarmos o lugar do analista na direção
do tratamento. As causas excitantes da melancolia têm uma amplitude muito maior do
Quanto à catexia erótica do melancólico, no tocante ao seu que as do luto, que é, na maioria das vezes, ocasionado por uma perda
real do objeto. Na melancolia, em consequência, travam-se 1númeras
objeto, ela sofreu uma dupla vicissitude: "parte dela retrocedeu à
lutas isoladas em torno do objeto, nas c1uais o ódio e o amor se digla-
identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito devido cliam; um procura separar a libido do objeto, o outro defender essa po-
à ambivalência, foi levada de volta à etapa de sadismo que se acha sição da libido contra o assédio (FREUD, 1915-1917/1974, p.289-290).
mais próxima do conflito" (FREUD, 1915-1917/1974, p.284).
O sadismo é, na melancolia, expressão da tendência ao sui- Essas lutas se localizam no inconsciente. Quanto ao luto,
cídio. Freud se refere a forças que impulsionam o eu a se destruir, os esforços para separar a libido são enviados, mas, nele, nada obstrui
mas ainda não sabe o que ocorre. Ele irá concluir: o processo de seguir o caminho normal através do pré-consciente
até a consciência. Na melancolia, esse caminho está bloqueado para
O eu só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder o trabalho. Vale ressaltar, para esclarecer melhor, o modo como
tratar a si mesmo como um objeto - se for capaz de dirigir contra si Freud descreve essa situação:
mesmo a hostilidade relacionada a um objeto, c que representa a reação
original do eu para com objetos do mundo externo (FREUD, 1915-
1917/1974, p.285). A localização dessas lutas isoladas só pode ser atribtúda ao sistema Ics.,
a região dos traços de memória de coisas (sachliche Etinnerungspuren) (em
contraste com as catexias da palavra). No luto, também, os esforços
Outro momento importante que Freud (1915-1917 /1974) para separar a libido são envidados nesse mesmo sistema; mas nele
destaca é o que já havia citado em seu "Rascunho G". Em "Luto e nada impede que esses processos sigam o caminho normal através do
melancolia", ele utiliza a mes.ma expressão- "ferida aberta": Pcs. até a consciência. Esse caminho, devido talvez a um certo número
ele causas ou a uma combinação delas, está bloqueado para o trabalho
da melancolia (FREUD, 1915-1917/1974, p.290).
[... ] o complexo de melancolia se comporta como uma ferida aberta,
atraindo a si as energias catexiais - que nas neuroses de transferência
denominamos de 'anticatexias' - provenientes de todas as direções, e No texto original, em alemão, encontra-se, no lugar da pa-
esvaziando o eu até este ficar totalmente empobrecido (FREUD, 1915- livra "bloqueado", a palavra "barrado" - Gesperrt. Na psiquiatria
1917/1974, p.285-286). alemã, Gesperrt designa a barragem da esquizofrenia. Essa discussão
é muito importante, já que é pela via da inacessibilidade, causada pela
126 127
barragem, que o melancólico não tem acesso à representação cons- adota o luto em certas patologias que não correspondem ao campo das
ciente do que ele perdeu. Nesse sentido, o caminho só leva ao resul- psicoses, mas apresentam alguns traços da melancolia" (NIAZZUCA,
tado de uma identificação do eu ao objeto perdido. Vale relembrar a 2004a, p.11 0). Os exemplos citados por ele são a severidade e o sa-
expressão mais importante, que designa o processo da identificação dismo do supereu na neurose obsessiva.
na melancolia, utilizada por Freud: "A sombra do objeto caiu sobre O que se observa, em "Luto e melancolia" (1915-
o eu, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, 1917 /1974), é que Freud ora ressalta as semelhanças e, dessa forma,
como se fosse um objeto, o objeto abandonado" (FREUD, 1915- agrega, na mesma categoria, a melancolia e o luto, ora faz prevalecer
1917/1974, p.281). as diferenças, destacando, de um lado, o luto, e, do outro, a melan-
Das três precondições apresentadas por Freud para a me- colia; e, no meio, a neurose obsessiva, na qual, ainda que pelo viés
lancolia, reúnem-se a perda do objeto, a ambivalência e a regressão patológico, há luto. Vale destacar que a elaboração freudiana está
da libido ao eu. Entre elas, as duas primeiras também se encontram construída, então, sobre a diferenciação entre três estados clinica-
presentes nas autorrecriminações obsessivas que surgem depois da mente distintos. Tal delimitação entre esses campos é crucial quanto
ocorrência da morte de um ente querido. Conclui-se, então, que o à direção de um tratamento psicanalítico.
terceiro fator, o da regressão da libido ao eu, sob a base de uma iden- Considera-se valioso destacar, ainda, um manuscrito de
tificação narcisista, é um fator específico, responsável pelo resultado Freud: "Neuroses de transferência: uma síntese" (1915/1987). Esse
da melancolia. manuscrito foi escrito após Freud ter concluído "Luto e melancolia"
Uma leitura cuidadosa do texto "Luto e melancolia" per- e foi enviado a seu discípulo Sándor Ferenczi, na ocasião em que foi
mitiu considerar a melancolia pela perspectiva do luto. Contudo, isso escrito. No entanto, o texto somente foi descoberto em 1986, por
tem levado alguns leitores a crer que Freud estabelece uma conti- Ilse Grubrich-Simitis, quando ela estava em Londres, preparando a
nuidade entre luto e melancolia. Na verdade, no entanto, segundo publicação da correspondência de Freud a Ferenczi. Após ter lido
Mazzuú (2004a), há um erro ao se tentar compreender a melancolia uma carta manuscrita por Freud, que estava endereçada a Ferenczi,
como sendo um luto patológico. Na melancolia, há uma impossibi- juntamente com o texto encontrado, Ilse Simitis concluiu que se tra-
lidade de realizar o luto. É preciso ficar alerta para as três formas cli- tava do rascunho do 12° ensaio metapsicológico.
nicas que, no texto freudiano, estão bem claras: o luto normal, que O objetivo de se percorrer esse texto é investigar os cami-
tem seu sentimento de tristeza como correlato e, por modelo, o pro- nhos que Freud tomou para afirmar que tanto a paranoia quanto a
cesso do luto. A segunda forma é o luto patológico, na qual estão in- esquizofrenia e a melancolia estão na mesma categoria de neuroses
cluídas as depressões neuróticas, que abarcam um conjunto amplo narcísicas. Além disso, o autor segue uma pista valiosa no que diz
de patologias não psicóticas. Quanto à terceira forma, Freud apre- respeito ao processo de identificação na melancolia.
senta a melancolia, mas é possível concluir que, nesta, cabem também Freud investigou, além das neuroses narcísicas, as três
as outras depressões psicóticas, reguladas segundo o regime do nar- neuroses de transferência. Ele tentou fazer uma sequência dessas
cisismo. O que Mazzuca (2004a) sinaliza é no sentido de fazer pre- ef]fermidades do ponto de vista do desenvolvimento biológico.
valecer o critério da distinção neuroses-psicoses. Segundo esse autor, Assim ele diz:
"o luto patológico é introduzido para referir-se à modalidade que

128 129
[... } as neuroses narcisistas, por sua vez, retrocedén às fases anteriores que o mecanísmo da melancolia é a identificação com o pai primevo.
ao encontro do objeto: a demência precoce regride até o autoerocismo; Resta saber se é ao pai primevo, gozador, ou ao pai morto, assassi-
a paranoia, até a escolha homossexual c narcisista de objeto; a melan- nado pelos filhos. É possível inferir que o melancólico se identifica
colia baseia-se na identificação narcisista com o objeto. As diferenças
com o pai detentor de um gozo ilimitado.
consistem em que, sem dúvida, a demência aparece mais cedo que a
paranoia, embora sua disposição übidinosa retroceda a estádios mais Em 1921, Freud dá passos decisivos em seu estudo sobre a
primitivos, enquanto que a melancolia-mania Ílão permite uma classi- identificação e, portanto, sobre a constituição do eu. Na parte VII
ficação temporal segura (FREUD, 1915/1987, p.73-74). do texto "Psicologia de grupos e análise do eu", ele define o conceito
de identificação como sendo "a mais remota expressão de um laço
Mas Freud parecia pouco convencido quanto às sequênCias emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história
temporais das neuroses. Fará, então, em seu texto (Totem e tabu" primitiva do complexo de Édipo" (FREUD, 1921/1976, p.133).
(1912/1974), uma analogia entre a melancolia e a manía na situação Além disso, a identificação serve de molde para a constituição do eu.
da horda primeva, a fim de reunír elementos que possam estabelecer Ao analisar a relação do menino com o pai, Freud
a condição do mecanísmo na melancolia. Trata-se de um momento (1921/1976) retoma pontos importantes que já havia mencionado
fundamental, quando Freud dá pistas valiosas para se estabelecerem em seu artigo "Sobre o narcisismo: uma introdução", no que diz res-
as condições primítivas da melancolia. peito ao tipo de escolha objeta!. Discorre sobre tal relação e diz que
Observe-se como ele estabelecerá tal analogia da melancolia o meníno gostaria de crescer como o pai e de ser igual a ele, ou seja,
com o assassinato do pai da horda primeva pelos filhos: de se identificar com ele. Ao mesmo tempo, o meníno desenvolve
um laço libidinal objetai em relação à mãe; ele quer ser o pai de forma
A classificação da melancolia-mania nesse contexto esbarra com a di- a ter direitos sobre a mãe. Dessa forma, o menino apresenta um laço
ficuldade de que não é possível determinar com certeza a época nor-
libidinal de identificação com o pai e um laço libidinal de investi-
mal para o aparecimento individual desses sofrimentos neuróticos.
lvfas, seguramente, é mais na idade adulta que na infância. [... ].Assim, mento objetai com a mãe.
esse grande acontecimento da história da humanidade, que pôs fim à Diante dessa relação, pode-se concluir que
horda primitiva e a substituiu pela fraternidade vitoriosa, daria origem
às predisposições da peculiar sucessão de estado de ânimo que reco- [...] a identificação, na verdade, é ambivalente desde o início (...] com-
nhecemos como particulares afecções narcisistas ao lado das parafre- porta-se como um derivado da primeira fase da organização da libido,
nias. O luto pelo pai primitivo emana da identificação com ele, e tal da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é as-
identificação, provamos ser o mecanismo da melancolia (FREUD, similado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal
1915/1.987, p.79-80). (FREUD, 1921/1976, p.133-134).

Essa citação contém uma nota de rodapé, na página 79, es- Freud apresenta, de uma forma clara, a distinção entre a
clarecendo que a palavra aneurótico", nesse lugar, é evidentemente identificação com o pai e a escolha deste como objeto: "No primeiro
usada no sentido de psiconeurose e não de neurose de transferência. ci'so, o pai é o que gostaríamos de ser, no segundo, o que gostaríamos
Aqui Freud já estabelece certa distinção entre as psicoses e as neu- de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao
roses. Mas o ponto principal que merece destaque é a afirmação de objeto do eu" (FREUD, 1921/1976, p.134). A identificação com o
li
il 130 131
1:

t
pai é ambivalente porque apresenta tanto impulsos 'afetuosos como melancolia, é o mecanismo de identificação pelo qua.l o eu introjeta
hostis. o objeto perdido e se identifica com ele, como modo de reter o ob-
Assim ocorre a identificação: uma pessoa tenta moldar o jeto, que revela a chave do que ocorre no processo patológico.
seu próprio eu segundo o aspecto daquele que foi tomado como mo- Em relação ao tema da introjeção, vale conferir Karl
delo. O mecanismo de identificação está na base da identidade sexual Abraham (1924/1970), discípulo e contemporâneo de Freud, que,
e da constituição do eu. em artigo de 1924, teceu considerações relevantes sobre o assunto.
A partir desse panorama conceitual, Freud (1921/1976) vai A sua intenção é deixar bem claro que a introjeção do objeto de
descrever a identificação na histeria e na melancolia. Na histeria, amor constitui uma incorporação desse objeto, acompanhando a
como se sabe, a identificação traz consigo a produção de um sin- regressão da libido ao nível do canibalismo. Nesse artigo, encon-
toma, no qual a identificação é sempre parcial. tram-se dois termos: introjeção e incorporação, que não significam
Antes de explorar o mecanismo da identi6.cação que ocorre a mesma coisa, e é preciso esclarecê-los (L.APLANCHE; PONTA.LIS,
na melancolia, Freud (1921/1976) retoma a gênese do homossexua- 1994).
lismo masculino, em que, após a puberdade, o jovem não abandona Deduz-se que a incorporação envolve não somente a ativi-
a mãe, mas se identifica com ela: "transforma-se e procura então ob- dade oral, mas também a incorporação pela pele, pela visão, pela au-
jetos que possam substituir o seu eu para ele, objetos aos quais possa dição e pelo ânus, que são zonas libidinais. Quanto ao ato de
conceder um amor e um carinho iguais aos que recebeu de sua mãe" incorporar, observam-se três objetivos fundamentais: "obter um
(FREUD, 1921/1976, p.137). prazer fazendo penetrar um objeto em si; destruir esse objeto; e
Isso posto, Freud se refere a um ponto desse texto que aqui assimilar as qualidades desse objeto, conservando-o dentro de si"
muito interessa, ou seja, a identificação com um objeto que é renun- (LAPLANCHE; PONTALIS, 1994, p.239). O fato de assimilar e
ciado ou perdido, como um sucedâneo para esse objeto. A isso no- conservar o objeto dentro do eu é o que faz da incorporação "o pro-
meia de introjeção do objeto no eu, processo que alicerça o tótipo corporal da introjeção e da identificação" (LAPLANCHE;
mecanismo da melancolia: PONTA.LIS, 1994, p.239). Quanto à introjeção, embora seja um pro-
cesso parecido com a incorporação, não pode ser confundido com
Outro exemplo de introjeção do objeto foi fornecido pela análise da esta. O ato de incorporar está diretamente associado ao corpo, en-
melancolia, afecção que inclui, entre as mais notáveis ele suas causas
quanto a introjeção é mais abrangente no que concerne a colocar
excitantes, a perda real ou emocional de um objeto amado. Uma carac-
terística principal desses casos é a cruel autodepreciação do eu, combi- para "dentro" algo de "fora". 15
nada com uma inexorável autocrítica e acerbas autocensuras. As análises Tal mecanismo identificatório impede, na melancolia, o
demonstraram que essa depreciação e essas censuras aplicam-se, no trabalho do luto. Portanto, o melancólico é impossibilitado de fazer
fundo, ao objeto e representam a vingança do cu sobre ele. A sombra o luto, pois o objeto perdido retoma para dentro do eu e o divide.
do objeto caiu sobre o eu, como disse noutra parte. Aqui, a introjeção
Com isso, abre-se campo para a instância crítica agir com crueldade
do objeto é inequivocamente clara (FREUD, 1921/1976, p.137-138).
e ~everidade para com a parte do eu que introjetou o objeto. A me-
Assim, pode-se concluir, ao retomar ''Luto e melancolia", lancolia mostra, pois, um eu separado em duas partes: uma delas
que a frase "a sombra do objeto caiu sobre o eu" resume o que, na vocifera contra a outra, que foi alterada pela introjeção e contém o

132 133
objeto perdido. Quanto à parte cruel, ela é uma Instância crítica nas nem internas. São os casos de melancolia que Freud nomeou de
dentro do eu. espontâneos. Quanto à melancolia psicogênica, ele assim a descreve:
Em seu artigo "Sobre o narcisismo: uma introdução",
Freud (1914/1974) já levantava a hipótese de que tal instância se de- São aquelas que ocorrem após a perda de um objeto amado, seja pela
morte, seja por efeito de circunstâncias que tornaram necessária a reti-
senvolve dentro do eu e que ela se isola do resto do eu e entra em rada da libido do objeto. Uma melancolia psicogênica desse tipo pode
conflito com ele. É o que ele, então, nomeia de ideal do eu, que tem terminar em mania e o ciclo repetir~se diversas vezes, tão facilmente
a função de auto-observar, de vigiar, de censurar. como num caso que parece ser espontâneo (FREUD, 1921/1976,
Em 1921, em "Psicologia das massas e análise do eu", p.167).
Freud retoma seu texto "Totem e tabu", de 1912, em uma nota de
pé de página, na qual ele se refere à identificação: Paralelamente à melancolia espontânea, Freud continua a
se referir à melancolia do tipo psicogênico, para a qual utiliza a mesma ex-
[...] o estudo dessas identificações, como, por exemplo, as encontradas pressão que utilizou para se referir ao mecanismo na paranoia, a par-
na raiz do sentimento de clã, conduziu Robertson Smith (l<inship ans tir da análise de Schreber: "No tipo psicogênico, o eu seria incitado
JVIarriage, 1885) à surpreendente descoberta de que elas repousam no à rebelião pelo mau tratamento por parte de seu ideal, mau trata-
reconhecimento da posse de uma substância comum [por parte dos
mento que ele encontra quando houve uma identificação com um
membros do clã] e podem mesmo ser criadas por uma refeição ingerida
em comum. Esse aspecto torna possível vincular esse tipo de identifi- objeto rejeitado" (FREUD, 1921/1976, p.168).
cação à primitiva história da família humana que elaborei em ('Totem e No texto em português, encontra-se a palavra 'rejeitado',
tabu" (FREUD, 1921/1976, p.139). mas, no texto original em alemão, está a palavra Venvorjen. Essa cita-
ção indica que Freud estava investigando a melancolia na mesma di-
A análise de Freud em relação à melancolia prossegue, in- reção que investigava o mecanismo de base na paranoia. Na análise
troduzindo as particularidades da melancolia e seu par, a mania. do caso Schreber, ele diz o seguinte: "[...] aquilo que foi internamente
Ele havia mencionado brevemente tal correlação em "Luto e me- abolido retorna desde fora" (FREUD, 1912/1969, p.95).
lancolia" (1915-1917 /1974), mas, em "Psicologia das massas e aná- Será então que, nos estados de "melancolia espontânea",
lise do eu" (1921/1976), ele desenvolverá mais o assunto. Nesse seria adequado falar de melancolia? Acredita-se que não. Consi-
caso, sempre que algo no eu coincidir com o ideal do eu, haverá dera-se a melancolia espontânea correlata da tristeza normal do
uma sensação de triunfo, assim como haverá um sentimento de luto.
culpa e de inferioridade quando houver uma tensão entre o eu e o
ideal do eu. Ele se refere à forma cíclica da melancolia: mania,
quando a pessoa oscila periodicamente em seu estado de ânimo; 3.4. A sombra do objeto e o império do supereu
ora uma depressão excessiva, ora uma sensação exaltada de bem-
estar. Mas nem todos os casos de depressão cíclica podem serdes- O terceiro momento que se quer ressaltar, neste estudo, re-
critos como psicogênicos. fere-se à gênese da melancolia, em "O Eu e o Isso" (FREUD,
Existem situações que perturbam e atormentam a vida da 1923/1976), em que novas descobertas foram feitas em direção ao
pessoa, mas não se encontram nelas causas precipitantes, nem exter-
134 135
"sentimento inconsciente de culpa". Freud elucidai então, o meca- inconvenientes permanecem fora do eu, na melancolia, o objeto que
nismo da melancolia, ao aprofundar sua investigação sobre a relação atrai a cólera do supereu é anexado, pela identificação, ao eu. Os ter-
entre o eu e o supereu. Retomando o complexo de Édipo, bem como mos de Freud são suficientemente claros para a neurose obsessiva:
sua dissolução, dele extrai o conceito de supereu, como seu herdeiro. "[...] o eu do paciente se rebela contra a imputação de culpa"
O supereu representa as relações primitivas com os pais e relaciona- (FREUD, 1923/1976, p.67). Na reação do obsessivo a essa interpe-
se com o eu, sempre impondo uma proibição ou um dever. Em con- lação, constata-se uma incongruência entre a dimensão pulsional e o
sequência, o resultado desse conflito é vivido pelo sujeito como eu. No caso da melancolia, ao contrário, não se detecta nenhum traço
sentimento de culpa. de revolta ou de protesto em relação à imputação de ser culpado pela
A propósito, chama a atenção a diferença que Freud esta- perda. A respeito disso, Freud esclarece:
belece entre a neurose obsessiva e a melancolia, quanto à questão da
autoacusação. Na neurose obsessiva, o sentimento de culpabilidade Se nos voltarmos primeiramente para a melancolia, descobrimos que
exprime-se ruidosamente, mas sem poder justificar-se diante do eu. o supereu excessivamente forte, que conseguiu um ponto de apoio na
consciência, dirige sua ira contra o eu, com violência impiedosa, como
O obsessivo se revolta contra a atribtúção de culpabilidade advinda
se tivesse se apossado de todo o sadismo disponível na pessoa em
da instância moral e implora ao analista um apaziguamento desse apreço. Seguindo nosso ponto de vista sobre o sadismo, diríamos que
sentimento. Freud examina esse sentimento de culpa para distingllir o componente destrutivo entrincheirou-se no supereu e voltou-se con-
a neurose obsessiva da melancolia. Nesta, tra o eu. O que está influenciando agora o supereu é, por assim dizer,
uma cultura pura da pulsão de morte e, de fato, ela, com bastante fre-
[...] a impressão de que o supereu obteve um ponto de apoio na cons- quência, obtém êxito em impulsionar o eu à morte, se este não afasta
ciência é ainda mais forte. Mas aqui o cu não se arrisca a fazer objeção; o seu tirano a tempo, através da mudança para a mania (FREUD,
admite sua culpa e se submete ao castigo. Entendemos esta diferença. 1923/1976, p.69-70).
Na neurose obsessiva, o que estava em questão eram impulsos censu-
ráveis que permaneciam fora do eu, enquanto que na melancolia o ob- Mas, como se viu, nem toda melancolia evolui para a
jeto a que a ira do supereu se aplica foi incluído no eu mediante mania. Nesses casos, a culpabilidade acontece sem nenhuma obje-
identificação (FREUD, 1923/1976, p.67-68).
ção, sem nenhum movimento contra, por parte do melancólico. Há
uma espécie de ausência de mediação, uma falta de palavras que
Freud assinala, contudo, que seria infrutífero ceder a essa
possam contestar tal imputação de culpa. E é justamente essa au-
reivindicação do paciente, pois o supereu se move por processos que
sência da mediação capaz de livrar o melancólico da culpa que dá
ocorrem à revelia do eu. Na realidade, na base do sentimento de cul-
. a chave para explicar o paradoxo pelo qual ele denuncia a si mesmo
pabilidade, encontra-se uma série de moções pulsionais recalcadas.
como um criminoso. Isso ocorre pelo fato de o melancólico rei-
Já na melancolia, a impressão de que o supereu está anexado à cons-
vindicar para si a culpa pela perda. Tal culpabilidade, elevada em
ciência é ainda mais forte, e o eu não manifesta nenhum protesto-
seu mais alto grau, se transforma em autoacusação, por meio da
apresenta-se como culpável e se submete aos castigos que lhe são
qual o sujeito endereça a si mesmo as acusações que visam a outro
infligidos. Merece destaque o posicionamento incisivo de Freud ao
objeto. Tal fenômeno é específico da melancolia quando se atinge
caracterizar essa diferença. Para ele, na neurose obsessiva, as moções
um certo patamar de certeza sobre a acusação, em que o sujeito se

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incrimina a ponto de não deixar nenhum espaço p11ra a dúvida. Em quanto isso, a autoacusação vai-se traduzindo por constantes golpes
resposta à perda de objeto e à consequente identificação do sujeito contra si mesmo, com ou sem delírio.
a isso que foi perdido, as autoacusações retornam para o eu. A ele A pulsão de morte destaca-se, portanto, reinando ali onde
são direcionados pelo supereu os insultos, as injúrias e as difama- ocorre a desfusão 16 com o componente erótico. Como se sabe, o fio
ções que designam o ser supremo em culpa. O que vem para com- que segura o melancólico à vida é tênue, e nele é possível notar a
pensar essa autoacusação é uma expectativa de punição, mas, por ação dessa força destrutiva imperiosa, que age no silêncio das tenta-
maior que seja o castigo a que o sujeito se submeta, jamais poderá tivas de autoextermiuio. Acredita-se que, na melancolia, o medo da
ser absolvido. Por isso, é infrutífero, na clínica da melancolia, con- morte ou não está presente, ou não é suficiente para barrar a morte.
tradizer ou se opor à certeza delirante. Nesse ponto, Freud acaba por articular o medo da morte na melan-
Embora Freud (1923/1976) não tenha descrito casos de colia ao medo da castração, como se, não se operando a castração, o
melancolia, ele esclarece que, em uma análise, lutar contra o obstá- sujeito ficasse à mercê da pulsão de morte. O que se presentifica,
culo da autoacusação do paciente melancólico não é nada fácil. De- então, é o impulso autodestrutivo, que, ao imperar, poderá levar o
vido à autoacusação, um dos grandes entraves à cura é uma atitude sujeito à morte- o que permite ressaltar uma preponderância do de-
negativa do paciente para com seu médico, diante de uma possível sejo de morte sobre o medo desta. E isso fornece indicativos de que
melhora (o paciente não acredita na melhora). Nesse sentido, Freud essa ausência do medo da morte estaria relacionada ao que Lacan
se refere ao sentimento de culpa que encontra satisfação na doença desenvolverá, ao longo de seu ensino, sobre a não inscrição do
e se recusa a abandonar a punição do sofrimento como sendo um "Nome-do-Pai." Se, na paranoia, verifica-se o deslocamento da libido
fator moral. Para obter êxito, segundo Freud,
como mecanismo e sua projeção para o exterior, na melancolia,
ocorre a "hemorragia de libido", imperando, então, em decorrência
Se pudermos descobrir essa catexia objetai anterior por trás do senti-
mento de culpa Ics., o sucesso terapêutico é brilhante; caso contrário,
da desfusão das pulsões, a pulsão de morte.
o resultado de nossos esforços de modo algum é certo. Ele depende As elaborações freudianas, certamente, levam em conta al-
principalmente da intensidade do sentimento de culpa; muitas vezes gumas premissas do pensamento científico de sua época. Ele partillia
não existe uma força contrária com intensidade de ordem semelhante da ideia de uma associação estreita entre melancolia e mania vigente
que o tratamento lhe possa opor (FREUD, 1923/1976, p.66). em sua época e estabelecida por I<:raepelin (1913/1993), no Tratado
de psiquiatria, em sua delimitação da psicose maníaco-depressiva. No
Para Freud, as intervenções do analista e a melhora do pa- entanto, observa-se que Freud não partilha dos mesmos pressupos-
ciente melancólico dependerão da tomada de consciência, por parte
. tos em relação à concepção dos sintomas e do lugar ocupado pelo
do doente, do que o aflige inconscientemente, ou seja, é preciso des- profissional no tratamento. Tampouco concorda com os pressupos-
cobrir suas raízes. Contudo, na clínica, nota-se que tal descoberta é
tos que dizem respeito à posição do médico como autoridade, via
insuficiente. Uma possível melhora dependerá também da solução
tratamento moral, que persuade o melancólico, nem em relação à
encontrada pelo paciente, para apaziguar seu sofrimento. çausalidade da doença centrada exclusivamente, por I<:raepelin, no
O melancólico é aquele que espera e, nessa espera, adquire corpo. Nesse sentido, ele é categórico ao se referir à autopunição do
a certeza de que sua punição vai acontecer a qualquer momento. En- melancólico, rompendo com os pressupostos psiquiátricos, ao dizer

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que "não existe uma força contrária com intensidack de ordem se- O que se pode verificar, ao longo da investigação de Freud
melhante que o tratamento lhe possa opor" (FREUD, 1923/1976, sobre a melancolia, é que, apesar de ter trabalhado no âmbito ger-
p.66). Vê-se que Freud também utilizou o conceito de loucura cir- mânico, ele se aproximou muito mais, em termos psicopatológicos,
cular de J. P. Falret (1864/1994), mas a sustentação da melancolia, dos critérios da psiquiatria francesa. Isso se verifica, sobretudo, ao
distinta do luto, a partir do fenômeno de autoacusação, que culmina ter admitido, para a melancolia, tanto os fatores endógenos (me-
no delírio de inferioridade e indignidade, está inteiramente centrada lancolia denominada espontânea), quanto os psicogênicos. A dor
nas pesquisas de Cotard (1892/1997) e Séglas (1889). moral, como fenômeno primário investigado pelos psiquiatras fran-
Pelo percurso empreendido, viu-se que Freud reconhece as ceses, bem como a parada psíquica, da qual Freud deriva a ferida
diferentes formas clínicas descritas por esses psiquiatras, tanto as va- psíquica, atestam sua aproximação com essa escola.
riedades com sucessão de estados como as formas puras, ou seja, A partir da análise da variedade dos fenômenos clínicos
aquelas que mais tarde seriam denominadas, respectivamente, bipo- na melancolia, pode-se afirmar que, na análise freudiana, a melan-
lares e unipolares. colia delirante prevalece sobre a melancolia simples (sem delírio).
No entanto, é preciso alertar para a diferenciação, dentro Isso se justifica pelo fato de que Freud obtém suas conclusões,
do conjunto dos saberes aceitos no começo do século XX, entre duas fundamentalmente, através da análise do discurso que caracteriza
posições diferentes: a da psiquiatria alemã e aquela da psiquiatria o delírio melancólico, com suas queixas e autoacusações. Sob esse
francesa. Como se viu, em ambas, a melancolia ocupa um lugar aspecto, ele já apontará a melancolia como uma psicose.
central, mas, para Kraepelin, expoente da primeira, a melancolia No trajeto empreendido desde a psiquiatria clássica até
constitui uma enfermidade propriamente dita, tal como a para- Freud, verificou-se que a melancolia, em sua sintomatologia, poderia
noia e a demência precoce. Por outro lado, para a psiquiatria fran- ficar reduzida a este núcleo fundamental, a dor moral, a qual pode
cesa, é considerada como uma síndrome que, por reunir um apresentar-se em uma melancolia simples ou se desenvolver, secun-
conjunto de sintomas de maneira típica, depende de etiologias di- dariamente, em ideias delirantes, de indignidade ou inferioridade e
versas e, portanto, pode-se apresentar no curso de enfermidades autoacusação. Ou seja, o conjunto formado pela dor nzoral e a acen-
diferentes. tuada inibição intelectual constitui, na melancolia, um fenômeno es-
Ao analisar essas diferenças, Lanteri-Laura dirá que: sencial. Em Freud, o delírio melancólico atua como uma resposta,
quando o sujeito está identificado ao objeto perdido, ou seja, quando
Enquanto síndrome, a melancolia admite então formas et.iológicas ele está impossibilitado de elaborar a perda. Daí advém o estrago ob-
múltiplas. A primeira e a mais importante é seguramente a melancolia _servado no eu do melancólico, a partir das autorrecriminações, da
da psicose maníaco-depressiva, que a psiquiatria francesa toma em- falta de pudor no desmascaramento de si mesmo e dos fenômenos
prestado de E. I<raepelín, sem deixar de lembrar, por outro lado, tudo
decorrentes dessa identificação.
que o mestre de Munich devia à loucura circular de]. P. Falrct e à lou-
cura de dupla forma de]. Baillargcr; e, ainda que ninguém falasse
então de forma monopolar, se admitia que essa psicose pudesse com-
preender somente episódios depressivos separados por intervalos lú-
cidos. Mas a síndrome melancólica podia depender de outras
etiologias (I..ANTERl-LAURA, 1996, p.57-58).

140 141

Ili
3.5. Oproblema da identificação narcísica radical existente entre a melancolia e o luto" (LACAN, 1963/2005,
p.364).
Como se viu anteriormente, a identificação e a perda são Nesse sentido, a problemática da identificação melancólica
dois exemplos conceituais investigados por Freud, muito úteis para - discutida anteriormente em uma perspectiva freudiana - somente
a compreensão dos mecanismos essenciais da melancolia. Cabe agora se esclarece, em uma perspectiva lacaniana, ao se efetuar a separação
verificar como Lacan irá estabelecer a distinção entre o sujeito me- entre o i( a) e o a. Tal distinção ocorre pela resposta dada no processo
lancólico e o sujeito neurótico, em relação à perda de objeto. Em pri- da perda, em que o sujeito pode estabelecer, por um lado, a sua re-
meiro lngar, a referida clínica diferencial será investigada do ponto lação ao objeto a e ao i(a), no caso do luto, e, por outro lado, no caso
de vista da imagem especnlar e dos processos identificatórios. Assim, da melancolia, uma relação maciça com o objeto a, relação que passa
busca-se explicitar tais processos, a partir da experiência do estádio a ser seu ponto de referência. Se o que confere uma especificidade
do espelho, elaborada por Lacan (1949 /1998) a partir das ideias de ao melancólico é a referência ao objeto a, é porque, nele, predomina
Freud e Henri Wallon, e que, como se sabe, acontece em uma etapa certa radicalidade que está "mais arraigada para o sujeito que qual-
ainda precoce da constituição do sujeito. quer outra relação, mas intrinsecamente desconhecida, alienada, na
A identificação a que se refere, nesse contexto, é a identifi- relação narcísica" (LACAN, 1963/2005, p.364). Isso apenas se con-
cação narcísica, na qual a substituição do amor pelo objeto, pela iden- firma com as formulações e conceitos que, na obra de Freud, sus-
tificação ao objeto, é a pedra angular das chamadas afecções tentam os principais mecanismos na melancolia, articulando-os às
narcísicas: a esquizofrenia, a melancolia e a paranoia. O modo como contribuições posteriores de Lacan.
ocorre a identificação é o que determinará as consequências para É necessário relembrar que o texto do narcisismo é consi-
cada um desses tipos clínicos. Em relação à contribuição de Freud derado a chave de leitura utilizada por Lacan para elucidar tal pro-
sobre as psicoses, sabe-se que a identificação corresponde a uma re- blema. Freud postula, ali, não somente a fase do narcisismo primário,
gressão até o narcisismo originário a partir de um tipo de escolha de mas, sobretudo, o caráter basicamente perdido do objeto de satisfa-
objeto. É nesse sentido que, ao se manifestar de maneira pura, na cão. Além disso, Freud apresenta, passo a passo, o modo como se
melancolia, a identificação narcísica à Coisa (das Dini) descortina a dá a primeira disjunção entre a libido do eu e a libido objetai. É, pois,
relação que o sujeito mantém com ela, ocupando uma posição de em uma etapa segwnte . ' . ", a
- pstqUlca
que ocorrera' uma " nova açao
gozo que lhe é particular. formação do ideal do eu (Ichidea~, que funda o narcisismo secundário,
Ao analisar a situação da identificação melancólica pelo responsável pelas identificações que serão estabelecidas a partir desse
viés da orientação lacaniana, depara-se com um postulado que evi- .acontecimento. Assim, é a partir do ideal do eu que os dois tipos de
dencia e demonstra com clareza a natureza da questão da clínica libido passam a se referenciar. A importância desse momento merece
diferencial entre o luto e a melancolia. Lacan (1963/2005) é cate- destaque por elucidar o que ocorre na identificação melancólica.
górico ao afirmar que apenas se pode estabelecer a diferença radical Além do fato de que o ideal do eu conserva o sinal formal
entre o luto e a melancolia a partir da distinção entre o destino do da influência crítica dos pais, ele é condição para o recalque, que se
objeto a e a captura da imagem especular, o i(a): 17 ''A menos que e~gue desde a relação estabelecida entre o sujeito e o objeto. Con-
distingamos o objeto a de i(a), não poderemos conceber a diferença clui-se, assim, que, nas neuroses de transferência, o recalque nega a

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tradução em palavras da representação rechaçada. Contudo, no to- dições de afirmar que o mecanismo é o mesmo, tanto na esquizo-
cante às psicoses, é possível postular esse mesmo mecanismo? Por frenia, quanto na paranoia e na melancolia?
essa via, Freud (1915-1917 /1974), em seu texto "O inconsciente", O probléma crucial que gira em torno da problemática da
sustenta a afirmação de que, ao negar a tradução em palavras, que identificação narcísica aponta para o fato de que, na melancolia, o
estão conectadas ao objeto, o sujeito encontra-se no campo da neu- desaparecimento de um objeto faz com que o sujeito se identifique
rose, ao passo que, "na esquizofrenia, [...] devemos indagar se o pro- a ele, introjetando essa perda narcisicamente. Ao fazer isso, o sujeito
cesso denominado aqui de recalque tem alguma coisa em comum é remetido ao estádio do narcisismo original, no qual o ideal do eu
com o recalque que se verifica nas neuroses de transferência" ainda não desenvolveu plenamente sua função, tampouco havia ocor-
(FREUD, 1915-1917/1974, p.231). Freud pressupõe que o processo rido a captura da imagem especular, i(a), para sustentar o eu na iden-
não é o mesmo nas afecções acima indicadas. tificação secundária. Se a identificação narcísica, primária, é fundante
Nesse sentido, o que se constata, a partir da análise do caso para o eu, ela é sustentação para que o eu possa fazer novas identi-
Schreber (1912/1969), é que, na psicose, o mecanismo que entra em ficações.
ação é diferente do recalque, e, por isso, não opera da mesma maneira Na melancolia, afirmar que o melancólico está identifi-
que na neurose. Além disso, como Freud (1915-1917 /1974) mostrou, cado narcisicamente ao objeto significa que houve uma falha, um
em "Luto e melancolia", a perda de objeto, na melancolia, não pode desastre na efetivação da passagem do narcisismo primário para
ser traduzida, pelo fato de o acesso às representaçôes de palavras o narcisismo secundário. Nessa falha, o eu, sem se sustentar no
estar "barrado"- Gesperrl; Tal obstrução torna impossível o processo ideal do eu, que teria a função de assegurar a via do desejo, nem
de tornar consciente a perda de objeto, e, com isso, a representação na imagem especular i(a), não efetua a identificação secundária.
de coisas inconscientes fica desconectada da representação pré-cons- O que ocorre é uma regressão ao estádio anterior, no qual o ideal
ciente de palavras. É o contrário do que ocorre no luto normal e no do eu ainda não se desenvolveu plenamente. Pode-se dizer que
luto patológico, nos quais a relação inconsciente com o objeto se ele, o ideal do eu, é arcaico, contendo apenas o lado feroz da in-
mantém ligada à representação de palavra, que autoriza, em caso de fluência crítica dos pais. Assim, é possível afirmar que houve nar-
perda do objeto, a supressão gradual do afeto, mediante a menção a cisismo secundário, porém o destino da libido não foi religar-se
cada detalhe identificatório. É isso que possibilita, no luto, a extração a objetos fora do eu, mas retroceder ao estádio anterior. O sujeito,
dos "detalhes identificatórios" do objeto perdido e encaminha o su- não sabendo o que perdeu nesse objeto, está impedido de ver se
jeito para uma nova ligação objetai. O que o trabalho do luto possi- existem, nesse caso, os atributos desse objeto perdido, para que
bilita, pois, é um certo ajuste contábil de cada detalhe que identifica . possa ir-se desfazendo deles aos poucos. O que se vê, portanto,
o sujeito em relação aos traços que o ligavam ao objeto perdido. Na é o melancólico sendo consumido pela identificação narcísica a
melancolia, como não existe identificação aos traços, talvez não seja esse objeto a, sem os contornos, sem as molduras e os artifícios
equivocado pensar que é por essa razão que o recalque não opera do que normalmente são fornecidos pelo simbólico. Por isso é que
mesmo modo, pois, para o sujeito, eles não existem, o sujeito não 9e encontram razões para afirmar que, na melancolia, não há ima-
sabe o que perdeu e nem pode contabilizar os detalhes disso que per- gem especular, i(a), mas o que se presentifica é o eu identificado
deu. Ele então se identifica à Coisa. A partir daí, já não haveria con- ao objeto a.

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Pode-se deduzir, pelas considerações apresentadas, que so- sentação na qual se conectam coisa e palavra. Por isso ele sabe que
mente a partir das formulações de Lacan sobre o narcisismo, ou seja, perdeu, mas não tem acesso ao que ele perdeu nesse objeto.
a partir da distinção entre o objeto a e a identificação, i(a), é possível Ao demonstrar a perda de objeto e a constituição do eu,
esclarecer e aprofundar a problemática do componente narcísico na pela via do que Lacan (1949 / 1998) formulou em sua investigação
melancolia. A partir dessas reflexões, observa-se a divisão entre o sobre o "estádio do espelho", ver-se-á o quanto é importante, para
que se delega ao Outro e o que se imputa ao eu, no funcionamento o desenvolvimento psíquico, o reconhecimento, no espelho, da ima-
sutil e complexo da economia narcísica na melancolia. gem do eu. Isso irá designar o eu ideal, que será a base para todas as -
É nesse sentido que, do ponto de vista econômico, há, identificações secundárias. Já se sabe, porém, que o advento da ima-
na melancolia, uma inversão das moções pulsionais - eu/ mundo gem do eu, o i(a), apenas poderá constituir-se a partir da entrada de
externo, atividade/passividade e prazer/ desprazer. Do ponto de um Outro. A consistência do eu depende de um Outro, um Ideal,
vista dinâmico, o que ocorre é o retorno ao estádio anterior da li- que não só governa, mas que dá a forma do corpo.
bido - C! sadismo, que é marcado pela identificaÇã:o-aê)Ôbf~to-~ Nesse sentido, é o atravessamento do espelho que coloca
promove o alojamento, no coração do eu, de um objetode ódio, o sujeito separado da Coisa, pelo reconhecimento da sua imagem a
objeto que, pelo contrário, esperar-se-ia que se mantivesse no ex~ partir da entrada do Outro. Assim, é o ideal do eu que interdita esse
terior_ eu que se mostrava ainda conectado com o objeto (DiniJ de pura sa-
Algumas das resoluções possíveis da ambivalência ine- tisfação. A partir dessa intervenção, o eu se separa do objeto, que es-
rente à identificação narcisista que traduzem a perda de objeto são, tará perdido para sempre_ O que se segue a esse momento, ao
de um lado, a melancolia e, de outro, a paranoia, em que a maldade concluir tal travessia, é a identificação com a imago do semelhante,
se mantém fora do eu, à distância_ Com isso, o que se vê é que o i(a), que inaugura, para o sujeito, "a dialética que liga o [eu] a situações
ideal do eu permaneceu à margem, substituído por uma satisfacão socialmente elaboradas" (LACAN, 1949/1998, p.101). É isso que
narcisista originaL É isso o que faz com que o melancólico_ ~ão torna possível ao saber humano bascular pela mediatização operada
tenha consumado a perda do objeto incestuoso. Ele rejeita a perda a partir do desejo do Outro e, consequentemente, pelo seu próprio
ao introduzir o objeto perdido em seu eu_ Em função disso, pode- desejo_
se dizer que os fatores que determinam a melancolia se localizam Mas o encontro com a sua própria imagem produz uma es-
em um estádio anterior à identificação edípica, e é isso que impede, tranheza, que surge à luz da imagem do sujeito no espelho. O que
então, que o melancólico constitua uma identificação secundária. resulta disso são as duas funções que se desdobram no eu: o ideal
Sabe-se que "a identificação edípica se produz no mo- do eu, que se presentifica pelo reconhecimento do sujeito como ob-
mento da perda consumada do objeto incestuoso" (PELLION, jeto de desejo do Outro, e o eu ideal, que é a imagem que sela o con-
2003, p.172), ou seja, do abandono da moção de desejo a respeito torno do eu, é a superfície do eu_
desse objeto incestuoso. A perda do objeto é, pois, para o melan- A partir da relação com o Outro, deduz-se a função da ima-
cólico, um acontecimento que está articulado com a identificação gem especular percebida como i( a) -essa que se interpõe entre o eu
original do sujeito. É isso que explica o fato de que, ao não atra- e a Coisa. Lacan ilustra magistralmente essa situação através do
vessar o Édipo e, portanto, a castração, não se constitua a repre- drama de Hamlet, que mostrará como articulá-la ao objeto perdido,

146 147
abrindo-se o campo para o entendimento da problemática da iden-
•I Caberá, então, fazer uma análise da identificação ao objeto per-
tificação narcísica e da identificação neurótica. dido na melancolia. Nesta, como não é possível o trabalho do
luto, o objeto do desejo não aparece. Pode-se dizer que, nessas

3.6. Hamlet e a perda do objeto


I circunstâncias, a identificação é narcisista.
Ao conceber a função de investimento especular no interior
da dialética do narcisismo, Lacan (1963/2005) apresenta uma hipó-
Compreender o comentário de Lacan a respeito da ficção tese de que nem todo investimento libidinal passa pela imagem es-
hamletiana é fundamental para esta discussão, pois, ao se tomar como pecular. "Existe um resto", ele diz: "somente podemos saber se nesse
paradigma a relação do personagem com as circunstâncias do assas- ou naquele sujeito existe resto pelo modo como se situa em relação
sinato do pai, vê-se que a perda no luto pode ser confundida com a ao desejo" (LACAN, 1963/2005, p.46).
perda na melancolia (LACAN, 1963/2005). Lacan se vale dessa fic- Como se sabe, nem toda perda de objeto pode ser elevada
ção para apresentar a questão da identificação imaginária sob duas à instância de objeto perdido, e nem toda falta diz respeito ao que
formas distintas: uma delas é aquela ao objeto a, a outra, ao i(a), ima- Lacan irá nomear de falo, que é representado por-'(. Há o resto que
gem especular tal qual ela é dada no momento da cena sobre a cena. 18 está fora do espelho, que escapa à articulação significante. Dizendo
Em outro momento, a questão retoma na cena em que o objeto do de outro modo, o falo é o que advém em decorrência do resultado
desejo, que até então fora negligenciado, é reintegrado à cena pela da castração..Após o dec!inio do complexo de Édipo, ao ter renun-
identificação 19 (LACAN, 1963/2005). ciado ao lugar do pai ou da mãe, o sujeito experimenta o luto pela
A leitura empreendida por Lacan sobre o drama de perda do falo. Mas, para Lacan, o falo não é um objeto como os ou-
Hamlet servirá aqui de guia para se discernir o trabalho do luto tros. O falo é valorizado de modo diferente de todos os demars
do processo da melancolia. É, pois, no momento em que Laertes objetos:
chora a morte de sua irmã, que Hamlet reintegra o seu objeto
perdido, pela via da sua identificação a Laertes. Com isso, so- O que dá seu valor ao falo é [...] uma exigência nardsica elo sujeito. No
momento do desenlace final de suas exigências eclipianas, vendo-se de
mente ao fazer o luto pela perda de Ofélia, é que faz, concomi-
qualquer forma castrado, privado da Coisa, l···] o sujeito prefere, se po-
tantemente, o lmo do pai, assassinado. Sob esse olhar, Lacan demos dizer, abandonar uma parte de si mesmo, que será a partir ele
comenta que o objeto do desejo, em Hamlet, já estava lá. Bastou então para sempre interdita, formando a cadeia significante (LACAN,
esse giro, a partir do luto de Ofélia, para que ele reintegrasse o 1958-1959/2013, p.409-41 0).
objeto de seu desejo. A expressão utilizada por Lacan (1958-
1959 /2013, p.380), "reintegração do objeto em seu marco narci- A partir desse abandono de uma parte de si, ocorre a sepa-
sista", indica que, quando o sujeito faz uma retomada do objeto, ração desse objeto qt1e aliena o sujeito ao Outro, na vivência edipiana.
reunindo em si as mesmas condições em que se estabeleceu a Após tal perda, o campo subjetivo estará pronto para uma nova ação
perda do primeiro objeto de satisfação, essa reintegração lhe per- psíquica, denominada de narcisismo secundário. E a partir desse con-
mitirá, portanto, reapossar-se definitivamente da perda do objeto sentimento com a perda, do assentimento à perda do falo, que o su-
e, em seguida, fazer o seu luto e se orientar na via do set1 desejo. jeito será direcionado para o luto do falo.

148 149
Ao retomar o episódio vivido por Hamlet na cena do en- Tendo esgotado o conjunto dos significantes que fazem a consistência
do objeto, seu casulo narcísico, este, despido de sua capa imaginária
terro de Ofélia, Lacan comenta a distinção entre o luto e a melanco-
i(a)1 que lhe assegurava o significante de ideal do eu, cai no nível do ob-
lia. Nesse aspecto, Hamlet, que não é melancólico, passou a vida jeto intragável sem nenhwn suporte nardsico; o luto completa-se e um
inteira às voltas com o luto que estava por fazer, diante da perda de novo objeto ornamentado com .insígnias precedentes pode fazer seu
seu pai. Somente ao perder para sempre seu grande amor- Ofélia- aparecimento (COTTET, 1990, p.32).
é que ele pôde fazer o luto da perda de seu pai. Por isso, no trabalho
de luto, são fundamentais os rituais, na tentativa de que tais artifícios É, pois, o i(a) decorrente da ação do narcisismo secundário
simbólicos possam combater a desordem advinda da perda. Assim, o que vem fazer com que o a permaneça mascarado. Dessa forma,
o buraco decorrente do objeto perdido pode ser elaborado, não per- pode-se afirmar que só existe i(a) onde houve uma perda de objeto,
mitindo que o abalo da perda incida sobre o sistema significante. De com elaboração do luto. Nesse caso, o ideal do eu exerce sua plena
certa forma, o trabalho do luto contempla todo o ritual, diante do função de sustentar o eu.
buraco que advém da perda do objeto. Mas, no caso de Hamlet, ele Lacan retoma Freud a respeito do luto: o sujeito do luto
adiou agir, pelo fato de que, em sua vida, todos os lutos postos em tem que realizar a tarefa de consumar, pela segunda vez, a perda pro-
questão foram ritualizados brevemente, clandestinamente. Ele só vocada pelo acidente do destino, do objeto amado. É por isso que
pôde agir após o vivido no ritual do centitério, quando, ao enterrar Freud insiste muito na rememoração detalhada do luto referente a
Ofélia, se depara com a perda do objeto, que lhe concede as condi- tudo o que foi vivido na ligação com o objeto amado. Segundo
ções para fazer o seu luto. Lacan, na conclusão do luto,
Talvez se possa compreender, assim, a natureza da perda
de objeto típica das neuroses por meio da expressão de Lacan (1958- [...] é essa ligação com o objeto fundamental que se trata de restaurar,
o objeto mascarado, o objeto a, verdadeiro objeto da relação, ao qual,
1959/2013, p.380): "o objeto reintegrado a seu marco narcisista". É
em seguida, um substituto poderá ser dado, que não terá, no final das
o que ocorreu com Hamlet, que, não sendo um melancólico, ao ver contas, mais importância c1ue aquele Cltte, de início, ocupou o lugar
"a desaparição real de Ofélia, faz desmoronar em pedaços o marco (LACAN, 1963/2005, p.376).
narcisista que lhe oferecia esse love ciflair, obrigando-o a reapossar-se
do verdadeiro objeto em questão, cujo rechaço só havia sido tempo- Dessa forma, no luto, trata-se de manter as ligações pelas
rário" (PELLION, 2003, p.188-189). quais o desejo estaria suspenso não ao objeto a, mas a i(a).
Dessa forma, ao se referir ao processo de identificacão na Afirma-se, assim, que a reintegração do objeto é uma das con-
melancolia, é adequado falar de identificação narcisista, ao pass; q~e a dições para se concluir o trabalho do luto, quando se perde um ob-
identificação neurótica, ao exemplo de Hamlet, chamar-se-á de rein- jeto. Ao localizar o que se perdeu, o sujeito consegue reintegrar os
t,gração do objeto a. Nesse contexto, pode-se incluir também o afeto traços identificatórios desse objeto perdido, podendo, a partir desse
depressivo que se segue ao trabalho de luto, tema debatido por Serge momento, abrir mão do objeto. Nesse caso, com base nessas formu-
Cottet, psicanalista francês contemporâneo, que corrobora as ideias lações, está-se no campo da neurose, em que a perda se localiza fora
aqui apresentadas, descrevendo assim o luto: do eu, e a morte é do Outro, fora. O contrário disso se vê na melan-
colia. Nessa condição, a morte de alguém, ou a perda de qualquer

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I

objeto amado, não se traduz pela reintegração do objeto, mas sim por fora subitamente separado pela carênCia de desejo" (LACAN,
uma identificação elo Jtgeíto ao objeto perdido em seu marco narcisista. Sob 1963/2005, p.363). Nessa perspectiva, Lacan (1963/2005) assinala
essa ótica, a morte se localiza dentro do eu. Ao se instalar no eu, a que, para Freud, o luto consiste em se consumar, pela segunda vez,
partir da "sombra do objeto que recai sobre o eu", o que advém é a perda do objeto amado provocada pelo acidente do destino. Isso
uma pura destruição. justifica a rememoração detalhada de tudo aquilo que foi vivido na
Lacan (1963/2005) apresenta, precisamente, o aspecto da ligação com o objeto amado.
identificação, na melancolia, e da passagem ao ato suicida. Ao pensar Se Freud afirma que, na melancolia, o objeto perdido re-
no melancólico, em referência à identificacão , ao obj.eto a, ele o dis- toma para o eu do sujeito, no luto, o processo descrito é bem dife-
tingue do neurótico, que faz sua identificação ao i(a), que recobre o rente. O que ele assegura para as duas condições é que o sujeito
objeto, permitindo uma máscara para o objeto a, impossibilitando deve-se entender com o objeto. Na melancolia, o objeto a perma-
seu reencontro. Nesse contexto, retoma-se a distinção entre o luto e nece, em sua essência, desconhecido. Segundo Lacan, isso traz como
a melancolia a partir do que já foi estabelecido anteriormente no consequência:
drama de Hamlet. O que se destaca é o fato de que a ausência de
luto, por parte de sua mãe, fez desvanecer-se e dissipar-se, em Ham- Que o melancólico, digamos, atravesse sua própria imagem e primeiro
let, de maneira bem radical, temporariamente, qualquer impulso de a ataque, para poder atingir, lá dentro, o objeto a que o transcende, cujo
mandamento lhe escapa - e cuja queda o arrasta para a precipitação
um possível desejo. A ele o desejo falta porque o seu Ideal desmo-
suicida, com o automatismo, o mecanicismo, o caráter imperativo e in-·,
ronou de uma só vez, com a morte de seu pai. Logo após a morte trinsecamente alienado com que vocês sabem que se cometem os sui-
de seu adorado pai, sua mãe rapidamente se rendeu aos encantos de cídios de melancólicos (LACAN, 1963/2005, p.364).
Claudius, assassino do rei Hamlet. Para ela, não houve luto. Para
Hamlet, o efeito foi de destruição. Ele perdeu todas as insígnias que Na melancolia, vê-se um sujeito marcado por uma perda
I/,
o colocavam em uma relação ao i(a), e, por isso mesmo, em relação desconhecida, que o aliena para sempre em uma relação narcísica
ao seu desejo. O que se sabe é que seu pai era, para Hamlet, o seu primária. Essa relação é a mais viva presença da identificação do me-
Ideal. Mas, imediatamente após o seu assassinato, sua mãe, recém- lancólico à Coisa.
viúva, não esperou o tempo para fazer o luto e logo substituiu o ma-
rido, ao se casar rapidamente com Claudius. Isso causa em Hamlet o
desmoronamento que se constata pelo desaparecimento do seu desejo.
O que merece destaque é o que Lacan mostra como sendo
o momento da elaboração do luto por Hamlet. Nesse caso, somente
foi possível restaurar a possibilidade de fazer o luto, a partir da reação
que Hamlet teve ao ver o luto por parte de Laertes, do lado de fora,
com quem ele entrou em competição. Assim, Hamlet conclui o luto
na cena da cova, ao ver um outro luto, que se trata "do luto de Laer-
tes por sua irmã, que era o objeto amado por Hamlet e de quem ele

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CAPÍTI.IUJI 4

OGOZO QUE MORTIFICA

4.1. A morte do sujeito na melancolia

No célebre texto "De uma questão preliminar a todo tra-


tamento possível da psicose" (LACAN, 1957-1958/1998), encon-
tra-se uma pista valiosa, no que diz respeito ao fenômeno da morte
do sujeito na psicose. Ainda que seja válido para todas as psicoses,
NOTAS tal fenômeno merece destaque, pois, na melancolia, será elevado à
12 sua maior potência destrutiva. No texto citado, a partir de suas ela-
A concepção metapsicológica se define pela relação dinâmica, tópica e econô-
mica entre o eu, o .isso e o supereu. borações sobre o estádio do espelho, Lacan faz referência ao modo
13
ParaJules Séglas (1894), a "dor moral" é uma espécie de "depressão dolorosa", por meio do qual o sujeito se constitui como um sujeito para a
responsável por grande parte dos fenômenos manifestos na melancolia, dentre morte:
estes, o delírio de indignidade.
14
Comunicação feita em uma supervisão clínica. Anotações pessoais. Com efeito, é pela hiância que essa prematuração abre no imaginário,
15
O termo introjeção é mais amplo: já não é apenas o interior do corpo que está e onde puh1lam os efeitos elo estádio elo espelho, que o animal humano
em questão, mas o interior do aparelho psíquico, de uma instância (LAPLANCHE; é capaz de se imaginar mortal; não que possamos dizer que ele pudesse
PONTALIS, 1994).
16 fazê-lo sem sua simbiose com o simbólico, mas sim que, sem essa hiân-
Essa expressão é empregada para designar o desligamento da pulsão de morte cia que o aliena em sua própria imagem, não poderia produzir-se essa
da pulsão que liga o sujeito à vida, pela (1ual as pessoas se mantêm vivas. simbiose com o simbólico onde ele se constitui como sujeito para a
17
O materna i(a) é desenvolvido por Lacan para designar a imagem do eu, o se- morte (LACAN, 1957-1958/1998, p.558).
melhante, construída a partir do espelho.
18
Cena em que Hamlet armou uma outra cena teatral para mostrar ao público
como o seu pai, o rei, havia sido assassinado pelo seu tio Claudius (SHAKES-
Pode-se aproximar essas fases da imago, conceito central
PEARE, 1601/2000). de "Formulações sobre a causalidade psíquica" (LACAN, 1946/1998),
19
Trata-se ela cena em que Ofélia é enterrada, e Hamlet se identifica ao irmão dela, de uma hiância através da qual a identificação primordial se exerce.
Laertes, que, ao chorar desesperadamente, produz uma identificação, represen- O sujeito, diz Lacan, "entra no jogo como morto, mas é como vivo
tando o i(a) para Hamlet (SHAKESPEARE, 1601/2000). que irá jogá-lo" (LACAN, 1957-1958/1998, p.558). É o que ele fará

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I
a partir das figuras imaginárias. É, pois, a partir da hiância que essa Na melancolia, ao se identificar ao objeto a, a morte do
prematuração abre, no imaginário, o caminho por onde se podem sujeito se presentifica no próprio eu. É radicalmente diferente do
destacar os efeitos do estádio do espelho, e a via pela qual o animal resultado da neurose, na qual o processo culmina, no espelho, pelo
humano será capaz de se imaginar mortal. Portanto, reitera-se o pos- reconhecimento e alienação na própria imagem, o que desemboca
tulado de Lacan, ao dizer que, sem essa hiância que o aliena em sua no fato de que o sujeito aí se constitui como um sujeito para a
própria imagem, "não poderia produzir-se essa simbiose com o sim- morte.
bólico onde ele se constitui como sujeito para a morte" (LACAN, De acordo com Fridman e l'vlil!as (2003), Lacan diferenciou
1957-1958/1998, p.558). Diferentemente disso, o melancólico, diante os efeitos da foraclusão nos diferentes registros. Se, no registro sim-
dessa hiância, não se constitui como um sz.!feito parcz a motie, mas resta, bólico, o sujeito tem como resposta um buraco, no imaginário, a fo-
petrificado, como sujeito morto. raclusão produz um vazio de significação, devido à falta do efeito
Por essa via é que Fridman e Millas (2003) retomam essa metafórico do Nome-do-Pai. Há, ainda, na economia libidinal, uma
discussão, dizendo que o sujeito psicótico não é representado pelo alteração descrita como uma desordem provocada na junção mais
significante, permanecendo totalmente capturado, petrificado, pela íntima do sentimento de vida.
inexistência do intervalo entre S1 e S2. A morte do sujeito "corres- Dentre as diferentes manifestações das psicoses, a me-
ponde à abolição dos efeitos de significação promovidos pela metá- lancolia apresenta a particularidade de o sujeito experimentar sua
fora paterna" (FRIDMAN; MILLAS, 2003, p.83). morte duplamente. Primeiro, em sua constituição: morte do su-
Recorda-se, com Lacan, que Freud (1912/ 197 4) ligou o jeito; depois, o sujeito carrega essa morte através de fenômenos
aparecimento do significante do Pai, como autor da Lei, à morte, mortificantes: a desvitalização, a automutilação, os delírios de au-
sob a forma do assassinato do Pai. Por essa via, ele mostrou que toacusação, os delírios de indignidade e de negação. As diferentes
tal assassinato inaugura o momento através do qual o sujeito neu- formas de retorno do gozo no real correspondem, para cada ca-
rótico se liga à vida, à Lei. O Pai simbólico é, portanto, o que essa tegoria clínica das psicoses, a características específicas do que se
Lei significa, e seu representante é o Pai morto (LACAN, 1957- chama "morte do sujeito".
1958/1998). Se diferentes modos de retorno de gozo implicam diferen-
Em "De uma questão preliminar... ", Lacan tece considera- tes fenômenos de morte subjetiva, indaga-se sobre o que seria espe-
ções sobre a carência do significante do Nome-do-Pai. Busca, em cífico no quadro melancólico. O estudo desse problema possibilitará
Freud, o termo Venverfung, e o tomará como foraclusão do signifi- circunscrever as condições estruturais dessa manifestação clinica e
cante. "No ponto em que,[...] é chamado o Nome-do-Pai, pode, pois, orientar em direção à especificidade do lugar do analista como ante-
responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência paro à passagem ao ato na melancolia.
do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar Para Miller (2003), o fenômeno da "morte do sujeito" é es-
da significação fática" (LACAN, 1957-1958/1998, p.564). sencial na clínica das psicoses. Segundo ele, a mania se constitLú como
Ver-se-á que, para Lacan, a constituição do sujeito depende uma "aceleração da pulsão d~ morte". Pode-se dizer, a partir de Mil-
da extração do objeto a do campo da realidade. Nas psicoses, não ler, que, na melancolia, verifica~se a pura presença da pulsão de
havendo essa extração, o objeto não se perde. morte . .Ao que indagará: "O que faz com que esse gozo seja freado?"

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(MILLER, 2003, p.97). É pela via do sentido que o gozo na melan- buscava relacionar o modo de funcionamento do aparelho psíquico
colia poderá ser freado. através dos neurônios como instâncias dinâmicas, por onde escoam
Ao se trazer à luz a ideia de uma gramática, caberá articular quantidades de energia para dentro e para fora do organismo. Esse
a manía e a melancolia em relação à cadeia significante. Se o maníaco é momento no qual Freud deixa clara sua recusa à anatomia e à neu-
procede evitando a pontuação, o melancólico, em geral, interrompe rologia da época e pesquisa outras formulações sobre a constituição
seu discurso antes mesmo que tenha possibilidade de pontuar: "seja do aparelho psíquico.
decididamente em seu silêncio, seja por frases interrompidas" Desde então, a definição que melhor designa o conceito de
(DESMOULINS, 2003, p.97). Talvez não seja incorreto dizer que, das Ding é aquela que o descreve como algo que é inassimilável, que
diante de uma frase interrompida, ou diante do silêncio do melan- escapa ao juízo e não tem representação porque é excluído do pen-
cólico, o analista intervirá possibilitando um sentido. Talvez aí já es- samento. Freud (1895c/1987) cita o exemplo do bebê que, pela pri-
teja uma pista para se situar a hipótese desta investigação, meira vez, suga o seio da mãe. Dessa primeira experiência de mamar
clinicamente: inserir um sentido, ali onde a frase do melancólico não fica uma marca, na memória do bebê, que ele tentará reproduzir alu-
se define, até culminar em uma pontuação. Isso funcionará como cinatoriamente, a cada vez que voltar a sentir fome. Mas essa primeira
uma espécie de hiância: a constituição de uma hiância ali onde, para experiência de satisfação será para sempre perdida. A criança, então,
o sujeito melancólico, ela não ocorreu. somente poderá reencontrar esse objeto (o seio) inassimilável ao alu-
ciná-lo. Mais tarde, Lacan irá derivar do conceito de das Ding freu-
diano os elementos para construir sua teoria do objeto a.
4.2. Das Oing e a melancolia Pode-se afirmar, a partir de Freud, que das Ding é o primeiro
exterior ao redor do qual se orienta rodo encaminhamento do sujeito
Para compreender o mecanísmo da melancolia, é importante em relação ao desejo. No entanto, por ser exterior, não habita o apa-
entender o conceito de das Ding. Enquanto Freud (1915-1917 /1974) relho psíquico, mas nem por issó deixa de se fazer presente, embora
afirmou que o melancólico se identifica ao objeto perdido, Lacan aúsente. De acordo com Lacan, poder-se-ia dizer que isso aponta
(1963/2005), ao formular sua teoria sobre a psicose melancólica, dirá para um furo, que é constituído por um dentro e um fora.
que, nela, o objeto não foi perdido, conforme se discutiu ao abordar Nesse contexto é que, ao sugar o seio materno, a criança
as formalizações do Seminário 10: a angústia (LACAN, 1963/2005). vivenda sua primeira experiência de satisfação, através da qual ela
Tal discordância leva à discussão a respeito das formulações lacaníanas entrará em contato com a percepção da presença elo Outro. Tal pre-
sobre este objeto original, das Ding, para esclarecer as vicissitudes do sença é o que Freud designa como sendo o complexo de Nebenmensch,
20 Nesse contexto, o recém-nascido irá re-
objeto a na melancolia. O que merece ser destacado é que os efeitos 0 complexo do próximo.
da não extração do objeto a do campo da realidade, na psicose me- vestir-se de interesse por esse primeiro objeto de satisfação, querendo
lancólica, fazem retornar, no eu do melancólico, este primeiro objeto repetir a sensação prazerosa. Contudo, tal experiência apena,s ficará
de satisfação, das Ding, com o qual ele se identiflca. em sua lembrança como estranha, como não representável. E a par-
A primeira descrição de das Ding foi feita por Freud, em seu tir disso que Freud desenvolverá o conceito de das Ding, como
"Projeto para uma psicologia científica", em 1895. Nessa ocasião, ele sendo aquilo em torno do qual se organizam as representações -

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Vorste!!ungen. É, pois, ao redor desse objeto estranho, Frernde, que irá es.se primeiro objeto que organizou a primeira experiência de prazer
constituir-se, para o recém-nascido, seu primeiro exterior. causou uma satisfação por demais intensa, por isso, o neurótico ob-
Lacan, em seu Seminário sobre a ética, aprofundará o tema, . sessivo irá orientar-se em direção a evitar o excesso do prazer. Já na i!
ao trazer para esse contexto a importância da linguagem na estrutu- paranoia, esse primeiro estranho ao qual o sujeito tem que se refe-
ração psíquica. Ele concebe das Ding como um vazio, um furo na renciar será rejeitado. Lacan sinaliza que: "o móvel da paranoia é es-
subjetividade, que funciona como índice da exterioridade, ao mesmo sencialmente rejeição de um certo apoio na ordem simbólica, desse
tempo em que organiza e orienta o interior em direção ao mundo apoio específico em torno do qual pode fazer-se a divisão em duas
em que se referenciam os desejos do sujeito. Nesse sentido, para vertentes da relação com das Ding' (I.ACAN, 1959-1960/1997, p.71).
Lacan, Freud buscou mostrar que há uma relação entre coisa e pala- O que a paranoia indica, nesse caso, é que o sujeito não se
vra: "Ele (Freud) nos mostra que as coisas do mundo humano são referencia a esse objeto na mesma condição que o neurótico. Por-
coisas de um universo estruturado em palavras, que a linguagem, que tanto, não se trata de reencontrar o objeto perdido, porque, na para-
os processos simbólicos dominam, governam tudo" (I.ACAN, 1959- noia, esse mecanismo do primeiro exterior, ao qual o sujeito irá se
1960/1997, p.60). referenciar, não se constitui como tal. E, na melancolia, como será
Lacan aponta, ainda, para o cuidado que se deve ter em dis- que isso se organiza? Parece que o processo é o mesmo da psicose
tinguir o termo Ding de das Ding. paranoica, mas o resultado é diferente. Ver-se-á, mais adiante, como
o melancólico se relaciona com das Ding.
O Dir;g é o elemento que é, originalmente, isolado pelo sujeito em sua A hipótese de que das Din,~ está "fora do significado" aponta
experiência do 1\febemmnsch como sendo, por sua natureza, estranho, para o fato de que é anterior a todo recalque, sendo em torno dessa
Fremde. [...J É o primeiro exterior por onde se orienta todo o encami~
realidade que tudo em volta se organizará. Segundo Lacan, das Ding é
nhamento do sujeito em relação ao mundo onde se referenciam seus
desejos. O sujeito faz a prova de que alguma coisa encontra-se aí e uma realidade muda, mas tem o poder de comandar e ordenar as coi-
pode servir para referenciá-lo em relação ao mundo de anseios e de sas, e só se referencia a partir do Outro. A partir daí se esboça a trama
espera, orientado em direção ao que servirá quando for o caso, para do simbólico. Na neurose, o que comanda a busca desse reencontro
atingir das Ding (LACAN, 1959-1960/1997, p.69). são as Vorstellzmgm, ou seja, as representações desse objeto que ficam
guardadas na memória, cujo funcionamento é regulado pelo princípio
Concordando com Freud, Lacan (1959-1960/1997) dirá do prazer. Essas representações se situam na esfera entre a percepção
que esse objeto não pode ser reencontrado, pois, em sua natureza, e a consciência. O princípio do prazer se situa aí. É, pois, o princípio
ele é perdido como tal. Isso é Ding. Das Ding diz respeito ao objeto do prazer que dirige e comanda a busca do objeto e lhe impõe rodeios
enquanto Outro absoluto (a mãe) que o sujeito visa a reencontrar. que conservam sua distância em relação ao seu fim. Assim, na neu-
Ele poderá ser reencontrado, diz Lacan, no máximo, como rose, uma série de satisfações se encontra pelo caminho, na busca pelo
saudade, e o que se encontra são as suas coordenadas de prazer. O objeto perdido, satisfações que, embora digam respeito ao objeto per-
que se busca é o objeto que faz funcionar o princípio do prazer. dido, não garantem o seu reencontro.
Nesse contexto, cabe destacar as vicissitudes desse objeto na neurose Segundo Lacan (1959-1960), os processos do pensamento
e na psicose: na histeria, esse primeiro objeto causou insatisfação, e regulam os investimentos e a estrutura na qual o inconsciente se orga-
o sujeito se ordenará por essa vertente. Quanto à neurose obsessiva,
160 161
niza. Essa estrutura é a mesma do significante, que, organizado pelas
palavras, traz à consciência os processos de pensamento por meio de
um discurso. A organização na qual se manifestam as autoinjúrias me-
1 dição do incesto, o princípio da lei primordial e, ao mesn;o tempo,
ele identifica o incesto com o desejo mais fundamental. E por isso
que se busca apresentar o que Freud (1912-1913/1974) investigou
lancólicas é bem distinta do processo de pensamento, pois está fora na situação do pai primevo em "Totem e tabu", para se fazer uma
de qualquer articulação em uma cadeia significante. Ou seja, a palavra
não se dirige a nenhuma outra, a não ser ao próprio sujeito.
I analogia entre da.r Ding, o pai primevo e a melancolia. Se Freud apon-
tou que a lei tem como consequência interditar o incesto fundamen-
É nesse contexto que uma série de efeitos é verificada, a tal, ou seja, o incesto filho-mãe, Lacan, a partir de tais formulações,
partir do momento em que das Ding passa para o discurso. O que dirá que:
torna essa passagem possível é, como se vê, a organização dos sig-
nificantes em um determinado registro, a partir do momento em que O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da re-
lação inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não pode-
um termo pode ser recusado, para que o sistema de palavras se ponha
ria ser satisfeito, pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro
em condições de ser articulado em um discurso. Não é o que ocorre da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente
com o psicótico, pois, como se viu, ele recusa a crença nesse termo do homem. É na própria medida em que a função do princípio do pra-
que falta. Ou, melhor dizendo, :;.:er é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reen-
contrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial,
esse móvel, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto
[...] no fundo da própria paranoia, que nos parece, no entanto, toda ani-
mada de crença, reina esse fenômeno de Unglaubm. Não é o não crer (Lf\CAN, 1959-1960/1997, p.87-88).
nisso, mas a ausência de um dos termos da crença, do termo em que se
designa a divisão do sujeito (LACAN, 1964/1993, p.225). Assim, pois, é a interdição do incesto que coloca o sujeito
em uma relação com a fala, com o discurso e com o laço social. Cabe
Por isso é que, diante da não crença, da recusa disso que indagar se o pai primevo, que gozava de todas as mulheres, não seria
diz respeito a uma coisa que falta, o psicótico faz desesperadamente ele o correlato de das Ding, a Coisa? Ou melhor, antes da proibição
o esforço para suprir essa falta, significando-a através das manifes- do incesto, da instauração da lei proibitiva, o pai gozava de todas as
tações delirantes, que são uma tentativa de reparar isso que, prímor- mulheres, sem que houvesse nada que regulasse esse gozo, uma au-
dialmente, resta irreparável. sência total de lei. Não seria esse pai o correlato do empuxo à morte
Lacan (1959-1960/1997) retoma Freud ao se referir à lei pri- na melancolia?
mordial que funda a cultura, ou seja, a lei da interdição do incesto. Como De acordo com o que foi estudado até aqui, é possível afir-
se viu, o conceito de das Ding foi sendo construido desde a primeira re- mar que a identificação melancólica ocorre em relação ao objeto per-
lação da criança com a mãe, que envolve a primeira experiência de sa- dido (Dinj). O que o melancólico visa a alcançar é o que representa,
tisfação, de frustração, de gratificação e de dependência. Por isso se diz para ele, esse objeto, ou seja, das Ding, a Coisa.
que o desenvolvimento da Coisa materna, da mãe, "ocupa o lugar dessa Disso adviria então, na manifestação da psicose, esse gozo
Coisa, de da.r Ding' (LACAN, 1959-1960/1997, p.86). desenfreado, absoluto, pelo encontro com das Ding, que é essa Coisa
É possível afirmar, ainda, que o correlato disso é o desejo absoluta. Na psicose melancólica, o sujeito experimenta o reencontro
do incesto. Segundo Lacan (1959-1960/1997), Freud situa, na inter- com isso que havia antes da instauração da lei. Melhor dizendo, so-

162 163
mente o psicótico reencontra o pai vivo, porque, na verdade, ele diante da morte de uma pessoa amada. Segundo Dessa! (1988-1989),
nunca foi, simbolicamente, morto. No caso da paranoia, como se o homem primitivo desdobra sua relação com o objeto morto em
sabe, o que desencadeia a doença é o encontro com Um pai, ao passo duas partes: por uma parte, o objeto substitui um objeto de identifi-
que, na melancolia, é o encontro com uma perda, a qual faz retornar cação, como objeto amado, i(a). Por outro lado, uma parte desse ob-
algo que nunca fora perdido. jeto integra uma porção não reconhecida, estranba, hostil, que leva
Éric Laurent (1988-1989), ao reler Freud, aponta para o fato tal objeto a ser odiado, que é nomeada de das Fremde, o estranho do
de que ele situou das Ding ao lado das representações, mas que, de objeto. Nesse sentido, a reflexão feita por Dessal (1988-1989) refere-
fato, das Ding é algo que não tem nenhuma representação. É bom se ao fato de que a oposição e a correlação entre traço e objeto talvez
lembrar o modo como Freud define a pulsão de morte, ou seja, o fossem capazes de lançar luz à leitura do texto de Freud "Luto e me-
que não se pode representar. Somente é possível ter acesso à orga- lancolia". Esse autor assinala a dificuldade enfrentada por Freud
nização das coisas a partir das palavras. São, pois, as palavras que quando estabeleceu a categoria de narcisismo nas psicoses, da mesma
orientam em direção a uma certa ideia de como é que o mundo das forma que a aplicou ao campo das neuroses. Dessa! (1988-1989) co-
coisas humanas se organizou. É possível afirmar, então, que das Ding menta que Freud afirmara que a morte do objeto é restituída através
é um núcleo silencioso e, ainda, que é o Outro absoluto 21 de uma identificação. Para Dessa! (1988-1989), é necessário fazer
Assim, na psicose, o gozo absoluto que se impõe ao sujeito uma leitura distinta, uma vez que, na melancolia, trata-se de uma in-
diz respeito a esse Outro absoluto que é das Ding. Se, na paranoia, o trojeção de um significante, mas essa introjeção faz retornar a Coisa.
Outro absoluto é apresentado quando o sujeito nomeia um perse- Ou seja, o objeto perdido, na melancolia, não seria outro senão a en-
guidor, na melancolia, o Outro absoluto se apresenta na autoinjúria carnação da Coisa, que, ao ser introjetada como significante, traz a
alucinada. É evidente que a autoinjCuia aparece no lugar do que não morte (DESSAL, 1988-1989).
tem nome, do objeto fora do significante - a Coisa. É porque ela O problema central apontado por Laurent (1988-1989) é
não existe, que o melancólico a inventa. O insulto e a autoinjúria se- que, ao considerar a identificação narcisista, no texto "Luro e me-
riam, pois, invenções para dar nome à Coisa inominável. O que se lancolia", deve-se levar em conta que a concepção das psiconeuro-
sabe é que são palavras impostas, que não se articularam em uma ca- ses, no ano de 1915, conflui com aquela das psicoses. Há textos
deia significante. Por isso, é possível tomá-las como retorno do sig- em que Freud identifica, de maneira precisa, as psiconeuroses nar-
nificante no real, em que não existe a separação entre o sujeito do cisistas com a paranoia. Um deles é "Totem e tabc1" (FREUD,
enunciado e o da enunciação. 1912-1913/1974); o outro, "Neuroses de transferência, uma sín-
Nesse contexto, em que se destaca a relação do melancólico tese" (FREUD, 1915/1987); e também "A perda da realidade nas
com o objeto que deveria ter sido perdido, e com das Ding, chama a neuroses e nas psicoses" (FREUD, 1924/1976). O que chama a
atenção o debate que se seguiu após a conferência proferida por Éric atenção é o fato de a categoria "psiconeurose nardsica" não ser
Laurent (1988-1989), sob o título Introducción a la Cosa. Uma das re- nova para Freud, em 1915.
flexões feitas por Gustavo Dessa! (1988-1989), endereçada a Laurent,
merece destaque. Ele se inspira no complexo do próximo, o Neben- Ao introduzir a identificação narcisista nesse famoso parágrafo que diz:
A so/J/brtt do oi?Jeto recai sobre o eu, o comentário que se segue são duas pá-
mensch, para se referir à primeira experiência do homem primitivo
ginas sobre a identificação na esquizofrenia. Ou seja, a identificação

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narcisista era entendida como uma identificação psicótica (LAURENT, jeito identifica-se ao objeto perdido, das Ding. Mas, a partir da leitura
1988-1989, p.68). de "O Eu e o Isso" (FREUD, 1923/1976), é possível afirmar, ainda,
que o melancólico identifica-se ao pai morto. Seria possível articular
Em relação a essa citação, é preciso um certo cuidado para das Ding ao pai morto? Laurent (1988-1989) arrisca uma resposta es-
que não se incorra em equívocos. O caminho tomado até aqui leva, clarecedora. Nesse caso, ao admitir que a identificação narcisista é a
novamente, a esclarecer que, em termos freudianos, para que o eu que funciona nas psicoses, afirma:
se constitua, faz-se necessária uma identificação narcisista, fundante
a todo eu. No entanto, é somente no a posteriori que se verificará Então, para Lacan, me parece que a VenPeifung do pai, o rechaço à iden-
como cada sujeito respondeu à perda inerente, não somente à nova tificação com o pai, é o verdadeiro nome da identificação narcisista.
ação psíquica, mas, sobretudo, à castração. Ou seja, somente depois É o modo de identificaç-ão quando não há nenhuma identificação ao
pai, (1uando não há nenhum traço do pai que seja vivo para o sujeito.
que a libido volta para o eu, com a carga da perda. A resposta que o
É o rechaço completo do pai ou dos nomes do pai. Esta é a vertente
sujeito dará a isso pode-se orientar pela via do desejo, ou introjetar escrita por Freucl oito anos depois de "Luto e melancolia" c este re-
esse objeto perdido em seu eu. A partir daí, é possível afirmar que, chaço é o que permite o desnudamento do gozo mortífero, o que pro-
no caso da melancolia, em termos freudianos, houve uma regressão voca a identificação com a Coisa, das Ding. Tal invasão tem suas duas
tópica ao narcisismo, em que o sujeito e o objeto são uma só coisa. vertentes, tanto a pulsão suicida da melancolia, quanto a excitação ma-
níaca que destrói toda a homeostase narcisista do corpo, e que conduz
O que Laurent (1988-1989) chama de identificação narcisista psicó-
também à morte, por efeito dessa destruição de todo equilíbrio bioló-
tica desi1oma essa posição, em termos freudianos, em que o eu se cons- gico (LAURENT, 1988-1989, p.70).
titui, mas com danos suficientes para impedir que se conecte aos
objetos do mundo externo. Assim, ao se falar em identificação nar- Por essa descrição, percebe-se o modo como Laurent trata
císica psicótica, defronta-se com um eu colado ao objeto, situação e desvenda esse problema. Ele declara que está inteiramente de
primeira, anterior à nova ação psíquica. No entanto, alguns autores acordo com a ideia de que o ponto de partida seria dado por uma
ainda indagam, em relação à melancolia, se a identificação narcisista leitura de "Luto e melancolia" com o complexo de .Nebenmensch e a
é ou não uma identificação psicótica. É interessante lembrar que, na ·articulação de da.r Ding aos objetos do mundo, em sua função central
leitura do último parágrafo de seu texto "Psicologia de grupos e aná- de objeto perdido. A partir dessa reflexão, conclui-se pela importân-
lise do eu", Freud (1921/1976) refere-se à identificação ao objeto, cia do texto freudiano para melhor compreensão da identificação
na melancolia, com o termo rejeitado, o mesmo que utiliza para o ob- melancólica a das Ding.
jeto rechaçado na paranoia: Venvoifen. Seguir-se-á adiante, buscando compreender como se daria
Dessa forma, quando Freud (1915-1917 /1974), em "Luto a não extração do objeto a na melancolia. O processo de extração
e melancolia", refere-se à expressão identificação narcisista, acredita- do objeto a é que fundará as bases para a constituição do sujeito.
se, ele coloca lado a lado, sob o mesmo tipo de identificação, tanto a Lacan e seus leitores articularam a construção da teoria das psicoses
esquizofrenia quanto a melancolia, opondo e distinguindo essas duas a partir das elaborações freudianas, ao constatarem que o objeto a,
categorias do tipo de identificação histérica. Então, ao se utilizar a ao não ser extraído do campo da realidade, faz retornar a Coisa, esse
expressão do estranho, Fremde, e do próxímo, Nebenmensch, dispõe-se objeto mais primitivo e original.
de mais elementos para a confirmação de que, na melancolia, o su-
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É preciso, no entanto, dar continuidade às indagações sobre pria à melancolia, e, de outro, a excitação maníaca, que destrói a ho-
o modo como se dá a identificação melancólica à Coisa. Viu-se, em meostase narcisista do corpo e que também conduz à morte. Ou seja,
"Luto e melancolia", que Freud (1915-1917 /1974) descreveu a iden- tanto a mania quanto a melancolia se sustentam em uma mesma base
tificação melancólica em oposição à identificação histérica. No en- identificatória. Nesses quadros, o estrago libidinal já está consolidado.
tanto, ao fazê-lo, acabou por alinhar, no mesmo plano, a identificação Segundo Lacan (1957-1958/1998), a modalidade específica de iden-
melancólica e a identificação esquizofrênica. A íntima relação que o tificação que entra em jogo nas psicoses é devida à foraclusão do
melancólico mantém com a Coisa foi o que lhe permitiu utilizar a "Nome-do-Pai". Nota-se, por esse ângulo, ao apresentar tal regime ·
expressão identificação narcísica para se referir ao tipo de identificação de identificação, que "é esse mesmo mecanismo significante que per-
melancólica. Nesse contexto, ao se manifestar em sua forma mais mite a modalidade de retorno do gozo, que é a Coisa que cai sobre
pura, se desnuda a relação mortífera que o sujeito mantém com a o eu. É pela foraclusão do 'Nome-do-Pai' que se desvenda a relação
Coisa (LAURENT, 1995, p.161). com a Coisa" (LAURENT, 1995, p.162).
A hipótese que se formula a partir do ensino de Lacan é A partir dessas elaborações, conclui-se que essas duas mo-
que a identificação na melancolia passa diretamente pela identificação dalidades de identificações- com a Coisa ou com o pai morto- são
à Coisa, que é o objeto originalmente perdido. Conforme se viu, a duas faces do mesmo mecanismo. Dessa forma, quanto à problemá-
análise da melancolia no texto freudiano "Luto e melancolia" revela tica apresentada em "Totem e tabu" (FREUD, 1912-1913/1974), a
que "o eu só pode se matar se [... ] puder tratar a si mesmo como respeito de o melancólico identificar-se com das Ding ou com o pai
um objeto" (FREUD, 1915-1917/1974, p.285), ao dirigir contra si morto, encontram-se indícios para afirmar que ele se identifica ao
mesmo a hostilidade outrora relacionada ao objeto. Pode-se afirmar pai morto e a das Ding simultaneamente. Isso significa que o supereu,
que o melancólico se identifica com o ódio de si mesmo. como uma instância herdeira do pai, contém duas dimensões: uma,
No entanto, em "O Eu e o Isso" (1923/1976), constata-se que corresponde ao significado do Outro, à mensagem edipiana do
um outro modo de Freud se referir à identificação melancólica, interdito, mensagem do pai, herdeiro da lei, que limita o gozo para o
apoiada na vasta reformulação de sua teoria da identificação, exposta .sujeito. A outra dimensão refere-se à das Ding, contém a ferocidade
no texto "Psicologia de grupos e análise do eu" (1921 /1976), no qual · do supereu, determina o mandamento de gozo. Trata-se então do
o eu se identifica ao pai morto. Mas vale lembrar que, em 1915, no supereu tirânico, do supereu que impõe o gozo ao sujeito, gozo esse
artigo "Neuroses de transferência, uma síntese", Freud já havia feito fora de inscrição no Outro e fora de qualquer dialetização.
tal analogia: "O luto do pai primitivo provém da identificação (com A partir dessa formulação, deduz-se, portanto, que essa
esse morto), e demonstramos que tal identificação é a condição do dimensão do supereu, que não se inscreve a partir do Outro, es-
mecanismo da melancolia" (FREUD, 1915/1987, p.80). tando fora do simbólico, sendo a única responsável pelas acusações
A esse respeito, o ponto crucial encontra-se recortado pela ao eu, é, na verdade, a sombra do pai tirânico, como das Ding, que
seguinte questão: o sujeito melancólico se identifica à Coisa ou ao recaí sobre o eu. Recorde-se o que Freud (1912-1913/1974) disse
pai morto? É Éric Laurent quem elucida esse ponto, pois, embora sobre isso em "Totem e tabu": os filhos que se identificaram ao pai
as duas identificações se mostrem análogas, elas podem-se apresentar assassinado encontram-se na cultura, na lei. A culpa advinda com
de duas formas diferentes: de um lado, tem-se a pulsão suicida pró- a morte do pai é decisiva, colocando alguns filhos no campo da
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neurose. Os outros, entre os quais se incluem os melancólicos, torno no real através do distúrbio da libido e ela presença maciça do
estão identificados ao pai gozador, sem lei. Ao lado desses, não há fenômeno de autoacusação, gozo que é imposto pelo supereu. Ao
o remorso e nem a culpa, da forma como se apresentam para o se isolar elo Outro, o melancólico acaba por fazer sua retirada, como
neurótico obsessivo (FREUD, 1912-1913/1974). Dessa maneira, a pura ausência da relação com o Outro.
origem da culpa na melancolia dá-se de um modo diferente. O que Nesse contexto, a identificação à Coisa, que funda a moda-
se percebe é que, de fato, Freud teve dificuldades em estabelecer o lidade ele identificação melancólica, chama para si a ausência de um
diagnóstico de psicose para a melancolia. termo do Outro, que seria capaz de abrir o campo de negociação
Talvez isso se deva à seguinte questão: como é possível pen- para que o sujeito se orientasse pela via do desejo, da perda e do luto.
sar em psicose, para a melancolia, se, nessa afecção, o sujeito é um Essa ausência de um nome para pacificar, para organizar - tal qual
hiperculpado? No entanto, a culpa do melancólico pela perda do ob- já se mencionou como sendo a foraclusão elo "Nome-do-Pai"- de-
jeto não se flexibiliza. Não há nada que possa livrá-lo ele sua feroz signa o modo pelo qual o melancólico "despediu-se elo Outro"" sem
imputação de culpa. Ao introjetar o objeto perclido e identificar-se à fazer nenhum apelo.
perda, ele e o objeto perdido são uma só coisa. O resultado clisso é A partir dessas formulações, é possível fundamentar a
o que Freud assinalou, afirmando que "o componente destrutivo apreensão de uma categoria clínica amarrada ao objeto ti. Nessa si-
entrincheirou-se no supereu e voltou-se contra o eu" (FREUD, tuação, o sujeito poderá localizar-se em relação ao Outro, ou seja,
1923/1976, p.69). Assim, "uma cultura pura ele pulsão ele morte" essa relação será determinada a partir da relação elo sujeito ao ob-
(FREUD, 1923/1976, p.69-70) faz recair sobre o sujeito uma hiper- jeto a.
culpabilidacle que se traduz pelas autoacusações e, na maioria elas A relação elas psicoses a das Ding foi comentada por lY1iller
vezes, pode culminar no delírio ele culpabilidade e na expectativa de- (1996), em "Clínica irônica". Nesse artigo, distingue a esquizofrenia,
lirante de punição. a paranoia e a melancolia em relação à Coisa. Se, para o neurótico, a
Se Freucl apresenta o Unglauben da paranoia como sendo palavra é o assassinato da Coisa, para o psicótico, devido à sua des-
um processo pelo qual o sujeito recusa a crença na censura (FREUD, .trença (Unglauben) no Outro, ele está certo da Coisa:
1895b/1987), vê-se que, na melancoli.a, a descrença na censura con-
siste em introduzir um sujeito que rejeita a culpa original, aquela que Se vocês sabem escutar nesse 'a Coisa' o das Ding freudiano, tal como
adveio com o assassinato elo pai primevo. Rejeitar a culpabilidade foi pontuado por Lacan em seu A étit·a da psicaná!úe, "a palavra é o as-
original é alienar-se no gozo do Outro, que, no caso, é o gozo feroz sassinato da Coisa" quer dizer que o gozo é interdito àquele que fala
como tal, ou ainda, que o Outro, como lugar do signiftcante, é o terreno
do supereu.
nivelado, limpo do gozo. Para o paranoico, a palavra não é tanto o as-
Nesse sentido, ao designar o U"'glauben como "ausência ele sassinato da Coisa, um~t vez que, para ele, falta, em uma certa ocasião,
um elos termos da crença, do termo que designa a divisão do sujeito" a coisa se chocar contra a Coisa, o ktlkon, no Outro, em um ato de
(LACAN, 1964/1993, p.225), Lacan introduz, também para a me- agressão que poderá lhes servir, durante sua vida, de metáfora, de su-
lancolia, essa mesma ausência, e, nessa perspectiva, correlaciona o plência, tal como se vê no caso Aimée. O melancólico faz voltar contra
si mesmo o efeito mortífero da linguagem, no ato suicida em que cum-
Unglauben freudiano com a foraclusão. O que se presentifica, em se
pre seu destino de kakon (l\1ILLER, 1996, p.192-193).
tratando de fenômeno elementar, é uma mortificação, que faz re-

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i.

Quando Miller se refere ao gozo interdito, a partir do as- 4.3. A não extração do objeto a e sua localização
sassinato da Coisa, indica que o campo do Outro poderá ficar nive-
lado, limpo do gozo. Nessa condição, está-se referindo à neurose. Para verificar a hipótese de que o analista poderá funcionar,
O que advém dessa operação de interditar o gozo, de limpar o gozo na clínica da melancolia, como um anteparo à passagem ao ato, inves-
do campo do Outro, é o objeto a. "É por isso que o objeto a como tigar-se-ão as vicissitudes da não extração do objeto a nas psicoses,
consistência lógica é próprio para dar seu lugar ao gozo interdito, pois é em função da identificação a esse objeto a que o melancólico se
ao objeto perdido" (MILLER, 1996, p.196). Por essa via é que se apresenta, na clínica, sob o modo dos mais cliversos fenômenos, já des-
lembra, juntamente com Miller, a afirmação de Lacan de que "a psicose tacados pela psiquiatria clássica e por Freud. Lacan (1957 -1958/1998)
é essa estrutura na qu~l o objeto a não está perdido, onde o sujeito 0 retoma Freud e dá um passo adiante nas formulações sobre o modo
tem à sua disposição. E por isso que Lacan podia dizer que o louco é como a realidade é constituída para o sujeito, propondo novos funda-
o homem livre" (tvllLLER, 1996, p.196). Ele é um homem livre por- mentos para a teoria das psicoses, a partir da invenção do objeto a.
que, nas psicoses, o Outro não está separado do gozo. Ou seja, nessa A letra a, que indica o objeto a, sofre numerosas variações
estrutura, o gozo não foi extraído do campo do Outro. Se o paranoico, conceituais na elaboração lacaniana. A natureza do objeto a foi tra-
como se viu, identifica o gozo no lugar do Outro, o melancólico, ao balhada desde o início do ensino de Lacan. Em seu texto sobre o es-
identificar-se ao a, localiza o gozo em si mesmo. Miller ainda é mais tádio do espelho, ele aborda o júbilo e a satisfação da criança diante
preciso, ao distinguir o objeto a na mania e na melancolia. Quanto à da imagem especular, cuja função é a de completar imaginariamente
primeira, afirma que o objeto a não funciona: "é um caso de inconsis- certa desorganização que se experimenta ao nivel do corpo. São, pois,
tência lógica" (MILLER, 1996, p.198). Quanto à melancolia e ao sui- o corpo e sua imagem que proporcionam ao homem a unidade que
cídio súbito do melancólico, afirma que, "se não constitui um apelo ele não tem e, antecipando uma unidade, produzem um efeito de jú-
ao Outro, nem mesmo à sua falta, traduz a conversão brusca da falta- bilo. Contudo, nem sempre a imagem refletida no espelho produz
a-ser subjetiva em a. Mas é para morrer de uma morte física que é ape- esse efeito jubilatório. Nesse sentido, Brodsky indica que:
nas suporte da segunda morte" (MILLER, 1996, p.198).
Talvez pudesse chegar até a redobrar o efeito de fragmentação se o que
A morte física é secundária a uma primeira morte, a morte
se reflete no espelho não tem efeitos terapêuticos. É o que se sucede
do sujeito, postulado lacaniano para todas as psicoses. O melancólico quando neste campo enquadrado pelo espelho surge algo que não de-
apresenta o ponto central do gozo não extraído, ao desmascarar-se veria surgir, uma mancha, uma presença que deveria ter permanecido
em sua identificação mortífera ao objeto a, revelando seu delírio, e velada por essa imagem jubilatória (BRODSKY, 2008, p.15).
ao passar a vida inteira dedicado a escancarar seu gozo através das
tentativas de realizar essa segunda morte. É nessa via, quando aparece o que a imagem deveria velar,
Ao se relacionar a Coisa freudiana (das DiniJ com o objeto que Lacan (1960b/1998), em sua "Observação sobre o relatório de
a lacaniano, em sua especificidade para a melancolia, propõe-se, em Daniel Lagache", dará ao objeto a o valor daquilo que não é repre-
seguida, a discussão das formulações sobre as consequências da não sentável no espelho. Nas psicoses, a emergência do impossível de re-
extração do objeto a do campo do Outro em relação à localização presentar, sob a forma de um olhar que diz respeito ao sujeito, é um
do gozo na psicose melancólica. fenômeno muito comum. Segundo Brodsky:

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Nas neuroses, se vive como se o não representável não existisse, não ESQUEMA RSI
se sabe nada disso. Chamemos isso de recalque primário. Mas, quando
a falta, quando o impossível irrompe, estamos em um registro que R
não é o do retorno do recalcado, que é sempre de significantes, senão
de out.ra coisa. Melhor em maiúsculas, outra Coisa (BRODSKY, 2008,
p.18).

Em "Subversão do sujeito e dialética do desejo no incons-


ciente freudiano", Lacan (1960) insere o objeto a na escritura da
fantasia. Mais tarde, no Seminário "A identificação" (1961-1962), ele
se aproxima de uma ideia do objeto a cada vez mais desvelado, des- s
pojado de seu envelope imaginário, que ele definiu como o casulo Fonte: LACAN, 1975·1976/2007, p.70.
do objeto a: i(a). A formalização do objeto a, considerado como
resto real da divisão subjetiva, é discutida no Seminário "A angústia" Se o que está em jogo na psicanálise é explicitar o lugar do
(LACAN, 1963/2005) e seguida ao longo dos anos 70, quando de- objeto a nas cliversas estruturas clinicas e o modo como o sujeito aí
signa o resto de gozo que o significante não pôde simbolizar, no- se insere, Miller (1983c/1996) adverte que, em se tratando da c!inica
meado por ele de mais-de-gozar, fazendo alusão à mais-valia marxista, das psicoses, não se pode jamais deixar de levar em conta a relação
no Seminário "O avesso da psicanálise" (1969-1970/1992). Nesse do sujeito com o objeto a.
desenvolvimento, o objeto a designa uma inscrição de gozo no real, Para chegar à função do objeto a nas psicoses, é importante,
uma espécie de condensador de gozo, ou seja, um nó irredutível todavia, situar o modo como Lacan (1968-1969 /2008) concebe a fun-
que não pode ser civilizado pelo significante. ção do objeto a nas neuroses. Em seu Seminário XVI: de um Outro
Ao final de seu ensino, Lacan (197 5-197 6/ 2007) situa o ao outro, ele inscreve a função do a equivalente a um substituto:
objeto a na interseção dos três círculos, o real, o simbólico e o ima-
ginário, em meio aos quais ele ordena a estrutura do ser falante. Os O a vem substituir a hiância que se designa na relação sexual e reproduz
três círculos formam um enlaçamento, o nó borromeu. Na parte a divisão do sujeito, dando-lhe uma causa que até então não era apreen-
sível de maneira alguma, porque é próprio da castração que nada possa
central, comum aos três círculos, Lacan (1975-1976/2007) situa o
enunciá-la, propriamente falando, uma vez que sua causa está ausente.
a, mostrando assim sua função fundamental de estruturar conjun- Em seu lugar vem o objeto a, como causa substituta do que constitui,
tamente as três dimensões da subjetividade. radicalmente, a falha do sujeito (LACAN, 1968-1969/2008, p.335).

Lacan também atribui ao analista o lugar de substituto do


objeto a, ao final da análise, no tratamento das neuroses:

O psicanalista induz o sujeito- o neurótico, no caso- a enveredar pelo


caminho em que ele o convida a encontrar um sujeito suposto saber,
na medida em que essa incitação ao saber deve conduzi-lo à verdade.

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Ao término da operação, há um esvaziamento do objeto a, como re- perda desconhecida: a identificação nardsica ao objeto, resultando
presentante da hiânda dessa verdade rejeitada, e é esse objeto esvaziado na satisfação obtida com o desmascarammto de si. Eis aí o resultado
que o próprio analista passa a representar, com seu em-si, se assim
da não extração do objeto a e o modo como o melancólico se apre-
1; posso dizer. Em outras palavras, o analista cai, ao se tornar, ele mesmo,
· · a ficção rejeitada (IACAN, 1968-1969/2008, p.335-336). senta ao analista, na clínica.
O modo como Míller (1983) situa a função do objeto a
Entretanto, a direção do tratamento, na clinica das psicoses, na psicose é muito esclarecedor. Ele alerta para não se abdicar, em
será diferente, pois é o sujeito quem tudo sabe. Com isso, não será se tratando dessa clínica, da função do objeto a, nem da função do
possível constituir um lugar de sujeito suposto saber para o analista. gozo.
O objeto a, que não foi perdído, funcionará de modo radicalmente Assim, pode-se verificar de que modo o psicótico se exclui
díferente nas psicoses. absolutamente da ordem significante. Por essa via, o gozo não en-
O que se constata, na clinica diferencial das psicoses, é que contra um limite. Esse sem limite do gozo decorre da foraclusão da
a realidade, tanto para o paranoico quanto para o esquizofrênico ou metáfora paterna. É\ pela operação nomeada por Lacan de metáfora
para o melancólico, estará comprometida. No caso específico da me- paterna que o objeto a é extraído do campo do Outro. Na medida
lancolia, as vicissitudes da não extração do objeto a levarão o sujeito em que essa subtração se produz, a realidade se constitui.
a permanecer fixado ao objeto, e, por conseguinte, a relação com o Conmdo, a operação paterna e a função da linguagem não
Outro também ficará comprometida. poderão extrair por completo o gozo do campo do Outro. Há um
Para Lacan (1960-1961/1992), mesmo estando presente, o resto de gozo que não poderá ser eliminado. Brodsky esclarece como
objeto a, na melancolia, é inapreensíveL 1sso ocorre:

O objeto está ali, coisa curiosa, muito menos apreensivel por estar cer- Então se pode perceber que, no registro do simbólico, a função paterna
tamente presente, e por deslanchar efeitos infinitamente mais catastr6~ tem certa homologia com o estádio do espelho no registro do imagi-
ficos, já que eles chegam até o esgotamento daquilo a que Frcud_chama nário, tal como este último, falha. A operação paterna e a função da
o sentimento mais fundamental, o que os apega à vida (LACAN, 1960- linguagem não conseguem extrair completamente o gozo do campo do
1961/1992, p.380). Outro, c esse resto de gozo que não pode ser eliminado é o que cha-
mamos objeto a. O que tem no campo elo Outro é gozo, o que se tem
que extrair do campo do Outro é gozo e o que não se consegue extrair,
Se o objeto a, por não ser extraído, está com o melancólico, o fracasso da extração do gozo, é isso o que se chama objeto a. O objeto
por que ele não se apresentaria menos velado, e, portanto, mais co- a não é prévio à extração, é a própria extração que cria o objeto, esse
nhecido? Lacan (1960-1961 / 1992) salienta o fato de que, mesmo que objeto extra, crue está a mais c que chamamos mais-de-gozar
o sujeito não possa investir contra nenhum dos traços daquele objeto, (BRODSKY, 2008, p.21).
que não se vê, "nós, analistas, na medída em que acompanhamos
esse sujeito, podemos identificar alguns deles, através daqueles que A partir da extração do objeto a, o gozo passa para um
ele visa como sendo suas próprias características: Nada sou, não sou outro registro, sendo parcialmente reabsorvido pelo significante.
mais que um lixo" (LACAN, 1960-1961/1992, p.380). É o que Freud Ocorre uma espécie de metamorfose do gozo, em que este é domes-
(1915-1917 /1974) também afirma, em "Luto e melancolia", sobre a ticado. É, pois, a função paterna que possibilita um valor fálico ao

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I.
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enigma materno, possibilitando ao gozo passar para o campo da lin- táfora paterna. É "uma operação que separa o gozo do Outro de tal
guagem, nomeando-o, significantizando-o (BRODSKY, 2008). modo que o campo do Outro fica esvaziado de gozo: o gozo é eva-
Então, diante da famosa fórmula- "o que está foracluido cuado do campo do Outro" (BRODSKY, 2008, p.20).
do simbólico retoma no real"- Miller propõe completá-la assim: "o Contudo, o que a clínica das psicoses apresenta são os fe-
que está foracluido do simbólico como Nome-do-Pai retoma no real nômenos resultantes do processo da não extração do objeto a. Estes
como Gozo do Outro" (MILLER, 1983c/1996, p.168). Tanto na pa- indicam que houve uma foraclusão da metáfora paterna. Verifica-se
ranoia e na esquizofrenia quanto na melancolia, as manifestações do isso, na melancolia, pela certeza que o sujeito carrega, como disse
objeto a não extraído retornam no real, mas se diferenciam quanto Miller (1983a/1996), de tudo saber, de que é um lixo, pelo delírio de
à localização. Se, na paranoia, o gozo é localizado no Outro, fora, na autopunição, de indignidade e, sobretudo, pelo delírio de negação
esquizofrenia, o retorno do gozo se faz no corpo. Já na melancolia, melancólico tipo Cotard.
o gozo se presentifica no próprio eu, que, ao se identificar com esse A releitura que Lacan (1957-1958/1998) fez do texto freu-
diano "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
objeto a, apresenta-se como sendo ele próprio rejeitado. Daí resulta
mental" indica de que modo Freud (1911/1969) concebeu a cons-
que são equivalentes ao objeto os atributos a partir dos quais ele se
trução da realidade, ou seja, a partir da extração da libido dos objetos.
nomeia: S = a.
Freud concebia a teoria da libido em termos econômicos. Desse
A metáfora paterna é, para Lacan (1955-1956/1988), uma
modo, quando a libido retoma sobre o eu, encontram-se, por um
releitura do Édipo freudiano, feita para colocar em destaque a incóg-
lado, os fenômenos de megalomania; por outro, ao contrário, tem-
nita, escrita com um x, que afeta o desejo da mãe e que lhe dará um
se a melancolia, em que o eu, esvaziado de libido, passa a não valer
nome. O nome que Lacan lhe dará é o falo, que designa o caráter do
nada, em função de uma libidorragia. No luto, por exemplo, a libido
desejável. A função do pai, como aquele que nomeia, se mantém no
que estava depositada no Outro fica sem seu objeto, e seu trabalho
ensino de Lacan até seus últimos seminários, ocupando um lugar
consiste em recuperar essa libido para depositá-la em outro objeto.
preponderante. Lacan23 escreve a metáfora paterna assim:
Verifica-se, assim, o quanto Lacan partiu de Freud, em suas
elaborações sobre a construção da realidade, nas neuroses e nas psi-
Nome·do·Pai Desejo da mãe Nome·do·Pai (A j
Desejo da mãe - Significado para o sujeito- \!alv
coses. Ao introduzir a noção de metáfora paterna, Lacan (1957-
1958/1998) avança e permite estabelecer em quais condições e como
ocorre a operação pela qual o sujeito psicôtico permanece habitado
Fonte: LACAN, 1955·1956/1988, p.563.
pelo objeto a. Em 1967, em conferência aos jovens psiquiatras, Lacan
se referiu ao psicótico como o único ser livre. Livre porque o objeto
O campo do Outro, cuja função é mediada pela linguagem,
a, ele o tem em seu bolso:
produz uma perda de gozo: A/. Ao afirmar, na etapa inicial do seu
ensino, que a linguagem mata a coisa, tal como se pode ver em seu
[... ] os homens livres, os verdadeiros, são precisamente os loucos. Não
texto "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente", há demanda elo pequeno a, seu pequeno a ele o tem, é, por exemplo, o
Lacan (1960/1998) fazia referência ao fato de que o gozo está per- que eles chamam de suas vozes. [...] Ele não se mantém no lugar do
dido pata quem fala. A metáfora linguistica resume e condensa a me- Outro, do grande Outro, mediante o objeto a, o a ele o tem à sua clis-

178 179
.~

I
posição. O louco é verdadeiramente o ser livre. O louco, nesse sentido,
Quando a foraclusão se manifesta, o que retoma, no real, é
é de certo modo este ser de h-realidade, [...] ele tem sua causa em seu
bolso, por isso ele é louco (LACfu'\1, 1967). a castração foracluída. Segundo Soler (1991 ), a melancolia acentua o
retorno no real do fio mortal da linguagem. O melancólico subjetiva
Com a foraclusão, ao invés do "ter simbólico", que vem a perda como dor moral. Não se trata, pois, apenas de um sujeito que
tratar o gozo, tem-se o So, ou seja, a ausência da operação simbólica. não possui nada, mutilado de libido, sem vontade de nada sem amor
' '
No tocante ao gozo, isso acarreta consequências: o gozo fica livre. sem dinheiro, sem força e sem coragem. Mais que isso, o melancólico
E possível entender a frase de Lacan a partir da não extração do ob- é um sujeito a quem a perda assume a significação de uma culpa, e,
jeto a. O gozo, nesse sentido, é liberado e, em decorrência disso, tal como Freud (1915-1917 /1974) descreveu, pode chegar ao delirio
opsicótico é um homem livre. É um gozo livre do sicmificante não necra- de indignidade. Nesse sentido, a covardia moral é elevada em seu
" '
tivizado, e também, algumas vezes, não localizado. Nesse sentido, a
" mais alto grau, "bastando que essa covardia, por ser rechaço do in-
carga do gozo não é a mesma quando ocorre um processo de fora- consciente, chegue à psicose - é o retorno no real daquilo que foi
clusão. Segundo Colette Soler (1988-1989a), a expressão "carga de rechaçado da linguagem; é a excitação maníaca pela qual esse retorno
gozo" apresenta duas dimensões: eu me encarrego disso, eu tenho a se faz mortal" (LACAN, 1973/2003, p.526).
responsabilidade sobre isso, e também eu carrego seu peso. Dentre as manifestações dos fenômenos característicos da
Colette Soler (1991) também investigou a respeito dos fe- melancolia, a passagem ao ato suicida e as automutilações são possí-
nômenos da melancolia. Ela os distingue em dois grupos: "os que veis tentativas de se obter um esvaziamento desse gozo mortífero,
pertencem à categoria da mortificação, e outros, distintos, que po- sem passar pelo simbólico, como uma espécie de atalho. Tentativas
demos classificá-los de delírio de indignidade" (SOLER, 1991, de esvaziar o gozo, pleno e absoluto, que invade o corpo.
p.34). Ao se deparar com uma perda, o desencadeamento ocorre, Em uma analogia radicalmente oposta, põde-se ver como
produzindo tais fenômenos. Estes se referem ao fato de que, nessa os médicos antigos tentavam extrair a bile negra, causa da melancolia,
categoria clínica, há um rechaço da linguagem, consequência da fo- através das sangrias, feitas no corpo do melancólico. Era assim que
raclusão do Nome-do-Pai. Ao distino-uir o mecanismo da lingua- éles operavam, em suas tentativas de extrair o mal do organismo. A
"
gem na neurose e na psicose, Soler esclarece o processo da
. operação que os médicos antigos propunham, para extrair a bilc
melancolia: negra, ou seja, a melancolia, caminha em uma via oposta ao que
Lacan (1957-1958/1998) propõe para o tratamento das psicoses. Ou
A negatividade essencial da linguagem procede do assassinato da Coisa. seja, tentam extrair o impossível de se extrair quando a operação do
A linguagem, que introduz a falta no real, implica uma subtração de Nome-do-Pai não funcionou para um sujeito.
vida, e condiciona, neste sentido, para todo ser falante, urna virtualidade
melancólica. O nome desta negativização, tal como é revelado pela neu-
rose, é castração, que simbolizamos por -tp que significa uma renúncia
ao gozo masturbatório. [...] Na melancolia, observa-se que o aconteci-
mento de uma única perda tenha gerado o desencadeamento e é abso-
lutizada (SOLER, 1991, p.35-36).

180 181
NOTAS
20
Nesse sentido, vale conferir Frcud, em seu "Projeto para uma psicologia cientí-
fica", em que aftrma que "um objeto semelhante foi, ao mesmo tempo, o primeiro
objeto satisfatório do sujeito e mais tarde seu primeiro objeto hostil" (FREUD CAPÍTULO 5
1895c/1987, p.348). '
21
Outro absoluto é uma expressão que Lacan usa também para qualificar a relação OTRATAMENTO PSICANALÍTICO NA CLÍNICA DA MELANCOLIA
do sujeito psicótico ao Outro. O psicótico está em relação com o Outro absoluto.
O Outro absoluto é também a relação do sujeito psicótico com um o-ozo que o
invade, com um gozo que não está medido pelo símbolo fático (LAURENT 1988-
1989). ,
22
Expressão utilizada por Cottet em "Gai savoir et triste vérité" para comparar as '1)arto de minha condição, aquela de tmzer para o homem o que a .Escritura
depressões neuróticas com as psicóticas. Para ele, a culpa na melancolia advém do enuncia não como uma ajuda para ele, mas como uma ajuda contra ele. Por
fato de o sujeito ter "tomado licença do Outro": "A essa experiência da psicose, essa condição, tento me balizm; e é o que verdadeirczmente me conduZ; de um
que nos fornece o modelo estrutural da depressão, opomos os estados ele humor
da neurose, que assinalam um momento de fechamento do inconsciente, e não de
modo que valeria notat; à considerap:lo do nó. "
sua rejeição" (COTTET, 1997, p.35). Qacques Lacan)
23
Essa metáfora encontra-se em seu texto: "De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose" (LACAN, 1955-1956/1998).

A indicação da hipótese de o analista se posicionar como


anteparo ou barreira à passagem ao ato, na clinica da melancolia, é
consequência do fato de, nessa clinica, o analista se opor ao "Outro
mau" (GEORGES, 2010). Isso é verdade para todas as psicoses.
As.sim, quando o analista se opõe ao gozo mortífero do Outro, pro-
tege o melancólico de uma possível passagem ao ato. Um aspecto
muito importante observado naqueles que estão em uma posição
melancólica, identificados ao objeto a, é que eles tendem a insistir
que o analista os coloque para fora, ou seja, os mande embora. Como
se quisessem que o analista confirmasse que eles são dejetos, porca-
rias, objetos, e que podem se deixar cair. Nesse sentido, a posição do
analista vai contra essa ideia.
Segundo esse entendimento, o analista deve, então, fazer
com que o melancólico vá ao seu encontro, que ele queira retornar
para falar da porcaria que sente ser. Não deve encarnar esse Outro
malvado, não deve deixar o melancólico cair. Nem permitir que ele

182 183
vá embora. Assim, o analista não irá ocupar, para o sujeito, o lugar de Joycc, que prescinde da significação fática. Trata-se, então, na su-
plência, de um sinthoma que não busca um complemento de sentido, e
desse Outro malvado. Ao conduzir o tratamento, opondo-se a esse a questão, para o analista, pode vir a ser, diante de cada caso, a de saber
fracasso, não irá validar a ideia do paciente de que ele é um fiasco. até que ponto deve-se arriscar a desestabilizar uma suplência bem-su-
Na clinica da melancolia, o desejo do analista deve incidir em aceitar cedida (ALVARENGA, 2000, p.21).
conduzir o tratamento. Ou seja, ao aceitar o melancólico, o analista
opor-se-á a deixá-lo cair. Com isso, uma barreira ou anteparo à pas-
sagem ao ato se constituirá, possibilitando que o paciente compareça 5.1. Um perseguido melancólico?
ao tratamento e que fale do que lhe aflige.
Jean-Claude Maleval (2002) indica que as ideias que Lacan Tratar-se-á a seguir do caso Wagner, retomado recente-
desenvolveu sobre a foraclusão do Nome-do-Pai não modificaram, mente por Jean-Claude Maleval (2009), 25 a propósito do diagnóstico
de imediato, a abordagem do tratamento analítico com psicóticos. diferencial intrapsicoses: melancolia/paranoia. A pertinência de se
No entanto, em 1967, Lacan indicava uma possibilidade diferente explorar esse caso remete às frequentes dificuldades que se encon-
quanto ao manejo do tratamento. A principal modificação reside tram no cotidiano da clínica. Muitas vezes, depara-se com pacientes
na ênfase que se dá à pluralização do Nome-do-Pai. A clinica tem que, além de fenômenos característicos da melancolia, apresentam
levado a destacar a riqueza das soluções encontradas por inúmeros também fenômenos persecutórios. E isso leva a uma indagação
sujeitos para suprir a carência da função paterna. A pluralização sobre o diagnóstico.
do Nome-do-Pai nos leva, em última instância, a relacioná-lo com Um dos aspectos relevantes quanto à escolha do caso
a lei particular que cada sujeito encontra em seu sinthoma 24 en- Wagner para esta discussão diz respeito à pertinência da psicanálise
quanto este enlaça o gozo com o sentido. A esse respeito, Maleval no tocante aos critérios clínicos que sustentam uma hipótese diag-
esclarece que, nóstica. Diferentemente de uma clínica descritiva dos fenômenos,
a psicanálise visa a uma clínica que leva em consideração o sujeito
[...] quando o gozo não está recalcado, é em vão interpretá-lo, inclu- em sua relação com o gozo que o determina.
sive pode resultar nocivo fazê-lo, mas é possível permitir que o sujeito No caso Wa<mer o diao·nóstico de parauoia conferido por
o elabore. Desta forma, a prática analitica com pskóticos se modifi- " , "
seu psiquiatra Robert Gaupp, que tratou desse paciente por mais de
cará e se orientará, tendo como perspectiva, uma moderação do gozo
(lv!ALEVAL, 2002, p.20). um quarto de século, é questionado por Maleval, após ter acesso ao
prontuário e relato do caso psiquiátrico. Em sua análise dos docu-
Sobre esse aspecto, Elisa Alvarenga indica que: mentos, observou que, para esse paciente, o sentimento de autoacu-
sação era anterior ao sentimento de perseguição. Havia, em Wagner,
A suplência, ou sintboma1 cujo paradigma no ensino de Lacan é Joyce, antes da instalação do fenômeno persecutório, a dor moral, fenô-
não busca a restauração de um sentido, não faz metáfora, e pode pres- meno primário característico da melancolia.
cindir do analista. Nesse segundo momento do ensino de Lacan, pode- Ora, conforme se viu, no segundo capítulo deste livro, res-
se apoiar uma nova clínica, em que cada sujeito encontra soluções que
salta-se aqui a importância da pesquisa empreendida pelos psiquiatras
podem ensinar ao analista que nem só de Nome-do-Pai vive o homem.
A suplência pode permitir uma conexão com a vida [...], como no caso clássicos, a qual deu grande relevância à dor moral como fenômeno

184 185
principal da melancolia. O caso Wagner, rediscutido recentemente de comédia, como pretexto de risos e gozações l... :J ele não via como
por Maleval (2009), atesta essa importância. se defender (MALEVAL, 2009, p.l5 7).
Wagner passou ao ato em 04 de setembro de 1913, ocasião
em que executa sua mulher e seus quatro filhos, "não por vingança, Já no asilo, em 1909, Wagner escreve sua biografia de 296
mas por piedade" (MALEVAL, 2009, p.157), em seguida, matou páginas, nas quais testemunha sua amargura, seu sofrimento e seu
nove moradores da aldeia de Mühlhausen e feriu 11. A partir de sarcasmo. Ele começa por "Eu quero me matar". Sua ideia era a de
seu ato, esperava ser condenado à morte. Contudo, as perícias psi- apresentar a confissão de seus terríveis crimes: destruir os habitantes
quiátricas que diagnosticaram a paranoia lhe predestinaram a ter- da aldeia de Mühlhausen, matar sua família e se suicidar. Por se sentir
minar seus dias no asilo de alienados, onde morreria em 1938. A culpado pelos atos de sodomia, deveria desaparecer da superfície da
origem dos assassinatos cometidos por Wagner concentra-se em Terra. Além da biografia, Wagner escreveu peças teatrais e poemas,
seus atos de bestialidade (relações sexuais com animais), ditos so- atribuindo uma extrema importância à sua atividade criativa. Ele
domia, realizados em 1901, dentro do maior searedo em uma cre- sempre desejou fazer um nome nesse campo e esperava um reco-
o '
che, onde exercia o cargo de professor primário, na aldeia de nhecimento que jamais veio.
Mühlhausen. Para ele, a natureza de seus atos equivale a uma falta Menos de um ano após as passagens ao ato, Gaupp (apud
irreparável. A partir daí, apareceram os fenômenos de "significação NIALEVAL, 2009) publica Psycho!ogie d'tm meurtrier massacreur, tra-
pessoal", através dos quais, tudo que escutava, onde quer que esti- zendo como subtítulo: "L'instituter Wagner de Degerloch". 26 Wagner
vesse, se reportava a ele. Suas interpretacões o levavam a escutar demora seis anos para perdoar seu autor, tanto por ter divulgado
' '
nas ruas e no albergue, "obscenidades" e "sujeiras", que ele tinha seus atos de bestialidade, como por tê-lo considerado doente mental,
a certeza, diziam respeito alusivamente a ele. Acreditava estar no evitando, assim, a sua morte (MALEVAL, 2009).
centro das fofocas e supunha que todo mundo conhecia seu erro. Maleval (2009), a partir dos documentos recolhidos e de
O remorso pelos seus atos o torturava e temia ser descoberto, es- uma análise profunda do relato do paciente, bem como do seu
perando, assim, ser preso a qualquer instante. Por isso, carregava psiquiatra, coloca em questão o diagnóstico de parauoia. Tal ques-
sempre uma arma, para se matar. Sentia-se como "uma fera tionamento se encontra referenciado a partir de uma observação
acuada" e desenvolveu um ódio pelos habitantes da aldeia, consti- feita por R. Gaupp (apud MALEVAL, 2009) de que, no trata-
tuindo-os, assim, como seus perseguidores. mento de Wagner, este chega a confessar que, no fundo de seu
Wagner, desde sua infância, era infeliz com sua vida e sem-
pre teve pensamentos suicidas. Em 1904, chegou a uma tentativa de
sofrimento moral, situava seu erro bem antes da perseguição. Isso
permite, juntamente com Maleval (2009), Séglas (1894), Falret i
I
suicídio no lago de Neuchâtel. Após os atos de sodomia, não parou (1864/1994), dentre outros, situar, primeiramente, como fenô-
mais de se acusar pelos seus erros, sentindo-se cada vez mais perse- meno fundamental do delírio desse psicótico, a dor moral. A partir
guido e denegrido. Segundo seu psiquiatra, Gaupp, daí se instalará, como se assinalou, o delírio de perseguição.
O paciente confessou, em sua biografia, que era um so-
[... ] ao desgosto e à pena acrescentavam-se a cólera, a raiva pelo fato de domita. Nesta, dizia que seu desprezo por si mesmo o envelhe-
utilizarem um caso que havia destnúdo sua vida, quebrado sua digni- cera, e que 34 anos de idade seria a duração de seus sofrimentos:
dade e - acreditava ele - manchado a humanidade, como argumento
"eu vos rogo, retirem o Nazareno de sua cruz para me pregar em
186 187
seu lugar, eu sou o sofrimento encarnado" (MALEVAL, 2009, guns psiquiatras e aqueles da psicanálise, no estabelecimento de um
p.166). diagnóstico. Se, para a psicanálise, o que está em jogo é a relação do
O seu psiquiatra havia assinalado que, após as passagens sujeito com o conteúdo de seu delírio, para Kraepelin (1913/1993),
ao ato, em 1913, realizadas com o firme propósito de se suicidar, como visto no segundo capítulo, o que estava em jogo era apenas a
Wagner desprezava muito mais o "sodomita" que o assassino. O descrição da forma do delírio, sem levar em conta o sujeito. Nesse
primeiro lhe causava mais repugnância que o segundo, porque seus sentido, se \'Vagner não portava a lentidão psicomotora, fenômeno
atos manchariam a humanidade inteira. Sobre esse aspecto, ao ser típico da melancolia, para os psiquiatras da época, ele não seria
indagado por seu psiquiatra, responde que o sentimento de seu erro· mesmo considerado um melancólico.
era mais forte que o ódio: "é porque eu julguei a eliminação de Para a psicanálise, portanto, o aspecto fundamental é a
minha família mais importante que a destruição de Mühlhausen" culpa essencial na melancolia, diferentemente da psiquiatria. A dor
(MALEVAL, 2009, p.166). Os comentários a respeito dessa passa- moral, essencial na melancolia, surge como um dos pontos de anco-
gem ao ato merecem ser ressaltados: ragem para o. diagnóstico conferido a Wagner. No debate que se se-
guiu, Miller (2009) é categórico quanto a isso. Para ele, Wagner vive
O assassinato de sua família apresenta, consequentemente, todas as uma dor moral constante após suas práticas sodomitas e bestializa-
características do suicídio altruísta do melancólico: ele afirmava tê-los das. Inclusive o próprio paciente se injuria, autoacusando-se de seus
mat~tdo por piedade, para lhes poupar a vergonha, para lhes retirar do
desequilíbrios e desgostando da vida, sempre evidenciando suas ten-
desprezo. Em 1904, \Vagner já havia tentado suicídio. Após seus as-
sassinatos, ele recusa ser considerado como doente mental, e fez tudo dências suicidas. Por mais que a preparação da passagem ao ato faça
para obter a abertura de seu processo a fim de ser condenado à morte. pensar na paranoia, a presença maciça e permanente da auroacusa-
Por que tal intensidade da dor moral incitando o sujeito a passar ao ção, com seu correlato sofrimento e o sentimento de culpa, leva,
ato suicida não sugeriria a nenhum elos clínicos o diagnóstico de me- antes, a pensar na melancolia. Para Maleval (2009), existe um funda-
lancolia concernente a W'agner? Provavdrnente porque ele não apre-
mento melancólico em obra em toda psicose.
sentava a lentidão psicomotora classicamente característica dessa
patologia. Não poderia ele, no entanto, ser considerado como um me- De fato, o estudo do caso Wagner permitiria reabilitar a ca-
lancólico atipico tanto quanto como um paranoico atípico? (1V1ALE- tegoria pré-kraepeliniana dos perseguidos melancólicos ou perse-
Vi\L, 2009, p.l66). guidos autoacusadores, à qual a Escola Francesa de Psiquiatria
consagrou vários trabalhos. Inclusive, Lacan, em sua tese, lembra
Nesse sentido, Miller (2009), que participou do debate que esses trabalhos e acrescenta que "a clínica mostra casos em que os
se seguiu à apresentação do caso Wagner, feira por Maleval (2009), acessos típicos da psicose maníaco-depressiva se combinam com a
estará de acordo que, na verdade, o diagnóstico de paranoia não está eclosão de sistemas delirantes mais ou menos organizados, parti-
claro: "como ele póde ser considerado um paranoico típico, com um cularmente sob a forma de delírio de perseguição" (LACAN,
elemento de dor moral tão importante, a invadir os 12 anos de seu 1932/1987, p.104).
delírio?" (MILLER, 2009, p.171). Para uma discussão mais apurada desse aspecto, retomare-
O que é importante observar, em relação a essa questão le- mos a leitura que Maleval (2009) faz de Ballet e outros autores, os
vantada por Miller, é a diferença radical entre os pressupostos de a!- quais insistem sobre o fato de que tais sujeitos são inicialmente per-

188 189
i
I
seguidos porque eles não apresentariam "o estado de depressão física Os limites incertos da paranoia desse paciente se justificam, I'
e psíquica que constitui a manifestação primordial da melancolia" pois, embora Wagner tenha nomeado nitidamente seus perseguido-
(MALEVAL, 2009, p.167). A respeito disso, segundo Maleval (2009),, res, o sentimento de seu erro não cessa de atormentá-lo dolorosa-
Ballet, com uma grande fineza clinica, chega a situar o perseguido mente. Isso gerou uma espera inquietante da morte, única capaz de
melancólico a partir de uma característica maior do tema do delírio: livrá-lo de seus pecados. Nele parecem conviver ora a autoacusação,
o melancólico encontra nele mesmo a causa de seus sofrimentos mo- ora a heteroacusação. O que o caso ensina é que, para esse paciente,
rais, é um culpado; ao passo que o perseguido busca essa causa fora segundo Maleval,
de si, no mundo exterior, é uma vítima. Mas o paranoico é uma vl-
tima que reclama justiça, "uma vítima inocente", ao passo que o per- [...) o objeto a se encarna ao mesmo tempo em seu ser e em seus perse-
seguido melancólico é "uma vítima culpada". Trata-se "de uma guidores. O assassinato desses últimos não poderia bastar para eliminar
a realidade do gozo desencadeado. A ele era necessário, além disso e
perseguição julgada legítima" (J'vlALEVAL, 2009, p.167). Tal é o caso
antes de tudo, realizar um sacrifício de seu ser, somente isso era suposto
de Wagner, por suas passagens ao ato, raras nos perseguidos autoa- poder lhe fornecer o alivio esperado. "Eu compreendo cada vez mais o
cusadores, mais "desanimados" que "agressivos"; mais inclinados ao mistério do sacrifício humano", escreve ele antes de seus assassinatos,
suicídio que ao ataque a seus perseguidores, o melancólico aparece, "ele é expiatório e nos limpa de todo pecado" (MAI.EVAL, 2009, p.168).
ainda, como "uma vítima culpada" atípica.
Por essa via, Maleval (2009) introduz a questão de saber se É possível constatar que tanto o melancólico quanto o pa-
uma clinica, ao fazer uso dos conceitos psicanaliticos, permitiria (na- ranoico partem de uma certeza: a da existência de um dano que pre-
quela época, 1913) uma análise diagnóstica mais fina do caso Wagner. cisa ser remediado. O método psicanalítico chamaria ainda a atenção
Maleval (2009) busca, então, em Freud (1915-1917 /1974), para os mecanismos comuns. Um dentre eles, o pilar melancólico de
pressupostos para responder à questão, a partir da identificação do toda psicose, merece destaque. Quando as defesas de um sujeito psi-
eu ao objeto perdido, situação em que o melancólico passa a ter uma cótico desmoronam, ele corre o risco de perceber seu ser como um
aversão por ele mesmo. A dor de existir do melancólico advém do objeto de abjeção. Verdade última, segundo Freud, que o melancólico
fato de ele ter encarnado esse objeto. O fato de Wagner, em razão apreende com mais acuidade do que os outros.
de seu erro, ter descrito a si mesmo, inúmeras vezes, co.mo "um ser
imundo, masturbador, sodomita, esfregão, guloso, paradigma da por- Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele se descreve como mesqui-
nho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único
caria" (MALEVAL, 2009 p.168), é uma pista valiosa para responder
objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode
à questão acima, pois essas autoinjúrias ilustram bem a posição do ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreen-
melancólico identificado ao objeto e, como tal, desprezível. No en- der a si mesmo; ficamos imaginando, tão~somente, por que um homem
tanto, Maleval (2009) observa que esse desprezo é temperado por precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie (FREUD,
ideias megalomaníacas do paciente: "se eu faço abstração do campo 1915-1917/1974, p.278-279).
sexual, eu já fui o melhor homem de todos esses que eu já conheci"
(MALEVAL, 2009, p.161). Seria então o caso de considerá-lo como Quanto à questão sobre a contribuição da psicanálise para
um paranoico capaz de identificar o gozo no lugar do Outro? uma análise mais apurada do diagnóstico, a partir da foraclusão do
Nome-do-Pai, tem-se um elemento para responder a ela. Ora, o que
190 191
está em evidência, para o psicótico, é que o desencadeamento do sig- vanta, segundo Maleval, inúmeras interrogações quanto ao diag-
nificante leva à emergência dos objetos reais. Nesse sentido, o objeto nóstico:
que deveria ter sido perdido retoma no real. Cabe assinalar que a
contribuição de Maleval (2009), ao indagar os limites incertos da pa- Séglas e BaUet o teriam, sem dúvida) classificado entre os perseguidos
ranoia, permite constatar que "tal indeterminação entre as fronteiras melancólicos ou autoacusadores. Kretschmer o integra em seu trabalho
sobre o delírio de relação dos sensitivos, ao passo que a predominância
das psicoses não se deve, sem dúvida, à insuficiência de nossos ins-
da melancolia merece ser considerada, desde que se constate que o de-
trumentos de análise, mas aos fatos clínicos em si" (MALEVAL, lido se enraíza, não na iniciativa malévola dos perseguidores, mas em
2009, p.169). Nesse sentido, o autor esclarece que, um erro cometido pelo sujeito (lvlALEVAL, 2009, p.\55).

(...} desde a origem do método psicodinâmico em psiquiatria, Bleuler, Então, a partir desse caso clínico, retoma-se a questão de
K.retschmer e Lacan concordavam quanto a uma premissa que perma- saber que lugar o analista deverá ocupar na condução de um caso cuja
nece válida. Considerá-la seriamente só pode nos conduzir a um avanço
hipótese diagnóstica seria a de um perseguido melancólico. O lugar do
da clínica psicanalítica com relação à clínica psiquiátrica: '(só existem
pamnoicos, não existe paranoia" (LACAN, 1932/1987, p.96). analista, na clínica das psicoses, deve ser o de se opor ao Omro mau.
Isso é um postulado para todas as psicoses. A grande diferença reside
Lacan faz uma distinção entre uma clínica exclusivamente em uma acuidade da escuta do analista, capaz de lhe permitir situar, a
classificatória, que se sustenta pelos sintomas do delírio, de uma clí- partir dos dizeres do paciente, os elementos que indiquem onde este
nica que se empenha em fornecer observações mais precisas e com- localiza o Outro mau: se nele próprio, a partir de sua identificação ao
pletas, a partir de toda a vida do sujeito. a; ou se no Outro, localizando o perseguidor fora dele.
A partir desse caso, Maleval (2009) explícita o quanto os li-
mites dessas categorias psiquiátricas se revelam incertos e se enca-
minha para uma tese fundamental. Indaga se a paranoia não inclui 5.2. OOutro será sempre uma ameaça
em si elementos melancólicos e, em relação à melancolia, se ela não
seria uma interpretação paranoica do Outro mau (MALEVAL, 2009). A discussão clínica, publicada recentemente, intitulada
O desenvolvimento de sua tese se aproxima da ideia de que a me- L'Autre ;nécbanf2' (2010), contribui com esta investigação, já que dis-
lancolia, sendo uma psicose, poderia muito bem ser uma fase da pa- cute as modalidades pelas quais se observa clinicamente a presença
ranoia, ou, por outro lado, a paranoia poderia i9Ualmente ser um do Outro mau na psicose, situando a relação do sujeito com o gozo
, "
momento da melancolia. E uma proposição que, a princípio, parti- em suas diversas facetas.
lha-se com o autor. Mesmo na paranoia típica, como a do Presidente A título de apresentação, passar-se-á à súmula de um caso
Schreber, encontram-se presentes momentos melancólicos. Como apresentado por Philippe De Georges (2010), o qual situará a solução
se podem diferenciar os momentos de melancolia pura e os estados encontrada, bem como apontará o lugar do analista nesse tratamento:
melancólicos presentes na psicose paranoica? como um anteparo à passagem ao ato.
Se o caso Wagner constituiu-se como uma referência em Trata-se de uma senhora, nomeada de S., que vem procurar
matéria de clínica da paranoia, paradoxalmente, sua evolução le- o analista no momento em que soube da morte da sua analista ante-

192 193
rior. A erudição da analista e a cultura literária que elas partilhavam essas enxaquecas constituem um refúgio: a violência da dor física
eram a base da confiança aristocrática sobre a qual a transferência distrai a dor moral e as ideias suicidas obsedantes" (GEORGES,
tinha-se estabelecido. Nesse contexto, ela precisava encontrar um in- 2010, p.48-49).
terlocutor que acolhesse seu profundo sofrimento e desespero. Con- Contudo, Madame S. não é sozinha, pois vive em concubi-
tudo, esse luto, tão difícil de elaborar, não fora o primeiro. Madame nato, e o casal tem duas crianças pequenas. Em sua análise do caso,
S. tinha, em sua jovem tia, o único ser que a compreendia. Ela era De Georges observa um aspecto importante em relação à paciente:
um ser de exceção, de uma feminilidade completamente feita de graça
e de pureza, inatingível pelas mesquinharias da existência e intocável Parece que o parceiro é um suporte indispensável em função mesmo
pelo comércio dos homens. O laço entre elas era tão intenso quanto dos traços de caráter que lhe são criticáveis: seu fechamento a qualquer
exclusivo. Contudo, a morte dessa tia rompe esse laço. consideração a estados de espírito e conflitos internos, seu pragmatismo
operante, sua relação urúvoca com a linguagem, sua resolução firme e
Segundo Philippe De Georges, "todo o amor que elas ti-
militante. Ele é de alguma forma inatingível, o que dá motivo ao ódio,
nham trocado era o prolongamento daquele que Madame S. experi- mas faz dele um parceiro com o qual se pode contar- ele é como um
mentara antes por sua avó, já falecida, única a lhe ter dado ternura bloco, ne parietur (GEORGES. 2010, p.49).
durante sua infância dolorosa" (GEORGE$, 201 O, p.48). O que per-
manecia dessa infância era o sentimento de ter sido mal-amada, não As crianças são tão belas quanto inteligentes e respondem
desejada verdadeiramente, inferiorizada, sem dúvida, tampouco com- aos pedidos da mãe. Mas um deles, Damien, .é uma fome de in quie-
preendida. A mãe é descrita como sendo "fria, conformista, exigente tude permanente. Ela conta ao analista que os médicos diagnostica-
e injusta, recusando qualquer originalidade" (GEORGES, 2010, ram cedo uma insuficiência endócrina que poderia atrapalhar o futuro
p.48). O pai é evocado como um "covarde" e "o grande ausente"; desenvolvimento da virilidade do fllho. Ele condensa para a mãe,
por outro lado, suas .irmãs seriam as perfeitas aos olhos da família e desde os primeiros momentos de sua vida, "a certeza de que está des-
sempre dedicadas. Seu analista esclarece que "o mal-entendido tinha tinado a uma existência difícil: terá problemas de gênero, será marcado
sempre estado presente, creditado à falta de afetividade dos pais rí- · pelo selo da exceção e deverá, a todo momento, enfrentar a crueldade
gidos e carolas, somente interessados pela boa conduta e o respeito" de seus congêneres e as suas zombarias" (GEORGES, 201 O, p.49).
(GEORGES, 2010, p.48). A estranheza programada é a base da relação poderosa
A perda da analista é enorme. É um golpe final que desnuda entre mãe e fJlho. Ao mesmo tempo, segundo o analista, torna-se o
definitivamente a solidão radical e a ausência de recursos desse su- combustível de uma culpa permanente e maciça, que nada apazigua
jeito. Apresenta-se permanentemente esgotada, tanto física quanto nem faz passar.
moralmente. O corpo é uma fonte difusa de sofrimento, com dores Madame S. procura o analista sem o conhecimento de seu
de cabeça que se impõem, violentamente, desde a hora em que ela companheiro, pois este nutre um ódio feroz aos psicanalistas, que
acorda, e transformam-se frequentemente em autênticas enxaquecas. supõe se alimentarem dos tormentos nos quais mantêm sabiamente
Estas, que nenhum tratamento medicamentoso abranda, exige o iso- seus pacientes. Ele não desconhece as afecções mentais, pois se
lamento total, no silêncio e no escuro. Segundo Philippe De Georges, ocupa muito de perto do tratamento de sua irmã maníaco-depressiva,
"Madame S. as conhece desde a adolescência e dirá, mais tarde, que que tem o mesmo nome de Madame S. Se sua mulher é louca como

194 195
sua irmã, ele pensa que ela só precisa de medicamentos, ou, até prostituição aparecia, por um tempo, como uma possibilidade de
mesmo, de eletrochoque, mas não de "bate-papo". resposta. Entretanto, o encontro com um estudante que iria tornar-
Por outro lado, a analista anterior morreu antes de ter dado se seu parceiro tinha colocado um limite a essa deriva, que Madame
à Madame S. os meios de prescindir dela. Segundo o marido, que S. reconheceria, posteriormente, como uma vontade frenética de
esta morte tenha sido pretexto para uma nova depressão é a prova autodestruição.
da inutilidade do tratamento e da alienação que ele gera! De Georges A maternidade foi, ao final das contas, Luna surpresa bem-
diz que esse contexto vinda, como ocasião única e inesperada de experimentar um laço po-
deroso com a vida e reforçar esse laço, com os cuidados maternais.
[...] não facilita nossas entrevistas, nem o tratamento medicamentoso, Ao longo de todo o trabalho analítico, Madame S. perma-
que [...] se torna indispensável à so~revivência da paciente: o uso do necia colada ao fllho, e, segundo De Georges, não apareceu nenhuma
medicamento não daria razão ao marido e não a classificaria definitiva- oportunidade de introduzir a menor lacuna entre Madame S. e o sig-
mente no grupo das doentes crônicas? (GEORGES, 201 O, p.SO). nificante que seu filho era para ela, ou seja, a evidência de uma morte,
mesmo o filho gozando de alegria e bom humor. Tudo isso só faz
Devido ao seu constante sentimento de rejeição e de hos- confirmá-la, em uma certeza sem dialética, e sustentar a ideia de que,
tilidade, na juventude, Madame S., ferida, foi estudar longe de tudo
para ele, o pior está por vir.
o que poderia lhe ser familiar. Era preciso tomar a contramão dessa Philippe De Georges adverte para que não se engane sobre
família tida por ela como puritana e hipócrita. Desde muito cedo, o que, no feminino, interessa à Madame S.: "é preciso que haja sem-
passou a sair para beber, até se embriagar. Muitas vezes, chegou ao pre um cheiro de exceção. O fora da norma, o fora da lei, o fora do
coma alcoólico. Com isso, multiplicava também suas experiências se- falo, eis o que mobiliza sua atenção" (GEORGES, 2010, p.52).
xuais, as mais cruas, e
Em relação à questão do feminino, merece destaque o tra-
balho que ela própria nomeia de "pesquisa". Ela é reconhecida
[... ] o excesso era um desafio, mesmo que essas aventuras só fizessem
aprofundar seu desespero e seu sentimento de rejeição. O ódio ele si se
·como tal, como pesquisadora, por sua tese publicada sobre Joana
alimentava sem parar de situações feitas para confirmá-lo, em seu ser D'Arc e pelos trabalhos sempre singulares que ela apresenta com
de sujeira e de nulidade (GEORGE$, 2010, p.SO). paixão, por ocasião dos colóquios em que é convidada. Segundo o
analista, todas as suas monografias falam sobre mulheres que tive-
Nesse caso, constata-se a presença do excesso co1no ma- ram uma vida fora do comum, assassinadas, envenenadas, decapi-
nifestação autodestrutiva. Esse excesso era desafiante, mas suas tadas, após terem desafiado poderes malignos e potências tirânicas.
aventuras só serviam para agravar seu desespero e seu sentimento Geralmente virgens, ou, de qualquer forma, mal-amadas pelo sexo
de humilhação. Isso culminava sempre em um ódio de si mesma, forte. Em seus textos, há sempre um momento em que a questão
que alimentaria sem cessar as situações que confirmariam seu ser do gênero- no sentido dos estudos do gênero- se coloca: uma es-
de pecado e de vazio. Mas alguma coisa da questão da feminilidade condeu uma paixão homossexual, outra confia a seu diário sua im-
estaria também em jogo. Fora da convenção - casamento, femini- possibilidade em se reconhecer no estereótipo da condição imposta
lidade, fidelidade - não precisaria arrancar da própria vida a expe- a seu sexo.
riência de seu ser profundo? - indaga Georges (201 0). A
196 197
Esse campo de atividade tão apaixonadamente investido em suportar a negociação com o outro- os alunos, colegas e superiores.
não é, no entanto, livre de situações penosas. Madame S. devota Não é que os alunos a filmaram em sala, sem ela saber, e diftmdiram o
vídeo na internet? (GEORGE$, 2010, p.52).
um verdadeiro culto a uma grande figura da Resistência, morta
sob tortura. Aconteceu, recentemente, que o único herdeiro dessa
Segundo De Georges:
figura cultuada comunicou a Madame S. sobre a existência de seu
diário. Trata-se, dessa vez, de uma heroína moderna: vinda da boa É possível afirmar que o trabalho analítico reforça os investimentos li- -
burguesia provinciana, católica, que entrou, muito jovem, para a bidinais que permitem à lvfadame S. uma vida, apesar de tudo. A análise
Resistência. Madame S. carrega a expressão pungente de uma alma é, aqui, de alguma forma, uma qjudtl contra. O que parece irredutível se
atormentada pelos preconceitos de sua classe e de seu meio, que origina de uma certeza com relação à maldade do mundo. Sobre isso,
a impedem de se reconhecer livremente pelo que é. Encarna uma ela tem uma fórmula recente que nos parece ser a chave: "No fundo, o
Outro será sempre uma ameaça" (GEORGE$, 2010, p.54).
prova manifesta da violência feita pelo outro ao desabrochar ín-
timo do ser feminino. Evidentemente, sua pesquisa sobre a he-
A ajuda contra remete ao comentário ele Lacan (197 5-
roína da Resistência toma grande parte de seu tempo e de sua
1976/2007), em seu Seminário sobre Joyce. Lacan distingue bem a
energia, e é denegrida pelo marido, que só vê nisso vaidadel Nada
ajuda para ele da ajuda contra ele. Vale destacar seu comentário:
de status profissional e nada de aumento de salário. O que a con-
duz, de forma obstinada, é sua identificação permanente com o [... ] parto ele minha condição, aquela de trazer para o homem o que a
destino de suas heroínas: cada uma delas trata à sua maneira a Escritura enuncia não como uma ajuda pm'a ele, mas como uma ajuda
' '
questão do impasse sexual e de um destino incomum. A grandeza contra ele. Por essa condição, temo me balizar, e é o que verdadeiramente
delas sustenta o que colore sua posição singular. Mas cada uma, me conduz, de um modo que valeria notar, à consideração do nó
com seu fim precoce e dramático, a mantém também na antecipa- (LACAN, 1975-1976/2007, p.31).
ção de sua própria morte.
Poder-se-ia relacionar a expressão ajuda contra ao que se pro-
Convém notar, de passagem, que Madame S. encontra
uma verdadeira felicidade na escrita e que seu estilo, sobretudo põe para o lugar do analista como anteparo à passagem ao ato. Ajudar
clássico, associa uma grande elegância a um extremo rigor de pen- contra, acredita-se, implica um duplo sentido: ao mesmo tempo em
samento.
que não se pode contradizer o melancólico, deve-se posicionar contra
Quanto ao lugar ocupado pelo analista no tratamento, Phi- o fracasso decorrente das maldades que o paciente carrega, em sua
lippe De Georges apoiará seu trabalho de pesquisadora, afastando- certeza inclialetizável.
A partir da localização elos ditos da paciente em relação à
a, assim, do Outro mau. Desse modo, constitui, sob transferência,
um lugar ele anteparo ao ato. sua vida, e de sua posição melancólica, Philippe De Georges encon-
trou os elementos que aí predominavam, quais sejam:
O essencial de nosso trabalho consiste em estimular o que lhe permite
se manter. No caso, o lado mais positivo de sua vida é seu trabalho. l... ] sobre essa vertente, domina o ser intimo do sujeito l... ]. A culpa é
Não se trata de seu trabalho de professora que ela parece cumprir muito maciça e os dois elementos se conjugam naquilo que mantém Madame
bem, mas que a coloca constantemente às voltas com sua dificuldade S. sempre à beira do vazio. Ela encontra-se, permanentemente, no li-

198 199
miar de uma passagem ao ato suicida. Esse aspecto da clinica encon- Nesse sentido, a aposta do analista para Madame S., em seus
tra-se sob o signo de um supereu eminentemente feroz (GEORGES, encontros, visa essencialmente a fazer com que essa perspectiva mor-
201 O, p.55).
tal permaneça assintótica, como o empuxo-a-mulher joyciano. Se al-
guma coisa deve ser criada, é uma alternativa para o suicídio.
O autor discute o caso trazendo as contribuições de Krets-
Vale destacar a constatação do analista de que o que varia,
chmer sobre o delírio dos sensitivos, para refutar a inscrição da pa-
nesse caso, não é o humor, mas, antes, a localização do gozo, que va-
ciente nesse quadro. Nela, os fenômenos de esgotamento, de
gueia entre o objeto que é o sujeito, sob o mando de um supereu
desfalecimento e as preocupações hipocondríacas formam um fundo
feroz, no corpo - com suas queixas somáticas e seus sofrimentos de
permanente, em que os períodos de crise levam à incandescência.
enxaqueca - e o outro, como uma ameaça virtual:
Nada justificaria diagnosticá-la por isso que Ernest Kretschmer des-
creveu sob o nome de delírio sensitivo de relação. Certamente, as
A oscilação do Kakon está aqui implicada pela especularidade em si,
situações prejudiciais repetem incessantemente contingências trau- como drama inicial não superado. O tratamento registra esses desloca-
máticas às quais o sujeito reage sempre da mesma forma- quer dizer, mentos, limitando o que poderia se desencadear, aqui sob a forma de
com esse caráter sensitivo próprio ao seu estilo, e colore cada acon- uma perseguição devastadora, e ali sob a forma de uma autoacusação
tecimento com as cores de uma experiência de humilhação dolorosa. conduzindo à morte, que não seria senão o efeito da ameaça sempre
presente (GEORGES, 2010, p.56).
Não se observa, no caso, um desencadeamento claramente interpre-
tativo em momento algum. Além disso, não existe verdadeira cons-
No debate que se seguiu a essa apresentação, Alexandre
trução delirante nem sistematização do sentimento persecutório. Por
Stevens (201 O) aponta para o fato de que, no lugar de um delírio,
isso, para De Georges:
Madame S. buscou a solução via escrita literária. A produção literária
Não se pode mesmo considerar o (1ue Kretschmer define sob o termo
constitui uma de suas soluções por meio da construção do saber. Ela
de delírio de relação, "quer dizer, uma atividade de pensamento com- trata assim o Outro mau, de um modo universitário.
binatório aumentada que utiliza e interpreta os menores acontecimen- Eis, pois, no caso, uma solução encontrada e já descrita pelo
tos cotidianos e até mesmo os acontecimentos cotidianos mais ínfimos seu analista como suplência. Ao incentivá-la no caminho de suas pes-
e mais insit,rnificantes a fim de reforçar a ideia, desenvolvendo todo um quisas, o analista vai de encontro à solução por ela encontrada, contra
sistema em torno da ideia dominante"" (GEORGES, 2010, p.SS).
seu gozo.
Alexandre Stevens indaga De Georges sobre o diagnóstico
O ponto de vista estrutural conduz De Georges a fixar, sim,
por ele proposto:
como decisiva, a denúncia do Outro mau. Quaisquer que sejam os
afetos e os tormentos do sujeito, o que está lá em filigrana culmina
Melancolia ou delirio sensitivo? Nada indica o lugar de um outro res-
na seguinte formulação: "O Outro é definitivamente o lugar de uma ponsável por um delírio sensitivo de relação. O persegctidor é o supereu
ameaça. Este postulado é o núcleo: aí reside, no final das contas, um do sujeito ou as dores se originam de uma maldade exterior? Acrescen-
gozo maligno do qual o sujeito arrisca ser o objeto, mesmo se for a temos que a presença de um Outro relativamente feroz constitui para
título de perspectiva" (GEORGES, 2010, p.56). É sempre possível, ela um ponto fixo necessário. :é, seu parceiro que localiza a perseguição,
perseguição que eu interpreto como uma perseguição do julgamento
diz De Georges, que o perigo se realize.

200 201
~
.
.

intimo, aquele do supereu, ao mesmo tempo necessário, enquanto um gozo. Uma das indicações que poderá funcionar como barreira a uma
ponto fixo (STEVENS, 2010, p.142). passagem ao ato suicida, eminente no caso, será que o analista se apoie
no registro especular como modo de protegê-la de um ato suicida.
A partir da leitura do delirio dos sensitivos de Kretschmer
(apud GEORGES) e do texto "A invenção do delirio", de J.-A. Miller
(2005), Philippe De Georges (201 O) se refere a S., preferencialmente, 5.3. Ajudar contra o Outro mau
como wna melancoliforme, em que a maldade difusa do Outro lhe ofe-
I rece wna tonalidade mais paranoica, no sentido mais amplo do termo.
'i O percurso feito até aqui foi guiado pela hipótese de que o
Nesse quadro, o autor localiza a melancolia apresentada pela paciente, lugar do analista, na clínica da melancolia, poderá funcionar como
I
desde a morte de sua analista, tendo que ser medicada e tratada ambu- um anteparo à passagem ao ato. Entretanto, tal hipótese deve ser
,I
latorialmente, por um psiquiatra, durante mais de um ano e meio. considerada para todas as psicoses, assim como seu princípio cor-
'!i
;! Ainda no calor do debate, Marc Lévy comenta que: respondente: o que deve conduzir o tratamento é a oposição do ana-
lista ao Outro mau. Então, qual seria a especificidade do lugar do
Sylvia parece ter tratado o impasse sexual por sua identificação com o
destino excepcional das heroínas trágicas. A história termina sempre
analista na clinica da melancolia?
mal, e é com razão que Philippe De Georges teme a passagem ao ato Para responder a essa questão, foi preciso localizar, para
suicida. Se a identificação chega a seu termo, seus dias estão ameaçados. além dos fenômenos específicos da melancolia, a relação que o su-
Mesmo se o humor, aparentemente sempre melancol.iformc, só varia jeito melancólico mantém com o gozo, revelando que este o situa
em intensidade, a questão da localização do gozo aparece tanto no em si mesmo. Tal localização permite afirmar a tese de que o analista,
corpo de Sylvia, quanto no perseguidor, devastador. Uma qjuda contra-
segundo o termo c.1ue retomo de Ph. De Gcorges - é o que permite
ao se posicionar como anteparo ou barreira à passagem ao ato sui-
criar uma alternativa para o suicídio. Eu estou totalmente de acordo cida, opõe-se ao Outro mau, mas este, na melancolia, especifica-
com essa lógica (LÉVY, 2010, p.149). mente, encontra-se introjetado no próprio paciente. Ora, é jus-
tamente a1 que será possível situar, caso a caso, a partir da fala do pa-
É por essa via, de uma ajuda contra, que Philippe De Georges ciente, o lugar que caberá ao analista.
considera seu lugar no tratamento de S.: "Sua solução reside no fato Em relação aos casos discutidos, um dos aspectos relevan-
de ser pesquisadora e ser uma combatente que não cede diante do tes da discussão do caso Wagner diz respeito à pertinência da psica-
mundo mau" (GEORGES, 2010, p.lSO). No manejo clínico, as in- nálise no tocante aos critérios clínicos que sustentam uma hipótese
tervenções do analista foram no sentido de investir contra o lugar diagnóstica. Radicalmente diferente de uma clínica descritiva dos fe-
em que se colocava a paciente, de humilhada e de rejeitada. nômenos, sustentada pela descrição da forma do delírio, a psicanálise
Uma pergunta do auditório aponta para a questão sobre a se constitui como uma clínica que leva em consideração a relação do
localização do Outro mau na própria paciente, o que poderia res- sujeito com o conteúdo de seu delírio, ou seja, considera-se o sujeito
ponder à tonalidade melancólica indicada por De Georges. Encar- em sua relação com o gozo que o determina.
nando nela mesma o Outro mau, ela poderá querer, desde então, se A propósito, tecer-se-ão dois comentários sobre o caso
:·i· livrar dele, e isso convocará o problema de deslocalizar o Outro do Wagner: por um lado, ressalta-se a importância da pesquisa empreen-
'i

202 203
dida pela psiquiatria francesa (Falret, Cotard e Séglas) e pela psiquia- pacificadora, encontrada pelo próprio sujeito. Nesse sentido, trata-
tria alemã (Griesinger), cujo resultado apontará, como fenômeno se de ir contra seu gozo mortífero.
principal da melancolia, a dor moral; por outro lado, destaca-se a in- Caberá também ao analista, na clínica da melancolia, a
suficiência da psiquiatria daquela época, que se fiou, para o diagnós- produção de um sentido, a partir dos ditos do analisante. Seja em
tico de Wagner, apenas em descrições objetivas. suas frases soltas ou interrompidas; seja na ladainha monótona e
O caso Wagner atesta, por outro lado, a importância e a suti- repetitiva de seu delírio de indignidade e inferioridade. Ali onde
leza do diagnóstico diferencial pautado nos dizeres do sujeito. Isso per- não havia nenhum sentido, produzir um sentido- como diz Jacques-
mite situar- juntamente com Maleval, Séglas, Falret, Freud e também Alain Miller (2003), em seu comentário sobre o texto A morte do
com Lacan, dentre outros - a dor moral como fenômeno fundamental sujeito- para que se constitua um freio possível ao gozo mortífero
do delicio melancólico. Se, junto a esse delirio, vierem a se instalar ideias desenfreado.
de perseguição, estas podem ser tomadas como secundárias. A produção de um sentido, baseado no dito do paciente,
Em relação ao caso S., verifica-se nele a presença de um virá a se opor à ideia de que o Outro quer o seu fracasso. Por essa
gozo desregulado, pela mauifestação do excesso, que culmina sempre via, também é possível elucidar a expressão de Lacan, "ajuda contra",
em passagens ao ato autodestrutivas. Isso confirma o postulado freu- sobre a qual se apoiou para dizer que o analista "ajuda contra" o me-
diano de que, na.melancolia, há uma pura cultura da pulsão de morte. lancólico. Ou seja, se ele próprio, o melancólico, encarna o Outro
Ao mesmo tempo em que é desafiante, o excesso é também uma mau, então, ao ajudar contra, o analista ocupa um lugar de anteparo
forma (destrutiva) de se opor ao Outro mau. ao ato: anteparo contra ele mesmo (o melancólico), contra o que há
Com suas aventuras, S. tentava livrar-se de uma posição de de mais irredutível em relação à fixidez de seu gozo.
abandono que a assolava desde a infância. Contudo, essas mesmas Na clínica da melancolia, é muito frequente verificar-se o
aventuras só serviam para agravar o seu desespero e sentimento de quanto os pacientes estão fixados em uma posição de dejeto. A todo
humilhação. Isso culminava sempre em ódio por si mesma, o que momento, eles se desvelam como lixo, desmascarando-se como o
alimentava, sem cessar, situações que confirmavam seu ser de pecado pior dos piores. Há uma tendência em insistir com o analista para
e vazto. que este os mande embora. Porque, de alguma forma, eles querem
O que chama a atenção é o lugar que o tratamento analí- que o analista confirme que eles são dejeto, que eles são porcarias, e
tico ocupou na vida dessa paciente. Ao ajudar contra, o analista po- que, portanto, podem ser deixados cair.
siciona-se contra o fracasso decorrente das maldades que o Nesse sentido, a posição que o analista pode ocupar é a de
paciente, identificado ao lugar de dejeto, carrega em sua certeza ir contra essa ideia. É isso o que, acredita-se, Lacan aponta com a
indialetizável. expressão: ajudar contra - permitir que o paciente venha; que não vá
Desse modo, é possível relacionar a expressão lacaniana embora; querer que ele venha; não encarnar esse Outro mau. Ou
"ajudar contra" ao que se propõe para o lugar do analista como an- seja, não deixá-lo cair. Ao analista cabe conduzir o tratamento,
teparo à passagem ao ato. Ajudar contra, acredita-se, porta um duplo opondo-se ao fracasso, portanto, trabalhando contra o próprio me-
sentido: o de não contradizer o melancólico - postulado freudiano lancólico, pois este carrega a certeza de que é o objeto degradado e,
já discutido em "Luto e melancolia" - e o de apoiar a solução mais como tal, deve deixar-se cair até o suicídio.

204 205
T
Por outro lado, o analista deve dar uma resposta à demanda das Memórias de um doente de nerz;os'' (1966/2003), "As psicoses" (1955-
do melancólico, pautada na certeza que carrega, a de que nada ou 1956/1988) e "De uma questão preliminar a todo tratamento possí-
ninguém pode ajudá-lo, a de que para ele não tem mais jeito, a de vel das psicoses" (1957 -1958/1998). A partir dessas referências,
que não existe solução, a de que é um "caso" perdido. O analista, Miller esclarece que "uma das modalidades do deixar cair é reencon-
portanto, deve aceitar a condução do tratamento. Isso significa fazer trada na estrutura da passagem ao ato: o (se) deixar cair do sujeito,
uma barreira ao gozo do Outro mau. E o que advém como conse- que traduz o nierdakommen iassen do caso freudiano da jovem homos-
j1 quêncía é uma construção de uma barreira, anteparo à passagem ao sexual (no Seminário 'A angústia')" (MILLER, 2005, p.210). Nesse·
ato. sentido, para i\1iller, "a defenestração melancólica é sua ilustração clí-
No primeiro capítulo deste trabalho, abordou-se o texto de nica mais impressionante", e, no caso da melancolia, o que e quem
Lacan "Televisão" (1973/2003), a respeito da "covardia moral", que, caem no deixtlr cair é "o sujeito no que seu ser é alojado no pequeno
na psicose melancólica, é mortífera. Agora, pode-se retomá-lo para objeto t~" (MILLER, 2005, p.210).
dizer que a demanda de que se trata, na clínica da melancolia, é sus- Lacan postula que uma análise deve propor a produção de
tentada justamente por isso que Lacan nomeou como "covardia moral." um sentido: "o sentido resulta de um campo entre o imaginário e o
Assitn, tal covardia, na psicose melancólica, em sua vertente mortifera, simbólico" (LACAN, 1975-1976/2007, p.70). O objeto a, causa do
faz com que o melancólico trabalhe sempre em direção à morte. desejo, bem ao centro:
Então, qual seria o estatuto da denuncia do melancólico?
Há um desejo de morte e há uma demanda a convocar o analista a ESQUEMA RSI
ocupar o lugar de uma testemunha. Lacan (1955-1956/1998), no Se- R
minário sobre "As psicoses", aponta o lugar do analista operando
nessa via, mas, depois, fornece indicações que fazem suas reflexões
avançarem.
As elaborações de Lacan (1975-1976/2007), em seu Seminário
sobre "O sinthoma", demonstran1, a respeito de Joyce, cotno um
" ego ma1cerzi.do " po d e Vlf
. a ser sustentad o por um sinthoma: a partir
da amarração entre o real, o simbólico e o imaginário. A função da s
escrita, para Joyce, é a de um anteparo à avalanche de fenômenos
que sobrevém quando a psicose se desencadeia. Seus escritos, por- Fonte: lACAN, 1975·1976/2007, p.70.
tanto, barraram esse desencadeamento, funcionando como um
sinthoma que enlaça, para esse sujeito, os três registros. A partir desse esquema, Lacan situa o lugar do sentido,
como sendo uma operação de sutura entre o simbólico e o imagi-
Para Joyce, a escrita funcionou como um enquadramento,
nário: "é uma emenda do imaginário e do saber inconsciente. Tudo
que não o deixou cair. Em "Nota passo a passo", :tvliUer (2005) indica
que Lacan construiu a expressão "deixar cair a relação com o corpo isso para obter um sentido, o que é objeto da resposta do analista
ao exposto, pelo analisando, ao longo de seu sintoma" (LACAN,
próprio", referente ao sinthoma, a partir dos textos: "Apresentação

206 207
1975-1976/2007, p.70). Lacan ensina que, ao fazer tal emenda, s
esta se desdobra em outra, entre o que é simbólico e o real. O que
se verifica aí é um efeito no sujeito, que pode vir "a fazer a emenda
entre seu sinthoma e o real parasita do gozo" (LACAN, 197 5-
1976/2007, p.71).
Lacan assinala, neste Seminário XXIII, que uma análise é
feita de suturas e de emendas. Mas, para isso, adverte: "é preciso
saber qual é o nó e emendá-lo bem graças a um artifício" (LACAN,
1975-1976/2007, p.71). Sobre esse aspecto, Nieves Soria Dafunchio fonte: DAfUNCHIO, 2008, p.115.
(2008), em suas investigações clínicas, afirma que, na melancolia, o
nó que está solto é o simbólico. Isso corrobora a observação de Miller (2003) em relação às
manifestações da mania/ melancolia, como uma aceleração da pulsão

,Q
de morte. Ele indaga sobre como impedir esse gozo desenfreado:
qual seria a forma de frear esse gozo? E responde: "o freio sem dú-
vida é a gramática,[...], sobretudo, o sentido" (MILLER, 2003, p.97).\'
Ao entrar nessa discussão, Christian Desmoulins acrescenta que

[... ] a mania é uma doença da cadeia significante, da pontuação, logo,

.CID
do ponto de basta, [...) o maníaco evita a pontuação, ao passo que o
melancólico em geral interrompe seu discurso antes que tenha possi-
bilidade de pontuação: seja decididamente em silêncio, seja por frases"'
interrompidas (DESMOULINS, 2003, p.97).

fonte: DAfUNCHIO, 2008, p.119. O específico, pois, na clínica da melancolia, diz respeito ao
registro do imaginário. O analista entra, a partir do simbólico, possi-
Nessa conclição, o gozo, que é do registro do real, impõe- bilitando um sentido ao imaginário. Um exemplo: o sujeito melan-
se sobre o imaginário, o que poderá empurrar o melancólico para cólico diz que a vida não tem mais sentido. Nesse caso, o analista
uma passagem ao ato. É preciso, então, que o analista intervenha a deve armar um sentido entre o imaginário e o real - a fim de evitar
partir do simbólico: ali onde este está solto, produzindo um sentido uma passagem ao ato. Nessa situação, pode-se pensar no que Lacan
ao imaginário. Tal sentido produzirá um clistanciamento por parte (1955-1956/1988, p.21) esclarece no Seminário sobre "As psicoses",
do sujeito melancólico da imposição que vem do real. Dafunchio a respeito da foraclusão: "Tudo o que é recusado na ordem simbólica,
(2008) assinala que, ao produzir um sentido, o analista possibilita um no sentido da Verwerfttng, reaparece no real".
"armado", uma espécie de amarração, que viabiliza "as relações sim- Nesse contexto, as passagens ao ato, na melancolia, origi-
bólicas entre real e imaginário" (DAFUNCHIO, 2008, p.115). nam-se do real, que invade o imaginário. Daí a especificidade do lugar

208 209
do analista nessa clínica: ao possibilitar um sentido, permite que o
melancólico barre o gozo que advém do real. Ao operar pela via do
sentido, a intervenção do analista possibilitará um distanciamento
entre o imaginário e o real, evitando a prevalência do real sobre o
imaginário.
Portanto, ao ajudar contra, opondo-se ao Outro mau, o ana-
lista, de seu devido lugar, poderá fazer a função de um anteparo às
passagens ao ato, muitas vezes fatais. Nesse sentido, ao ajudar o me-
lancólico a fortalecer o imaginário, operando pela via do sentido,
abrirá possibilidades para deixar o real mais distante, resultando em
um apaziguamento do gozo desenfreado. Aí se sustenta, acredita-se,
o lugar específico do analista, na clínica da melancolia, como um an-
teparo à passagem ao ato.

NOTAS
24
Grafia que Lacan (1975-1976/2007) introduz em seu Seminário XXIII: o
sinthoma.
25
Trata-se do artigo ''1\ux limites incertaincs de la paranoia: Robert Gaupp et lc
cas Wagner", publicado em .La Ccmse Firmdienne, Paris, n.73, p.155-176, 2009.
25
Psicologia de Hm assctssino em massa: o professor primário \Vagner de Degerloch.
27
O Outro mau.
KRETSCHlVlER, E. Les bommes de ~~énie. Paris: Centre d'Étude et de Promotion
28

de la Lecture, 1973. p.99.

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220 221
l
estudos
clínicos

A psicanálise é uma teoria da clínica. A experiência analítica e sua


prática têm, desde Freud, um caráter fundador. Sensível às transformações
da cultura e às mudanças nos costumes, a clínica é um campo
privilegiado para pensá-las, pois que locus das invenções e soluções
singulares, daquilo que só é transmissível um por um.

Estudos Clínicos pretende-se um espaço fecundo, aberto à recepção


e transmissão do saber que se constrói a partir e através da clínica
psicanalítica, justo no ponto de encontro entre o que a clínica ensina,
o que dela incide no âmbito da cultura e o modo através do qual
a cultura a interroga e a interpela.

Lucío/a Freitas de Macêdo *

•· Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de


Psicanálise, Graduada em Psicologia IUFBA), Mestre em Filosofia IUFMG) e Doutora em
Psicanálise IUFMGI.
Maria de Fátima Ferreira é membro da Associação
Mundial de-Psicanálise e da Escola Brasileira
áe Psicaoálise. Doutora em Psicologia pela
Universidade Federal do Rio deJaoeiro (UFRJ),
mestre em Psicologia pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), especialista em Saúde
Mental pela Escola de Saúde Pública
de Minas Gerais (ESMIG) e graduada em
Serviço Social pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas (PUC-MG).

Este li~ro foi composto nas fontes Garamond e Univers Condensed


e Impresso sobre papel Pólen 80g em setembro de 2014.

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