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A Cegueira da Governação

Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos


Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências,
vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes
as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o
vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais,
como o vedes? Estais cegos. Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores,
supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades
universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o
descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do
costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias,
vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de
tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o
vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.
Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra:
vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que
carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as
injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as
dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos
pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o
vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais,
como o vedes? Estais cegos.

Padre António Vieira, in "Sermões"


O Amor Fino

O amor fino não busca causa nem fruto. Se amo, porque me amam, tem o amor
causa; se amo, para que me amem, tem fruto: e amor fino não há-de ter porquê
nem para quê. Se amo, porque me amam, é obrigação, faço o que devo: se amo,
para que me amem, é negociação, busco o que desejo. Pois como há-de amar o
amor para ser fino? Amo, quia amo; amo, ut amem: amo, porque amo, e amo
para amar. Quem ama porque o amam é agradecido. quem ama, para que o
amem, é interesseiro: quem ama, não porque o amam, nem para que o amem,
só esse é fino.

Padre António Vieira, in "Sermões"


Amor e o Tempo

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba.
Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera !
São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar
pouco, que terem durado muito. São como as linhas, que partem do centro para
a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os
antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto
que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza,
o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as
setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê o que não via; e faz-lhe
crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença é
porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe
o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro
com o uso, quanto mais o amor ?! O mesmo amar é causa de não amar e o ter
amado muito, de amar menos.
Padre Antônio Vieira
O padre Antônio Vieira foi um missionário e escritor que dedicou sua vida à
política e à catequese dos índios brasileiros. Membro da Companhia de Jesus,
ordem religiosa com objetivo educacional e missionário, é conhecido até hoje
pelos seus Sermões.

http://www.citador.pt/textos/a/antonio-vieira

Sermão da Sexagésima
Padre Antônio Vieira

(...) Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta
maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e
pregai a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?!
As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os
Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos
animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os
Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e
incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de
criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos,
haviam de achar homens troncos,haviam de achar homens pedras. (...)

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