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Guia prático das fotografias sem pressa Maurício Lissovsky

Os retratos oitocentistas nos enfadam. Devemos admiti-lo, de imediato, sob pena de perder-lhes o sig-
nificado. O modernismo fotográfico do século XX nos legou o fascínio do instantâneo. Fomos educados
na cultura do “flagrante”, e de tal modo nos habituamos a ele que intuitivamente buscamos reencontrá-
lo no período clássico da fotografia, que se estende de 1840 até, pelo menos, 1910.
O instantâneo, sem dúvida, é a chave para a experiência fotográfica moderna tal como ela se confi-
gura a partir dos anos 1920, mas os discursos que o legitimaram como “obra de arte” fundiram-se em
uma espécie de “mística” modernista da fotografia (“instante decisivo”, “intuição geométrica” etc.) que
começa a emergir no final do século XIX em resposta a um incômodo decorrente do próprio surgimento
da câmera fotográfica no campo das artes. Com a fotografia, testemunhava-se, “pela primeira vez na
História”, um modo de “fazer uma imagem representacional legível ou significativa inteiramente por
acidente”. Esta circunstância teria questionado “seriamente o valor da fotografia como arte (e, inclusive,
como imagem coerente) porque ela enfaticamente afirmava a total secundariedade do sujeito”.1 Mesmo
fotógrafos de prestígio, como Nadar, cuja carreira teve início em 1853, sentiam-se constrangidos por
esta situação: “A fotografia é uma descoberta maravilhosa... uma ciência que atraiu os maiores intelectos,
uma arte que excita as mentes mais astutas – e uma arte que pode ser praticada por qualquer imbecil.”2
Todo o século XIX será marcado por essa suspeita e pelo esforço dos fotógrafos de criar procedimentos e
imprimir “marcas” na imagem que lhes conferissem valor de obra de arte. A cultura do instantâneo foi,
seguramente, a resposta mais eficaz a esse questionamento.

A fotografia antes da cultura do instantâneo


Como nos desvencilhar deste olhar “impaciente”, desta “pressa” que teima em buscar o sentido das
imagens no gesto interrompido? Talvez seja necessário que nos voltemos menos para o “fotográfico” do
que para o “pré-fotográfico”, tal como esta noção poderia emergir do pensamento do filósofo da técnica
Gilbert Simondon: um olhar sobre as condições de individuação da imagem fotográfica; sobre o proces-
so de diferenciação que a configura.3
1
James Lastra. “From the captured moment to the cinematic image”. In: Andrew, Dudley. The image in dispute. Austin: University of Texas Press, 1997, p. 263.
2
Citado em Herbert Blau. “Flat-out vision”. In: Petro, Patrice (org.). Fugitive images. Indianápolis: Indiana University Press, 1995, p. 257.
3
Cf. Gilbert Simondon. L’individu et sa genèse physico-biologique. Grenoble: Jérome Millon, 1995.
Acredito ser uma característica da fotografia ter sua recepção indissoluvelmente ligada a um juízo
sobre sua feitura. Investigar na imagem os traços desta factura nos remete ao ato fotográfico como tal,
mas é preciso considerar, quando é da fotografia oitocentista que se trata, ainda uma outra questão, que
Walter Benjamin talvez tenha sido o primeiro a observar: cada tecnologia da imagem implica uma certa
instalação na visualidade que lhe é própria, estabelecendo não apenas as condições do que é visível, mas,
sobretudo, do invisível que lhe é correlato. Uma implicação da técnica na nossa vivência cotidiana que
se tornou ainda mais significativa nas sociedades industriais, onde ela vai, progressivamente, ocupando
o lugar da tradição na determinação de “nossa experiência do espaço e do tempo”.4 Cada tecnologia da
imagem propõe, neste sentido, repartições novas entre visível e invisível.
Um dos aspectos fundamentais da fotografia, e que seguramente informa a sua percepção no século
XIX, é que, à diferença de outras imagens técnicas, ela não é apenas uma maneira de “representar o mundo
visível”, mas de “tornar o mundo visível”. É bastante provável que a descoberta acidental da “imagem la-
 tente”, por Daguerre, em 1835, tenha contribuído para esta percepção. Com o desenvolvimento desta des-
coberta, a produção do registro fotográfico exige, a partir de 1837, uma mediação do invisível: associam-se,
na fotografia, a revelação da “imagem latente” e o projeto moderno de desvelamento do mundo. A história
da fotografia oitocentista foi marcada por esta agenda do invisível: os retratos espirituais, a decomposição
do movimento em Muybridge e Marey, as iconografias da insânia e das doenças da alma (como as do
fotógrafo inglês Hugh Diamond e dos assistentes do Dr. Charcot), os inventários dos tipos criminais (de
Francis Galton a Bertillon), a fotografia etnográfica, as ruínas, os fósseis, as paisagens estrangeiras.5 Esta
agenda está a serviço de um império – o império do visível – que pautou a ciência dos séculos XVII ao XIX
em sua luta incansável contra a obscuridade do mundo – os marcos decisivos deste corte cronológico são,
simbolicamente, a invenção do microscópio, numa ponta, e do tubo de Crooks (o raio X), na outra.6
O desvelamento do invisível era tão inelutável quanto a expansão das fronteiras dos impérios, ane-
xando cada vez mais territórios graças aos prodígios da ótica e aos relatórios das “Reais Sociedades”.
Comentando a “metrofotografia” aérea, instituída por Deville entre 1888 e 1892, Dubois dirá que o
“mundo visível alarga-se, estende-se ao território visto como um todo, à terra, ao universo inteiro, ao
cosmos”. Um astrônomo-fotógrafo, sem pestanejar, havia proclamado: “A placa fotográfica é a verdadei-
ra retina do cientista.”7 Se a técnica fotográfica nasce, conforme Benjamin, como “arte de feira”, como
“fantasmagoria”, ela se prolonga em “miragem”. Seu horizonte é o desvelamento do invisível. A ruptura
com essa “agenda do invisível” oitocentista coincide com o desaparecimento da fotografia clássica e a
emergência do modernismo e da fotografia do século XX.
O lugar específico do retrato burguês nessa agenda do invisível é algo que tem sido pouco debatido.
E, no entanto, esses retratos clássicos, e o tédio que eventualmente sentimos diante deles, são a verda-
deira prova da “atualidade” dessa questão. Uma atualidade que se “manifesta” no mirar apressado que,
como um “sintoma”, deitamos sobre eles.

4
Cf. Howard Caygill. “Benjamin, Heidegger e a destruição da tradição”. In: Benjamin, Andrew e Osborne, Peter (orgs.). A filosofia de Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 41.
5
Se buscarmos um evento inaugural para esta agenda, talvez ele tenha ocorrido em junho de 1839, quando Herschel descobre a radiação ultravioleta – invisível
aos olhos humanos – projetando o espectro luminoso sobre papel fotogênico.
6
No Brasil, o conjunto fotográfico que melhor representa este espírito é a Coleção D. Teresa Cristina Maria, que reúne cerca de 25.000 fotografias da coleção
particular de D. Pedro II. Seu império do visível estendia-se das imagens de um eclipse à lâmina microscópica repleta de “sedimentos urinários”. A coleção integra
o acervo da Biblioteca Nacional. Ver, no espírito do comentário acima, Mauricio Lissovsky. “O olho-rei e o império do visível”. In: Anais da Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro, v. 117, 2001, p. 29-40.
7
Philippe Dubois. “A fotografia panorâmica ou quando a imagem fixa faz sua encenação”. In: Samain, E. (org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 212-213.
Explico-me.
A historiografia modernista sustentou abundantemente que a ruptura da qual decorre a fotografia
moderna do século XX deveu-se sobretudo a mudanças cruciais nos padrões tecnológicos da arte foto-
gráfica. Um processo que se inicia com a difusão da chapas de gelatina seca no final dos anos 1870 e
culmina com a invasão do mercado pelas câmeras de pequeno formato, ditas “câmeras-detetive”, como
a Leica, por exemplo, na década de 1920. Esse mesmo movimento constitui a história da fotografia
como desenvolvimento de suas especificidades expressivas. O impacto das transformações técnicas não
pode ser ignorado, mas uma outra hipótese foi formulada por Patrice Petro, que procura posicionar a
fotografia “depois do ‘choque do novo’”, isto é, depois que o novo deixa de ser “chocante” e “quando a
própria mudança torna-se rotinizada, mercantilizada, banalizada”. Nesse mesmo movimento, o “extra-
ordinário”, o “fantástico”, passa a vincular-se, inextricavelmente, ao “prosaico” e ao “cotidiano”.8 Seguin-
do Simmel, Petro sugere que na virada do século “a chateação torna-se disponível a todos através dos
 efeitos niveladores da economia monetária, que passa a permear tanto os períodos de lazer como os de
trabalho”.9 Assim, a chateação, o tédio, caracterizaria um momento em que “a exaustão e a indiferença
não são mais privilégio de uma classe particular (ou mesmo uma prerrogativa apenas masculina)”. Se,
conforme, Blanchot, a chateação “é o cotidiano tornado manifesto”, em “conseqüência de ter perdido
seu traço essencial – constitutivo – de passar despercebido”10, o instantâneo fotográfico emerge aí, mar-
cado pelo fetiche da interrupção, como instrumento de uma nova percepção da realidade. Nossos olhos
modernos foram formados pela democratização do tédio na mesma medida que a disciplina escolar e
laboral forjou nossos corpos e o “fetiche da mercadoria” moldou nossas almas.

Sob o domínio do retrato


Entre todos os gêneros praticados e funções cumpridas pela fotografia na segunda metade do século
XIX, o retrato foi certamente o mais difundido.
Especula-se que mais de 90% das fotografias realizadas no período sejam retratos, em sua ampla maio-
ria no formato carte de visite. A difusão mundial desta tecnologia e dos procedimentos técnicos e valores
estéticos a ela associados acabam por criar um padrão tão homogêneo que mesmo um olhar treinado teria
bastante dificuldade em distinguir, umas das outras, imagens produzidas neste ou naquele país e, sobretudo,
por um ou outro fotógrafo. Também do ponto de vista diacrônico as distinções são quase imperceptíveis.
No Brasil, onde o carte de visite começa a ser amplamente difundido na década de 1860, ele ainda vigora
na primeira década do século XX, particularmente entre fotógrafos estabelecidos fora da capital do país.
Os mesmos padrões (conformação da pose, cenografia, enquadramento, etc.) utilizados por Carneiro &
Gaspar (p. 60) ou Insley Pacheco (p. 117), fotógrafos de grande prestígio na corte, podem ser observados
em retratistas “provinciais” como Oliveira Lopes (p. 179) e Generoso Portella (p. 87), no final do século.
Essas quase cinco décadas de vigência do carte de visite não tem equivalente em nenhum outro for-
mato ou gênero fotográfico, das origens até os dias atuais, à exceção talvez do retrato de identificação 3x4
(mesmo este transformou-se com a introdução das cabines automáticas do tipo photomaton e, hoje, com
a utilização das câmeras digitais). A exasperante redundância dessas imagens levou Walter Benjamin,

8
Patrice Petro. “After shock/between boredom and history”. In: Petro, Patrice (org.) Fugitive images; from photography to video. Indianápolis: Indiana University
Press, 1995, p. 265.
9
Idem, p. 273.
10
Citado em Idem, p. 276.
em sua Pequena História da Fotografia, a associar o surgimento deste gênero à inauguração de um longo
período de “decadência do gosto” na arte fotográfica.11 Tal declínio não seria outra coisa, para Benjamin,
senão o “esquecimento do caráter fantasmático e espectral da fotografia”, que era parte indissociável de
sua experiência nas primeiras décadas.12 Um dos sintomas desta decadência seria o formato artificial-
mente ovalado das fotografias do final do século XIX e início do XX, que buscavam assim imitar a “aura”
característica das primeiras fotografias (retrato de Rodolfo Epifânio de Souza Dantas).
Depois de Walter Benjamin, o crítico português Pedro Miguel Frade foi um dos poucos teóricos a sugerir
uma via para que o olhar moderno pudesse redescobrir a fotografia do século XIX. Ele se detém sobretudo
nos discursos dos “inventores”, e o que ele ali encontra, antes de qualquer coisa, é o espanto.13 Neste primei-
ro momento em que a imagem fotográfica se dá a ver, quando ainda não há “protocolos para a freqüentação
das fotografias”, o olhar se perderia “numa multidão de pequenos trajetos, de seqüências imprevisíveis”:

 Nessas imagens tudo se passava como se a grande via do sentido fosse constantemente ameaçada pelos inúme-
ros caminhos deixados em aberto para que o olhar aí se perdesse nos exercícios insensatos que constituíam o
correlato movente de toda essa suculência do minúsculo que a cada momento o excedia e o desafiava.14

Nos primórdios da fotografia, o olhar que se perde na superfície da imagem tinha seu correlato na
longa exposição que lhe dava origem. Os “pontos de vista” de Niépce consumiam horas de exposição
– e deles só conhecemos uma “paisagem” e uma “natureza-morta”. Em 1840, Hubert, assistente de
Daguerre, publicou uma tabela em que os tempos de exposição recomendados variavam entre 4,5 e
60 minutos. Até o final da década de 1840, deixar-se fotografar exigia heróica imobilidade: uma pose
que se sustentava por longos e intermináveis minutos. Em 1851, Frederick Scott Archer cria a téc-
nica conhecida por “colódio úmido”, que reduziu a exposição a intervalos de tempo que podiam ser
medidos em segundos – entre 3 e 12 segundos, precisamente.15 A esta época remonta o mais antigo
retrato que integra esta coleção. Um carte cabinet, de Henrique Klumb (p. 103). Quase podemos ainda
perceber o esforço do padre para esvaziar a mente de qualquer pensamento que pudesse vir a pertur-
bar-lhe a expressão (na “arte zen” de ser fotografado nesses tempos heróicos, todo pensamento era um
“mau pensamento”). A sobriedade do rosto convém ao padre, mas o repouso elegante da mão sobre o
ventre trai, na pressão exercida pelo dedo indicador, o esforço de sustentá-la. Nessa fotografia, Walter
Benjamin encontraria alguns dos elementos que, segundo ele, conferiam aura aos primeiros retratos:
o olhar frontalmente dirigido ao aparelho, onde está implícita “a expectativa de ser correspondido”16,
o fotógrafo vendo a si mesmo e a seu cliente como membros “de uma classe ascendente”, dotados “de
uma aura que se refugiava até nas dobras da sobrecasaca...”.17
Durante a década de 1860, os progressos técnicos foram enormes, mas somente em 1878 os fotógra-
11
Cf. Walter Benjamin. “Pequena história da fotografia”. In: ——. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.
12
Eduardo Cadava. Words of light: thesis on the photography of history. Princeton: Princeton University Press, 1997, p. 13.
13
Pedro Miguel Frade. Figuras do espanto; a fotografia antes de sua cultura. Porto: Edições Asa, 1992, p. 88.
14
Idem, p. 104. É este, por exemplo, o comentário de Edgar Allan Poe, em 1840: “... o daguerreótipo é infinitamente mais acurado na sua representação que qualquer
pintura feita por mãos humanas. Se examinarmos uma obra de arte comum, através de um poderoso microscópio, todos os traços de semelhança com a natureza desa-
parecerão mas, por mais próximo que seja o escrutínio do desenho fotogênico, ele revela apenas a mais absoluta verdade, a mais perfeita identidade de aspecto com a
coisa representada.” Edgar Allan Poe. “The daguerreotype”. In: Trachtemberg, Alan. Classic essays on photography. New Haven: Leete’s Island Books, 1980, p. 38.
15
Um caso excepcional é o do fotógrafo John Dillwyn Llewelyn que criou, em 1853, um obturador capaz de operar a 1/25 de segundo, realizando marinhas e
fotografias domésticas que foram expostas, com retumbante sucesso, dois anos depois, na Exposição Universal de Paris.
16
Walter Benjamin. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Textos escolhidos (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 52-53.
17
Walter Benjamin. “Pequena história da fotografia”. Op. cit., p. 99.
fos começaram a dispor regularmente de placas de gelatina seca, 40 vezes mais sensíveis que os sistemas
anteriormente existentes. A redução dos tempos de exposição será comemorada por fotógrafos como
um ato de libertação. Representou uma significativa simplificação das tarefas técnicas: chapas, depois
películas, mais fáceis de manipular, e variados mecanismos de controle. Para os modelos, propiciou o
afastamento de dois dissabores associados à fotografia. O primeiro deles, de ordem física:

Para tirar os primeiros retratos (por volta de 1840) era necessário submeter o sujeito a longas poses atrás
de uma vidraça, ao sol; tornar-se objeto provocava tanto sofrimento como uma operação cirúrgica. Inven-
tou-se então um aparelho chamado apóia-cabeças, uma espécie de prótese, invisível para a objetiva, que
sustentava e mantinha o corpo na sua passagem à imobilidade; este apóia-cabeças era o pedestal da estátua
em que eu ia me transformar, o espartilho da minha essência imaginária.18

 O famoso auto-retrato de Bayard, de 1840, legendado pelo autor “Este é o corpo do falecido Bayard”,
é, neste sentido, não só um protesto contra o fato de ter sido preterido por Daguerre como inventor da
fotografia, mas também uma alusão a esta imobilidade mortal que a fotografia exigia dos fotografados.
A mesma imobilidade que transformava vivos em mortos também podia realizar o “milagre” contrário.
Durante os anos seguintes foi relativamente freqüente fotografar crianças mortas como se estivessem
dormindo. O retrato do bebê Antônio (p. 27) no colo de sua ama-de-leite africana nos remete a essa
incerteza, acentuada pela profunda tristeza que emana da escrava, que mantém os olhos fechados, recu-
sando-se a oferecer-nos o seu olhar ou a repousá-los candidamente sobre a criança, que “dorme”.
O segundo desconforto era, digamos, de ordem fantasmagórica. A longa exposição sugeria uma lenta
transferência da superfície do modelo para a chapa sensível, no interior da câmera. Nadar relata que
Balzac, por exemplo, sentia-se ameaçado de “descamação” ao expor-se a esse processo de transmigração
da aparência.19 A presença eventual de “fantasmas” na imagem, figuras translúcidas cuja passagem
diante da objetiva havia sido demasiado breve para uma fixação nítida, sugeria a possibilidade de conta-
minação da imagem durante a sua transferência: sua perturbação por outras aparências – interiores ou
exteriores ao modelo. Mas a descamação não era a única fantasia que atormentava os modelos. Havia
também quem se preocupasse com uma eventual sucção. Existem relatos, particularmente de mulheres,
que declararam ter sentido seus olhos sendo sugados pela lente da câmera enquanto estavam sendo
fotografadas.20 Em larga medida, esta sensação talvez fosse estimulada pelo hábito de alguns fotógrafos
recomendarem aos seus clientes não piscar durante a “pose”. Isso perturbava sobretudo mulheres e
crianças, uma vez que “encarar” prolongadamente seu interlocutor contrariava as normas vigentes da
etiqueta e, principalmente, da decência. Ainda que a partir da década de 1860 não olhar diretamente

18
Roland Barthes. Op. cit., p. 29.
19
Nadar comenta que os receios de Balzac eram sinceros, apesar dele “só ter a ganhar com essa perda, suas proporções avantajadas permitiam que ele des-
perdiçasse camadas sem qualquer preocupação”. Citado em Martin Jay. Downcast eyes. Berkeley: University of California Press, 1994, p. 112. A crença de Balzac
tem sua origem na hipótese apresentada por Lucrécio em Sobre a natureza do universo, como única explicação plausível para as imagens que se formam na água e
em outras superfícies lisas, sendo atribuídas a uma propriedade irradiadora dos objetos (igualmente manifesta nos odores): “Assim como uma grande quantidade de
partículas de luz deve ser emitida pelo sol, num breve espaço de tempo, para manter o mundo completamente cheio dela, assim também os objetos precisam enviar
múltiplas imagens, de múltiplos modos e em todas as direções, instantaneamente. Viremos o espelho na direção que quisermos, os objetos serão reproduzidos na
forma e cor correspondentes”. Citado em M. Price. Photograph: a strange confined space. Stanford: Stanford University Press, 1994, p. 139. Em Primo Pons, Balzac
expressa a convicção de que a invenção de Daguerre provou “que um homem ou prédio está continuamente representado por um retrato na atmosfera, que todos os
objetos existentes projetam nela um tipo de espectro que pode ser capturado ou percebido”. Citado em Tom Gunning. “Phantom images and modern manifestations”.
In: Petro, Patrice. Fugitive images. Indianápolis: Indiana University Press, 1995. Por mais que os temores de Balzac nos pareçam hoje infundados, a história da arte
registra pelo menos um caso de apropriação da aura pela câmera. É Jackson Pollock, que depois de ter sido filmado em seu ateliê, parece ter perdido a força criativa
que o animava. Cf. Alain Sekulla. “On the invention of the photographic meaning”. In: Burgin, Victor (org.). Thinking photography. Londres: Macmillan Press, 1982.
20
Cf. Alain Sekulla. “On the invention of the photographic meaning” In: Burgin, Victor (org.). Thinking photography. Londres: Macmillan Press, 1982.
para a objetiva da câmera passe a ser uma das regras – “decadentes”, segundo Benjamin – do retrato, o
suave estrabismo da pequena Maria Luísa parece sugerir que o caráter “vampiresco” da fotografia conti-
nuava a atemorizar algumas de suas pequenas vítimas (p. 125). Acredito que boa parte do escândalo em
torno de Fading Away (1858), de Henry Peach Robinson – fotografia romanticamente encenada de uma
jovem em seu leito de morte –, não se deveu apenas à suposição de que se tratasse de um registro real e,
portanto, uma intolerável invasão de privacidade para o bom gosto vitoriano, mas pela possibilidade de
que uma tomada fotográfica “real” tivesse virtualmente subtraído da moribunda seu último suspiro.
Tanto para o fotógrafo como para o modelo, a expulsão da duração do interior do ato fotográfico pro-
priamente dito significou afinal a possibilidade de estabelecer maior controle sobre a imagem, com base em
um consenso sobre o que devia ser mostrado. O estúdio do retratista das últimas décadas do século XIX
reflete esse desaparecimento da duração, colocando à disposição de ambos um arsenal de elementos (peças
de mobiliário e decoração, fundos pintados etc.), que deviam ser arranjados segundo um acordo prévio.
 O tempo que se despende entre eles, agora, é o de uma negociação em torno da imagem. Não é mais o
intervalo por onde uma experiência se infiltra, mas o transcurso necessário à conformação de um contrato:
“Cada vez mais, todos os gens de rien que desejam tirar o retrato têm idéias fixas sobre o modo como dese-
jam aparecer.”21 Escreve Gisèle Freund: “O estúdio fotográfico se converte assim no armazém de acessórios
de um teatro que guarda, preparadas, para todo o repertório social, as máscaras de seus personagens.” 22
Esse conjunto de objetos de cena e acessórios é praticamente o mesmo em todo o mundo, refletindo
um certo ideário de casa burguesa e de identidade social urbana aos quais todas as classes “fotografáveis”
escolhem aderir. No Rio de Janeiro, desde meados do século XIX, as lojas especializadas em fotografia ofe-
recem cortinados, fundos pintados, colunas e outras peças de mobiliário para o arranjo dos “salões de pose”
dos fotógrafos profissionais.23 Até onde pude observar, a única contribuição brasileira para esse repertório é
a utilização de cercas rústicas de madeira, mais comuns entre fotógrafos da Bahia e Pernambuco, como no
retrato de menina “empoleirada”, do estúdio de Alberto Henschel (p. 38). Ocasionalmente, a presença de
pedras no piso do estúdio também parece indicar o desejo dos fotografáveis de manter, através da presença
simbólica de certos elementos, seus vínculos, mais reais que imaginários, de fato, com as origens senhoriais
rurais (p. 62 e p. 77). Neste sentido, o retrato de Inácio Dias Paes Leme, no formato maior e mais nobre
carte cabinet (p. 123), é verdadeiramente singular, porque vai além das meras convenções de representação
de classe e romantismo campestre, e parece evocar, no manto que recobre o personagem, três séculos de
indomável espírito bandeirante. Destituído de adereços aburguesantes, o velho Paes Leme apresenta-se
com o caráter de um patriarca bíblico da nação.

O carte de visite como dispositivo


O carte de visite não é apenas um formato ou uma tecnologia. É verdadeiramente um “dispositivo” foto-
gráfico complexo, com profundas implicações sociais. Patenteado por André Disdéri em 1855, barateou
enormemente o custo do retrato, tornando-se a forma favorita de personalizar os cidadãos burgueses em
meio a um ambiente que lhes valorizava a figura e a posição social. Além do custo relativamente baixo e
de seu caráter múltiplo, que permitia a distribuição de cópias dos retratos entre parentes e conhecidos, o

21
Pedro Miguel Frade. Op. cit., p. 202.
22
Gisèle Freund. La fotografia como documento social. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 1986, p. 62.
23
Cf. Pedro Karp Vasquez. O Brasil na fotografia oitocentista. São Paulo: Metalivros, 2003, p. 48-49.
dispositivo do carte de visite possuía uma outra característica fundamental e inovadora. Ele induzia à co-
leção por meio de álbuns dotados de cantoneiras no tamanho exato dos cartões que serviam de suporte às
imagens. Nesses álbuns, as famílias colecionavam, além das efígies de seus membros, retratos de amigos, da
família imperial, de personalidades nacionais e estrangeiras, inclusive artistas e atores de teatro (p. 133).
As imagens da família imperial apresentadas neste livro são exemplos dessa prática, uma vez que
pertenceram a acervos privados e foram provavelmente adquiridas dos próprios fotógrafos. Era perfei-
tamente possível encontrar em um desses álbuns familiares um busto do imperador como o feito por
Justiniano José de Barros (p. 127) ao lado do “digníssimo compadre” ou do “irmão do sogro da minha
prima”. O álbum de carte de visite formava uma espécie de comunidade “democrática” do visível que, ao
mesmo tempo em que nivelava a todos, emprestava a cada um a dignidade que emanava de seus vizinhos
de página. O Imperador e sua família são parte dessa comunidade fotografável e é, normalmente, como
um burguês respeitável que ele se deixa fotografar, desprovido de ícones e emblemas que assinalem a sua
nobliárquica realeza (caracterização que era mais habitual em pinturas e desenhos). Os retratos de Suas
 Altezas Princesa Isabel e Conde d’Eu, feitos por Henschel, são uma interessante exceção: ao fotografá-los
de perfil, sugerem o privilégio de uma iconicidade de caráter numismático (a “cara” da “coroa”), que não
era usual na representação de cidadãos comuns. (p. 43 e p. 42)
A simplicidade com que vivia a família imperial brasileira (para padrões monárquicos, evidentemente)
era notória e objeto de comentário de visitantes estrangeiros, habituados à pompa das cortes européias.24
Mesmo assim, é verdadeiramente surpreendente que a Princesa Isabel, um pouco mais velha, tenha
posado para Insley Pacheco com a mesma roupa utilizada no retrato de Henschel (p. 119).
Entre as representações fotográficas de Pedro II, a mais curiosa é a dupla exposição de Carneiro &
Gaspar (p. 63). Apesar da seriedade do semblante do Imperador, a imagem possui um caráter quase
anedótico associado ao tipo de proeza técnica vulgar que certamente fascinava a clientela. O grande
interesse de Sua Majestade pela técnica fotográfica pode tê-lo motivado a submeter-se a este “experi-
mento” (uma foto similar da Imperatriz Teresa Cristina também foi realizada), mas é impossível deixar
de associar essa imagem à tradição taumatúrgica do caráter duplo do “corpo do rei” (um corpo humano,
mundano e transitório, e um corpo místico, soberano e permanente).25 Se a fotografia foi, como sugere
Lílian Moritz Schwarcz, o principal veículo da representação moderna de Pedro II,26 a dualidade de seu
corpo assume aqui uma forma fotográfica. Porém, mais do que simplesmente aparecer com trajes de ci-
dadão comum, essa imagem nos revela que os dois corpos do rei são, ao contrário do que reza a tradição,
da mesma natureza. Ao assumir forma fotográfica, o duplo do Imperador confunde-se com o corpo dos
demais notáveis do reino (isto é, com o corpo de todos aqueles que aspiram, e logram, dar-se a ver em
fotografias). Esta fotografia, e o jogo que ela propõe, coloca em evidência a potência do carte de visite
como dispositivo (afinal, todo dispositivo é, em alguma instância, um jogo). Neste retrato em que o
Imperador olha para uma fotografia sua como se olhasse para si próprio, o tensionamento das forças que
constituem o carte de visite mostra-se claramente: a tensão de dar-se a ver notável e, simultaneamente, co-
mum. Se essas fotografias nos enfadam, se elas nos parecem demasiado redundantes, é porque perdemos
a habilidade de reconhecer os traços deixados por esse jogo na imagem. Para que nossos olhos, educados
na modernidade, possam reencontrar a vida que ainda anima esses retratos, devemos nos transportar
para o campo, para a cena em que esse jogo é travado: o estúdio do fotógrafo retratista do século XIX.
24
Cf. Pedro Karp Vasquez. Op. cit., p 172-177.
25
Cf. Ernst Kantorowicz. Les deux corps du roi. Paris: Gallimard, 1989, p. 30-38.
26
Lílian Moritz Schwarcz. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 330.
Fotografias a serviço da distinção
André Disdéri, inventor do carte de visite, foi o mais famoso e bem-sucedido retratista da década de
1860. É a ele que Benjamin se refere como sendo o primeiro “milionário” feito pela “indústria fotográfi-
ca”.27 Ao contrário da primeira geração de fotógrafos, Disdéri não tivera nenhum tipo de treino artístico.
Fez um breve curso de desenho, mas era, essencialmente, um homem de negócios. Quando inaugura seu
estúdio em 1854, La Lumière – o mais importante periódico de fotografia do século XIX –, informa:

Os estúdios que o Sr. Disdéri acaba de inaugurar são os maiores já vistos em Paris... Suas dependências
ocupam dois andares. O primeiro compreende lojas, oficinas de molduras e sala de recepção. Acima, há
dois níveis espaçosos para as poses, um salão elegante para as senhoras e laboratórios separados para a ma-
nipulação das chapas, do colódio, e para a impressão de imagens positivas. 28

Em 1855, após o patenteamento do carte de visite, seu estúdio já emprega 77 pessoas. O fotógrafo
 tinha plena consciência da “revolução” que havia iniciado. Por volta de 1860, produzia 1.600 chapas por
mês, cada uma com oito imagens. O que supõe que ele e sua equipe podiam atender cerca de 70 clientes
por dia. Acredito que esta marca não tenha sido superada por qualquer estúdio fotográfico até os dias
atuais. Os mais bem-sucedidos estúdios brasileiros oitocentistas podem ter conseguido manter, no auge
de sua fama, 10% dessa produtividade. Porém, além do tino comercial e do talento como propagandista
de si mesmo, Disdéri também foi o primeiro e mais influente teórico do retrato no século XIX.
O objetivo primordial de sua teoria era, precisamente, fazer emergir o notável no que permanecia sendo
comum, isto é, evitar que o destaque conferido ao modelo desgarrasse o sujeito de seus pares. Talvez o me-
lhor termo de que podemos nos valer para sintetizar a operação fotográfica do retratista clássico é distinção,
no duplo sentido que carrega. Por um lado, a distinção que assinala o caráter elegante, discreto e honrado de
cada um dos membros da comunidade de fotografáveis; e, por outro, a distinção que dá a ver, em cada um,
seu traço característico, sua peculiaridade, sua personalidade. O retrato fotográfico do século XIX (não deve-
mos nos deixar enganar por sua aparente homogeneidade) resulta de um delicadíssimo processo de individu-
ação por distinção, que deve, por um lado, dignificar sem sobressair; e, por outro, distinguir sem disparatar.
Comentando o trabalho do mais famoso retratista francês da primeira geração, com o objetivo de
distinguir seus procedimentos daqueles de Disdéri, Pedro Miguel Frade dirá que, para Nadar, fotografar
“era uma espécie de maiêutica dos aspectos: tratava-se de assistir ao parto de uma aparência”.29 Nadar
estava em busca de uma “semelhança íntima”. Para Disdéri, ao contrário, tratava-se de dar a ver uma
“semelhança moral”30 (p. 153). Se nos primeiros retratos, o fotógrafo devia sobretudo “recolher-se”,
favorecendo a lenta emergência da personalidade de seu modelo, na confecção do carte de visite, o fotó-
grafo devia “impor-se”, sendo absolutamente necessário que o “artista estivesse a sós com seu modelo a
fim de fazê-lo sofrer sua influência, de impressioná-lo”.31

27
Cf. Walter Benjamin. “Pequena história da fotografia”. Op. Cit., p. 92.
28
Citado em André Rouillé. “The rise of photography”. In: Lemagny, J.-C.; Rouillé, A. A history of photography; social and cultural perspectives. Cambridge:
Cambridge University Press, 1987, p. 38.
29
Pedro Miguel Frade. Op. cit., p. 201.
30
Ainda que o princípio de “semelhança moral” oriente a confecção dos retratos com base em um repertório de gestos e posturas bastante homogêneo, as
diferenças de classe e riqueza eram facilmente percebidas pela comunidade de fotografáveis. Elementos exteriores à imagem como a qualidade do papel e da
impressão, os adornos que emolduravam a imagem, assinaturas dos fotógrafos douradas e em relevo, eram elementos que sinalizavam diferenças no custo dos
retratos, valorizando certos estúdios em relação a outros. Cf. a carte de visite de Henrique Oswald. Arquivo Henrique Oswald, QJ Fot 1. Fotógrafos que serviam
à Casa Imperial cobravam mais caro e era motivo de orgulho para o fotografado ter posado diante do mesmo pano de fundo ou junto ao mesmo móvel em que
postou-se esta ou aquela celebridade.
31
A. Disdéri. L’Art de la photographie. Paris: [O Autor],1862, p. 281.
Essa caracterização do ato fotográfico como uma relação de poder, fundada no “domínio” que o
fotógrafo deve exercer sobre o retratado, não deve nos fazer supor que ele não podia contar com a sua
“cooperação”. Não se tratava de uma “autoridade” a que o sujeito devia se submeter “cegamente”. Pelo
contrário, a cooperação era decisiva, e almejada por ambos. Tratava-se, sobretudo, de constituir o salão
de pose como o lugar em que uma certa “modelagem” tivesse curso. Modelagem que dependia tanto do
olhar do fotógrafo quanto do “modelo”. Uma relação dialógica, cujo fundamento era a natureza mo-
netária do contrato previamente estabelecido entre as partes. Neste sentido, a constatação de que sinais
artísticos de autoria são pouco evidentes nos retratos oitocentistas não decorre da pobreza de recursos
estéticos, da “decadência do gosto”, como sugere Benjamin, mas de que, a rigor, os modelos deveriam
ser considerados co-autores de seus retratos.
A modelagem dos retratados obedece a um critério socialmente difuso de constituição da imagem
de si como imagem pública a que aspiram quase todos os “fotografáveis”. Tanto o Visconde de Lima
Duarte (p. 98) como o homem fotografado por Bernardo José Pacheco (p. 71), cuja identidade se per-
 deu, apresentam sua “semelhança moral” na mão esquerda que repousa suavemente sobre um objeto,
enquanto resguardam sua sobriedade no ligeiro “três quartos” que oferecem à objetiva. Cada retrato,
fosse de uma “personalidade” ou de um pequeno-burguês irrelevante, deveria representar o caráter da
sociedade como um todo. Somente a partir de sua “semelhança moral” é que as diferenças individuais
podiam ser legitimamente expressas na fotografia. A forma desta semelhança, construída coletivamen-
te, socialmente difusa, era o invisível próprio ao retrato oitocentista que cabia ao fotógrafo revelar. Dar
substância a esta forma, no corpo de cada um dos seus clientes, torna-se a ambição maior da arte do
retrato na segunda metade do século XIX.

Quem deixou as crianças entrarem?


Concebido para demonstrar a “semelhança moral” de seus personagens, o álbum de retratos oitocen-
tista é um objeto peculiar: uma envaginação do espaço público no interior do espaço privado. Seu
lugar próprio é a “ante-sala” ou a “sala de visitas”, de onde toda a intimidade havia sido praticamente
banida.32 Existem, é claro, imagens em que esta separação rigorosa entre público e privado, entre social
e familial, torna-se mais incerta. O caso mais evidente é o das fotografias de crianças, um dos destaques
da coleção apresentada neste livro.
De modo geral, meninos e rapazes são fotografados como “homenzinhos”. Entre o jovem Luís Lima e
Silva, apresentado aqui em um magnífico retrato pintado da década de 1860 (p. 59), e o rapaz baiano foto-
grafado por Generoso Portela no final do século pouca coisa muda além da casaca aristocrática do primeiro
que se transforma no terno republicano do segundo (com a devida corrente do relógio de bolso a indicar as
necessárias urgências da vida moderna). Em ambos, os traços de uma “maioridade” idiossincrática são bas-
tante visíveis: a mão trazida para junto do abdome, com o polegar levemente enfiado no colete, seguindo
o modelo imperial napoleônico que era freqüentemente adotado pelo próprio Pedro II, de um lado, e, de
outro, a bengala elegante, nitidamente “fora de escala”, inservível para um rapaz daquela estatura.
O tipo de adulto que um menino viria a representar vinculava-se sobretudo à imagem que o pai pro-
jetava de si mesmo. Nada pode, de fato, garantir os pendores intelectuais de uns (p. 83), mas é surpreen-

32
Antes da invenção do álbum de retratos privado, os carte de visite costumavam ficar arrumados sobre uma pequena mesa, junto à entrada da casa. Mais tarde,
passou-se a usar um cesto onde eles eram deixados pelos visitantes. Com a difusão do hábito e a multiplicação dos retratos, o uso de álbuns tornou-se inevitável.
Muitas casas mantinham fixados na porta um retrato de seu proprietário.
dente que outros, apesar de todo o esforço em trajá-los “decentemente”, tenham permanecido descalços
(p. 67). Nos bustos de meninos, porém, esses elementos “desconcertantes” tendem a desaparecer (p. 65,
p. 89 e p. 91). A não ser pela altura dos vestidos, a desinfantilização das meninas também era bastante
comum (p. 36, p. 179, e p. 81) e a face pública que porventura apresentavam remetia costumeiramente
a eventos da vida religiosa (p. 82).
É fácil observar que, à medida que as idades dos modelos diminuem, a função propriamente privada
e familial do álbum de retratos passa a predominar. Há muito pouca pesquisa sobre fotografia de crianças
no Brasil em meados do século XIX. Quando existirem, talvez venham a confirmar que os estúdios de
Henschel eram especialmente bem-sucedidos no ramo. Colocá-las empoleiradas é certamente um modo
de caracterizá-las como “crianças” (p. 36, p. 37 e p. 38). A leve inclinação no corpo também colabora para
uma impressão de fragilidade e de “pessoa” tenra (como se diria de uma planta), ainda em formação. O
retrato desses dois meninos, irmãos seguramente, é, neste sentido, uma obra-prima do gênero: o pequeno,
um pouco atemorizado, ampara-se no mais velho, segurando-lhe a mão, enquanto o maior, com ternura,
10 mas consciente de suas responsabilidades, enfrenta a inspeção rigorosa da objetiva (p. 39). Outra pequena
jóia, proveniente de um fotógrafo bem mais obscuro (Agio Pio), é esta fotografia de menina, repleta de si-
nais ambíguos e misteriosos. A pose, o gesto, assim como o traje, em particular as botinas, são de mocinha,
mas o empoleiramento e a inclinação do corpo são de menina (os cabelos curtos, raros à época, acentuam
essa ambigüidade). Existem dois elementos que tornam esta fotografia ainda mais misteriosa: a ave empa-
lhada (talvez um pequeno pavão) e o retrato encostado na caixa sobre a mesa. De quem seria? Dela própria?
De sua falecida mãe? Por que “falecida”? Porque, nela, uma certa melancolia parece emanar em resposta à
solidão de um olhar masculino adulto. Radicalmente diferente dos demais retratos de crianças aqui publi-
cados, esta imagem nos remete às fotografias de meninas realizadas por Lewis Carrol.
Só a partir de fins do século XIX e início do século XX é que os retratos infantis passam a assumir, com
mais freqüência, as características que vieram a se tornar marcas do gênero: a presença de elementos lúdicos
e animais de estimação (p. 79), e as fantasias de marinheiro, gondoleiro e similares (p. 185 e p. 29). Esta
última fotografia, de autoria do estúdio curitibano de Adolfo Volk, combina o barco e o traje de marujo,
típicos da fotografia infantil européia, com uma cerca rústica bem brasileira e uma planta tropical (onde
provavelmente os barquinhos dos pequenos descendentes de imigrantes terminavam por encalhar).
Mas se retornamos a meados do século XIX, apenas os bebês (provavelmente em função da necessi-
dade de mantê-los quietos durante a pose) têm direito a cenas propriamente domésticas, fotografados
nos braços que os sustentavam durante quase todo o tempo, suas amas-de-leite (p. 26 e p. 27). Curio-
samente, no entanto, a exceção que confirma a regra de exclusão da vida privada nos álbuns de retra-
tos oitocentistas fica por conta da família imperial. Ela pode ser vista aqui reunida no Alto da Tijuca
(p. 44-45) ou no que quase poderia ser um encontro em que priminhos são levados para brincar um
com o outro (p. 113). Ao contrário das demais famílias do reino, o caráter público da família imperial
era uma prerrogativa de estado.

Como fazer bons retratos (morais)


O repertório de poses e gestos no carte de visite não foi criado pela fotografia. Foi herdado da pintura, dos
livros de etiqueta e toda uma literatura sobre as aparências muito difundida no século XVIII (fisiono-
mia, frenologia, tipologia). Disdéri recomendava a seus modelos que se mantivessem quietos, “respiran-
do calmamente”, “piscando regularmente” e “olhando para o mesmo ponto.” Estavam terminantemente
proibidos de sorrir, ao menos de modo ostensivo. Podiam sorrir “com o olho”, concedia ele, mas esse
“sorriso interno” não deveria levar a nenhum tipo de contração nervosa (p. 93). Mas, se a expressão se
tornar grave demais, o fotógrafo deve “dissipar essa expressão desagradável com algumas poucas palavras,
ditas com bastante cuidado para que o modelo não perca sua imobilidade”.
Os conselhos do mestre aos fotógrafos são ainda mais interessantes e complexos. Para fazer bons re-
tratos, Disdéri recomenda que o artista aprenda a conhecer bem o “tipo” e o “caráter” de seus modelos,
isto é, preocupe-se em como eles são vistos por seus pares, e não como vêem a si mesmos. Os maneiris-
mos e atitudes que as pessoas demonstram à primeira vista seriam sempre ilusórios, o modelo deveria
ser “despido” dessas superficialidades para que o verdadeiro caráter viesse à tona – algo que parece não
ter acontecido com o candidato a dândi fotografado por Menna da Costa (p. 169). A pose assumida
então pelo modelo é a síntese alcançada pela compreensão desse caráter. Uma boa pose, ensina ele, deve
estar em harmonia com a “idade, estatura, hábitos e maneiras” do modelo e, a partir destes elementos,
oferecer a “maior beleza possível de que seja capaz” (p. 101 e p. 120). A pose nunca deve ser a expressão
“deste ou daquele momento”, mas do “indivíduo como um todo”. Finalmente, ela deve incluir um “mo-
11 vimento dominante ou gesto que governe todas as outras partes”33 (p. 121).
Resolvida a pose, o fotógrafo deve voltar-se para a “fisionomia”. Desafios terríveis o aguardam. Tudo ali
confunde e perturba a fixação do caráter: toda uma balbúrdia de pequenos movimentos de lábios, olhos e
das dezenas de músculos da face. Toda essa multiplicidade deve ser depurada do mundano e idiossincrático
de modo a fazer surgir a “melhor” expressão facial de cada indivíduo. O fotógrafo recorre à conversa. Neste
diálogo, aparentemente trivial, as expressões faciais do modelo sucedem-se caoticamente. O fotógrafo deve
retê-las na memória e imaginar sua adequação às poses. Afinal, uma configuração da fisionomia é escolhi-
da. Chega-se à etapa mais difícil do ato fotográfico. Como reviver essa expressão no rosto do modelo?
Disdéri tem consciência de que as expressões são, dominantemente, resultado de movimentos invo-
luntários dos músculos do rosto que refletem estados de espírito e sentimentos das pessoas. A tarefa de
reevocar no modelo o sentimento preciso correspondente à expressão escolhida é praticamente impossí-
vel. Então, ele lança mão de um recurso assombroso, o “pulo do gato” do fotógrafo de retratos oitocen-
tista. Baseado na “faculdade inata de imitação” dos seres humanos e no fato de que atitudes e expressões
são socialmente contagiosas, o fotógrafo assume, ele próprio, a expressão escolhida, “identificando-se”
com a “situação moral” desde onde ela emergiu. Induzida pela expressão do fotógrafo, a face do modelo
assume então a configuração desejada e o retrato pode ser feito. 34
Toda a dimensão do carte de visite, como retrato social dos indivíduos, revela-se aqui neste proce-
dimento mimético. O estúdio do retratista é um teatro social, onde o fotógrafo é ao mesmo tempo o
diretor, exercendo magnética autoridade sobre seu modelo, mas também um ator de infinitos talentos,
capaz de representar todas as máscaras morais convenientes à vida em sociedade. O modelo, por sua
vez, é o ator que segue as instruções de seu “maestro”, mas também um espectador, assumindo por
“simpatia” os sentimentos e expressões por ele sugeridos. Neste curioso jogo de espelhos, o modelo,
mirando-se no fotógrafo, torna-se espectador de si mesmo. E o carte de visite dá-se a ver plenamente
como um dispositivo social – e não apenas um tipo de retrato que ficou na moda por muito tempo. Um
dispositivo a serviço de uma pedagogia do sujeito social como ser moral, cujo comportamento público
decorre – alguns teóricos liberais afirmaram-no explicitamente – da sua capacidade reflexiva de ver a si
próprio na imagem do outro.35

33
A. Disdéri. Op. cit., p. 46.
34
Idem, p. 47.
Reunidos em álbuns, os carte de visite são a manifestação de uma utopia caracteristicamente moder-
na. Em face de uma experiência cotidiana cada vez mais fragmentada e acelerada, onde pertencimentos
tradicionais começavam a esmaecer-se, o pequeno-burguês do século XIX reconfortava-se com seu
Novo Mundo de imagens, cuja estabilidade era garantida pela existência de outras coleções das quais
ele estaria presumidamente ausente (os retratos licenciosos, as fotografias de identificação criminal, de
“tipos estrangeiros” e de insanos). O álbum de retratos consubstanciava o sonho de que, em alguma
instância, as características e talentos individuais dos homens “notáveis”, por mais disparatados que
fossem, reuniam-se numa “comunidade de semelhantes”, cuja existência virtual assegurava a possibili-
dade do “progresso social”.
O enfado que sentimos diante dessas imagens é apenas um sintoma de quão distantes estamos hoje
desse sonho. A mesma distância que separa o antigo Império Moral dos Notáveis da atual República
das Celebridades Instantâneas.

12

35
Cf Adam Smith. The theory of moral sentiments. Amherst (NY): Prometheus Books, 2000.

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