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Catequese 19

Com o “sacramento do corpo” o homem sente-se sujeito de santidade

1. O Livro do Gênesis faz notar que o homem e a mulher foram criados para o
matrimônio: “O homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão
uma só carne”. Deste modo se abre a grande perspectiva criadora da existência humana,
que sempre se renova mediante a “procriação” que é “auto-reprodução”. Tal perspectiva
está radicada na consciência da humanidade e também na particular compreensão do
significado esponsal do corpo, com a sua masculinidade e feminilidade. Homem e
mulher, no mistério da criação, constituem dom recíproco.
[...] Na narrativa da criação (especialmente em Gn 2, 23-25), “a mulher”
certamente não é só “objeto” para o homem, permanecendo embora ambos, um diante
da outra, em toda a plenitude da própria objetividade de criaturas, como “carne da
minha carne e osso dos meus ossos”, como varão e mulher, ambos nus. Só a nudez, que
torna “objeto” a mulher diante do homem ou vice-versa, é fonte de vergonha. “Não
sentiam vergonha”, quer dizer que a mulher não era para o homem “objeto” nem ele
para ela. A inocência interior como “pureza de coração”, em certo modo, tornava
impossível que dalguma maneira um fosse baixado pelo outro ao nível de mero objeto.
Se “não sentiam vergonha”, quer dizer que estavam unidos pela consciência do dom,
tinham recíproca consciência do significado esponsal dos seus corpos, em que se
exprimia a liberdade do dom e se manifestava toda a interior riqueza da pessoa com o
sujeito. Esta recíproca compenetração do “eu” das pessoas humanas, do homem e da
mulher, parece excluir subjetivamente qualquer “redução a objeto” [...].
2. O homem e a mulher, depois do pecado de origem, perderam a graça da
inocência original. A descoberta do significado esponsal do corpo deixará de ser para
eles simples realidade da revelação e da graça. Todavia, esse significado ficará como
dever imposto ao homem pelo ethos1 do dom, inscrito no fundo do coração humano,
como eco longínquo da inocência original. Desse significado esponsal formar-se-á o
amor humano na verdade interior e na sua autenticidade subjetiva. E o homem —
mesmo através do véu da vergonha— nele se descobrirá continuamente a si mesmo
como guarda do mistério do sujeito, isto é, da liberdade do dom, de tal maneira que a
defenderá de qualquer redução a posições de puro objeto.
3. Por agora, todavia, encontramo-nos diante do limiar da história terrestre do
homem. O homem e a mulher não o transpuseram ainda no sentido da consciência do
bem e do mal2. Estão mergulhados no mistério mesmo da criação, e a profundidade
deste mistério, oculto no coração deles, é a inocência, a graça, o amor e a justiça; Deus,
vendo toda a Sua obra, considerou-a muito boa. O homem aparece no mundo visível
como a mais alta expressão do dom divino, pois inclui em si a dimensão interior do

1 Ethos muitas vezes é utilizado por João Paulo II como “um modo de viver, um modo de agir”, mas não
somente um modus operandi, mas um modo de agir justificado. Ou seja, algo que envolve a vontade e a
razão.
2 Afinal, o momento que está sendo relatado por João Paulo II é ainda antes do pecado original. Ou seja,
podemos ver, nessas passagens, quem é verdadeiramente o homem e não somente aquilo que o pecado fez
com o homem. Por isso é tão importante a análise dessas passagens com a profundidade adequada.
dom. E com esta traz ao mundo a sua particular semelhança com Deus, graças à qual ele
transcende e domina também a sua “visibilidade” no mundo, a sua corporeidade, a sua
masculinidade ou feminilidade, e a sua nudez. Reflexo desta semelhança é também a
consciência primordial do significado esponsal do corpo, consciência penetrada pelo
mistério da inocência original3.
4. Assim, nesta dimensão, constitui-se um primordial sacramento, entendido
como sinal que transmite eficazmente ao mundo visível o mundo invisível oculto em
Deus desde a eternidade. E este é o mistério da Verdade e do Amor, o mistério da vida
divina, da qual o homem participa realmente. Na história do homem, é a inocência
original que inicia esta participação e é também fonte da felicidade original. O
sacramento, como sinal visível, constitui-se com o homem, enquanto “corpo”, mediante
a sua “visível” masculinidade e feminilidade. O corpo, de fato, e só ele, é capaz de
tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a
realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser
sinal d’Ele.
5. Portanto, no homem criado à imagem de Deus foi revelada, em certo sentido,
a sacramentalidade da criação, a sacramentalidade do mundo. O homem, com efeito,
mediante a sua corporeidade, a masculinidade e feminilidade, torna-se sinal visível da
economia da Verdade e do Amor, que tem a fonte no próprio Deus e foi revelada já no
mistério da criação. [...] O sacramento do mundo, e o sacramento do homem no mundo,
provém da fonte divina da santidade, e ao mesmo tempo é instituído para a santidade. A
inocência original, ligada à experiência do significado esponsal do corpo, é a santidade
mesma que permite ao homem exprimir-se de modo profundo com o próprio corpo, isto
precisamente mediante o “dom sincero” de si mesmo. A consciência do dom condiciona,
neste caso, “o sacramento do corpo”: o homem sente-se, no seu corpo de varão e de
mulher, sujeito de santidade.
6. Com tal consciência do significado do próprio corpo, o homem, como varão e
mulher, entra no mundo como sujeito de verdade e amor. Pode afirmar-se que Gênesis
2, 23-25 narra, por assim dizer, a primeira festa da humanidade, em toda a plenitude
original da experiência do significado esponsal do corpo: e é uma festa da humanidade,
que se origina nas fontes divinas da Verdade e do Amor, no mistério mesmo da criação.
Embora bem depressa, sobre aquela festa original, se venha a desdobrar o horizonte do
pecado e da morte, todavia já desde o mistério da criação chegamos a uma primeira
esperança: isto é, de que o fruto da economia divina da verdade e do amor, que se
revelou “ao princípio”, é não a Morte, mas a Vida, e não tanto a destruição do corpo do
homem criado “à imagem de Deus”, quanto de preferência a “chamada para a glória”.

3 Inocência original é aquele olhar puro e simples, em suma, o modo de olhar de Deus para toda sua
criação.

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